Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3761/16.1T8STB.E1
Relator: MOISÉS SILVA
Descritores: AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
PRESUNÇAO DE LABORALIDADE
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: A vontade das partes consistente em afirmar que entre elas existe um contrato de prestação de serviços não pode prevalecer se a realidade demonstra que a relação jurídica existente constitui um contrato de trabalho subordinado. O legislador optou pela correspondência real e efetiva entre a realidade concreta e a qualificação da relação jurídica existente entre o prestador e o beneficiário da atividade, não podendo valer qualquer outra que se lhe oponha.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3761/16.1T8STB.E1

Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO

Apelante: BB, Lda (ré).
Apelado: Ministério Público (autor).

Tribunal Judicial da comarca de Setúbal, Setúbal, Juízo de Trabalho, J1.

1. O Ministério Público intentou a esta ação de reconhecimento da existência do contrato de trabalho contra a ré pedindo que seja declarada a existência de um contrato de trabalho entre esta e CC, com início a 1 de setembro de 2015.
Alegou que CC, contratada para exercer as funções de cuidador no domicílio dos clientes da ré, na realidade desempenhava tarefas de acompanhamento e apoio de idosos no Lar sito em …, em horário constante de escala mensal, observando horas de início e de termo da prestação, mediante o pagamento de quantia mensal calculada com base no tempo de trabalho efetivamente prestado.
Regularmente citada, a ré apresentou contestação, pugnando pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.
Sustentou que, para assegurar a exploração do Lar que explora desde setembro de 2015, celebrou com CC, um contrato de prestação se serviços, sendo a mesma trabalhadora efetiva da empresa desde 1 de abril de 2016.
Foi designada data para realização de audiência de julgamento, tendo sido dado cumprimento ao preceituado nos art.ºs 186.º-L n.º 4 e 186.º-N n.ºs 1 a 3, do Código de Processo do Trabalho.
CC não aderiu aos factos apresentados pelo Ministério Público, nem apresentou articulado próprio ou constituiu mandatário.
Realizou-se a audiência de julgamento, precedida de audiência de partes, com observância do formalismo legal, conforme resulta da respectiva ata, tendo aí sido tentada a conciliação das partes, o que não se logrou obter, sustentando o Ministério Público que entre a BB, Lda. e CC foi celebrado um contrato de trabalho, com início a 1 de setembro de 2015, e a ré mantido que entre ambas foi celebrado um contrato de prestação de serviços.
Foi proferida sentença com a seguinte decisão:
Por todo o exposto, julgo a presente ação procedente, por provada, e em consequência, reconheço a existência de um contrato de trabalho, por tempo indeterminado, entre a BB, Lda e CC, com início a 4 de setembro de 2015.
Custas pela ré.
Registe e notifique.
Valor da ação: € 5.047,47 (cinco mil e quarenta e sete euros e quarenta e sete cêntimos).

2. Inconformada, veio a ré interpor recurso de apelação, que motivou e apresentou as conclusões seguintes:
A. O presente recurso de apelação vem interposto da sentença que reconheceu a existência de um contrato de trabalho desde setembro de 2015 entre as partes;
B. Salvo melhor e mais douta opinião não andou bem a Mm.ª Juiz a quo quando, como a seguir se demonstrará, dando como não provado que:
“CC solicitou à gerência da ré que não fosse celebrado um contrato de trabalho”.
“CC indicava à ré a sua disponibilidade.”
“ A ré organizava a escala de serviço de acordo com a disponibilidade das suas colaboradoras.”
C. O que não corresponde à verdade dos factos!
D. Embora se possa entender que não seja a maioria das situações que aparecem no dia-a-dia, mas por vezes tem que se aprofundar melhor as razões de ser e valorizar a posição das partes,
E. Neste caso em concreto a posição expressa da Trabalhadora.
F. E não foi efetuado, com o devido respeito, pelo Douto Tribunal.
G. Mais a autora/trabalhadora não aderiu à posição do MP e referiu por diversas vezes que foi ela quem pediu para não celebrar contrato antes de maio 2016.
H. Por outro lado, do processo inspetivo do ACT não consta nenhuma análise, estudo, declaração ou pedido de informação relativo a esta trabalhadora CC.
I. Facto este corroborado pelo depoimento dos Srs. Inpetores em sede de audiência os quais, ao contrário do referido na Douta Sentença não “esclarecerem as razões que estiveram na base do expediente que deu azo aos presentes autos”.
J. A Sra. Inspetora … referiu até que “… só efetuámos o auto porque a DD falou que havia a CC…”
K. Não se pode imputar uma relação contratual, quando as partes entendem de livre acordo que não a pretendem ter.
L. Ademais, é despretensioso e até de alguma forma “injurioso”, a expressão de que a “prestação de serviços” visava que a entidade empregadora não cumprisse as suas obrigações legais,
M. Ora, a entidade empregadora não só cumpre todas as obrigações legais como não tem qualquer dívida para com a Autoridade Tributária e Segurança Social, honrando sempre os seus compromissos.
N. A que acresce que a prova produzida em sede de audiência de julgamento, conjugada com a prova documental conduz redondamente à conclusão que não era intenção da trabalhadora CC celebrar contrato de trabalho em data anterior a abril/maio de 2016.
O. Atendendo ao exposto quanto aos factos, a douta sentença proferida efetuou uma errada aplicação do direito, nomeadamente,
P. Tanto mais que a recorrente não teve qualquer intenção de lesar ou se “esquivar” ao pagamento das suas obrigações para com o Estado Português,
Q. Porquanto, durante o período em questão (setembro a abril) a trabalhadora passou recibos verdes, pagou os seus impostos e inclusive efetuou contribuições à segurança social.
R. Não tendo, portando omitido qualquer rendimento!
S. E esses valores também foram declarados pela entidade empregadora.
T. Relativamente ao disposto no artigo 12.º do C Trabalho quanto à presunção de contrato de trabalho, importa ter em consideração que ramo de atividade é o da recorrente, uma vez que estamos perante um “Lar de Idosos”.
U. Mais, como facilmente se compreenderá, a organização de uma lar importa a elaboração de escalas dos turnos que assegurem os cuidados necessários aos idosos nas 24h do dia,
V. Mas isso não significa que as colaboradoras do Lar, como a Sra. CC, não possam ser prestadoras de serviços e trabalharem em diversas entidades simultaneamente.
W. E é certo que existia uma escala de serviço e que a mesma tenha hora de início e fim, mas somente com o intuito de assegurar o tratamento e cuidado aos idosos.
X. Por outro lado, se é a ré que é proprietária do Lar, naturalmente se compreende que seja a mesma que forneça o material e equipamentos necessários para que as colaboradoras prestem serviço aos doentes.
Y. Salvo o devido respeito, o facto de a escala ter hora e fim e do lar ser da entidade empregadora não pode presumir-se por si só que existe uma relação de dependência.
Z. A aplicação adequada das normas supra-referidas à matéria de facto deveria determinar a improcedência da ação.
AA. E consequente absolvição da recorrente, não sendo reconhecida a existência de contrato de trabalho entre as partes no período de 04 de setembro de 2015 a final de abril de 2016.
Nestes termos e nos melhores de direito que V.Exas, doutamente, suprirão, deve, dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida em conformidade com as conclusões, com o consequente não reconhecimento de existência de um contrato de trabalho.

3. O Ministério Público contra-alegou e concluiu que:
1. Provados os factos que permitem ter por verificadas quatro das caraterísticas do contrato de trabalho previstas no art.º 12.º do Código do Trabalho, cabia à ré infirmar a existência de um contrato de trabalho, o que não logrou fazer.
2. Tal prova foi seguramente dificultada pela circunstância de a ré ter celebrado com a prestadora de atividade, em maio de 2016, um contrato de trabalho que, na sua essência correspondia à relação que já existia desde setembro de 2015.
3. O nome que as partes acordaram em atribuir à relação que as ligava não vincula o tribunal, nem obsta a que se reconheça como sendo uma relação laboral, o vínculo que as partes optaram por chamar de “prestação de serviços”.
4. O interesse das partes não se sobrepõe ao interesse público que decorre da Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto, traduzido na instituição de mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado, vulgo falsos recibos verdes.
5. Não tendo a ré contrariado as afirmações que sustentam a presunção de laboralidade - note-se que a recorrente não pôs em causa a factualidade dada como provada na sentença, limitando-se a insurgir-se contra alguns dos factos (irrelevantes para a sua pretensão, tanto quanto nos parece…) que o tribunal julgou não provados -, deve ser reconhecida a existência de um contrato de trabalho – tal como o foi - reportada ao início da prestação da atividade.
Nestes termos deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.

4. Colhidos os vistos, em conferência, cumpre decidir.

5. Objeto do recurso
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são as seguintes:
1. A matéria de facto.
2. Apurar se existe contrato de trabalho.

II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A) A sentença recorrida deu como provados os factos seguintes:
1. No dia 4 de setembro de 2015, CC foi admitida ao serviço da ré mediante escrito denominado “Contrato de Prestação de Serviços”.
2. Ana Paula Costa foi contratada para exercer funções de cuidador no domicílio dos clientes da ré.
3. Na execução do referido contrato, CC desempenhou diariamente a atividade de acompanhamento e apoio aos idosos do Lar de Idosos da ré em ….
4. CC exerceu a sua atividade observando as horas de início e de termo constantes do horário aposto na escala de serviço mensal elaborada pela ré.
5. CC estava obrigada a informar a gerente da R. da necessidade de troca de serviço.
6. Por ordem da ré, CC assegurou regularmente turnos de 12 horas, entre as 20:00 e as 08:00 horas.
7. Entre 16 e 22 de março de 2016, CC efetuou turnos de 12 horas em sete dias consecutivos.
8. Como contrapartida da atividade prestada, a ré pagava a CC, mensalmente uma quantia calculada por referência ao tempo de trabalho efetivamente prestado.
9. Os produtos necessários ao desenvolvimento da atividade de CC eram fornecidos pela ré, a qual era também proprietária dos equipamentos utilizados.
10. CC possui experiência de trabalho em lares, sabendo o que deve fazer em matéria de higiene, alimentação e acompanhamento de idosos.
11. À data de 1 de setembro de 2015, CC mantinha um contrato de trabalho sem termo com outra entidade.
12. Desde maio de 2016 que CC mantém com a ré um contrato de trabalho sem termo.
13. A organização de um Lar importa a elaboração de escalas de turnos que assegurem os cuidados necessários aos idosos durante as 24 horas do dia.

B) APRECIAÇÃO
As questões a decidir são as que já elencamos supra:
1. A matéria de facto
2. Apurar se existe contrato de trabalho.

B1) A matéria de facto
A apelante insurge-se contar a sentença recorrida na parte em que não deu como provados determinados factos.
A prova prestada oralmente não foi gravada e a apelante não indica qualquer documento que só por si seja idóneo para provar os factos dados como não provados que indica.
Assim, não pode o Tribunal da Relação reapreciar a matéria de facto fada como não provada e alterar a resposta que lhe foi dada pelo tribunal recorrido.

B2) A existência de contrato de trabalho
O art.º 11.º do CT prescreve que contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra pessoa ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.
Por sua vez, o art.º 12.º do CT prescreve que se presume a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade a outra ou outras que dela beneficiam, se verificarem algumas das seguintes caraterísticas:
a) A atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;
b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade;
c) O prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinado pelo beneficiário da mesma;
d) Seja paga, com determinada periocidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma;
e) O prestador de atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.
A lei – art.º 12.º do CT – acolheu as caraterísticas que, em geral, a doutrina e a jurisprudência já apontavam para a qualificação do contrato de trabalho.
Caraterísticas como: a vinculação a horário de trabalho estabelecido pelo empregador; a prestação do trabalho em instalação do empregador ou em local por ele escolhido; a existência de controlo externo do modo da prestação da atividade; a obediência a ordens e a sujeição à disciplina da empresa; a existência de uma retribuição certa, à hora, ao dia, à semana ou ao mês; a propriedade dos instrumentos do trabalho.
Com interesse para a decisão desta matéria está provado que:
“CC foi contratada para exercer funções de cuidador no domicílio dos clientes da ré; na execução do referido contrato, CC desempenhou diariamente a atividade de acompanhamento e apoio aos idosos do Lar de Idosos da ré em …; CC exerceu a sua atividade observando as horas de início e de termo constantes do horário aposto na escala de serviço mensal elaborada pela ré; CC estava obrigada a informar a gerente da R. da necessidade de troca de serviço; por ordem da ré, CC assegurou regularmente turnos de 12 horas, entre as 20:00 e as 08:00 horas; entre 16 e 22 de março de 2016, CC efetuou turnos de 12 horas em sete dias consecutivos; como contrapartida da atividade prestada, a ré pagava a CC, mensalmente uma quantia calculada por referência ao tempo de trabalho efetivamente prestado; os produtos necessários ao desenvolvimento da atividade de CC eram fornecidos pela ré, a qual era também proprietária dos equipamentos utilizados e a organização de um Lar importa a elaboração de escalas de turnos que assegurem os cuidados necessários aos idosos durante as 24 horas do dia”.
Esta factualidade revela claramente que a trabalhadora prestava de facto a sua atividade para a R. sempre do mesmo modo, sujeita a um horário de trabalho imposto pela ré, a atividade prestada tinha como contrapartida uma remuneração mensal, utilizava os instrumentos de trabalho do R. e não era livre de prestar a atividade quando entendesse, de modo a que só o resultado importasse.
Os factos provados enquadram-se nas alíneas a) a d) do n.º 1 do art.º 12.º do CT, daí que se presuma, em concreto, a existência de um contrato de trabalho entre as partes, uma vez que nada existe que a contrarie a presunção.
O contrato denominado de prestação de serviços outorgado entre a ré e a trabalhadora não espelha a realidade, em face dos factos dados como provados.
Neste contexto, a vontade das partes consistente em afirmar que entre elas existe um contrato de prestação de serviços não pode prevalecer se a realidade demonstra que a relação jurídica existente constitui um contrato de trabalho. O legislador optou pela correspondência real e efetiva entre a realidade concreta e a qualificação da relação jurídica existente entre o prestador e o beneficiário da atividade, não podendo valer qualquer outra que se lhe oponha.
Em resumo, a autora estava subordinada às instruções da ré, exercia a sua atividade na organização desta, para quem trabalhava e de quem dependia economicamente, mediante o pagamento de uma quantia pecuniária mensal, o que configura a relação jurídica de contrato de trabalho.
Face a estes factos provados, constata-se que o contrato celebrado entre a trabalhadora e a ré, e que titularam de prestação de serviços, constitui um contrato de trabalho efetivo entre as partes.
A subordinação jurídica da trabalhadora está bem documentada nos factos assentes, os quais consubstanciam um efetivo contrato de trabalho, na definição do art.º 11.º do CT de 2009.
Nestes termos, julgamos a apelação improcedente e confirmamos a sentença recorrida.
Sumário: a vontade das partes consistente em afirmar que entre elas existe um contrato de prestação de serviços não pode prevalecer se a realidade demonstra que a relação jurídica existente constitui um contrato de trabalho subordinado. O legislador optou pela correspondência real e efetiva entre a realidade concreta e a qualificação da relação jurídica existente entre o prestador e o beneficiário da atividade, não podendo valer qualquer outra que se lhe oponha.

III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção social do Tribunal da Relação de Évora em julgar a apelação improcedente confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique. Comunique, após trânsito em julgado, à ACT e Segurança Social (art.º 186.º-O do CPT).
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Évora, 08 de junho de 2017.
Moisés Silva (relator)
João Luís Nunes
Mário Branco Coelho