Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
259/20.7T8CCH.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: PROCESSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
PROVA TESTEMUNHAL
DIREITO DE DEFESA
Data do Acordão: 09/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - O processo contra-ordenacional não é um processo em que as entidades administrativas possam, sem mais, recusar a produção de prova.

2 - A questão central é, primacial e especialmente, o apurar da necessidade de produção de prova requerida em função da matéria que consta do auto de notícia e da defesa do arguido. A necessidade de fundamentação – que igualmente se impõe – assume pois um papel adjuvante daquela “necessidade” de produção de prova.
Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

(…) veio impugnar judicialmente a decisão do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P. que lhe aplicou uma coima no valor de 725,00 € (setecentos e vinte e cinco Euros), acrescida de 52,50 € a titulo de custas, pela prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelo art.º 31.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16.07.

Para tanto alegou que apresentou defesa escrita junto da entidade administrativa, tendo apresentado e requerido a inquirição de testemunhas por forma a demostrar o que por si foi alegado na referida defesa escrita, que, no seu entender, demonstraria que não praticaram qualquer contra-ordenação.

Alegou ainda que tal testemunha não foi ouvida, e que tal seria a base de toda a sua prova para a defesa apresentada, tendo a entidade administrativa referido que não procedia à sua inquirição por entender que a prova documental de que dispunha era suficiente para justificar a contra-ordenação imputada.

Mais refere que não foi feita informação relativa sobre erros máximos de pesagem (margem de tolerância de erro) nem tais margens foram aplicadas no auto, nem foram consideradas as excepções aplicáveis ao regime de carga completa que era o que a arguida praticava, sendo que também os pratos das balanças onde ocorreram as pesagens não se mostravam calibrados e nivelados.

Por decisão de 25-01-2021 decidiu o tribunal recorrido declarar procedente a impugnação judicial e, em consequência, declarar nula a decisão administrativa.


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A Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Setúbal, inconformado com uma tal decisão, dela interpôs o presente recurso pedindo que a mesma seja revogado, com as seguintes conclusões:

1. Nos presentes autos foi declarada a nulidade da decisão administrativa por nulidade do acto de não inquirição das testemunhas apresentadas em sede de defesa.
2. A decisão da autoridade administrativa que aplica a coima ou as sanções acessórias tem apenas que conter os dados indicados no artigo 58.0 do Decreto Lei 433/82.
3. A inquirição de testemunhas requeridas pela arguida, não é um acto que a lei prescreva como obrigatório.
4. Sendo certo que, o direito de audição e defesa não se limita à possibilidade de o arguido ser ouvido no processo de contraordenação, abrangendo também o direito de intervir neste, apresentando provas ou requerendo a realização de diligências, certo é que tais direitos foram respeitos no caso em apreço.
5. A autoridade administrativa respeitou o disposto no artigo 50.0 do Regime Geral das Contraordenações.
6. A autoridade administrativa decidiu, de forma fundamentada, não realizar as diligências de prova que haviam sido requeridas, nomeadamente a inquirição das testemunhas arroladas pela sociedade arguida.
7. Da sentença recorrida resulta isso mesmo:
« A Autoridade Administrativa, em sede de decisão, referiu que "(. .. ) face à prova documental existente nos autos, designadamente o talão de pesagem, aditamento e certificado de verificação periódica, julgamos desnecessária e, por isso, de dispensar a produção de prova testemunhal (. . .)"»
8. A dispensa da inquirição das testemunhas foi devidamente fundamentada, de nenhuma nulidade padecendo tal decisão!
9. Seguimos, neste conspecto o entendimento constante no Acórdão da Relação de Évora de 6/11/2018, relator José Proença da Costa, processo 22/18.5T8ETZ.El{ ín www.dgsi.pt:·TV - Mas a autoridade administrativa, ao não aceitar as diligências de prova requeridas pelo arguido, terá de fundamentar a sua decisão, em obediência ao princípio da legalidade (art. Os 43. ~ do RGCO e 266. n. ° 1, da CRP).
V - Não se pode imputar qualquer nulidade à autoridade administrativa se não procedeu à inquirição das testemunhas arroladas pela arguida porquanto entendeu ser desnecessária e irrelevante a sua audição, face à especificidade da matéria que se propunha provar, e se mostra de nenhuma, ou de fraca, importância a prova testemunhal. "
10. A decisão administrativa não enferma de nulidade.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando a decisão ora posta em crise e determinado que seja designada data para audiência de julgamento para apreciação do mérito da factualidade imputada ao arguido, porquanto o respectivo procedimento contra­ordenacional não se encontra ferido de nulidade.

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A arguida não apresentou resposta.

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Nesta Relação o Exmº Procurador-geral Adjunto apôs visto nos autos.

Não foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

B.1.a) – Para além do que consta do relatório que antecede, é o seguinte o teor do requerimento de resposta da arguida à notificação que foi feita para exercer a sua defesa, por junção de “documentos probatórios e arrolar testemunhas” (notificação de 30-12-2019 a fls. 7 dos autos):

(…)

11. Mas nem se pode aceitar qualquer conclusão e pesagem, pois que existem factores que nos levam a afirmar que o peso que terá sido determinado não é o correto.

12. Desde logo a pesagem não considera um qualquer erro técnico dos instrumentos de pesagem usados quando tal está instituído por norma interna das entidades fiscalizadoras que, simplesmente fizeram uma eventual aplicação não justificada ou fundamentada.

13. Sendo do conhecimento público que a GNR tem uma ficha técnica com erros máximos que admite com as mesmas plataformas que foram usadas neste controlo com erros que podem atingir os 350 KG por eixo, o que significa que o peso que se pressupõe não é o correto.

14. O que implica também a nulidade do Auto levantado á arguida.

15. O aditamento ao auto de noticia refere o tipo de piso existente no local onde foi efetuada a pesagem e refere que o mesmo estava perfeitamente longitudinalmente e transversalmente, no entanto tal não corresponde à verdade.

16. E tais características influenciam a pesagem feita com balanças móveis e tanto que o sabem as autoridades que o mencionam expressamente no aditamento ao auto de noticia, porém

17. Tal não corresponde á verdade como podemos verificar a estrada onde foi feita a pesagem era muito inclinada no sentido da marcha do veículo e também inclinada na largura.

18. Estas inclinações influenciam o peso apurado pelas balanças móveis, dai que a entidade autuante se apresse a afastar a sua existência, que, no entanto, existiu.

19. Portanto, não podia ter sido identificado pelas autoridades qualquer peso em excesso com plataformas de pesagem móveis, pois essas condições influenciam de forma decisiva o peso obtido com tal pesagem em cada um dos eixos e assim na totalidade do peso apurado.

20. Partindo do pressuposto constante dos autos, ou seja, que a pesagem foi feita com recurso ao equipamento Balanças Marca Giropes aprovado por Despacho da ANSR e com certificado de aprovação CE E.99.02.01 e verificadas pela TAP é inequívoco inferir que.

21. Também a conclusão expressa do auto de notícia, e que fundamenta a infração aplicada e a conclusão de que o veículo, circulava com excesso de peso não poderia ter sido retirada.

22. Com efeito, a pesagem foi feita de forma deficiente sem qualquer rigor que permita extrair a conclusão supra citada, desde logo porque as mesmas não são calibradas no momento exatamente anterior à pesagem, mas sim e apenas no inicio do dia em que fazem o controlo.

23. Ainda que não se coloque em causa a formação credencial do militar que efetuou a dita pesagem nem tampouco a certificação do material utilizado para o dito efeito.

24. Ainda assim, o certo é que, O equipamento usado e que terá procedido à pesagem do veículo, não era o indicado para o efeito e para o veículo em questão, uma vez que apenas permitiu a pesagem de um eixo de cada vez.

25. Desta forma, foi necessário proceder a quatro pesagens individuais e distintas, para que se apurasse o peso do veículo que foi considerado excessivo.

26. No entanto, é sabido que ao pesar o 2° eixo da viatura necessariamente se pesa alguma da carga já contabilizada para efeitos de peso, na 1ª pesagem referente ao 1° eixo.

27. Deste modo, com o equipamento em causa, houve necessariamente duplicação de pesos aquando da 2ª pesagem.

28. Tanto mais que as balanças não são sequer calibradas entre pesagens.

29. Acresce que a verificação das plataformas de balança feitas pela TAP obedece a requisitos de temperatura e humidade, que constam da ficha, que não se verificam no exterior onde foi feita a pesagem.

30. De facto no dia e hora da fiscalização estavam cerca de 9° e não 20° como na verificação dos equipamentos e o grau de humidade era muito menor.

31. Não é, então fidedigna a pesagem feita pela PSP também porque acresce que a entidade autuante não revela o grau de erro admissível por estas balanças, elemento absolutamente essencial para determinar em concreto a possibilidade de pesagem destes equipamentos e a margem de tolerância que deveria ter sido aplicada.

32. Para que se pudesse afirmar que o veículo circulava com excesso de peso teria o mesmo de ter sido pesado em equipamento/balança apropriada para o efeito e que permitisse pesar o veículo de uma única vez, de modo a evitar que na pesagem do 2º eixo, se contabilizasse carga já pesada aquando da pesagem do 1º eixo.

33. O que como vimos não sucedeu no caso em apreço.

34. Sendo assim é seguro afirmar, que o excesso de peso aparente, a ser real face ao equipamento utilizado, se deve única e exclusivamente a uma deficiente e inadequada pesagem, não podendo por isso ser assim imputável á aqui arguida.

35. É que para que a pesagem com pratos de balança individuais e aplicados por eixo do veiculo estivesse minimamente correta era necessário que todo o espaço ocupado pelo veiculo no seu conjunto estivesse perfeitamente nivelado em toda a sua extensão.

36. O que é completamente utópico em qualquer via rodoviária e se verificou não existir no local de pesagem.

37. Fica ainda mais claro, desta forma, que também por esta via o veiculo não circulava com qualquer excesso de peso.

38. E sendo certo que tendo havido indicação de excesso de peso na pesagem com as balanças usadas deveria a entidade autuante encaminhar o veiculo para balança fixa onde fosse tal peso aferido, o que não aconteceu e era fácil de concretizar porquanto existem várias balanças em toda a zona circundante.


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B.1.b) – A este requerimento seguiu-se decisão onde se decidiu previamente indeferir a inquirição de testemunhas nos seguintes termos:

«(…) Não junta documentos. Arrola uma testemunha, contudo face à prova documental existente nos autos, designadamente o talão de pesagem, aditamento e certificado de verificação periódica, julgamos desnecessária, e, por isso mesmo, de dispensar a produção de prova testemunhal, este facto não colide com as necessárias garantias de defesa do(a) arguido(a), na medida em que a autoridade administrativa que preside à investigação e instrução do processo apenas deve praticar os atos que se proponham atingir as finalidades desta fase processual, a não audição da(s) testemunha(s) arrolada(s) em sede de defesa, é possível nos termos do artigo 340º do Código de Processo Penal, aplicável por força do artigo 41° do RGCOC. Refere Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, in RGCO, anotado da Visilis a pág.294 o seguinte: o direito de defesa não se limita à possibilidade de o arguido ser ouvido no processo de contraordenação, abrangendo o direito de intervir neste, apresentando provas ou requerendo a realização de diligências. Caberá à entidade que dirige o processo de contraordenação deferir ou não a realização das diligências requeridas, devendo abster-se de realizar as que se lhe não afigurem de utilidade para a descoberta da verdade, Vigorando em matéria de processo criminal, na fase de investigação e instrução, o princípio do inquisitório, sendo à autoridade que o dirige que cabe decidir oficiosamente quais as diligências que devem ou não ser realizadas, e no caso em presença não se afigura útil para a descoberta da verdade material proceder à inquirição da(s) testemunha(s) arrolada(s), atento nomeadamente aos princípios da celeridade e da eficácia que informam o procedimento contraordenacional (neste sentido, Ac. do TR Coimbra de 21-06-2000).

Ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09. 01. 2012, Processo nº 623/10. OT20BR. C1, disponível in www.dgsi.pt. sustenta que a audição das testemunhas não constitui um ato imposto por lei pelo que nos termos do disposto no artigo 120° nO 2 a) d) do CPP, nem o procedimento nem a decisão administrativas são nulas por preterição daquela diligência.

Na verdade, o direito de defesa não implica que se tenha de aceder e permitir a realização de tudo aquilo que é requerido, o que se exige é que se pondere da bondade e da utilidade desse pedido, e naturalmente pode- se afastar essa solicitação (Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa - J4. Processo nº 188/17.1Y51LSB.

A não audição das testemunhas indicadas pelo arguido ou a omissão de quaisquer diligências, por aquele sugeridas nunca acarreta a nulidade do procedimento e da decisão administrativa posteriormente proferida - Acórdão da Relacão de Lisboa. de 02. 10. 2011. publicado" in www,dgsi.».


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B.1.c) – É este o teor do despacho recorrido na parte decisória:

(…)
Vejamos, então, se ocorreu, no caso, a invocada nulidade.
Nos presentes autos a recorrente alegou que da inquirição da testemunha que arrolou seria TODA a sua prova, aquela que pretendia fazer demonstrar tudo quanto alegara na sua defesa.
A Autoridade Administrativa, em sede de decisão, referiu que “(…) face à prova documental existente nos autos, designadamente o talão de pesagem, aditamento e certificado de verificação periódica, julgamos desnecessária e, por isso, de dispensar a produção de prova testemunhal (…)”.
Analisado o teor da defesa da Recorrente perante a Autoridade Administrativa verificamos que a mesma versa, essencialmente, sobre os elementos factuais relativamente à realização da pesagem contraditando o auto e o aditamento efectuado, nomeadamente quanto à forma de pesagem e ao local de pesagem que segundo alegam é elemento fundamental para aferir da fiabilidade das pesagens indicadas pelas balanças móveis.
Considerando que a infracção em causa se consubstancia no transporte de mercadorias com excesso de peso, pesagens essas efectuadas com balanças móveis, dúvidas não nos restam de que, as características da zona e do local de pesagem, são elementos essenciais para aferir da verificação ou não da contra-ordenação.
Assim, resulta também à saciedade que se a arguida limita a sua defesa à apresentação de uma testemunha, vislumbra-se que a mesma poderá ter conhecimento directo dos factos que efectivamente alegam em tal defesa e, portanto, pelo que a sua audição seria elemento essencial para aferir e contribuir para a prova da verdade material, sendo que os documentos juntos, não se nos apresentam como suficientes para conferir uma fundamentação válida e eficaz, por forma a dispensar tal meio de prova.
Ora, de tudo quanto se disse, não se afigura que a decisão administrativa fundamente, suficientemente a preterição da inquirição da testemunha arrolada, principalmente, tendo em conta o alegado na defesa apresentada pela arguida, limitando-se a justificar o entendimento de que a inquirição de testemunhas não se mostra obrigatória, não logrando fundamentar a limitação efectuada às garantias de defesa da arguida.
Assim, é nosso entendimento de que a inexistência da inquirição das testemunhas apresentadas em sede de defesa determina a invalidade dos actos subsequentes praticados, porquanto a decisão proferida pela entidade administrativa não levou em conta um elemento de prova que deveria ser considerado.
Face ao exposto, importa declarar a nulidade da decisão administrativa, por nulidade do acto de não inquirição das testemunhas apresentadas em sede de defesa.
Por todo o exposto, decide-se pela procedência do recurso, declarando-se a nulidade do acto de não inquirição das testemunhas apresentadas em sede de defesa e, consequentemente revoga-se a decisão administrativa, determinando-se a remessa dos autos à entidade administrativa.»

***

B.2 - Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do art. 75º nº 1 do DL nº 433/82, de 27/10 (RGCO), nos processos de contra-ordenação, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões. Por outro lado, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação.

Assim, o essencial da inconformidade da Digna magistrada recorrente neste processo contra-ordenacional – que não é um processo administrativo, sim assume uma natureza muito própria e autónoma, mas a que é aplicável subsidiáriamente todo o ordenamento penal e processual penal – assenta na ideia de que a lei não obriga a entidade administrativa a inquirir prova testemunhal e fundamentou suficientemente a sua não admissão ao afirmar ser essa prova desnecessária.

Até mais, afirma na sua conclusão 7ª que a própria decisão recorrida assevera que «A Autoridade Administrativa, em sede de decisão, referiu que "(. .. ) face à prova documental existente nos autos, designadamente o talão de pesagem, aditamento e certificado de verificação periódica, julgamos desnecessária e, por isso, de dispensar a produção de prova testemunhal (. . .)"»

Daqui infere que a dispensa da inquirição das testemunhas foi devidamente fundamentada, de nenhuma nulidade padecendo a decisão. Ou seja, dizemos nós, basta afirmar que a produção de prova testemunhal não é necessária para que esteja fundamentada a sua desnecessidade. Posição que nos parece muito precipitada e muito inquisitória, o que nos leva à sua não aceitação, apesar de sabermos que as tensões inquisitórias estão na berra.

Nem é necessário demonstrar em toda a sua plenitude a característica de processo administrativo com natureza ultra inquisitória que parte relevante da jurisprudência – até desta Relação - habitualmente atribui ao processo contra-ordenacional. Segundo esta visão o arguido só é necessário para constar do auto de notícia e da decisão condenatória. A produção de prova por si arrolada pode ser um incómodo e um risco conducente a prescrição. A evitar, portanto!

Nós, evitando as versões inquisitórias – anquilosadas na medida em que olvidam toda a doutrina sobre a natureza do processo contra-ordenacional - sempre o entendemos de forma diversa, como um processo a que é aplicável a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. E isto já em aresto de 28-10-2008 (proc. nº 441/08-1) e nestes termos: (III) “O conceito de acusação em matéria penal contido no artigo 6º da CEDH, conceito com autonomia e que deve ser interpretado no sentido da Convenção, é interpretado pelo TEDH como abrangendo o direito contra-ordenacional”.

E assim se fundamentou: [1]

Não tem sido esse o sentido da jurisprudência do TEDH, que entende a expressão acusação em matéria penal (aliás, equivalente às contidas nos nsº 2 e 3 do mesmo preceito – “acusada de uma infracção” do nº 2 e “O acusado” do nº 3) com diferente amplitude.
E tal entendimento não surge por qualquer interpretação extensiva ou analógica por referência aos processos disciplinares (nomeadamente militares) da jurisdição austríaca (acórdão Engel v. Holanda - 1976) ou contravencional da jurisdição francesa (acórdãos Peltier v. França e Malige v. França), o que sempre seria possível, sim por referência à própria legislação alemã sobre contra-ordenações (Ordnungswidrigkeit).
De facto, já no citado aresto Engel o Tribunal veio a delimitar critérios que desenvolveu e repetiu nos acórdãos Ozturk v. Alemanha (1984) e Lutz v. Alemanha (1987). [5]
Não obstante o governo alemão ter defendido perante o Tribunal que o artigo 6º da convenção não era aplicável aos casos na medida em que não havia uma “acusação em matéria penal”, invocando que se estava perante contra-ordenações (“Ordnungswidrigkeit”, ou na terminologia do Tribunal Europeu, "regulatory offence" ou "contravention administrative"), certo é que acabou por concluir que o artigo 6º da convenção era aplicável.
Para concluir que estava perante uma acusação em matéria penal, conceito com autonomia e que deve ser interpretado no sentido da Convenção, o Tribunal utilizou os seguintes critérios: a qualificação jurídica da infracção no direito nacional; a verdadeira natureza do ilícito; a natureza e o grau de severidade da sanção.
O primeiro critério – qualificação no direito nacional – tem carácter meramente formal e relativo, simples ponto de partida da análise a envidar (Engel), à luz do “denominador comum das legislações respectivas dos diversos Estados”.
Os outros dois critérios não são cumulativos, sim alternativos, pelo que lhe bastou constatar que a verdadeira natureza da “infracção”, o carácter geral da norma, o seu objectivo simultaneamente preventivo e repressivo, assumiam natureza penal (Lutz), para concluir estarmos perante uma acusação em matéria penal.»

Verifica-se, pois, que o processo contra-ordenacional não é um processo em que as entidades administrativas, possam sem mais, recusar a produção de prova com o amém de tribunais tributários de um desejo de tratar tal processo como um procedimento administrativo que deveria ser excluído da ordem comum dos tribunais nacionais.

Bem ao invés, trata-se de um processo onde apenas a modorra legislativa tem impedido a sua divisão – que se revela essencial de há muitos anos – de procedimentos consoante a sua natureza e complexidade do assunto tratado e gravidade das suas sanções, sabidamente mais gravosas que muitas multas penais.

Seja como for, com maior ou menor complexidade do tema tratado e gravidade das suas sanções, o arguido tem direito à sua defesa em moldes semelhantes ao do processo penal (a tal “acusação em matéria penal” de que fala a C.E.D.H.).

E aqui os requisitos de produção de prova em pouco se dissemelham do processo penal, pois que será a necessidade da produção dessa prova em termos delimitados pela defesa do arguido a determinar a sua admissão ou não.

Por isso que sempre entendemos que não se trata de uma questão de fundamentação. Esse é apenas o segundo passo necessário!

O passo essencial e determinante é o saber se a produção da prova arrolada se revela necessária à defesa do arguido. E será em função disso que a sequente fundamentação terá que tratar, admitindo ou não a produção da prova arrolada na medida em que seja necessária para uma sã e razoável defesa do defendente.

Ou seja, para além da necessidade de fundamentar como mera decorrência do princípio da legalidade, a exigência maior situa-se na necessidade de cumprir o princípio de investigação e de descoberta da verdade material, que também nestes processos é uma exigência substancial e não apenas formal.

Por isso que não seja nossa opinião que as duas posições em confronto se limitem à existência da necessidade ou não de a entidade administrativa fundamentar ou não a não inquirição de testemunha arrolada (ou outra prova arrolada), nem – de outra banda – que sobre a entidade administrativa recaia o dever de obrigatoriamente realizar todas as diligências de prova requeridas.

A questão central é, primacial e especialmente, o apurar da necessidade de produção de prova requerida em função da matéria que consta do auto de notícia e da defesa do arguido. A necessidade de fundamentação – que igualmente se impõe – assume pois um papel adjuvante daquela “necessidade” de produção de prova.

Por isso que não tenhamos dúvida em subscrever o aresto desta Relação de Évora de 06-11-2018 citado pela Digna recorrente, entendendo no entanto que o teor do recurso não mostra ter entendido a subtil diferenciação entre “necessidade de fundamentação” da não inquirição da testemunha arrolada, da “necessidade de produção de prova para obter a verdade material”, coisas distintas mas que devem subsistir em conjunto no processo contra-ordenacional.

Por outro lado, não se mostra necessário que o RGCO preveja norma a impor a inquirição de testemunhas às entidades administrativas se já dispõe de norma que, nos termos do próprio acórdão por si apresentado em apoio do seu recurso afirma que “I - O art.º 50.º, do Regime Geral das Contra-Ordenações consagra o direito de audição e defesa do arguido. II – Esse direito de audição e defesa não se limita à possibilidade de o arguido ser ouvido no processo de contra-ordenação, abrangendo o direito de intervir neste, apresentando provas ou requerendo a realização de diligências”.

Esta afirmação da inexistência de lei expressa a prever a prática de acto de defesa, cuja essência deve surgir como natural num procedimento sancionatório e com óbvio respaldo constitucional e convencional, sempre surge como deslocada e excessiva, como se fosse exigência da ordem jurídica a obrigação de que a lei deve prever todos os passos dados pelas magistraturas e o que nela não está previsto deve entender-se como proibido ou inadequado, ou que o direito de defesa se deve entender como excluído se não estiverem previstas na lei todas as suas possíveis concretizações.

E em acórdão desta mesma Relação de Évora de 08-04-2014 citado em rodapé (processo 108/13.2TBCUB) «A não inquirição de uma testemunha indicada pelo arguido na fase administrativa não pode estar dependente da simples vontade da entidade administrativa e esta não pode, de motu proprio, decidir não inquirir a testemunha por razões que não têm a ver com a necessidade da sua inquirição para a defesa do arguido».

Sem esquecer que «O arguido, ou seu mandatário, deve ser notificado da data da inquirição de testemunhas para que tenha oportunidade de inquirir ou contra-inquirir a prova por si indicada, em observância do n.º 10 do art. 32,º da Constituição da República Portuguesa, norma directamente aplicável por dizer respeito a direitos fundamentais (art. 18.º, n.º 1, da Constituição)».

Isto é, impõe-se concluir que a não inquirição da testemunha arrolada não foi devidamente fundamentada e aparenta justificar-se face às duas razões indicadas pela defesa e pelo tribunal recorrido, a “forma de pesagem e o local de pesagem” elementos essenciais para concluir da sua fiabilidade.
Desta forma a decisão recorrida mostra-se acertada pelo que haverá que declarar improcedente o recurso interposto.


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C - Dispositivo

Face ao que precede, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora negam provimento ao recurso interposto.

Sem tributação.

Notifique

(processado e revisto pelo relator).

Évora, 21 de Setembro de 2021

João Gomes de Sousa

António Condesso

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[1] - Veja-se ainda o Acórdão desta Relação de Évora de 08-04-2014 (processo 108/13.2TBCUB) de nosso relato.