Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
364/12.3GAOLH.E1
Relator: ANTÓNIO CLEMENTE LIMA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MEDIDA DE SEGURANÇA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
Data do Acordão: 05/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I - Não se identificando, nem se verificando, no caso, circunstâncias especiais que, razoável e prudencialmente, concretizem e abonem a esperança de que a prevenção da perigosidade do arguido possa ainda ser alcançada em liberdade, sustentando o favor rei, e um sentido de uma intervenção mínima, a suspensão da execução do internamento, prevenida no artigo 98.º n.º 1 do Código Penal, não se mostra suficiente para realizar as finalidades preventivas da medida de segurança de internamento de inimputável.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I

1 – Nos autos em referência, o arguido, A, foi acusado, pelo Ministério Público, da prática de factos consubstanciadores da autoria material de dois crimes de violência doméstica, cada um previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto no artigo 152.º n.os 1 alínea d) e 2, do Código Penal (CP), como reincidente, nos termos prevenidos no artigo 75.º, do CP.

2 – Em audiência de julgamento, foi comunicada ao arguido alteração não substancial e da qualificação jurídica dos factos imputados na acusação.

3 – Por acórdão de 8 de Janeiro de 2014, os Mm.os Juízes do Tribunal a quo decidiram nos seguintes termos:

«Pelo exposto, acordam os juízes que compõem este tribunal colectivo em: - declarar que o arguido A. praticou dois factos ilícitos e típicos previstos pelo art. 152º n.º1 al. d) e n.º2 do CP, aplicando a medida de segurança de internamento, em estabelecimento vocacionado para tratamento e segurança, por período decorrente da lei, nos termos expostos - sem limite mínimo e com limite máximo equivalente a 5 (cinco) anos; - determinar que o arguido continue por ora sujeito à medida de coacção de prisão preventiva; - determinar que se notifique o defensor e a mãe do arguido para, em 10 dias, se pronunciarem sobre a aplicação de internamento preventivo ao arguido (independentemente do trânsito desta decisão)».

4 – O arguido interpôs recurso deste acórdão.

Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«1ª O recorrente encontra-se acusado de crime de violência doméstica, ora público

2ª Foi julgada a sua imputabilidade diminuída, e aplicada medida de segurança de internamento

3ª Esta medida de segurança, sem limite mínimo, cessará quando for verificado que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem

4ª Deverá este Tribunal aceitar que, no caso, os melhores juízes são os pais do recorrente

5ª Os pais do recorrente deram-lhe o seu perdão

6ª Essas declarações têm o objectivo e inequívoco significado de atestação, por parte das vítimas (pais do recorrente) de que, para eles, a actual perigosidade criminal do recorrente é inexistente

7ª Consta do último relatório médico pericial, de 26/06/2013, que o recorrente se encontra " ... numa situação clínico-patológica que cumpre critérios para proceder ao tratamento do doente em regime ambulatório compulsivo . ... "

8ª Disposição legal que terá sido menos bem observada: art. 91º, nº 1, CP

9ª Disposição legal que teria sido melhor observada: a mesma, com o entendimento de que, atento o teor do perdão dos ofendidos e o do relatório médico-pericial, se justifica a suspensão da medida de segurança de internamento, e o tratamento em regime ambulatório

10ª Pede que seja prolatada decisão que, alterando o acórdão recorrido, determine a suspensão da execução da medida de segurança».

5 – O Ministério Público, em 1.ª instância, respondeu ao recurso, defendendo a confirmação do decidido.

Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:

«a) A medida de internamento aplicada ao arguido não pode ser suspensa na sua execução porque em concreto as finalidades preventivas de tal medida o impedem;

b) O arguido já foi condenado pela prática de vários crimes, inclusive crimes contra as pessoas, cometendo os factos aqui em causa logo que beneficiou de liberdade condicional, sendo previsível que em liberdade pratique factos idênticos;

c) Também a suspensão da medida de internamento colocaria em causa a defesa da ordem jurídica e da paz social;

d) Não se verificando as exigências previstas no art. 98.º n.os 1 e 2, com referência ao art. 91.º n.º 2, do CP, não é admissível a suspensão da execução do internamento defendida pelo recorrente».

6 – Nesta instância, o Ministério Público, abonado na resposta ao recurso, é de parecer que o mesmo não deve lograr provimento.

7 – Atento o teor das conclusões da motivação recursiva, o objecto do recurso vem definido na questão de saber se, por indevida interpretação do disposto no artigo 91.º n.º 1 do CP, os Mm.os Juízes do Tribunal a quo incorreram em erro de jure, no ponto em que, desconsiderando o teor do perdão dos ofendidos e do relatório médico-pericial, deixaram de determinar a suspensão da medida de segurança de internamento e o tratamento em regime ambulatório.

II

8 – Importa, antes do mais, fazer presente a decisão sindicada, desde logo na parcela atinente aos factos, sedimentados, como provados, na instância.

Tal seja:
«1) O arguido A. é descendente comum de B e C (nascidos, respectivamente, em 20 de Junho de 1946 e 17 de Outubro de 1950), partilhando com eles, em economia comum, a residência sita na Rua..., Fuseta, desde o início do ano de 2009, altura em que foi concedida liberdade condicional ao arguido no âmbito da execução da pena aplicada no processo ---/05.3GAOLH.

2) No processo ---/05.3GAOLH, por acórdão de 24 de Novembro de 2006, transitado em julgado em 2 de Janeiro de 2007, o arguido foi condenado na pena conjunta de quatro anos de prisão, a cumprir mediante internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis, pela prática de seis crimes de ofensa à integridade física qualificada (art. 143º n.º1, 146º n.º1 e 2 e 132º n.º2 al. a) do CP), um crime de ofensas à integridade física qualificada, na forma tentada (art. 143º n.º1, 146º n.º1 e 2 e 132º n.º2 al. a) do CP), e um crime de ofensa à integridade física simples (art. 143º n.º1 do CP), beneficiando de atenuação especial, por factos ocorridos no período temporal que mediou entre Fevereiro de 2004 e 16 de Setembro de 2005 (ofensas qualificadas), sendo nestes crimes de ofensas qualificadas ofendidos os seus progenitores. O crime de ofensa à integridade física simples ocorreu em 26 de Novembro de 2005 (sendo ofendida pessoa não familiar do arguido).

3) O arguido esteve preso ininterruptamente entre 25.05.2006 e 24.01.2009, altura em que lhe foi concedida a mencionada liberdade condicional e libertado - a pena foi declarada extinta por referência a 24.05.2010 por despacho de 28.01.2011.

4) O arguido foi internado compulsivamente nos anos de 2009, 2011 e 2012.

5) O arguido foi atropelado aos 13 anos com traumatismo crânio encefálico e sofreu outro traumatismo idêntico por agressão aos 23 anos.

6) Cerca de um mês após ter sido libertado, o arguido começou a pedir dinheiro à mãe, aos gritos, o que fez várias vezes, na residência comum.

7) Cerca de um mês após ter sido libertado, e até ser detido, o arguido começou a chamar filhos da puta e paspalhões aos seus pais quase todos os dias, na residência comum.

8) No mesmo período, por várias vezes, o arguido, sentado na cama do seu quarto, dizia, referindo-se aos seus pais, que os matava.

9) No mesmo período, o arguido deu murros nas paredes várias vezes, e deu pelo menos uma chapada e um pontapé numa porta, na presença dos pais, na residência comum.

10) Em data não apurada de 2010, o arguido entrou no quarto dos pais na residência comum, onde o seu pai estava deitado na cama, disse «o culpado és tu» (não sabendo o seu pai a que este se referia) e desferiu-lhe uma pancada com um isqueiro na perna, causando-lhe dores.

11) No mesmo período, em data não determinada e no interior da residência comum, o arguido empurrou a sua progenitora, C, contra o frigorífico da cozinha.

12) No mesmo período, em data não determinada e no interior da residência comum, o arguido agarrou o cabelo do seu progenitor, sem puxar nem causar dor.

13) No mesmo período, em data não determinada e no interior da residência comum, o arguido torceu os dedos da mão do seu progenitor, B, causando-lhe dores.

14) No mesmo período, pelo menos três vezes, o arguido, ao passar na sala onde o seu pai estava sentado no sofá, abeirou-se dele e deu-lhe uma pancada ligeira na cabeça.

15) O arguido sabia como agia e quis agir da forma descrita, sabendo que, ao adoptar os mencionados comportamentos, molestava o corpo, a honra e consideração, e a liberdade de acção dos seus progenitores, causando-lhes sofrimento, vergonha e humilhação, e maltratando-os, conforme quis e conseguiu, provocando-lhes inquietação e receio que concretizasse as suas palavras.

16) Agiu consciente e deliberadamente.

17) Aquando da prática dos factos, o arguido padecia de distúrbio da personalidade de tipo limite, acompanhado de traços paranóides e, em menor medida, anti-sociais.

18) Tinha capacidade para avaliar o carácter proibido dos actos (sabendo assim que a sua conduta era proibida e punida por lei), e se determinar de acordo com essa avaliação, mas, por força do descrito em 17), aquela capacidade para avaliar o carácter proibido dos actos estava sensivelmente diminuída.

19) A doença do arguido é crónica e, por via dela, pode voltar a praticar factos do mesmo género e gravidade.

20) O arguido é o único descendente de um agregado familiar com um estrato socioeconómico mediano e com uma dinâmica relacional favorável a um processo de desenvolvimento normativo, em termos psico-afectivos.

Após a conclusão do 6º ano de escolaridade aos 14 anos de idade, o arguido integrou o Centro de Formação Profissional para o Sector das Pescas – FORPESCAS, em Olhão, o qual frequentou durante cerca de 4 anos, obtendo a equivalência ao 9º ano de escolaridade e a cédula marítima de marinheiro/pescador, actividade desenvolvida pelo progenitor.

Posteriormente integrou, de imediato, o mercado de trabalho, como marinheiro, num iate particular, actividade que desenvolveu até aos 21 anos de idade, de forma isenta de quaisquer reparos, tendo-se desvinculado na sequência de um internamento hospital prolongado, por motivos de traumatismo crânio-encefálico (tendo durante o período da adolescência já vivenciado um traumatismo similar), que requereu intervenção cirúrgica.

A reintegração no mercado de trabalho viria a ocorrer com o apoio do pai, numa embarcação piscatória onde aquele trabalhava. Contudo, decorridos cerca de oito meses, o arguido desvincular-se-ia por incompatibilidades com a entidade patronal, na sequência de um comportamento laboral pautado por atitudes de agressividade, contestação das regras e métodos de trabalho instituídos.

O gradual acentuar da agressividade e o registo de ideias persecutórias, concomitante com o desenvolvimento de hábitos de consumo excessivo de bebidas alcoólicas, viria a estar na génese de acompanhamento psiquiátrico/psicológico em 1995 (aos 23 anos de idade), tendo então o arguido reagido de forma favorável à medicação prescrita. Contudo, em 2004, e face ao não cumprimento de um acompanhamento psiquiátrico regular/toma aleatória da medicação prescrita, concomitante com a manutenção de comportamentos aditivos (para além do álcool, haxixe), o arguido começou a protagonizar, em contexto familiar, conflitos face à recusa dos pais em satisfazerem as suas solicitações frequentes de valores monetários, situação que se agravou face a alterações da situação económica do grupo familiar do arguido (inactividade laboral do pai do arguido, por motivos de baixa clínica, iniciada em Dezembro de 2005, situação que determinou o recurso ao apoio dos serviços de acção social local, sendo que o subsídio por invalidez auferido pelo arguido de cerca de 170 euros era gerido pelos pais, por forma a controlar os seus comportamentos aditivos). Por outro lado, a mãe apresentava então sintomatologia depressiva e o pai consumos pontuais de álcool em excesso.

Durante o período de reclusão no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, e apesar de tratamento psiquiátrico adequado, o arguido continuava a apresentar, na globalidade, dificuldades no relacionamento interpessoal (fácil irascibilidade quando contrariado), não denotando uma adequada consciência crítica relativamente aos factos subjacentes à sua condenação, e revelando indiferença pelas consequências dos seus actos ao nível das vítimas/pais. O registo de licenças de saídas de curta duração sem registo de anomalias e a disponibilidade dos pais para apoio no seu processo de reinserção social viria a constituir condição favorável à concessão de liberdade condicional.

No início do período de liberdade condicional retomou os hábitos de consumo de haxixe e consequentes exigências de valores monetários superiores aos 10 euros/diários estipulados pelos pais. Após ser presente, em meio livre, a uma primeira consulta de psiquiatria, A. registou comportamentos que viriam a determinar internamento compulsivo em Maio/09. A indicação médica para efectuar uma injecção mensal, concomitante com as diversas diligências efectuadas pelos serviços de reinserção social no sentido do cumprimento da referida indicação médica, viria a traduzir-se numa estabilização comportamental do arguido, sendo de salientar, contudo, a manutenção de uma atitude de rejeição ao acompanhamento psiquiátrico. Viria a cumprir o plano de consultas e tratamento fixado pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital de Faro durante o período de liberdade condicional, já não se disponibilizando, contudo, a efectuar a injecção mensal de Maio/2010, pelo facto da mesma dever ser aplicada em data posterior ao término da medida em 24 de Maio de 2010.

À data dos factos mantinha-se integrado no agregado de origem, residente na morada indicada nos autos, agregado que mantinha um quadro de subsistência económica assente na pensão de reforma do pai do arguido e na pensão de invalidez deste.

Manteve a postura de rejeição quanto a um regular acompanhamento/tratamento psiquiátrico.

Em período não determinado mas posterior ao último internamento compulsivo no ano transacto, por indicação médica, foi suspensa a medicação injectável.

Em meio prisional tem sido presente a consultas de psiquiatria, encontrando-se a efectuar a medicação prescrita – registando-se, por vezes, dificuldade na sua administração face á atitude de rejeição do arguido -, sem que, até ao momento, se tenham verificado mudanças significativas no seu comportamento.

Apresenta um discurso indiciador de incapacidade de efectuar qualquer avaliação crítica dos seus comportamentos (aditivos ou de agressividade), negando a necessidade de intervenção médica psiquiátrica no seu caso e hostilizando o sistema legal ou qualquer entidade técnica de opinião contrária.

Actualmente, o enquadramento familiar apresenta maior fragilidade face ao internamento hospitalar do pai, por motivos cardíacos, encontrando-se a realizar sessões de fisioterapia face à perda de mobilidade.

Ao nível da comunidade, e pese embora a compreensão dos elementos da vizinhança relativamente ao quadro clínico do arguido, é notória uma saturação no que concerne à perpetuação da situação e preocupação face ao bem estar dos pais do arguido.

Para além da condenação referida em 2), foi ainda condenado: - por decisão de 27.04.2001, transitada em 01.10.2001 [proc. ---/99 do Tribunal de Olhão], nas penas de 60 e 80 dias de multa, e na pena conjunta de 110 dias de multa, à taxa diária de 700$00, pela prática em 20.08.99 de um crime de condução sob o efeito do álcool e de um crime de desobediência, p. pelos art. 292º e 348º n.º1 al. b) do CP - pena extinta pelo cumprimento. - por decisão de 12.04.2002, transitada em 27.04.2002 [proc. ---/99 do Tribunal de Tavira], na pena de 120 dias de multa, e na pena acessória de 9 meses de inibição de conduzir, pela prática em 16.12.99 de um crime de condução sob o efeito do álcool, p. pelo art. 292º do CP - pena extinta pelo cumprimento. - por decisão de 26.09.2002, transitada em 11.10.2002 [proc. 233/01 do Tribunal de Olhão], na pena de 66 dias de multa, à taxa diária de 2 euros, pela prática em 27.11.2001 de um crime de desobediência, p. pelo art. 348º n.º1 al. b) do CP - pena extinta pelo cumprimento.»

9 – Em matéria de «apreciação dos crimes imputados e suas consequências», os Mm.os Juízes do Tribunal a quo ponderaram nos seguintes termos:

«Imputa-se ao arguido a prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pela al. d) do nº 1 e 2 do art. 152º do CP (como reincidente).

Segundo esta norma, incorre em responsabilidade criminal:

1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: d) a pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite.

A punição é agravada se o agente praticar o facto no domicílio comum ou no domicílio da vítima (n.º2).

Decorre do despacho de acusação que este se baseia na situação de particular indefesa das vítimas em razão da sua idade. O legislador não indica a idade antes ou depois da qual se verifica este elemento do tipo, pelo que ela não constitui um dado absoluto mas relativo. Sucede, porém, que os pais do arguido já atingiram um patamar etário em que a sua idade tem necessários efeitos físicos no corpo e estrutura mental da pessoa, debilitando-a. Tal acentua-se ainda, de um lado, pelos dados do anterior processo, onde as sucessivas agressões protagonizadas pelo arguido contra os seus pais (em 2004/5) revelam já uma sensível sujeição dos pais do arguido (e, neste sentido, debilidade destes), que naturalmente se acentuou com os anos entretanto decorridos. E, de outro lado, pela idade do arguido, que lhe garante notória prevalência física. Verifica-se, pois, este elemento típico.

De outra banda, a visão de conjunto dos factos permitem atribuir à conduta do arguido um carácter ofensivo grave, com uma intensidade que degrada a dignidade das vítimas. Assim, começa por notar-se o carácter quase quotidiano das agressões verbais: a sua continuação e manutenção é suficiente para criar um ambiente agressivo que, com o passar do tempo, se torna cada vez mais acintoso, sufocante e intolerável. De mais a mais quando ocorrem na residência comum – espaço de reserva, descanso e tranquilidade, que fica necessariamente comprometido na sua integridade e, assim, também compromete a integridade do bem estar psíquico dos visados. E sem que estes possam dele escapar (pois o seu espaço de escape, de reserva, é aquele onde justamente ocorrem as agressões). Depois, é neste pano de fundo que surgem os episódios das ameaças e dos contactos físicos, os quais dão maior gravidade e ofensividade às agressões verbais, ao mesmo tempo que estas atribuem maior seriedade às ameaças e contactos físicos: aquela ofensividade verbal torna mais séria a ameaça e dá um contexto mais perigoso aos contactos físicos ocorridos (mesmo quando tenham um perfil pouco agressivo), pois eles são sempre um escalamento face às ofensas verbais, e fica sempre presente a ideia de que podem eles mesmos, esses contactos físicos, escalar para comportamentos mais graves. Os visados estão a todo o momento presos à expectativa sobre a conduta, imprevisível, do arguido, e ao mesmo tempo sujeitos a suportar uma constante e reiterada violação pessoal, num quadro que se prolonga por anos.

Donde se considerar ocorrer um tratamento degradante, preenchendo-se o elemento típico «infligir maus tratos». Actuando com conhecimento e vontade de agir nos moldes descritos, fica preenchida a tipicidade, objectiva e subjectiva, do delito imputado.

Ocorre ainda a circunstância agravante imputada pois os factos ocorrem no domicílio comum (domicílio do arguido e das vítimas).

E ocorre também a pluralidade delitiva imputada dada a pluralidade (dualidade) de pessoas visadas.

Por fim, verifica-se que o arguido tinha capacidade para avaliar a ilicitude dos factos, e de se determinar de acordo com essa avaliação, embora a capacidade para avaliar a ilicitude existisse em termos sensivelmente diminuídos. Ocorre, pois, uma situação de imputabilidade diminuída, a qual constitui realidade distinta da inimputabilidade e significaria, à partida, que o arguido ainda seria capaz de suportar um juízo de censura (a natureza pública dos crimes torna irrelevante a declaração de perdão dos pais do arguido).

Releva neste ponto, porém, o disposto no art. 20º n.º 2 do CP, onde se dispõe que «pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída», acrescentando o n.º3 desse artigo que «a comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior».

A anomalia psíquica do arguido tem carácter acidental e incontrolável, e manifestou-se na prática dos factos sob a forma de uma diminuição sensível da sua capacidade para avaliar a ilicitude dos factos.

Além disso, os factos têm uma relação próxima com os factos praticados no proc. 331/05, e em parte até uma relação de identidade (ofensas físicas), estando em causa em regra os mesmos visados (os progenitores do arguido), e tendo sido praticados logo após a sua libertação, o que tende a revelar a sua impermeabilidade à pena de prisão aplicada e assim a mostrar que o arguido deve, apesar da sua imputabilidade diminuída, ser declarado inimputável, ao abrigo do citado 20º n.º2 do CP: a sua propensão delitiva não lhe deve ser censurada dado o peso da sua problemática psíquica, que não domina.

Pese embora inexista expressa referência legal a tal asserção [decerto pela sua inutilidade, mas pode admitir-se que ela deriva, a contrario, dos art. 19º e 20º do CP], é pacificamente aceite que a imputabilidade constitui o pressuposto essencial para a formulação de um juízo de culpa.

Simetricamente, a inimputabilidade exclui a capacidade de culpa do agente, inviabilizando a formulação de qualquer juízo de censura e, assim, a sua punição pela prática de um crime, com a aplicação de uma pena. Tal ainda vale, obviamente, para o inimputável assim considerado ao abrigo do art. 20º n.º2 do CP - apesar de ter capacidade (embora diminuída) para aferir a ilicitude dos factos, ele é conduzido pela sua doença, em termos que justificam a exclusão da sua capacidade de censura.

Na exposição realizada vai implícita a compreensão de que a questão da inimputabilidade pressupõe que o agente pratica um facto ilícito típico [como o art. 91.º n.º 1 do CP expressamente refere] (e neste facto se compreende o dolo do tipo, enquanto representação e vontade de prática dos factos), como no caso efectivamente se apurou ter ocorrido. Acresce que a natureza da inimputabilidade declarada no caso também supõe alguma capacidade de apreensão da ilicitude dos factos, embora consideravelmente diminuída, como também se afirma nos factos provados.

Como se disse, sem culpa não existe a prática de um crime nem, por isso, a susceptibilidade de o agente ser sancionado com uma pena. Mas, verificando-se a prática de um facto ilícito típico, surge a possibilidade de ser aplicada uma medida de segurança, nos termos do art. 91º n.º1 do CP, onde se estipula que quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do art. 20º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.

São assim elementos determinantes da aplicação da medida de segurança: i) prática de facto ilícito típico; ii) inimputabilidade do agente; iii) gravidade do facto praticado; iv) receio fundado, em função da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, de que o agente possa cometer outros factos da mesma espécie (perigosidade futura).

Já ficou demonstrada, no caso, a verificação dos elementos descritos em i) e ii). A ocorrência do requisito iii) deriva da natureza (pessoal e essencial) dos valores em causa.

Quanto ao receio (fundado) da prática de outros factos semelhantes, está demonstrado que a situação psíquica do arguido (causa), crónica, poderá levá-lo a reiterar a conduta delitiva (efeito), existindo assim o risco de repetição de factos semelhantes [perigosidade criminal referida em parte ao mesmo tipo de delitos e, por isso, aos mesmos bens jurídicos (ofensa física), e noutra parte a delitos próximos, por contenderem com valores pessoais igualmente relevantes]: a sua perigosidade mantém-se, sem que ocorram circunstâncias que a debelem ou que a mostrem esgotada nos factos típicos praticados (aliás, a anterior condenação contraria esta possibilidade). Esta perigosidade é ainda acentuada pela atitude do arguido, que não reconhece a sua situação médica nem aceita a validade de qualquer intervenção correspondente. Verifica-se, pois, também este requisito, pelo que se justifica a aplicação da medida de segurança de internamento.

A concreta duração da medida de segurança de internamento depende, em princípio, apenas da perigosidade do agente (arts. 92º n.º1 e 93º n.º1 do CP). A lei só fixa a sua duração mínima no caso específico do art. 91º n.º2 do CP (fixando-se um limite mínimo de 3 anos - v. ainda art. 93º n.º3 do CP), que não vale no caso [apesar de estarem em causa crimes contra as pessoas, nenhum +e punível com pena de prisão superior a 5 anos], prevendo depois, em termos gerais, a sua duração máxima (art. 92º n.º2 do CP). Sem que isto corresponda à fixação de uma «moldura» da medida de segurança, a usar no julgamento para fixar a sua duração precisa ou limites concretos. Quer porque estes limites têm um valor meramente indicativo ou tendencial pois aquele limite mínimo (que o art. 93º n.º3 do CP torna a sublinhar) conhece a excepção prevista na parte final do citado art. 91º n.º2 (que implica uma fixação judicial mas não vale no caso), e o limite máximo abstractamente fixado também compreende a excepção prevista no art. 92º n.º3 do CP. Quer porque a medida de segurança cessa, independentemente da sua concreta duração, quando cessar a perigosidade que está na sua base (art. 92º n.º1 do CP), e esta cessação só no decurso da execução da própria medida se poderá averiguar [a invocação do regime do art. 40º n.º3 do CP como argumento a favor da fixação de uma medida máxima da medida de segurança não colhe pois a exigência de proporcionalidade que a norma efectua não equivale à exigência de fixação de uma certa duração, ou de um máximo distinto daquele que a lei directamente fixa; esta proporcionalidade manifesta-se em dois outros momentos: na decisão de aplicação (que só ocorrerá se existir aquela proporcionalidade entre o facto e a medida de segurança) e na decisão de cessação da medida; quanto ao disposto no art. 501º n.º1 do CPP, esta norma subordina-se ao regime penal (o sentido útil da norma não ultrapassa, por imposição do CP, a referência aos limites válidos no caso)]. Por absoluta carência de fundamento legal, não se acolhe a solução que sustenta a fixação da pena concreta ao inimputável do art. 20º n.º2, que iria depois determinar a duração da medida de segurança, como já foi sustentado.

Assim, a medida de segurança de internamento tem, à partida, uma duração indeterminada, não cabendo ao tribunal fixar a sua duração concreta, nem estabelecer limites concretos da sua duração dentro do quadro legal (nem mínimo nem máximo).

No caso, há apenas que considerar que não existe limite mínimo aplicável, e o limite máximo decorrente do aludido regime legal, é de 5 anos, findando a medida quando cessar o estado de perigosidade criminal que determinou a aplicação da medida.

A pluralidade de crimes não se traduz numa pluralidade de medidas de segurança [pelo que, por isso, também não há qualquer cumulação a realizar (aliás inviável por razões formais e materiais)], mas apenas na aplicação de medida de segurança que (dentro dos limites determinados pelo facto ilícito típico mais grave) atenda à perigosidade do arguido no quadro de todos os delitos praticados.

A situação do arguido, padecendo de anomalia psíquica crónica que não controla, e a sucessão dos factos, à luz da anterior condenação, revelam que a suspensão da execução do internamento não será suficiente para realizar as aludidas finalidades (preventivas) da medida de segurança.

Quanto à primeira parte do art. 501º n.º1 do CP [que, em caso de internamento, manda a decisão especificar o tipo de instituição em que o internamento deve ser cumprido], considera-se que, face à situação do arguido, se justifica o internamento em instituição que conjugue as vertentes do tratamento e da segurança.

A reincidência não tem qualquer papel relevante neste quadro desde logo por duas razões essenciais: de um lado, a reincidência baseia-se num requisito material que traduz uma maior censurabilidade da conduta do arguido (uma culpa acrescida, portanto), a qual, à luz do que já foi dito, se revela incompatível com a culpa diminuída própria da imputabilidade diminuída e, mais ainda, com a inimputabilidade, excludente da culpa, que se atribui ao arguido; de outro lado, a reincidência apenas se repercute no limiar mínimo da moldura penal e esta é, como se viu, irrelevante no quadro das medidas de segurança.»

9 – Como acima se deixou editado, a questão suscitada pelo arguido recorrente respeita a saber se, por indevida interpretação do disposto no artigo 91.º n.º 1 do CP, os Mm.os Juízes do Tribunal a quo incorreram em erro de jure, no ponto em que, desconsiderando o teor do perdão dos ofendidos e do relatório médico-pericial, deixaram de determinar a suspensão da medida de segurança de internamento e o tratamento em regime ambulatório.

10 – Defende o recorrente que as declarações dos pais do arguido, no sentido de o «perdoarem» pelos actos delitivos cometidos, de par com o último relatório pericial, no ponto em que refere que p recorrente se encontra «numa situação clínico-patológica que cumpre critérios para proceder ao tratamento do doente em regime ambulatório compulsivo», justificariam a suspensão da medida de segurança de internamento e o tratamento em regime ambulatório.

11 – Neste particular, a decisão revidenda deixou exarado que «a situação do arguido, padecendo de anomalia crónica que não controla, e a sucessão dos factos, à luz da anterior condenação, revelam que a suspensão da execução do internamento não será suficiente para realizar as aludidas finalidades (preventivas) da medida de segurança».

12 – O recorrente tem por incorrectamente interpretada a norma constante do n.º 1 do artigo 91.º do CP (relativa aos pressupostos e duração mínima do internamento de inimputáveis), que estipula que «quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude de anomalia psíquica e da gravidade do facto imputado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie».

13 – Sem embargo nem desdouro para a douta alegação recursiva, afigura-se que estará em causa, mais directamente, o disposto no n.º 1 do artigo 98.º, do CP, no ponto em que estabelece que «o tribunal que ordenar o internamento determina, em vez dele, a suspensão da sua execução se for razoavelmente de esperar que com a suspensão se alcance a finalidade da medida».

14 – A pretextada suspensão da execução do internamento, decorrente de um juízo de prognose favorável, tendo por referência a redacção inicial do preceito (artigo 99.º, do CP, versão inicial, do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro), devia suceder «desde que o tribunal conclua que à suspensão se não opõe a necessidade de prevenção da perigosidade».

15 – Tal segmento normativo mereceu o seguinte reparo do Prof. Jorge de Figueiredo Dias («Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime», Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pág. 519, § 822):

«Trata-se de uma expressão sem dúvida infeliz e insignificativa daquilo que deve constituir o verdadeiro critério da suspensão; a saber, a convicção do tribunal da existência, no caso, de circunstâncias especiais (sobretudo do agente, mas também eventualmente do facto e da sua «situação») que dão fundamento razoável à esperança de que a finalidade da medida – a prevenção da perigosidade – ainda possa ser alcançada em liberdade.»

16 – Aponta como circunstâncias especiais, na acepção referida, «desde as precárias condições de saúde do agente, à sua vontade de (ou ao seu assentimento a) submeter-se a tratamentos ou regimes de cura […], à possibilidade de ser entregue a pessoas de família ou a instituições assistenciais que o cuidem e vigiem, etc.».

17 – E adianta:

«Se existirem dúvidas inultrapassáveis sobre a razoabilidade da esperança a suspensão não deve ser decretada, mas sim o internamento. Coisa diferente só poderá dizer-se se as dúvidas recaírem não sobre a esperança ela mesma, mas sobre factos que dão fundamento a uma tal esperança».

18 – Vejam-se ainda, a respeito, Cristina Líbano Monteiro, «Perigosidade de Inimputáveis e ‘in dubio pro reo’», BFDUC, Coimbra Editora, 1997, Maria João Antunes, «Medida de Segurança e de Internamento e Facto de Inimputável em Razão de Anomalia Psíquica», Coimbra Editora, 2002, Carlota Pizarro de Almeida, «Modelos de Inimputabilidade, da teoria à prática», Almedina, 2000, e «A Lei de Saúde Mental e o Internamento Compulsivo», Coimbra Editora, 2000.

19 – Na jurisprudência, por mais recentes e significativos, vejam-se os acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Julho de 2003 (Proc. 03P2016), e, do Tribunal da Relação do Porto, de 28 de Junho de 2006 (Proc. 0544461), de 9 de Março de 2011 (Proc. 44/07.1GAABTC.P1), e de 6 de Fevereiro de 2013 (Proc. 137/11.0PBMTS.P1), disponíveis em www.dgsi.pt.

20 – No caso, resulta da materialidade de facto sedimentada como provada, acima transcrita, para além de uma persistência e reiteração delitiva, por parte do arguido, no cometimento de agressões físicas e psicológicas sobre os seus pais, com os quais reside, também que a condição psíquica crónica de que o arguido padece pode determinar a reiteração de tais condutas, com acentuado risco de reiteração de idênticos factos delitivos.

21 – Ademais, como se acentua, incontestada e inarredavelmente, no acórdão revidendo, «a sua [do arguido] perigosidade mantém-se, sem que ocorram circunstâncias que a debelem ou que a mostrem esgotada nos factos típicos praticados (aliás, a anterior condenação contraria essa possibilidade)».

22 – Do exposto se conclui que, não se identificando nem se verificando, no caso, circunstâncias especiais que, razoável e prudencialmente, concretizem e abonem a esperança de que a prevenção da perigosidade do arguido possa ainda ser alcançada em liberdade, sustentando o favor rei, e um sentido de uma intervenção mínima, a suspensão da execução do internamento, prevenida no artigo 98.º n.º 1 do Código Penal, não se mostra suficiente para realizar as finalidades preventivas da medida de segurança de internamento de inimputável.

III

23 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, A.

Não cabe tributação.

Évora, 13 de Maio de 2014

António Manuel Clemente Lima (relator) – Alberto João Borges (adjunto)