Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3923/12.0TBPTM-A.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: SOLIDARIEDADE
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
Data do Acordão: 01/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- Chamar-se, num contrato de crédito bancário, a um interveniente «avalista» ou «garante» não define os termos em que tal pessoa responde pela dívida.
II- Se, no mesmo contrato, o chamado «avalista» ou «garante» assume como solidária a responsabilidade juntamente com o primeiro devedor, tal significa que se estabelece o regime do art.º 518.º, Cód. Civil.
III- Perante documentos escrito onde constam as referidas expressões, cumpre o art.º 238.º, Cód. Civil, a interpretação que define o interveniente como responsável solidário.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

Por apenso aos autos de execução que correm termos como processo n.º 3923/l2.0TBPTM, em que é exequente Banco, S.A. e são executados A, B, C e D, veio José João Glória Tiago, a 12.11.2012, deduzir oposição à execução peticionando, a final, que a mesma seja julgada procedente por inexistência de título executivo, sendo absolvido da instância.
Alegou para o efeito, e em síntese, que tendo sido demandado como avalista não foi junto aos autos o respectivo e necessário título executivo; que os contratos de abertura de créditos juntos com a execução não consubstanciam título executivo uma vez que não foram juntas as notas de crédito ou extracto de conta corrente relativos à disponibilização e utilização dos montantes objecto desses contratos, sendo que o incumprimento não decorre dos documentos juntos. Por fim indicou que existe um erro no somatório dos valores constantes da liquidação da execução, sendo que na reclamação de créditos do âmbito da insolvência da sociedade avalizada foi reconhecido, provisoriamente, um valor inferior ao ora reclamado.
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A exequente, notificada, veio contestar peticionando, a final, que seja julgada improcedente a oposição e ordenando o prosseguimento da execução.
Alegou para o efeito, também em síntese, que os contratos trazidos à execução são título executivo e que, de facto, por lapso, não juntou com o requerimento executivo os documentos complementares de disponibilização dos respectivos valores o que juntou com a contestação; que o oponente não foi demandado como avalista mas antes como garante, obrigado solidariamente por força das cláusulas do contrato com os demais; que existe um lapso no somatório da quantia exequenda que na verdade pretendia que fosse o montante de 1.584.523,78 € (1.472.956,70 € de capital acrescido de 111.567,08 € de juros) requerendo a sua rectificação; que o documento junto pelo executado não se reporta a estes autos e que a insolvência da E Construções Lda. não afecta a demanda dos executados nos presentes autos, sendo que o valor aí reconhecido é prova suficiente da existência do crédito, assentando a divergência de valores nas datas de contabilização de juros.
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Por despacho de 6.6.2013 foi determinada a rectificação da quantia exequenda nos termos requeridos pelo exequente.
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Foi proferida sentença que julgou os embargos improcedentes.
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Desta sentença vem interposto o presente recurso cuja alegação o recorrente termina, de forma resumida, desta maneira:
A sentença ora recorrida considerou a oposição à execução improcedente pelo facto de interpretar que o ora Recorrente se obrigou solidariamente com a Sociedade E Construções Lda. nas obrigações por ela assumidas em dois contratos celebrados com o Exequente, um de abertura de conta corrente caucionada e o segundo de mútuo para fomento a construção;
O ora Recorrente outorgou individualmente os contratos, e posteriores aditamentos, que foram dados como provados nos pontos 1 a 4 apenas na qualidade de Garante.
Pelo que a interpretação das declarações negociais que servem de título executivo deveria ser outra, i.é que o Recorrente agiu, na capacidade em que é Executado, apenas e só como Garante das obrigações da 2.ª Outorgante nos contratos e posteriores aditamentos dados como provados nos pontos 1 a 4 da matéria de facto provada
Os contratos que servem de título executivo estipulam, apenas e só, que os Garantes avalizam uma livrança por subscrita pela Segunda Outorgante/E Construções Lda..
A alegada solidariedade foi apenas prestada pelo Recorrente como Garante e não como devedor principal.
O único titulo passível de execução, no entendimento do Recorrente, seria o título cambiário onde constasse o aval, pelo que o título dado à execução é inexequível.
Ao julgar improcedente por não provada a oposição à execução, pelos fundamentos nela constantes, violou a Douta Sentença a quo o art.º 236.º n.º 1 e 2, 237.º e 238.º n.º 1 e 2, todos do Código Civil e também, à data da instauração da presente acção executiva, os art.º 45.º n.º 1 do C.P.C..
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram colhidos os vistos.
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A matéria de facto é a seguinte:
1- Nos autos de execução a que estes autos foram apensos, encontra-se um documento, epigrafado "Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente Caucionada", datado de 5.5.1999, acordado entre Banco, S.A., designado "primeiro outorgante", E - Construções, Lda., designada "segunda outorgante" e A, B, C e D, designados "terceiros outorgantes", o qual se dá aqui por integralmente reproduzido, sendo que, entre o demais, a exequente concedeu ao segundo outorgante um crédito até ao limite de 15.000.000$00, mediante a abertura de crédito em conta aberta em nome do 2.º outorgante a movimentar a débito e a crédito, podendo ser prorrogado no tempo, vencendo juros nos termos contratualizados, podendo em caso de incumprimento a 1.ª outorgante considerar automaticamente vencidas as dívidas dando o acordo por resolvido, podendo ainda compensar total ou parcialmente as quantias vencidas e em dívidas pelo 2.º outorgante com valores de quaisquer contas do 2.º e 3.º outorgantes, tendo-se estes últimos declarado ainda responsáveis solidariamente com o 2.º outorgante pelo pagamento.
2- Encontra-se ainda nos mesmos autos quatro documentos, celebrados entre as mesmas pessoas, denominados "Aditamento a contrato de abertura de crédito para alteração do seu prazo de vigência", "Alteração ao contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada", "3: Alteração ao contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada de 5.5.1999" e "4.0 Aditamento ao contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada outorgado em 5.5.1999", datados, respectivamente, de 28.2.2000, 29.3.2000,5.11.2003 e 7.12.2009, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e tendo neste último aditamento sido acordado que a exequente concederia o crédito até ao limite de 200.000€, susceptível de movimentação a crédito e a débito por valores múltiplos de 10.000€, com vencimento a 31.5.2010 e reembolso integral nesta mesma data.
3- Nos autos de execução a que estes autos foram apensos, encontra-se ainda um documento, epigrafado "Contrato de mútuo para fomento à construção", datado de 26.9.2007, acordado entre Banco, S.A., designado "primeiro outorgante", E - Construções, Lda., designada "segunda outorgante" e A, B, C e D, designados "terceiros outorgantes" sendo que, entre o demais, a exequente, mediante a abertura de crédito, concedeu ao segundo outorgante um crédito até ao limite de 2.500.000€ destinado ao financiamento da construção de um condomínio fechado, pelo prazo de 4 anos, com vencimento a 26.9.2011, prorrogável, a ser disponibilizado em conta aberta em nome do 2.º outorgante em valores parciais correspondentes a diversas fases da construção e após medições de obra, vencendo juros nos termos contratualizados, podendo em caso de incumprimento a 1.ª outorgante considerar automaticamente vencidas as dívidas dando o acordo por resolvido, devendo o pagamento ser efectuado em prestações constantes e sucessivas de carácter trimestral, podendo ainda compensar total ou parcialmente as quantias vencidas e em dívida pelo 2.º outorgante com valores de quaisquer contas do 2.º e 3.º outorgantes, tendo-se estes últimos declarado ainda responsáveis solidariamente com o 2.º outorgante pelo pagamento.
4- Encontra-se ainda nos mesmos autos três documentos, celebrados entre as mesmas pessoas, denominados "1: alteração ao contrato de mútuo para fomento à construção celebrado em 26.9.2007", "2: alteração ao contrato de mútuo para fomento à construção celebrado em 26.9.2007" e "3: alteração ao contrato de mútuo para fomento à construção celebrado em 26.9.2007", datados, respectivamente, de 23.4.2010, 26.9.2010 e 26.12.2011, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e tendo nestas últimas alterações sido acordado o aumento do valor concedido para 2.800.000€, concedido em montantes de financiamento por fases de construção e respectivas medições de obra, e o seu vencimento a 26.9.2012 com reembolso integral nesta data.
5- Por conta do acordo referido em 1. e 2. a exequente colocou na disposição de E ­Construções, Lda., na conta 95-41181701/40, o valor de 200.000€ integralmente utilizado e não devolvido a 31.5.2012, encontrando-se o extracto de conta corrente junto aos autos de oposição com a contestação.
6- Por conta do acordo referido em 3. e 4. a exequente colocou na disposição de E ­Construções, Lda., na conta 95-41181777/10, o valor de 1.272.956,70€ utilizado e não devolvido em prestações a partir de 26.12.2011, encontrando-se o extracto de conta corrente junto aos autos de oposição com a contestação.
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Na sua oposição, o recorrente fundamentou o seu pedido nestas considerações:
Foi demandado como avalista mas não foi junto aos autos o respectivo e necessário título executivo;
Os contratos de abertura de créditos juntos com a execução não consubstanciam título executivo uma vez que não foram juntas as notas de crédito ou extracto de conta corrente relativos à disponibilização e utilização dos montantes objecto desses contratos, sendo que o incumprimento não decorre dos documentos juntos.
Existe um erro no somatório dos valores constantes da liquidação da execução, sendo que na reclamação de créditos do âmbito da insolvência da sociedade avalizada foi reconhecido, provisoriamente, um valor inferior ao ora reclamado.
Em relação ao primeiro tema, a sentença resolveu-o afirmando que os referidos contratos (uma vez que depois foram juntos os documentos em falta) são título executivo.
Quanto ao segundo, foi proferido um despacho a admitir a rectificação do valor da quantia exequenda.
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Resta o primeiro tema.
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A primeira coisa a notar é que o recorrente não está a responder pela dívida como garante cambiário.
Escreve-se na sentença o seguinte: «Ao contrário do que referiu o oponente na oposição, não foi o mesmo executado na qualidade de avalista, não tendo sido dada, nem tendo de o ser, nenhuma livrança à execução».
E assim é.
A questão foi discutida nos autos tendo o tribunal concluído, como já se disse, que os títulos executivos eram os contratos de abertura de crédito e de mútuo; não foi dada à execução qualquer livrança avalizada pelo recorrente mas sim aqueles contratos.
Assim, este argumento improcede.
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No mais, o recorrente defende a sua qualidade de garante, firmada nos contratos, para daqui concluir que a sentença os interpretou mal ao qualificá-lo como devedor; ao invés, o recorrente entende que é fiador; sendo que, ainda assim, esta fiança não é válida por não ter sido expressamente manifestada. Como conclusão última, afirma que só como avalista poderia ser demandado pois que foi nessa qualidade que outorgou nos contratos.
Salvo o devido respeito, não podemos concordar.
A sentença socorreu-se dos contratos escritos, onde consta (em ambos) a expressão «tendo-se estes últimos [3.º outorgantes, entre os quais, o recorrente] declarado ainda responsáveis solidariamente com o 2.º outorgante pelo pagamento», para concluir que o recorrente é devedor.
Argumenta que, apesar «de, no teor literal dos contratos, o oponente ser, por vezes, denominado como um outorgante que intervém como avalista, outras vezes denominado como garante, certo é que, interpretado todo o conteúdo do acordado, não foi só essa a vontade efectiva das partes ligada ao preenchimento de uma livrança associada aos contratos» (que, acrescenta-se não é o título executivo).
Não há dúvidas que a solidariedade passiva foi convencionada entre as partes.
O regime da solidariedade pode e é realmente usado como uma garantia na medida em que «permite aumentar — pelo número de patrimónios responsáveis — as probabilidades de satisfação do crédito» (Januário Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina, Coimbra, 2000, p. 100). A lei não o proíbe e as partes são livres de modelar o conteúdo do contrato mesmo utilizando um instituto jurídico para uma função diferente da que foi delineada pelo legislador. E as razões da convenção da solidariedade passiva não afastam as consequências desta, designadamente, a prevista no art.º 518.º, Cód. Civil. Por outro lado, a referida convenção, mesmo que sirva uma função de garantia, não é, ela própria, uma garantia autónoma. Ela tem o alcance e o regime estabelecido naquele preceito legal.
E foi isto mesmo que as partes estabeleceram no contrato; e estabeleceram-no expressa e claramente.
Não há nenhuma expressão nos contratos que tenha o alcance de restringir o recorrente a um devedor secundário, um garante. O nome utilizado não afasta o regime acordado pois que não define sequer os termos em que o recorrente seria garante, os termos em que o recorrente avançaria para honrar a garantia por si dada (subsidiariamente, parcelarmente?). Afirmar que é garante, sem mais nada dizer, não permite afirmar que a responsabilidade do «garante» tem esta ou aquela característica, que a garantia funciona nestes e naqueles termos, etc..
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Vamos admitir que a solidariedade passiva não tinha sido convencionada (e chamamos de novo a atenção para o facto de a livrança não estar aqui em questão) mas que se chamava ao recorrente garante ou mesmo avalista.
O que é que isto poderia significar?
Nada a nosso ver porque nada define.
Poderíamos ser tentados a recorrer à figura principal das garantias pessoais, a fiança. Mas, como alega o recorrente, ela não existe porque a vontade de a prestar não foi «expressamente declarada» conforme exige o art.º 628.º, Cód. Civil. Donde, afinal, não se poderia aplicar o respectivo regime, designadamente, a subsidiariedade.
E o mesmo se diga em relação ao nome «avalista». Sendo esta uma figura exclusiva dos títulos cambiários, que sentido poderia ter aqui aquele nome? Nenhum (ou pretenderá o recorrente que se aplique ao caso o disposto no art.º 32.º, L.U.L.L.? Parece que não).
Em suma, teríamos nada — e o nada não vale.
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Ou seja, e tendo em mente o critério principalmente literal que o art.º 238.º estabelece para a interpretação dos negócios reduzidos a escrito, não vemos como seja possível fixar como sentido querido pelas partes do contrato o seguinte:
- o recorrente não responde solidariamente pela dívida;
- o recorrente é apenas um garante.
Pelo contrário; o único sentido que se pode dar aos contratos é este:
- o recorrente responde solidariamente pela dívida;
- o recorrente é devedor principal.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente.
Évora, 21 de Janeiro de 2016


Paulo Amaral


Rosa Barroso


Francisco Matos