Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
818/13.4TASTR.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: NULIDADE
ACUSAÇÃO PARTICULAR
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
ASSISTENTE
Data do Acordão: 07/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A falta de notificação do Ministério Público ao assistente, para deduzir acusação particular, não constitui caso de nulidade insanável, mas sim, e tão só, a nulidade sanável prevista no artigo 120º, nº 2, al. d), do C. P. Penal, por se tratar da omissão de ato legalmente obrigatório (a que alude o artigo 285º, nº 1, do mesmo diploma legal).
II - Essa nulidade, face ao disposto no artigo 120º, nº 3, al. c), do C. P. Penal, devia ter sido arguida até cinco dias após a notificação do despacho que encerrou o inquérito. Não o tendo sido, ficou sanada. E o assistente não tinha, nem tem, legitimidade para requerer a abertura da instrução (artigo 287º, nº 1, al. b), do referido C. P. Penal).
Decisão Texto Integral:

I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

Nos presentes autos, acima identificados, da Comarca de Santarém, Instrução Criminal, em que é assistente LMJ, findo o inquérito, em que se investigava a eventual prática de um crime de difamação agravada imputado ao arguido FJC, p. e p. pelos art.º 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 2, do Código Penal, crime o qual, de acordo com o art.º 188.º, n.º 1, do mesmo código, depende de acusação particular, decidiu o M.º P.º, porque os factos indiciados não integravam, na sua óptica, aquele ilícito, arquivar o inquérito ao abrigo do disposto no art.º 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (diploma do qual serão todos os preceitos legais a seguir referidos sem menção de origem), em vez de cumprir o estatuído no art.º 285.º, n.º 1, que prescreve que findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em 10 dias, querendo, acusação particular.
Em face desta situação, requereu o assistente a abertura de instrução, a qual foi admitida, sem que o Senhor Juiz de Instrução Criminal tenha na altura atentado no disposto no art.º 287.º, n.º 1 al.ª b), que determina que a abertura da instrução pode ser requerida (…) pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
Situação da qual o Senhor Juiz de Instrução Criminal se apercebeu aquando da decisão instrutória, pelo que nessa ocasião, porque considerou que a omissão do M.º P.º em relação ao art.º 285.º, n.º 1, constituía um nulidade sanável prevista no art.º 120.º, n.º 2 al.ª d), cujo prazo de arguição, constante do art.º 120.º, n.º 3 al.ª c), decorrera sem que tivesse sido arguida pelo assistente, declarou a falta de legitimidade deste para requerer a abertura da instrução e, em consequência, declarou extinto o procedimento criminal contra o arguido, pois o despacho (…) que declarou aberta a instrução não deveria ter sido proferido, antes deveria o RAI ter sido liminarmente rejeitado por ilegitimidade do assistente.
No entanto, é de notar que tal despacho não tem qualquer valor de caso julgado formal, mesmo quando se pronuncia liminar e genericamente sobre os pressupostos processuais relevantes. De facto, são aplicáveis a este despacho os mesmos argumentos que fundamentaram a decisão do Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 2/952, quando aí se decidiu que "A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento".
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Inconformado com o assim decidido, o assistente interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1- O M.P. não deu cumprimento ao art. 285º n.º 1 e 2 do CPP , como impunha a Lei.
2- O M.P. errou manifestamente ao não dar cumprimento ao art. 285º 1 e 2 do CPP.
3- Tal como errou o MM Juiz do JIC ao declarar aberta a instrução .
4- Tal omissão é uma nulidade insanável , nos termos da al. d) do art. 119º CPP.
5- Efectivamente , na sua essência verificou-se a falta de inquérito .
6- O requerente não pode ser prejudicado pelos erros manifestos do Tribunal .
7- A interpretação do Tribunal a quo dada à alínea d) do art. 119º do CPP é
inconstitucional por violação do principio do acesso ao direito consagrado no art. 20º da CRP.
8- O despacho recorrido violou a alínea d) do art. 119º do CPP e o art. 20º da CRP.
Nestes termos , dando-se provimento ao recurso , deve ser declarado a nulidade insanável , e , consequentemente , o assistente nos termos e para os efeitos do art. 285º n.º 1 e 2 do C.P.P. .
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A Ex.ma Procuradora do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:
1 — Findo o inquérito, o magistrado do Ministério Público proferiu despacho de arquivamento em vez de dar cumprimento ao disposto no art. 285° n°s 1 e 2 do CPP, que se impunha dado os factos objecto dos presentes autos constituírem crime de natureza particular;

2 - A omissão da notificação a que alude o art. 285° do CPP não está prevista como nulidade insanável, apenas se reconduzindo à nulidade sanável da insuficiência de inquérito, resultante da omissão de um acto legalmente obrigatório, que se encontra sanada por não ter sido tempestivamente arguida;

3 - Todavia, estando em causa nos presentes autos apenas um crime de natureza particular, não tem o assistente legitimidade para requerer a abertura de instrução;

4 - Por outro lado, não foi deduzida acusação particular e o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente não é passível de suprir a falta daquela;

5 - Concluindo, bem andou o Mmo. Juiz de Instrução ao declarar a falta de legitimidade do recorrente para requerer a abertura de instrução e, não tendo sido deduzida acusação particular, declarar extinto o procedimento criminal pelo crime de natureza particular imputado ao arguido;

6 — A decisão recorrida não enferma de qualquer inconstitucionalidade, pelo que o despacho recorrido não merece censura, devendo ser mantido.
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Também o arguido respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. O Recorrente foi notificado do despacho de arquivamento do Ministério Público proferido no processo de inquérito.
2. O Recorrente requereu a abertura de instrução em vez de ter arguido a nulidade de tal despacho, nos termos do disposto no art. 120° do CPP.
3. As nulidades insanáveis são apenas as que constam no art. 119° do CPP, pelo que as restantes nulidades ficam sanadas se não forem arguidas, nos termos do disposto no art. 121° do CPP.
4. A falta da notificação prevista no art. 285° n.°s 1 e 2 do CPP subsume-se na alínea d) do art. 120° do CPP e não na alínea d) do art. 119° do CPP, portanto o Recorrente tinha que ter arguido a nulidade no prazo de 5 dias após ter sido notificado do despacho que encerrou o inquérito, de acordo com o art. 120° n.° 3 alínea c) do CPP.
5. O Recorrente não arguiu tal nulidade no respectivo prazo, pelo que esta ficou sanada, não podendo ser arguida em recurso da decisão instrutória que declarou a falta de legitimidade do Recorrente para requerer a abertura de instrução.
6. Assim a interpretação do Mmo. Juiz de Instrução, constante da decisão instrutória, está correcta e não merece qualquer censura.
Termos em que e nos demais de direito não deverá ser dado provimento ao presente recurso e assim farão a habitual e necessária JUSTIÇA!
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Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que a única questão posta ao desembargo desta Relação é a de se, perante a circunstância de, findo um inquérito em que se investigava um crime de natureza particular, o M.º P.º , porque os factos indiciados não integravam, na sua óptica, aquele ilícito, arquivar o inquérito ao abrigo do art.º 277.º, n.º 1, em vez de cumprir o estatuído no art.º 285.º, n.º 1, a nulidade daí resultante é a prevista no art.º 119.º al.ª d) ou a do art.º 120.º, n.º 2 al.ª d).
Vejamos.
A decisão recorrida entendeu estar-se perante a nulidade dependentes de arguição do art.º 120.º, n.º 2 al.ª d).
O assistente defende tratar-se da nulidade insanável do art.º 119.º al.ª d).
Estabelece aquele art.º 120.º, n.º 2 al.ª d):
2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:
d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
E o seu n.º 3 al.ª c):
3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:
c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito;[1]
E o art.º 119.º al.ª d):
Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;
O interesse do recorrente é visível: se a nulidade for insanável, ele ainda terá oportunidade de deduzir acusação após o processo voltar para trás e ser notificado nos termos do art.º 285.º; se a nulidade for sanável, neste momento já não há nada a fazer.
Ora a falta de notificação do M.º P.º ao assistente para deduzir acusação particular, não constitui caso de nulidade insanável, mas sim, e tão só, a nulidade sanável prevista no art.º 120.º, n.º 2 al.ª d), por se tratar da omissão do acto legalmente obrigatório a que alude o art.º 285.º, n.º 1.
Neste sentido, Germano Marques da Silva, «Curso de Processo Penal», 2.ª ed., III-104; Paulo Pinto de Albuquerque, "Código de Processo Penal Anotado", 2007, pág. 313, na anotação 6 f. ao art.º 120.º; ac. TRP de 27-6-2012, proc. 853/11.7TAVFR.P1, em www.dgsi.pt. Sobre as diferenças entre a falta de inquérito referido no art.º 119.º al.ª d) e a insuficiência de inquérito do art.º 120.º, n.º 2 al.ª d), ver ac. TRL de 2-10-2012, sumariado na CJ, 2012, IV-273 e acessível no site da CJ.
Nulidade que, nos termos do art.º 120.º, n.º 3 al.ª c), devia ter sido arguida até cinco dias após a notificação do despacho que encerrou o inquérito. Não o tendo sido, ficou sanada. E o assistente não tinha, nem tem, legitimidade para requerer a abertura de instrução (art.º 287.º, n.º 1 al.ª b)).
Depois, é como o Senhor Juiz diz no seu despacho recorrido:
(…) o despacho de fls. 75 que declarou aberta a instrução não deveria ter sido proferido, antes deveria o RAI ter sido liminarmente rejeitado por ilegitimidade do assistente.
No entanto, é de notar que tal despacho não tem qualquer valor de caso julgado formal, mesmo quando se pronuncia liminar e genericamente sobre os pressupostos processuais relevantes. De facto, são aplicáveis a este despacho os mesmos argumentos que fundamentaram a decisão do Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 2/95[2], quando aí se decidiu que "A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento".
IV
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade de tratamento das questões suscitadas, em três UC’s (art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).

Évora, 14-07-2015
(elaborado e revisto pelo relator)

João Martinho de Sousa Cardoso

Ana Maria Barata de Brito

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[1] Recorde-se que, em resultado do disposto no art.º 287.º, n.º 1 al.ª a) e b), nos crimes dependentes de acusação particular, só o arguido pode requerer a abertura de instrução; o assistente naturalmente que não a pode requerer (para que é que ele a quereria se foi ele mesmo quem acusou?).
[2] Publicado no Diário da República 135/95, I Série-A, de 12-6-1995, pág. 3773.