Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | SÍLVIO SOUSA | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO TESTAMENTO INCAPACIDADE ACIDENTAL | ||
Data do Acordão: | 04/21/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | Uma relação afetiva entre um homem de 72 anos e uma mulher de 16 anos e meio, no decurso da qual esta foi beneficiada por um testamento, não é contrária “à moral social dominante” ou a qualquer “conjunto de preceitos éticos ou morais” que devem nortear as pessoas de boa fé; assim já não seria, se o testador estivesse, então, desprovido de lucidez ou se o benefício patrimonial obtido tivesse funcionado como condição da mencionada relação. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora: Relatório AA e mulher, BB[1], residentes em Beringel, Beja, intentaram a presente ação, na forma de processo comum, contra CC, solteira, moradora na mesma localidade, pedindo que se declare nulo o testamento outorgado por DD, em 9 de junho de 2010, que a instituiu única e universal herdeira de todos os seu bens, direitos e ações e, se assim não se entender, se anule o mesmo, por usura, para tanto articulando factos que, em seu critério, conduzem à sua procedência, a qual foi julgada improcedente.
Fundamentação A - Os factos Na sentença recorrida, foi considerado provado o seguinte quadro factual: - O Autor AA é filho de GG e de HH (alínea a) dos factos assentes); - Os Autores AA e BB são casados (alínea b) dos factos assentes); - O Autor é o único irmão germano de DD, que faleceu, no estado de solteiro, em Beja, no dia 30 de julho de 2010 (alínea c) dos factos assentes); - Não sobreviveram a DD ascendentes ou descendentes (alínea d) dos factos assentes); - No dia 9 de junho de 2010, no Cartório Notarial de Beja, DD fez testamento, instituindo como única e universal herdeira de todos os seus bens, direitos e ações, a Ré CC (alínea e) dos factos assentes); - Do testamento referido consta o nome da Ré, CC, como sendo solteira, maior, natural de Paraíso do Tocantins, Brasil, de nacionalidade brasileira, residente em Beringel, … (alínea f) dos factos assentes); - No dia 2 de agosto de 2010, em Beja, num outro Cartório Notarial, foi efetuada escritura de habilitação de herdeiros, contendo a indicação da data do óbito de DD e o teor do testamento, com a indicação da Ré, como única e universal herdeira (alínea g) dos factos assentes); - Na escritura de habilitação de herdeiros consta que a Ré é menor e que nasceu a 8 de outubro de 1993, ou seja, que contava 16 anos de idade, à data da celebração do testamento (alínea h) dos factos assentes); - À data da morte, o DD tinha 72 anos (alínea i) dos factos assentes); - DD travou conhecimento com II, de nacionalidade brasileira, tal como a filha, CC, a quem arrendou um prédio na … (alínea j) dos factos assentes); - DD não sabia ler, nem escrever, mas apenas desenhar o seu nome (resposta ao artigo 9º. da base instrutória); - CC passou a frequentar a casa de DDo fazendo as limpezas da taberna e da casa (resposta ao artigo 12º. da base instrutória); - A partir de abril/maio de 2010, a Ré passou a permanecer e pernoitar em casa do DD (resposta aos artigo 13º. da base instrutória); - O DD dizia que a Ré gostava muito dele, fazendo-lhe caricias e brincadeiras, que o entusiasmavam (resposta ao artigo 14º. da base instrutória); - O irmão do Autor viveu como emigrante, a parte útil da vida na Alemanha, amealhando recursos (resposta ao artigo 25º. da base instrutória); - Foi sempre pessoa recatada, poupada (resposta ao artigo 26º., da base instrutória). B - O direito Quanto à alegada nulidade da sentença - “Ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (…). Há nulidade (…) quando falte em absoluto os fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão”. Todavia, “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é de espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade” [32]; - São taxativas as causas de nulidade da sentença[33]. Quanto ao alegado erro na apreciação da prova, que determine alteração da resposta dada à matéria de facto vertida no artigo 11º. da base instrutória - “Às partes cabe a formação da matéria de facto da causa, mediante a alegação, nos articulados, dos factos principais, isto é, dos que integram a causa de pedir, fundando o pedido, e daqueles em que se baseiam as exceções perentórias” [34]; ou seja: “ O juiz está vinculado às afirmações das partes na apresentação dos factos e deve, em regra, abster-se de considerar factos que elas não tenham alegado. Deve, especialmente, abster-se de admitir como existentes factos relevantes para a decisão da causa, mas que não constem do processo” [35]; -“Esta regra funciona para os factos principais da causa, mas já não para os factos instrumentais” e os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar[36]; - O juiz não pode alterar a decisão que proferiu; relativamente à questão sobre que incidiu a sentença ou despacho o seu poder jurisdicional extingue-se; a “necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional” o exige[37]; - A sentença que recaia sobre a relação processual tem força obrigatória no processo[38];
Quanto ao alegado erro na apreciação da prova, que determine alteração das respostas dadas à matéria de facto vertida nos artigos 1º. , 2º. , 3º., 4º., 5º., 6º., 7º., 8º., 10º., 14º. (parcialmente), 15º.,16º.,17º., 18º., 19º., 20º., 21º., 22º., 23º., 24º., 26º. (parcialmente,), 28º. e 29º. da base instrutória
- “Quem invoca um direito em juízo incumbe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, quer o facto seja positivo, quer negativo. À parte contrária compete provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito” [39]; “Se o juiz fica em dúvida sobre determinado facto, por não saber se ele ocorreu ou não, o non liquet do julgador converte-se, na sequência da diretiva traçada pelo nº 1 do artigo 8º. do Código Civil, num liquet contra a parte a quem incumbe o ónus da prova do facto” [40]; - “A reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância pois só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição; para que o segundo grau reaprecie a prova, não basta a alegação por banda dos recorrentes em sede de recurso de apelação que houve erro manifesto de julgamento e por deficiência na apreciação da matéria de facto devendo ser indicados quais os pontos de facto que no seu entender mereciam resposta diversa, bem como quais os elementos de prova que no seu entendimento levariam à alteração daquela resposta” [41]; -“No uso dos poderes relativos à alteração da matéria de facto (…), a Relação deverá formar e fazer refletir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas, nos mesmos termos em que o deve fazer a 1ª instância, sem que se lhe imponha qualquer limitação, relacionada com convicção que serviu de base à decisão impugnada, em função do princípio da imediação da prova” [42]; - “A prova, no processo, pode (…) definir-se como a atividade tendente a criar no espírito do juiz a convicção (certeza subjetiva) da realidade de um facto. Para que haja prova é essencial esse grau especial de convicção, traduzido na certeza subjetiva[43]; - “À base instrutória só devem ser levados factos concretos e não enunciados legais, juízos de valor ou factos conclusivos”[44]; - O facto conclusivo coincide com a formulação de um juízo de valor a “(…) extrair de factos concretos objeto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum”[45]; - “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas base instrutória e, quando isso não suceda e o Tribunal sobre elas emita veredito, deve este ter-se por não escrito”[46]; - As partes apenas pode juntar documentos nas alegações, quando não tenha sido possível juntá-los até ao enceramento da discussão em primeira instância[47].
Quanto ao invocado erro na aplicação do direito aos factos apurados - É nulo o negócio jurídico contrário “à moral social dominante” [48], ao “conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas honestas, corretas, de boa fé, num dado ambiente e num certo momento” [49], “que refletem, em determinado tempo e lugar o conjunto de preceitos éticos e morais que então e aí norteiam as pessoas honestas, corretas e de boa fé” [50], que se traduza “na utilização de meios imorais ou eticamente reprováveis para proporcionar” vantagens[51]; - É anulável o negócio em que se explorando uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, de dependência, estado mental ou fraqueza do lesado, se obtenha benefícios desequilibrados ou desproporcionais[52]. C- Aplicação do direito Quanto à alegada nulidade da sentença Os recorrentes AA, EE e FF fundamentam a nulidade da sentença recorrida no disposto no artigo 615º., nº 1, b) do Código de Processo Civil, ou seja, na falta de motivação (não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão). Sem razão. Na verdade, a sentença censurada especifica os factos provados e inventaria o direito aplicável. Por outro lado, sendo taxativas as causas de nulidade das sentenças, não produz a sua nulidade a falta da análise crítica dos meios probatórios que foram decisivos para a convicção do Tribunal, ao fixar a matéria de facto. O vício da nulidade da sentença está circunscrito aos casos de “não-sentença”. Efetivamente, não faz sentido uma sentença sem factos e/ou sem indiciação do direito ou, pelo menos, de princípios legais. Assim sendo, improcede este segmento da apelação. Quanto ao alegado erro na apreciação da prova, que determine alteração da resposta dada à matéria de facto vertida no artigo 11º. da base instrutória No acórdão proferido por esta Relação, em 16 de dezembro de 2014, decidiu-se que artigo 11º. da base instrutória deve ser considerado como não escrito, dada a circunstância de não ter sido alegado que o testamento não foi assinado pelo testador. Relativamente a esta questão, o poder jurisdicional deste Tribunal extinguiu-se. Ou seja: “a obrigação que este tinha de resolver a questão proposta, extinguiu-se pela decisão” [53]. Assim sendo, não se conhece esta questão. Acresce que, não tendo sido impugnada esta parte do acórdão acima referido, constitui a mesma caso jugado formal, tendo, por conseguinte, força obrigatória no processo. Improcede, também, esta parte do recurso. Quanto ao alegado erro na apreciação da prova, que determine alteração das respostas dadas à matéria de facto vertida nos artigos 1º. , 2º. , 3º., 4º., 5º., 6º., 7º., 8º., 10º., 14º. (parcialmente), 15º.,16º.,17º., 18º., 19º., 20º., 21º., 22º., 23º., 24º., 26º. (parcialmente,), 28º. e 29º. da base instrutória Num parêntesis, importa consignar ao seguinte: para formar a sua convicção, procedeu esta Relação à audição do registo de todos os depoimentos prestados, em audiência e à análise da prova documental junta, com exceção da certidão ora junta pelos recorrentes, cuja admissão se rejeita, por intempestiva. O artigo 1º. da base instrutória tem natureza conclusiva. Como tal, a matéria de facto dele constante não devia ter sido levada à dita peça processual. Dado que o foi, importa sobre ela não emitir veredito, o que se faz. Relativamente aos artigos 2º. , 3º., 4º., 5º., 6º., 7º. e 8º. da base instrutória, esta matéria de facto está relacionada com o exames neuropsicológicos efetuados ao falecido DD, em agosto de 2007 e julho de 2009, pelo Prof. Doutor Manuel …, também testemunha, no processo. É evidente que, por se tratar de matéria técnica, são irrelevantes não só os depoimentos das testemunhas Fernando …, Maria Antónia …, Maria José … e Alexandre …, como as declarações dos habilitados/autores FF e EE, estes por não terem realizado os exames, aqueles por, na área da neuropsicologia, nada saberem. Aliás, e quanto a aludida matéria de facto, nada lhes foi perguntado. Subsistem, apenas, como elementos probatórios, na área de facto em questão, os mencionados exames, com a achega do depoimento do Prof. Doutor Manuel …, prestado em audiência. Os exames traduziram-se, apenas, em entrevistas, não sustentadas por uma bateria de testes neuropsicológicos, típicos em exames desta natureza e aceites pela comunidade científica, o que diminui a sustentabilidade do diagnóstico. Acresce que, na primeira entrevista, o falecido DD encontrava-se com “uma emotividade bastante alterada, com acessos de irritabilidade”, o que retira credibilidade à veracidade das respostas. Por outro lado, as evidências retiradas, pelo Prof. Doutor Manuel …, das entrevistas feitas, nomeadamente, nos domínios do “pouco sentido crítico”, “diminuta capacidade de análise” e “vulnerabilidade” não foram confirmadas pelas evidências fornecidas pelas testemunhas ouvidas. Pelo contrário, o depoimento da testemunha Ana …, notária que elaborou o testamento, ao referir à pretensão do falecido de fazer um testamento cerrado e à aquisição de um prédio, em seu nome, três messes antes, aponta em sentido contrário. Considera, pois, esta Relação que os exames feitos - apenas duas entrevistas - são insuficientes para, com segurança, se obter um diagnóstico de “quadro demencial de gravidade considerável”. Ora, este non liquet dos atuais julgadores impõe um “ liquet” contra as partes a quem incumbe o ónus da prova do facto”- os recorrentes. Em consequência, declara esta Relação não provada a facticidade em causa. Quanto ao artigo 10º. da base instrutória, a resposta não pode deixar de ser “não provado”, uma vez que, não foi feita qualquer prova. Na verdade, e de acordo com o ”relatório pericial de escrita manual”(fls.136 a 150), “o traçado da contestada (a do testamento) aparenta ser mais rápido, mais ritmado e sem tremuras” (fls. 142). Acresce que o falecido DD apenas sabia “desenhar “ o seu nome. No que se refere ao artigo 14º. da base instrutória - apenas na parte não provada - não feita qualquer prova. Na verdade, nem a testemunha Fernando …, nem o declarante FF aludiram as tais “gabarolices”. Mantém, por isso, esta Relação a resposta restritiva dada. Relativamente ao artigo 15º da base instrutória, também não se fez prova, Efetivamente, apenas a testemunha Maria José … referiu a existência de fotografias da Ré, em cima, de, pelo menos duas peças de mobília, não se encontrando a mesma, nessas fotografias, em fato de banho ou fio dental. No que diz respeito aos artigos 16º. e 17º. da peça processual referida, não foi feita qualquer prova. Como tal, mantém esta Relação as respostas negativas dadas, Para efeitos da prova da matéria de facto vertida nos artigos 18º., 19º., 20º., 21º. e 22º. da base instrutória, os recorrentes AA, EE e FF requereram que se oficiasse à agência de Beja do Millennium BCP “para indicar qual a data, em que foi requerido o cartão de débito, ou crédito do Multibanco, a quem foram indicados os códigos, com cópia da requisição e contratos, bem como, cópia dos extratos da conta nº …, daquela Agência, com a indicação dos levantamentos, entre 20 de abril de 2010 e 30 de julho de 20010 e qual o saldo bancário, nesta última data (…)”, pretensão que foi deferida. A documentação bancária solicitada, entretanto, junta aos autos, nomeadamente a de fls. 266 e 270, permite, somente, uma resposta positiva ao artigo 21º. Não, também, aos restantes. Assim sendo, altera-se a resposta ao artigo 21º. para “provado”, mantendo-se as dos restantes. Relativamente aos artigos 23º., 24º. e 26º.- apenas na parte não provada - da base instrutória, não foi, pura e simplesmente, produzida, também, qualquer prova. Deste modo, declara-se esta matéria de facto- “não provada”. Quanto aos artigos 28º. da 29º. da base instrutória, os elementos probatórios oferecidos permitem, com base no documento/certidão de fls. 232 e 232, julgar provado , apenas, o primeiro. Por isso, julga-se provado que “no dia do óbito, em 30 de julho de 20010, a ré encontrava-se no interior da habitação”. Em síntese: a convicção desta Relação, coincide com a do Tribunal recorrido, com exceção das respostas dadas aos artigos 21º, e 28º. da base instrutória. Procede, pelo exposto, este segmento da apelação, ainda que parcialmente. Quanto ao invocado erro na aplicação do direito aos factos apurados Os factos que emergiram da discussão da causa retratam, apenas, uma relação afetiva entre o falecido DD, de 72 anos e a Ré CC, de 16 anos e meio, no decurso da qual esta foi beneficiada por um testamento. Esta relação, só por si, não é contrária “à moral social dominante” ou a qualquer “conjunto de preceitos éticos ou morais” que devem nortear as pessoas de boa fé. Assim já não seria, se o dito testador estivesse, então, desprovido de lucidez ou se o benefício patrimonial obtido pela demandada tivesse funcionado como condição da mencionada relação. Ora, nada disto se apurou. Por outro lado, a descrita relação afetiva afasta a qualificação da demandada CC como usurária. O usurário gira noutra órbita. Improcede esta parte da apelação. Em síntese[54]: uma relação afetiva entre um homem de 72 anos e uma mulher de 16 anos e meio, no decurso da qual esta foi beneficiada por um testamento, não é contrária “à moral social dominante” ou a qualquer “conjunto de preceitos éticos ou morais” que devem nortear as pessoas de boa fé; assim já não seria, se o testador estivesse, então, desprovido de lucidez ou se o benefício patrimonial obtido tivesse funcionado como condição da mencionada relação. Decisão: Pelo exposto, decidem os juízes desta Relação, julgando a apelação improcedente, apesar da alteração parcial dos factos assentes, manter a sentença recorrida. Custas pelos recorrentes. Évora, 21 de abril de 2016 Sílvio José Teixeira de Sousa Rui Machado e Moura Maria da Conceição Ferreira __________________________________________________ [1] Devido ao seu falecimento, a ação prosseguiu com os seus herdeiros, o Autor, AA, e seus filhos, EE e FF (fls. 124 e 125). |