Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4157/20.8T8STB.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
CONEXÃO
DIREITO DE PERSONALIDADE
Data do Acordão: 02/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1- A competência internacional dos Tribunais Portugueses afere-se a partir dos termos em que o autor configurou a relação jurídica controvertida, pressupondo que o pleito revela um ou mais elementos de conexão com um, ou com vários ordenamentos jurídicos diferentes do ordenamento do foro.
2- Consubstanciando-se na perspectiva do Autor, revelada na petição inicial, o facto ilícito gerador de responsabilidade civil extracontratual por parte da Ré na utilização indevida do nome e imagem do Autor por via da produção por aquela de jogos electrónicos, de vídeo e aplicações contendo o nome, características pessoais e profissionais e a imagem daquele sem a sua autorização, ou consentimento, (sujeitos a posterior divulgação e venda), nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão é de concluir serem os Tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para apreciar e decidir a causa, uma vez que a competência internacional dos mesmos dependeria da alegação pelo Autor da prática em território Português do facto ou de algum dos factos que integram a causa de pedir complexa, a saber, o facto ilícito, o nexo de causalidade e o dano, o que não sucede no caso concreto revelando-se, outrossim, irrelevante para o efeito os diversos locais da posterior divulgação, visualização ou aquisição pelo consumidor final dos ditos jogos.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 4157/20.8T8STB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal
Juízo Central Cível de Setúbal – Juíz 2
Apelante: (…)
Apelada: Electronic (…) Inc.
*
Sumário do Acórdão
(da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
(…)
***
Acordam os Juízes da 1 ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
I – RELATÓRIO
(…), residente na Av. (…), n.º 47, 1.º-Esq.º, 2910-875 Setúbal, moveu a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Electronic (…) Inc, com sede em 209, (…), Califórnia, 94065, EUA, peticionando o seguinte:
“Termos em que deve a presente acção ser julgada procedente por provada, condenando-se a Ré a pagar ao Autor, a título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de € 90.000,00 (noventa mil euros), de capital, acrescida dos juros vencidos, no montante de € 27.794,63 (vinte e sete mil, setecentos e noventa e quatro euros e sessenta e três cêntimos), tudo no total de € 117.794,63 (cento e dezassete mil, setecentos e noventa e quatro reais e sessenta e três cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei.
Mais deve a Ré ainda ser condenada a pagar ao Autor montante nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos, no montante de € 2.317,81 (dois mil, trezentos e dezassete euros e oitenta e um cêntimos), tudo no total de € 7.317,81 (sete mil, trezentos e dezassete euros e oitenta e um cêntimo) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei.
E, bem assim, no pagamento das custas e procuradoria condigna, incluindo honorários de Mandatário.”
A Ré contestou a acção, defendendo-se por excepção e por impugnação, tendo, além do mais, arguido a excepção dilatória de incompetência internacional do Tribunal recorrido, por não se verificarem quaisquer dos fatores de atribuição consagrados nos artigos 59.º, 62.º e 63.º, do CPC, pugnando pela sua absolvição da instância.
O Autor respondeu à excepção em apreço sustentando a sua improcedência.
Designou-se data para realização da audiência prévia e nela foi proferido despacho saneador que conheceu da invocada excepção de incompetência internacional, concluindo do seguinte modo:
“Decisão.
Pelo exposto decide-se declarar a incompetência absoluta deste tribunal por infração das regras de competência internacional dos tribunais portugueses, assim, determinando a absolvição da ré da instância.
Custas a cargo do autor.
Valor da causa: corresponde ao valor do pedido.
Registe e notifique.”
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Inconformado com a decisão o Autor apresentou requerimento de recurso, que culminou com as seguintes conclusões:
“TORNAM-SE, POIS, EVIDENTES AS SEGUINTES CONCLUSÕES:
a) A decisão recorrida é salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados.
b) Entende o Recorrente que as suas legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da decisão recorrida.
c) O ora Recorrente não se conforma com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, entendendo que a mesma padece de vícios, no que à decisão proferida sobre a sua incompetência internacional, já que não restam dúvidas da competência internacional do Tribunal a quo para o julgamento do presente litígio.
d) A ré produziu e comercializou, fisicamente e online, milhões de jogos de vídeo contendo a imagem, nome e demais características pessoais do Autor, sem o seu consentimento ou autorização e sem lhe pagar qualquer contrapartida económica.
e) Tal conduta constituiu uma apropriação da imagem do Autor, que tem um valor patrimonial, emergente do valor comercial que aquela imagem, tem no mercado.
f) O Autor – ao contrário do que a decisão recorrida refere – substanciou em factos a ocorrência de um dano, e os danos causados ao Autor (patrimoniais e não patrimoniais), por acção da ré, apenas a esta podem ser imputáveis, por ela a única autora do facto danoso (cfr. artigos 562.º, 563.º, 564, n.º 1, 565.º, 566.º n.ºs 1, 2 e 3, todos do Código Civil e ainda artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
g) Ao contrário do que a decisão recorrida refere, esses danos verificam-se no nosso país, porquanto os jogos são comercializados, distribuídos, jogados e a imagem, nome e demais caraterísticas do Autor são utilizadas, mundialmente, pelo que, logicamente, também em Portugal.
h) Isso mostra-se devidamente alegado nos artigos 16.º, 19.º, 26.º, 30.º, 103.º, 150.º, e 190.º da petição inicial e reiterado nos artigos 16.º e seguintes do articulado de Resposta às Excepções de fls. (…).
i) É, pois, absolutamente evidente que são praticados em território português os factos que integram a causa de pedir na presente acção.
j) A obrigação de reparação, no caso concreto do Autor, resulta de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem.
k) A obrigação de reparação, in casu, decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir – ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem. Tal como a decisão recorrida, salvo o devido respeito, ignora ostensivamente!
l) Não podia, pois, o Tribunal a quo deixar de concluir, in casu, pela verificação do factor de conexão previsto na alínea b) do artigo 62.º do Código de Processo Civil: ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram (à causa de pedir).
m) Para além disso, o Autor é cidadão português, tem aqui o seu domicílio e os seus familiares mais próximos, pelo que o seu centro de interesses é em Portugal.
n) Sendo irrelevante o facto da distribuição dos jogos ser feita na prática por uma subsidiária da ré, pois é esta a proprietária dos jogos e é só ela que aufere os avultados lucros resultantes da sua comercialização.
o) O que está em causa é a utilização e divulgação da imagem, nome e demais características do Autor, sem o consentimento deste, pela ré nos seus jogos, bem como os avultados lucros daí decorrentes e que esta aufere exclusivamente.
p) Pelo que, atento o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, em articulação com a alínea a) do artigo 62.º do mesmo Código, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente causa.
q) Tanto mais que, eventuais, dificuldades de aplicação do critério da materialização do dano não podem por em causa a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo ilícito está disponível em qualquer ponto do globo, como sucede in casu.
r) E, estando em causa a violação, pela ré, de direitos de personalidade do Autor, com tratamento e protecção constitucional e infraconstitucional, cfr. artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º e 72.º do Código Civil, não se concebe como o poderia o julgamento da causa nestes autos ser atribuído a uma jurisdição estrangeira de um outro país.
s) Tanto mais que, nos autos é arguida pelo Autor, aqui Recorrente, a inconstitucionalidade do artigo 38.º, n.º 4, do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, por se considerar que o mesmo é ofensivo do conteúdo de um direito fundamental (o já invocado artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), cfr. alegado nos artigos 64.º e seguintes da Resposta às Excepções de fls. (…).
t) Ora, a necessidade de efectiva tutela jurídica, ao abrigo do princípio da necessidade contido no artigo 62.º, alínea c), do Código de Processo Civil, também se cumpre se as circunstâncias do caso, além de revelarem forte conexão real ou pessoal com a ordem jurídica portuguesa, evidenciarem que o direito exercendo, a não se admitir que seja actuado perante os Tribunais portugueses, está ameaçado na sua praticabilidade e exercício.
u) Ora, in casu, essa praticabilidade e exercício está irremediavelmente comprometida, com a decisão agora proferida e de que se recorre.
v) O princípio da necessidade vale, assim, como salvaguarda para tais situações funcionando como alargamento ou extensão excepcional da competência internacional dos Tribunais portugueses.
w) Por outro lado, é evidente que o tribunal do lugar onde a “vítima” (in casu, o Autor) tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo físicos e online sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.
x) Ora, o Autor toda a sua vida organizada e estabilizada em Portugal, pelo que não tem qualquer nexo estreito com outro país, muito menos com os Estados Unidos da América.
y) Para além disso, não pode ser descurado o princípio da previsibilidade das regras de competência, a ré, enquanto autora da difusão do conteúdo danoso, encontra-se manifestamente, aquando da colocação da imagem, nome e demais características das “vítimas” da sua acção, nos jogos de que é proprietária com vista à sua distribuição mundial, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas afetadas por este.
z) Sem necessidade de mais considerações, estão os Tribunais portugueses melhor posicionados para conhecer do mérito da acção.
aa) Teria, assim, de improceder a deduzida excepção de incompetência internacional do Tribunal a quo, aduzida pela ré, por verificação dos elementos de conexão constantes das alíneas a), b) e c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
bb) Face ao que antecede, a sentença em crise violou o disposto nos artigos 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, 591.º, 592.º e 593.º, n.º 1, 62.º, alíneas a), b) e c), 71.º, n.º 2 e 80.º n.º 3, todos do Código de Processo Civil, o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e ainda os artigos 70.º e 72.º do Código Civil.”
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A Apelada respondeu ao recurso e alinhou as seguintes conclusões:
“III – Conclusões
Em obediência ao art.º 639.º do CPC, extraem-se, como resenha final, as conclusões subsequentes:
a) O presente recurso visa a revogação da sentença de 14.09.2021, pela qual se declarou procedente a exceção de incompetência internacional, porque o presente pleito não reúne os necessários elementos de conexão com a ordem jurídica Portuguesa.
b) O recurso interposto pelo autor deverá improceder, por referência ao único fundamento invocado por aquele, designadamente erro de julgamento sobre a apreciação dos fatores de conexão elencados no artigo 62.º do CPC.
c) A competência é um pressuposto da atuação do Tribunal e a sua decisão deverá ser sempre a primeira a ser tomada pelo Tribunal, em particular nestes autos que assumem notoriamente conexão com outras ordens jurídicas estrangeiras.
d) A matéria relativa à competência internacional diz respeito à incompetência absoluta do Tribunal, devendo ser sempre apreciada oficiosamente, independentemente da alegação das partes, que a poderão invocar até ao trânsito em julgado da decisão final.
e) No que concerne aos fatores de conexão internacional, consagrados no artigo 62.º do CPC, e ao invocado erro de julgamento na apreciação e aplicação dos mesmos, não assiste razão ao recorrente.
f) Não só a sentença conheceu em detalhe os fundamentos invocados pelo autor para sustentar a competência internacional da ordem jurídica portuguesa, como explicitou detalhadamente as razões de facto e de direito que justificam a decisão havida.
g) Para o efeito, convoquemos a factualidade relevante da petição inicial:
Quanto ao autor:
(i) O autor refere ser jogador de futebol (artigo n.º 3 petição inicial).
Quanto à ré:
(ii) A ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América;
(iii) A ré dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos, sendo que o autor não alega que a ré o faz em Portugal (artigo 1.º e 2.º da petição inicial);
(iv) O autor refere que “…a ré conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a EA (…) Sàrl…” (artigo 2.º da petição inicial), o que evidencia que a ré não atua em Portugal ou, sequer, na Europa;
Quanto ao facto ilícito imputado à ré:
(v) Em parte alguma da petição inicial, o autor afirma que a ré vende, em Portugal, os jogos FIFA e FIFA MANAGER, chegando mesmo a reconhecer, quanto a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros (artigos n.º 27.º e 38.º da petição inicial).
(vi) A compra efetuada pelos mandatários do autor foi à empresa “CEX (…) Exchange Unipessoal, Lda.”, com sede no Porto e não à ré, sendo que na fatura de compra nem sequer constam os jogos que o autor refere como incluindo a imagem do autor (artigo n.º 39 da petição inicial, aí referido como Doc. n.º 10 e junto como Doc. n.º 15 no Citius).
(vii) Nenhum dano é alegado ou concretizado, pelo autor, na petição inicial, como ocorrendo em Portugal.
h) Contra este quadro factual e com vista ao preenchimento do fator de conexão previsto na alínea a) do artigo 62.º do CPC, o autor sustenta que o facto ilícito ocorre também em Portugal.
i) A alínea a) consagra o princípio da coincidência com as regras de competência territorial: neste caso, como se refere na sentença e o autor não infirma, estamos perante uma ação de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, cuja competência territorial se define no artigo 71.º, n.º 2, do CPC.
j) Acompanhando a fundamentação da sentença e a jurisprudência relativa à regra do artigo 71.º, n.º 2, do CPC, o lugar do alegado facto ilícito – definido pelo autor na petição inicial, como a inclusão da sua imagem nos jogos FIFA – não ocorre em Portugal.
k) É o próprio autor quem declara, no já identificado art.º 2.º da petição inicial, que a ré apenas comercializa os jogos nos EUA, Canadá e Japão, não tendo qualquer atividade no resto do Mundo, incluindo Portugal.
l) Não basta, neste contexto, dizer que foram alegados factos praticados em território nacional com base na afirmação que os jogos FIFA são vendidos em todo o mundo, incluindo Portugal.
m) Quando é o próprio autor (e bem) quem menciona que a ré não tem atividade em Portugal, o que significa que a ré não pratica qualquer ato integrador da causa de pedir relativa à invocada utilização não autorizada da imagem do autor no nosso país (nem os factos alegados na petição inicial ou os documentos juntos, em tese, serão aptos a tal).
n) Inexistindo, por isso à luz da alínea a) do artigo 62.º e 71.º, n.º 2, ambos do CPC, elemento de conexão com a ordem jurídica portuguesa.
o) As regras do artigo 80.º (cuja epígrafe é Regra geral) e o n.º 3 do CPC não são aplicáveis no caso concreto, sob pena de se esvaziar a ratio legis da alínea a) do artigo 62.º do CPC.
p) A aplicação sucessiva de critérios para a competência territorial tornaria sempre os tribunais portugueses competentes, maxime através da regra do artigo 80.º, n.º 3, do CPC, o que não se pode aceitar por força das regras de interpretação normativa estabelecidas no artigo 9.º do CC.
q) Por esse motivo, o domicílio ou a nacionalidade do autor não constituem fatores de conexão relevantes para a apreciação da competência dos tribunais portugueses.
r) Quanto ao fator de conexão, consagrado sob a alínea b) do artigo 62.º, não foi alegada a prática de factos, pela ré, ou a ocorrência de quaisquer danos, em território nacional, relativos à causa de pedir ou algum facto aqui territorialmente localizado que a integre.
s) O autor não avançou, na sua petição inicial, qualquer ato da ré praticado em território nacional. Pelo contrário, afirmou no artigo 2.º desse articulado que a ré apenas tem atividade nos EUA, Japão e Canadá.
t) Não foi também concretizado qualquer dano sofrido pelo autor em território nacional.
u) Devem improceder quaisquer referências a “factos danosos”, que confundem dois requisitos autónomos da responsabilidade civil e cuja alegação sobrepõe (i) factos de terceiros localizados em Portugal, (ii) com factos da ré praticados no estrangeiro e, ainda, (iii) com danos sofridos pelo autor que não são territorialmente localizados.
v) Acresce que nem a comercialização dos jogos, nem os alegados danos do autor são tidos como factos constitutivos ou essenciais da causa de pedir, que assumam uma conexão relevante com Portugal, para efeitos da análise da competência internacional do Tribunal para os efeitos do artigo 62.º, b), do CPC.
w) A comercialização plurilocalizada dos jogos e, na Europa, por entidades que não a ré, não pode ser tida como um fator distintivo no contexto da causa de pedir e que atribua relevância suficiente para a afirmação da competência dos nossos tribunais.
x) Como refere o acórdão do TRL, acima identificado, “…para que se estabeleça a competência internacional dos tribunais portugueses é necessário que os factos materiais localizados em Portugal sejam relevantes e caraterísticos do facto jurídico e que, de entre a massa de factos que constituem a causa de pedir, tenham sido praticados em Portugal factos suficientes que justificam a conexão da ação com a ordem jurídica portuguesa.”.
y) Conforme resulta dos factos alegados na petição inicial, para a causa de pedir do autor, os factos relevantes prendem-se, fundamentalmente, com a inclusão não autorizada da sua imagem nos jogos FIFA e sua posterior venda pela ré, o que, reconhecidamente, não ocorre em território nacional.
z) A alegação do autor, em articulado posterior à petição inicial, acerca da ocorrência de danos globalmente e, por isso, também no seu domicílio não permite colmatar a falta de alegação de quaisquer danos em Portugal, por três motivos: (i) apenas a factualidade constante da petição inicial é relevante para a averiguação da competência, (ii) não são alegados danos concretos, nem danos concretos ocorridos em Portugal e (iii) a alegação de que o dano ocorre em todo o mundo e também na residência do autor não traduz uma conexão suficiente ou relevante com a jurisdição portuguesa.
aa) Daí que se conclua, inexistindo alegação factual sobre a causa de pedir ou qualquer facto que a integre praticado em Portugal, que não se verifica o fator de conexão previsto na alínea b) do artigo 62.º do CPC.
bb) Idêntica conclusão é alcançada pela aplicação do critério da necessidade constante da alínea c) do mesmo normativo: o autor não alegou na petição inicial, nem na resposta à contestação, onde se pronunciou expressamente sobre este ponto, qualquer razão de facto ou de direito que, mesmo em abstrato, seja idónea a densificar o conceito de dificuldade apreciável para o autor na propositura da ação no estrangeiro.
cc) Não foi alegado ou sequer demonstrado que os tribunais de outras jurisdições nacionais não se considerem competentes para o presente pleito ou quaisquer outras impossibilidades reais e objetivas.
dd) Sem qualquer concretização ou sequer indiciação factual concreta sobre a referida dificuldade apreciável na propositura de ação no estrangeiro, não existem nos autos quaisquer motivos que permitam concluir pela verificação da alínea c) do artigo 62.º do CPC.
ee) Em suma, como já concluído pelo Tribunal a quo, os factos alegados pelo autor, nestes autos, não revelam a verificação de fatores de conexão que atribuam competência internacional à ordem jurídica Portuguesa.
ff) Devem por isso improceder todas as conclusões do recurso do autor.”
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O recurso foi recebido na 1ª Instância como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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O recurso é o próprio e foi admitido adequadamente quanto ao modo de subida e efeito fixado, admitindo-se, ao abrigo do disposto no n.º 2, do artigo 651.º, do CPC, aplicável por analogia, as cópias da sentença e dos três acórdãos proferidos designadamente pelos Tribunais da Relação de Coimbra, de Lisboa e de Guimarães, apresentados, respectivamente, em 18/10/2021, 12/11/2021, 18/01/2022 e 09/02/2022.
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Colheram-se Vistos.
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II – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que as únicas questões que importa decidir respeitam ao seguinte:
1 – Nulidade de sentença;
2 – (In)Competência internacional do Tribunal a quo para conhecer e decidir da presente causa.
3 – Violação do artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
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III – FUNDAMENTOS DE FACTO
Os factos a considerar são os já acima descritos no relatório elaborado.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1 – Nulidade de sentença.
Invoca o Apelante nas suas conclusões recursivas padecer a sentença recorrida da causa de nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, d), 2ª parte, do CPC.
Vejamos se lhe assiste razão.
Decorre do artigo 615.º, n.º 1, do CPC que:
É nula a sentença quando:
[ …]
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Quanto ao chamado “Excesso de pronúncia”, prevenido na 2ª parte da supra identificada alínea d), referem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2ª edição, 2020, Almedina, pág. 764), respeitar tal vício à “apreciação de questões de facto ou de direito que não tenham sido invocadas e que não sejam de conhecimento oficioso”.
Na dimensão jurisprudencial existem ideias solidificadas quanto a esta nulidade.
De acordo com o acórdão do STJ de 04/03/2004, proferido no Processo 04B522 (acessível para consulta in www.dgsi.pt), a nulidade por excesso de pronúncia “reporta-se a questões e não a motivações, ou seja, apenas se reporta a pontos essenciais de facto ou de direito em que as partes centralizaram o litígio, incluindo as excepções […] e não à sua argumentação em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos”.
Neste mesmo sentido, veja-se o Acórdão do STJ de 05/02/2004, proferido no Processo 03B3809, publicado na mesma base de dados.
Já ao nível dos Tribunais de Relação e na mesma linha orientadora destacamos o acórdão da Relação de Guimarães de 24/01/2012 , proferido no Processo 3782/09 (acessível para consulta in www.dgsi.pt) , particularmente no excerto em que refere o seguinte:
“Não padece de nulidade, por excesso de pronúncia […], a sentença que, com fundamentos jurídicos diversos dos invocados pelas partes, decide das questões que lhe são colocadas”.
Aportando ao caso concreto não se vislumbra que o Tribunal a quo tenha incorrido na nulidade em causa.
Na verdade, o Tribunal a quo pronunciou-se em sede do despacho-saneador recorrido sobre a excepção dilatória de incompetência absoluta, com base em infracção de regras de competência internacional dos tribunais Portugueses, questão essa que foi expressamente invocada pela ora Apelada na sua contestação.
Impunha-se-lhe fazê-lo, sendo certo que a questão em apreço até se enquadra naquelas de conhecimento oficioso por força do disposto nas normas contidas e devidamente conjugadas entre si dos artigos 577.º, a) e 578.º, ambos do Código de Processo Civil.
Dito isto e até porque, em bom rigor, o Apelante nem sequer logrou elucidar nas suas conclusões recursivas através de factos em que medida a decisão recorrida terá incorrido na nulidade de excesso de pronúncia, limitando-se a referir o preceito legal atinente a tal causa de nulidade (artigo 615.º, n.º 1, d), 2ª parte, do CPC), resta considerar improcedentes as ditas conclusões no tocante a tal arguição de nulidade, a qual não se verifica em concreto.
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2 – (In)competência internacional do Tribunal recorrido.
Aqui chegados apreciemos, de seguida, a questão respeitante à incompetência internacional do Tribunal a quo.
Sobre a competência internacional dos Tribunais Portugueses dispõe o artigo 59.º do CPC, nos seguintes termos:
Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.”
Por conseguinte a competência internacional pode advir, designadamente, de regulamentos ou convenções internacionais, (que prevalecem sobre o direito interno dos respectivos Estados-Membros, ou Estados Contratantes/Outorgantes), ou do disposto nos artigos 62.º, 63.º ou 94.º, do CPC, sendo certo que quer o segundo desses artigos, que elenca taxativamente situações de conexão reveladoras de competência exclusiva dos Tribunais Portugueses, quer o terceiro e último, atinente a pacto privativo e atributivo de jurisdição, não terão, em qualquer circunstância, aplicabilidade ao caso vertente atenta a matéria em apreciação nele e os factos alegados e carreados para a decisão recorrida.
Por outro lado, não se alcança no caso concreto e atenta a matéria em causa qualquer instrumento (regulamento ou convenção), internacional que sobre ela disponha em termos de competência em razão da nacionalidade, sem esquecer que os Estados Unidos não pertencem à União Europeia, havendo, por conseguinte, que recorrer às normas do nosso direito interno.
E assim, tal constatação remete-nos então para a análise do disposto no artigo 62.º do CPC epigrafado “Fatores de atribuição da competência internacional“, a fim de concluirmos se efectivamente existe, ou não, no caso em apreço, algum dos elementos de conexão referidos no mencionado normativo, visto que no que tange aos artigos 63.º e 94.º do CPC já referimos supra não se verificar tal conexão no que tange à previsão do artigo 63.º e não ser aplicável face aos elementos resultantes dos autos, mormente da decisão recorrida, o disposto no artigo 94.º.
A apreciação de qualquer pressuposto processual parte sempre do figurino que o autor traça da relação jurídica, tendo como base o pedido e a causa de pedir formulados na petição inicial.
Aqui chegados vejamos qual a base factual plasmada no despacho recorrido, a qual não tendo sido especificamente impugnada em sede recursiva pelo Apelante com observância do disposto no artigo 640.º do CPC, deverá considerar-se como definitiva para a decisão deste recurso.
Consta, então, da decisão recorrida o seguinte:
“O Autor (…) instaurou a presente ação de processo comum contra a Ré Electronic (…) Inc., com sede em 209 (…), Califórnia, 94065, EUA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 90.000,00, a título de danos patrimoniais, acrescida dos juros vencidos, no montante de € 27.794,63 e ainda quantia não inferior a € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos, no montante de € 2.317,81 e dos juros que se vencerem até integral pagamento.
Estriba a pretensão de tutela jurisdicional no facto da Ré, sociedade norte-americana, no exercício da sua atividade comercial de desenvolvimento e fornecimento de jogos, utilizar a imagem e o nome do Autor, cidadão português, jogador de futebol a representar o CS (…), na Roménia, desde 2018, e a exercer a sua atividade profissional no estrangeiro desde o ano de 2015, para desenvolver e fornecer jogos Fifa, Fifa Manager, Fifa Ultimate Team-Fut e FiFa Mobile, nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, e com várias subsidiárias, fora destes países, destacando a EA (…), com sede em Genebra, Suíça, que comercializam esses produtos, sem ter solicitado autorização para o efeito.”
Dispõe o artigo 62.º do CPC, o seguinte.
Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão pessoal ou real. “
Estes elementos de conexão não são de aplicação cumulativa, bastando que se verifique no caso concreto uma das situações prevenidas em qualquer uma das alíneas acima reproduzidas.
Sobre a previsão da alínea a) referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (“Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1“, 4ª edição, 2018, Almedina, pág. 154), o seguinte:
“A alínea a) consagra, nos mesmos termos que no direito anterior, o critério da coincidência, pelo qual se determina a competência internacional dos tribunais portugueses sempre que a ação possa ser proposta em Portugal segundo as regras específicas de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa…Atribui-se assim a este último conjunto de regras uma dupla funcionalidade”.
Ainda a respeito desta alínea deixamos expressa a posição esclarecida de António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (obra acima citada, em comentário ao artigo 62.º do CPC, página 98):
“A competência internacional acompanha, desde logo, a competência interna de raiz territorial; se, de acordo com as regras da competência em razão do território, algum tribunal português for territorialmente competente, também lhe é atribuída a competência internacional por via do principio da coincidência.”
Regressando aos contornos do caso concreto verificamos de pronto que o Apelante é uma pessoa singular e cidadão nacional Português, alegadamente residente em Setúbal, Portugal, enquanto a Apelada é uma pessoa colectiva (sociedade), com sede na Califórnia, Estados Unidos da América, tal como percebemos, pela análise do pedido formulado pelo Apelante na petição inicial, que na base do litigio por si configurado está matéria de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, traduzida em alegada violação do direito de imagem do Apelante por parte da Apelada consubstanciada na produção, divulgação e exploração com fins lucrativos de videojogos (FIFA), por esta última utilizando a imagem do Apelante sem a autorização, ou consentimento, do mesmo.
Ora, partindo da alínea a), do artigo 62.º do CPC, acima transcrita, impõe-se aludir ao normativo constante do n.º 2 do artigo 71.º do CPC, que integra uma das regras específicas de competência territorial e se traduz no seguinte:
2.Se a ação se destinar a efetivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu.”
Conforme se alcança dos reproduzidos factos elencados na decisão recorrida, extraídos do arrazoado constante do petitório inicial, não é possível concluir que o facto lesivo invocado pelo Apelante tenha ocorrido em território Português.
Na verdade, não podemos deixar de concordar com o Tribunal a quo quando afirma na sentença recorrida que “em momento algum o autor afirma que a ré desenvolve e divulga em Portugal os jogos Fifa e Fifa Manager, chegando mesmo a reconhecer quanto a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros”, pois de facto é o que resulta desde logo da leitura do artigo 2.º da petição inicial, cujo teor é o seguinte: “Por sua vez, pelo mundo, a Ré conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a EA (…) Sàrl, pessoa colectiva registrada no Registo de Pessoas Colectivas de Genebra com o número (…) e sede em 8 Place du (…), 1204 Genebra, Suíça, a qual é uma empresa que opera como subsidiária (subdivisão) daquela, e que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão”; mas também do artigo 27.º do aludido articulado que contem a seguinte redacção: “Pouco importa, se as antigas versões dos jogos são comercializados por terceiros, porque a Ré já auferiu lucro com a venda de tais versões” e ainda do artigo 38.º da dita petição, que abarca o seguinte conteúdo: “Ora, se a Ré, por si ou por terceiros, ainda vende as versões de seus jogos, ATÉ AOS DIAS DE HOJE,.[…]” (destaque em itálico nosso).
Por outras palavras, o facto ilícito essencialmente constitutivo da causa de pedir (e é esse que releva na previsão do n.º 2 do artigo 71.º do CPC), tal como o Apelante o representa e descreve na petição inicial, traduzido na produção de jogos electrónicos, de vídeo e aplicativos com a inclusão do nome, imagem e características pessoais do Apelante, não ocorre sob qualquer forma em território nacional Português.
Por outro lado, também não constitui factor de conexão relevante a invocada residência do Apelante em Setúbal, Portugal, uma vez que a norma contida no artigo 80.º do CPC, que é uma “regra geral”, apenas se mostra aplicável “Em todos os casos não previstos nos artigos anteriores”, (cfr. n.º 1), ou seja nos artigos 70.º a 79.º do mesmo Código, sendo que no caso vertente, como já verificamos, mostrou-se aplicável a norma contida no n.º 2 do artigo 71º. do aludido diploma legal, razão pela qual o critério plasmado na 2ª parte do n.º 3 do aludido artigo 80.º tem de ser afastado.
Ademais, sendo a Ré e ora Apelada uma sociedade comercial em bom rigor a regra geral a considerar nem sequer poderia ser a do artigo 80.º, mas sim a do artigo 81.º do CPC.
Isto dito, mostra-se assim inaplicável a alínea a), que consagra o princípio ou critério da coincidência, uma vez que as normas de direito civil internas atinentes à competência territorial afastam a competência internacional dos tribunais Portugueses.
Arredada a aplicação ao caso concreto do critério da coincidência passemos a analisar a previsão da alínea b) do artigo 62.º do CPC, também acima transcrita, que abraça o critério da causalidade.
Sobre esta dizem-nos Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (obra acima cit, pág. 155), que:
“A parte final desta disposição legal (“ou algum dos factos que a integram”), […] tem aplicação nos casos de causa de pedir complexa, constituída por uma pluralidade de atos ou factos jurídicos.”
E citando Anselmo de Castro (“Direito Processual Civil”, II, pág. 29), referem ainda (a fls. 156), que:
“A finalidade da lei é impedir “a denegação da competência dos nossos tribunais sempre que um só dos factos, por mínimo que fosse, tivesse ocorrido em território estrangeiro”.
Regressando de novo ao plano factual derivado do arrazoado fornecido pelo Apelante verificamos que apesar de se estar perante uma causa de pedir complexa dado que abrange uma pluralidade de factos jurídicos traduzidos em actos de produção ou criação de jogos electrónicos, de vídeo e aplicativos (estes essencialmente constitutivos da causa de pedir), bem como outros não essenciais a essa constituição como sejam a divulgação e exploração de tais jogos e aplicativos, a par de alegados danos no nome e na imagem do Apelante por virtude desta última ter sido usada em tais produtos sem a autorização ou consentimento por parte do mesmo, a verdade é que não se descortina que a prática dos mesmos tenha conexão com o território nacional Português, como passaremos a elucidar.
Com efeito e já o sabemos pela abordagem anteriormente feita aquando da apreciação da relevância do critério da coincidência, a produção dos aludidos jogos e aplicativos terá ocorrido nos Estados Unidos da América.
Já quanto à divulgação e exploração/venda por parte da Apelada a mesma terá ocorrido naquele país e ainda no Japão e Canadá, não podendo aceitar-se, como pretenderá sustentar o Apelante, que a divulgação e venda de tais jogos FIFA e aplicativos por parte de entidades terceiras, ainda que subsidiárias da Apelada, como sucede com a empresa EA (…) SARL, sediada em Genebra, Suíça, (que alegadamente assegura a venda de tais produtos fora dos EUA, Canadá e Japão, mormente na Europa), corresponda, ou equivalha, à prática de tais factos jurídicos pela própria Apelada, tanto mais que a mencionada EA (…) SARL é uma pessoa colectiva (sociedade comercial) dotada de personalidade judiciária e capacidade judiciária, podendo ser autonomamente demandada judicialmente.
Quanto aos alegados danos, percebemos desde logo que o Apelante não os concretiza de forma a poder entender-se em que medida constituem um prejuízo para aquele, escudando-se na alegação de que “o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem”.
Porém, parece-nos estar carecido de razão, pois a “utilização não autorizada e indevida” pode conter-se, quando muito, na descrição de facto ilícito e culposo, mas não necessariamente de acto danoso.
Em todo o caso e ainda que se entenda de modo coincidente à posição do Apelante afigura-se-nos claro que a alegada violação do direito ao nome e imagem do Apelante enquanto dano que teria que ser causa adequada do facto ilícito imputado à ora Apelada, qual seja a produção dos aludidos jogos e aplicativos com a utilização não consentida pelo mesmo do nome e imagem do Apelante, não se concretizou, nem localizou, por qualquer forma, em território nacional Português, uma vez que, repete-se e sublinha-se, a Apelada, (segundo o que decorre do alegado pelo próprio Apelante), não produziu, (assim como também não divulgou, nem vendeu, por si), tais jogos e aplicativos em Portugal.
Isto dito, mostra-se assim igualmente inaplicável a alínea b) do artigo 62.º do CPC, que consagra o princípio, ou critério, da causalidade, na medida em que não só o invocado facto ilícito não foi praticado em Portugal, como também não surge concretizado na petição inicial qualquer dano directamente causado ao Apelante, por acção da Apelada, verificado no nosso País.
Por fim, abordemos a previsão da alínea c), que consagra o princípio, ou critério, da necessidade.
Sobre este último critério dizem-nos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (obra acima citada, a páginas 99), o seguinte:
“A alínea c) contém uma cláusula de salvaguarda tendente a evitar que, atenta a impossibilidade de ordem prática ou jurídica (v.g. recusa de competência), ou a grave dificuldade na instauração da ação num tribunal de outro Estado, o direito em causa pudesse ficar sem tutela efetiva (v.g. casos de guerra ou outras calamidades). Concretiza o princípio da necessidade, mas a atribuição da competência aos tribunais nacionais exige uma forte conexão com a ordem jurídica portuguesa […] seja de ordem pessoal (v.g. nacionalidade ou residência das partes), seja de natureza real (v.g. o facto de se situar em território nacional o bem que é objeto imediato ou mediato da ação).”
Aportando mais uma vez aos factos invocados, máxime no articulado da petição inicial, percebemos desde logo, por um lado, inexistir qualquer indício de que o direito invocado pelo Apelante (direito a ser indemnizado por alegada violação de um direito de personalidade), não possa ser exercido através de uma acção proposta pelo mesmo designadamente em território norte-americano, onde a Apelada desenvolve a sua actividade e onde a mesma terá produzido conteúdos utilizando indevidamente a sua imagem e nome, pais onde é consabido que direitos de tal natureza são reconhecidos, o mesmo sucedendo, aliás, um pouco por todo o mundo na actualidade e por outro lado que se verifique para o Apelante “dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro”.
Com efeito, conforme já ficou salientado doutrinariamente supra, a apreciável dificuldade na propositura da acção no estrangeiro prende-se com a verificação de factores de excepcionalidade tais como a existência de cenários de guerra (mormente guerra civil), ou outras calamidades (v.g. graves catástrofes naturais aptas a paralisar praticamente um País), que ameacem seriamente a tutela efectiva do direito que se pretende exercer, o que não foi devidamente concretizado e menos ainda alegado, na petição inicial, pelo Apelante.
Diga-se, a talhe de foice, que sendo o Apelante uma pessoa que vem exercendo desde há vários anos a sua actividade profissional no estrangeiro, o que tem determinado a necessidade de ter residência, ou pelo menos paradeiro, nos vários países onde tem trabalhado (Reino Unido, Roménia), mais mitigada se afigura a regateada pretensão de fixar internacionalmente competência ao Tribunal Português.
Que de facto não a tem, também à luz do critério plasmado na alínea c) do artigo 62.º do CPC, conforme supra ficou demonstrado.
No mesmo sentido, a que chegámos, da negação da competência internacional dos Tribunais Portugueses, vejam-se os recentíssimos acórdãos proferidos em acções, com contornos fácticos muito semelhantes aos reunidos na presente causa, pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 26/10/2021 (Proc.º 3239/20.9T8CBR-A.C1), pelo Tribunal da Relação de Guimarães (Proc.º 3853/20.2T8BRG.G1), sendo que em ambas as acções o Autor também é um futebolista profissional de nacionalidade Portuguesa e a Ré a mesma que a dos presentes autos, bem como, ainda, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa igualmente em 13/01/2022 (Proc.º 24974/19.9T8LSB.E1-8), em que o Autor é um jogador de futebol de nacionalidade brasileira, domiciliado em Portugal e a Ré a mesma que a dos presentes autos, todos eles acessíveis para consulta in www.dgsi.pt..
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3 – Violação do artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Uma última palavra relativamente à invocada contrariedade à norma prevenida no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (doravante apenas CRP).
A previsão da mesma consiste no seguinte:
1- A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.”
Ora afigura-se manifesto que a decisão recorrida não colocou em causa o reconhecimento de qualquer um daqueles direitos e designadamente, para o que em concreto interessa, o direito ao nome e imagem do Apelante que integra o leque mais vasto dos “direitos à identidade pessoal”.
Com efeito o que a decisão recorrida entendeu e será agora confirmado superiormente por esta Instância é tão só que o Tribunal Português, em virtude dos elementos concretos que o caso desvenda, não é internacionalmente competente para apreciar e decidir a questão trazida a juízo pelo Apelante, em parte alguma deixando expresso que se decidia de tal forma por não se reconhecer o direito alegado pelo Apelante.
De resto sempre o Apelante teria que ter deixado claro qual a norma aplicável na decisão recorrida que viola directamente a norma contida no n.º 1 do artigo 26.º da CRP e porquê.
O que não fez designadamente como se percebe pela leitura das suas conclusões recursivas.
Improcedendo, como tal, ainda, esta questão levantada no recurso.
Destarte, sem necessidade de mais considerandos, entende-se improcederem na totalidade as conclusões recursivas do Apelante.
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V – DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta 1ª Secção Cível em negar provimento ao presente recurso de apelação interposto por (…) e, em consequência, decidem o seguinte:
a) Confirmar a decisão recorrida;
b) Condenar em custas o Apelante – artigo 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.
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Évora, 24/02/2022
José António Moita (Relator: Assinatura electrónica certificada no canto superior esquerdo da primeira folha do acórdão).
Mata Ribeiro (1.º Adjunto: Votou o acórdão em conformidade por comunicação à distância por sessão realizada através da plataforma WEBEX).
Maria da Graça Araújo (2.º Adjunto: Assinatura electrónica certificada no canto superior esquerdo da primeira folha do acórdão).