Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
87/14.9RATVR-B.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: DEFENSOR
INTERRUPÇÃO DO PRAZO EM CURSO
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
No quadro legal do Código de Processo Penal não ocorrem hiatos entre a representação de um defensor e a nomeação de outro e, consequentemente, inexiste qualquer interrupção do prazo para interposição de recurso.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

No Processo Comum Singular n.º 87/14.9TATVR, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Faro, Juiz 2 a Meritíssima Juíza proferiu em 20.1.2020 um despacho com o seguinte teor:
“Por despacho proferido em 19.10.2019 foi determinada a notificação ao arguido, por Via postal simples para a morada constante do TIR e confirmada pelo arguido no requerimento, da identidade e domicílio profissional (bem como demais contactos) da sua Ilustre Defensora nomeada, bem como, "de que o prazo de que dispõe para recorrer da sentença contra si proferida nestes autos se conta a partir desta notificação que se irá agora efectuar".
Tal notificação ocorreu no dia 03.11.2019 - 5.º dia posterior ao depósito, em 29.10.2019 (fls. 640) -, nos termos do disposto no artigo 113.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Referência electrónica CITIUS 7456410.
Pelo requerimento em apreço, datado de 10.12.2019, vem a Defensora do arguido, nomeada em 30.10.2019, na sequência de pedido de escusa deduzido pela anterior Defensora oficiosa, dizer que não foi notificada da sentença proferida nos autos, nem tem, da mesma, conhecimento, por não se mostrar digitalizada no processo electrónico.
Ora, a sentença proferida nos presentes autos em 10.03.2017 (a fls. 456 a 468) foi, nessa mesma data, notificada ao então Defensor oficioso do arguido, presente na leitura da mesma.
Assim sendo, e não obstante a sucessão de defensores oficiosos que se veio a verificar, tal notificação foi regularmente efectuada e não deve ser repetida.
À Ilustre Defensora Oficiosa nomeada nos autos em 30.10.2019, cabe inteirar-se do estado dos autos e intervir na fase em que os mesmos se encontram, cumprindo os prazos então em curso.
E o facto de a sentença não se mostrar digitalizada e junta ao processo electrónico, o que não era exigível à data em que foi proferida, não obsta ao cumprimento do prazo em curso, de recurso de sentença. Bastava que a Ilustre Defensora se tivesse dirigido ao tribunal para consultar os autos em suporte físico, ou viesse ao processo requerer a digitalização da mesma e sua inserção no processo eletrónico (como veio a ser feito na sequência do requerimento em apreço).
Não pode ser imputado ao tribunal o facto de a Ilustre Defensora, nomeada em 30.10.2019, só passados mais de 30 dias (prazo legal para a interposição de recurso) se ter apercebido que não conseguia consultar a sentença no processo electrónico.
Tendo já sido disponibilizada a sentença proferida nos autos em suporte electrónico, nada mais há, assim, a determinar, sendo certo que o requerimento em apreço nenhuma repercussão pode ter no decurso do prazo para interposição de recurso, o qual havia já decorrido integralmente a quando da apresentação de tal requerimento.
Notifique.

Referência electrónica CITIUS 7477435.
Pelo requerimento em apreço veio o arguido, em 16.12.2019, interpor recurso da sentença contra si proferida nos presentes autos.
Proferida a sentença em 10.03.2017, veio a ser notificada ao arguido em 25 de Julho de 2019 (cfr. fls. 632 a 634).
Sucede que, como se referiu supra, por despacho proferido em 19.10.2019, e com os fundamentos nele constantes, foi determinada a notificação ao arguido, por via postal simples para a morada constante do TIR e confirmada pelo arguido no requerimento, da identidade e domicílio profissional (bem como demais contactos) da sua Ilustre Defensora nomeada, bem como, de que o prazo de que dispunha para recorrer da sentença contra si proferida nestes autos se contaria a partir dessa notificação.
Tal notificação veio a ocorrer no dia 03.11.2019 - 5.0 dia posterior ao depósito, em 29.10.2019 (fls. 640) -, nos termos do disposto no artigo 113.0, n." 3, do Código de Processo Penal.
Assim, nos termos do disposto no artigo 411.°, n." 1, do Código de Processo Penal, dispunha o arguido de um prazo de 30 dias para interpor recurso da sentença contra si proferida, o qual, iniciando-se em 04.11.2019 veio a terminar em 03.12.2019.
É, pois, evidente que o requerimento de recurso apresentado em 16.12.2019 se mostra extemporâneo, pelo que não deve ser admitido.
Assim, decide-se não admitir o recurso apresentado pelo arguido (…), por se mostrar extemporâneo (artigo 414.°, n." 2 do Código de Processo Penal).
Notifique.

Referência electrónica CITIUS 7509142.
Atento o teor do requerimento com a referência electrónica CITIUS 7522909, nada mais a determinar, admitindo-se a junção dos documentos e considerando-se sem[1] efeito o requerimento propriamente dito.

Referência electrónica CITIUS 7522909 e 7541360.
Pelos requerimentos em apreço vem o arguido reclamar da guia de multa processual que lhe foi notificada, bem como da notificação da muita penal da sua responsabilidade, por considerar que não ocorreu ainda o trânsito em julgado da sentença proferida nos autos.
Ora, como já referido supra, o arguido foi notificado, em 03.11.2019, do despacho proferido em 19.10.2019.
Tal despacho determinava a notificação ao arguido de que dispunha de um prazo de 30 dias para recorrer da sentença proferida nos autos e da identidade do Ilustre Defensor nomeado nos autos.
Era da notificação que veio a ocorrer em 03.11.2019 que se contava o prazo de 30 dias para interposição de recurso.
A circunstância de em 29.10.2019 a Ilustre Defensora que se mostrava nomeada nos autos ter pedido escusa, implicaria a interrupção do prazo de interposição em curso - artigo 34.°, n." 2, da Lei n." 34/2004, de 29/07.
E nos termos do artigo 24.º, n.º 5, da mesma Lei, aplicável por remissão expressa do citado artigo 34.º, n.º 2, o prazo interrompido inicia-se a partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação.
Ora, tendo sido nomeada, em substituição da Ilustre Defensor Oficiosa que havia pedido escusa, a ora Defensora Oficiosa Dr." Sónia Martins, em 30.10.2019, reiniciar-se-ia, nessa data o prazo interrompido em virtude do pedido de escusa da Defensora anterior.
Sucede que, como vimos já, o arguido considera-se notificado em 03.11.2019, pelo que o prazo para interposição de recurso apenas se iniciou em 04.11.2019, já a actual Defensora Oficiosa estava nomeada nos autos.
A notificação ao arguido da nova Defensora Oficiosa nomeada nos autos nenhuma repercussão tem, pois, no decurso do prazo de interposição de recurso.
Conclui-se, então, que o trânsito em julgado certificado a fls. 644 com data de 03.12.2019 nenhum reparo merece, pelo que se mantém, bem como os actos processuais subsequentes.
Indeferem-se, pois, as reclamações apresentadas pelo arguido. Notifique.”



2. Do recurso
2.1. Das conclusões do arguido
Inconformado com a decisão o arguido interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“Em obediência ao art.º 412.°, n.º 1 e 2 do CPP, extraem-se, como resenha final, as alíneas subsequentes, com indicação dos fundamentos porquanto se peticiona a alteração da decisão proferida pelo Tribunal a quo:
A) O despacho que indefere a reclamação, do qual aqui se recorre, não teve em linha de conta para efeitos de prazo a substituição do defensor nomeado
B) Quando é certo que até ao dia 17/11/2019 o Arguido não teve, efectivamente, defensor a quem se dirigir e com quem reunir e consultar para o apoiar na interposição de recurso
C) Pois que o que se encontrava em funções havia pedido a substituição
D) De nada lhe valendo ...
E) Sendo certo que apenas representado por Profissional do Foro sobre quem deposite inteira confiança poderia o Arguido plenamente exercer os seus direitos.
F) E não através de profissional que sequer tinha interesse na manutenção do patrocínio, tanto que pediu escusa.
G) Entender que tal facto configura um aproveitamento indevido do prazo de recurso, no limite, configura uma clara violação do Acesso ao Direito previsto no art. 20° da CRP H) Que se encontra a ser negado com a decisão recorrida.
Deste modo o, apesar de tudo, Douto despacho que aprecia a reclamação com a Referência electrónica CITIUS 7541360 deverá ser integralmente revogado, dando sem efeito a guia emitida só assim se fazendo a Costumada Justiça!”

2.2. Das contra-alegações do Ministério Público em primeira instância
Motivou o MP defendendo o acerto da decisão recorrida.
2.3. Do parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser julgada a improcedência total do recurso interposto pelo arguido.
2.4. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questão a examinar
Analisadas as conclusões de recurso a questão a conhecer é:
- Saber se o despacho que não admitiu a reclamação com a Referência 7541360 é violador do Princípio do Acesso ao Direito previsto no artigo 20.° da CRP.
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3. Apreciação do recurso apresentado pelo arguido
Apreciemos então o recurso interposto tendo em consideração a Constituição da República Portuguesa, o princípio do acesso ao direito e aos tribunais (Lei n.º 34/2004 de 29 de julho), o princípio da celeridade em processo penal e o artigo 66.º, n.º 4 do CPP.
A Constituição da República Portuguesa estabelece, no artigo 32.º, as garantias do Processo Penal, entre as quais, no seu n.º 2, o princípio da celeridade, de acordo com o qual todo o arguido deve ser julgado no mais curto espaço de tempo compatível com as garantias de defesa.
A compatibilidade entre os dois princípios constitucionais no âmbito do patrocínio judiciário é feita, de acordo com o n.º 2 do artigo 20.º da CRP, nos termos da Lei n.º 34/2004 de 29 de julho.
No direito processual penal, na sequência de entendimento, por exemplo já constante do artigo 51.º, n.º 3 do CPC[2] sobre a epígrafeNomeação oficiosa de advogado”, a aplicação do processo civil é afastada como regime tendencialmente subsidiário para ser dada a primazia, nesta matéria, à aplicação dos princípios do processo penal sobre o processo civil.
Como resulta daquele artigo, tal primazia resulta da necessidade de ter em conta na nomeação de defensores substitutos, que estando em causa, no processo penal, prazos que podem contender com a liberdade das pessoas, o princípio da celeridade, respeitadas as garantias mínimas da defesa e em particular das relativas ao patrocínio judiciário, deve sobrelevar, na medida adequada, as garantias de defesa do arguido.
É no contexto da visão global da Constituição da República Portuguesa, nesta matéria, e da Diretiva n.º 2003/8/CE do Conselho de 27 de janeiro que a Lei n.º 34/2004 de 29 de julho atualizada pela Lei n.º 47/2007 de 28 de agosto estabeleceu um regime de acesso de proteção jurídica aos tribunais cíveis e criminais diferenciado, consoante o patrono (no processo civil) ou o defensor (no processo penal), sejam substituídos no decorrer dos autos, designadamente quando se verifica um pedido de escusa do patrono ou do defensor.
Como resulta do artigo 39.º da Lei 34/2004, as substituições em processo penal são realizadas de acordo com o estabelecido no Código Processo Penal, no capítulo IV daquela Lei e na Portaria a que se refere o n.º 2 do artigo 45.º daquela Lei (A Portaria reporta-se à admissão dos profissionais ao sistema de acesso ao direito, a nomeação do patrono e do defensor e o pagamento da respetiva compensação).
Assim, o princípio que rege a substituição de defensor nos processos penais não se compadece com as regras do processo civil. Na jurisdição cível procura-se assegurar que o patrocínio e a substituição do patrono sejam notificados à parte e esta possa assegurar com o mandatário substituto, o conhecimento da substituição e do substituto e a preparar, de acordo com esse conhecimento, a respetiva atuação processual.
No processo penal, tendo sido estabelecido no artigo 66.º, n.º 4 do CPP que “Enquanto não for substituído o defensor nomeado para um ato mantém-se para os actos subsequentes do processo”, assegura-se que não haverá hiatos temporais na representação do arguido, visando-se evitar demoras no processo. O mesmo princípio decorre também do n.º 10 do artigo 39.º da Lei n.º 34/2004 de 29 de julho, quando, como regra geral, menciona que “o requerimento para a concessão de apoio judiciário não afeta a marcha do processo” ou no n.º 3 do artigo 41.º da mesma Lei quando se refere que “o defensor nomeado para um ato pode manter-se para os atos subsequentes do processo nos termos a regulamentar na portaria referida no nº 2 do artigo 45.º”.
Problema distinto do referido será o da eventual responsabilidade disciplinar, ou outra, dos defensores que se substituindo uns aos outros na sequência de pedidos de escusa ou de outros impedimentos, não assegurem os direitos de defesa dos arguidos que representam e não lhes tenham dado conhecimento das diligências processuais em curso, entre o momento do pedido de escusa ou quando deixam de intervir no processo e o instante em que o novo advogado é nomeado. Esse será, porém, um problema da esfera da competência da Ordem dos Advogados, não contendendo com a regra contida no n.º 4 do artigo 66.º do CPP, pois em momento algum nomeado um defensor ao arguido fica por assegurar a sua defesa até à nomeação do seu substituto.
O entendimento referido já foi sufragado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 487/2018 de 22 de novembro[3], onde se referiu que subjacente ao artigo 66.º, n.º 4 do CPP se encontra o princípio da celeridade processual, sem prejuízo das garantias de defesa, e pelos Acórdãos da Relação de Coimbra de 7.12.2016[4] e do STJ de 23.6.2005[5].
O recorrente, ao reclamar da guia de multa que lhe foi notificada, pela referência eletrónica 7541360, bem como da notificação da multa penal da sua responsabilidade, por ainda não haver transitado em julgado a sentença proferida nos autos, baseou-se, porém, bem como a decisão recorrida, na aplicabilidade, ao caso, do artigo 34.º da Lei 34/2004 de 29/07.
Tendo o arguido, porém, sido notificado em 3.11.2019 do despacho proferido em 19.10.2019 e tendo tido sempre um defensor a quem se podia dirigir nos termos do artigo 66.º, n.º 4 do CPP, não pode invocar só ter tido defensor substituído em 17/11/2019.
Não pode, também, alegar ter o prazo acrescido de trinta dias devido pela substituição do defensor, pois, nos termos processuais penais aplicáveis, nunca deixou de ter defensor que pudesse servir de suporte à apresentação da sua defesa.
Por fim, também não assiste razão ao Tribunal a quo ao referir ter ocorrido um eventual prazo de interrupção do prazo entre o pedido de escusa de um defensor e a nomeação de outro defensor, por virtude de o artigo 34.º, n.º 2 da Lei 34/2004 de 29/07 ser inaplicável, dado tratar-se de substituição de defensor no âmbito do artigo 66.º, n.º 4 do CPP.
No quadro legal do Código Processo Penal, efetivamente, não ocorrem hiatos entre a representação de um defensor e a nomeação de outro e consequentemente, inexistindo qualquer interrupção do prazo para interposição do recurso.
Conclui-se, pois, embora com fundamentação diversa, que o trânsito em julgado certificado a fls. 644, com data de 3.12.2019, se deve manter bem como os atos processuais subsequentes negando-se provimento ao recurso interposto.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido e em consequência, mantem-se a decisão recorrida ainda que com diversa fundamentação.
2. Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.ºs 1 do CPP e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III anexa, do Código das Custas Processuais).
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Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 8 de setembro de 2020.
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(Beatriz Marques Borges - Relatora)
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(Martinho Cardoso)
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[1] No original, por lapso, consta a expressão “em” ao invés de “sem”, que se optou por corrigir.
[2] O artigo 51.º, n.º 3 do CPC estabelece que “À nomeação de advogado nos casos de urgência aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto para as nomeações urgentes em processo penal.”.
[3] Publicado no Diário da República n.º 225/2018, Série II de 2018-11-22 a páginas: 31152 – 31152 e disponível para consulta em: https://dre.pt/web/guest/home/-/dre/117047019/details/maximized.
[4] Proferido no processo n.º 8785/13. 8TDPRT-A.C1, relatado por Alcina da Costa Ribeiro e disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtrc.
[5] Proferido no processo n.º 2251/05- 5ª Secção, relatado por Carmona da Mota e cujo sumário se encontra disponível para consulta em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=19747&codarea=2.