Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
159/10.9GDCTX.S1.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
HOMICÍDIO VOLUNTÁRIO
AGRAVANTE
Data do Acordão: 12/20/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE O RECURSO DO MP
Sumário:
1. A agravação prevista no n.º2 do art. 152.º do Código Penal reflecte o propósito do legislador de censurar mais gravemente comportamentos ocorridos com menores ou na presença destes, em razão da sua própria vulnerabilidade, bem como os confinados ao domicílio comum ou da vítima, perante a maior dificuldade de reacção e de existência de quem os testemunhe.

2. No caso de crime de homicídio, a simples utilização de um objecto adequado a matar alguém (p. ex. uma espingarda de caça) não é elemento bastante para, por si só, se poder concluir, pela existência de especial perversidade ou censurabilidade.

3. Não se tendo qualificado o crime de homicídio, praticado com arma de fogo, inexiste fundamento para afastar a agravação prevenida no art. 86.º, n.º3 do Regime Jurídica das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23.02.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora


1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, com o número em epígrafe, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial do Cartaxo, submetido a julgamento, foi o arguido A, por acórdão proferido em 17.03.2011, condenado, além do mais:

- pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal (CP), na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão;

- pela prática de um crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131.º do CP, na pena de 13 (treze) anos de prisão;

- pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2.º, n.º 1, alínea ae), 3.º, n.º 4, alínea a), e 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 1 (um) ano de prisão;
- em cúmulo, na pena única de 14 (catorze) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Inconformados com tal decisão, interpuseram recursos (dirigidos ao Supremo Tribunal de Justiça), formulando as respectivas conclusões:

- o Ministério Público:
a) O arguido, para além do mais, foi julgado e condenado pela prática dos crimes de Violência doméstica p.p. nos termos do artigo 152.°, número 1, alínea a), do Código Penal, e de Homicídio simples p.p. nos termos do artigo 131.°, também do mesmo diploma legal;

b) As respectivas penas cominadas foram de 1 ano e 8 meses de prisão e de 13 anos de prisão;

c) A matéria de facto dada como provada não nos merece qualquer reparo ou exprobração dignos de relevo;

d) Todavia, o quadro factológico dado como assente, bem como a respectiva motivação/fundamentação, apontarão para que o arguido tivesse/devesse ter sido punido, quanto ao crime de Violência doméstica, pela previsão do artigo 152.°, número 2, do Código Penal, porque o ilícito foi cometido no domicílio do casal, constituído pelo arguido e pela ofendida, AM, sua esposa;

e) Caso o Tribunal ad quem entenda que se está, neste particular, perante uma alteração da qualificação jurídica, deverá ser dado cumprimento ao disposto no artigo 358.°, número 3, do CPP;

f) Como, igualmente, se imporá a sua condenação pelo crime de Homicídio simples, mas com a respectiva pena agravada em função do disposto no artigo 86.°, número 3, do RJAM;

g) A ser assim, seria de aplicar, no que se refere ao crime de Violência doméstica, a pena concreta de 2 anos e 8 meses de prisão;

h) No que tange ao crime de Homicídio simples, por sua vez, seria de aplicar a pena concreta de 18 anos e 4 meses de prisão;

i) O que, operando-se o respectivo cúmulo jurídico (considerando a pena parcelar já fixada para o crime de detenção de arma proibida), será de aplicar a pena única de 20 anos de prisão;

j) Neste âmbito, terá sido violado o constante dos artigos 152,°, número 2, 131.°, ambos do Código Penal, o artigo 86.°, número 3, do RJAM, 71.° e 77.°, estes também do Código Penal;

h) Por via disso, revogando-se e alterando-se, nesse âmbito e contexto, o douto Acórdão condenatório, será feita, conseguida e realizada melhor justiça;

- a assistente, AM:

1.ª O arguido foi acusado como autor de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.° e 132.°, n.ºs 1 e 2, alínea h), do Código Penal;

2.ª O Tribunal Colectivo a quo decidiu, no entanto, “desqualificar” a conduta do arguido, condenando-o pela prática de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131.° do CP, a 14 anos e 6 meses de prisão;

Todavia,

3.ª Os factos que foram dados como provados e assacados ao arguido - actos, conduta e as circunstâncias em que cometeu o homicídio - traduzem-se numa maior culpabilidade, merecem uma especial censurabilidade e traduzem-se numa especial perversidade, integrando-se na previsão dos arts. 131.° e 132.°/1 do Código Penal.

4.ª O arguido disparou sobre o seu sogro de surpresa, revelando assim cobardia e profunda deslealdade, e impossibilitando por essa via, mas também em resultado da arma utilizada, que a vítima pudesse sequer esboçar qualquer espécie de defesa, interpelação ou fuga.

5.ª O arguido procedeu relativamente à vítima de forma surpreendente, pérfida, e, por isso, de forma traiçoeira, pois, não deu à vítima, um homem de 79 anos de idade, seu sogro, qualquer hipótese de defesa, de interpelação ou de fuga.

6.ª O arguido ao utilizar a arma que usou - uma espingarda de caça de dois canos - e na forma e circunstâncias em que actuou e a utilizou, logrou preencher a previsão do disposto no art. 132.°/2, alínea h) do Código Penal, pois, nestas circunstâncias aquela é, sem dúvida, “meio particularmente perigoso”.

7.ª O arguido tendo praticado um crime de homicídio qualificado deve, pois, ser punido pelas normas ínsitas naqueles comandos legais, arts. 131.° e 132.°/1 e 2, alínea h) do CP, e a sua pena doseada dentro da moldura penal prevista de 12 a 25 anos de prisão.

8. ª Ao decidir como fez, o Tribunal a quo fez uma incorrecta valoração dos factos dados como provados, uma incorrecta qualificação jurídico-penal dos mesmos e, consequentemente, violou as normas ínsitas nos artigos 131.°, 132.º e 71.° do Código Penal.

Nos termos das motivações e conclusões acima explanadas, deve o presente recurso ser recebido e julgado em conformidade, e, consequentemente, deve o acórdão recorrido ser parcialmente revogado quanto à incriminação e à pena e ser o arguido, A, condenado como autor de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.° e 132.°, n.º 1 e 2, alínea h), do Código Penal, em pena não inferior a 20 anos de prisão.

Apresentaram resposta:

- o arguido, concluindo que os recursos devem ser julgados improcedentes;

- o Ministério Público, reiterando a subsunção do comportamento ao crime de homicídio, sem qualificação, mas agravado em função do disposto naquele 86.º, n.º 3, do Regime jurídico das armas e suas munições (RJAM).

Os recursos foram admitidos.

Enviados os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, foi neste Tribunal proferida a decisão sumária, de fls. 739/743, na qual se excepcionou a incompetência material desse Tribunal e se determinou o envio dos mesmos a este Tribunal da Relação, por ser o competente para conhecer dos recursos.

Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no sentido de que o recurso da assistente merece provimento, bem como o do Ministério Público quanto ao crime de violência doméstica, sendo que, em caso de improcedência do recurso daquela, deverá haver lugar à agravação da pena do crime de homicídio.

Cumprido o n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), nada foi apresentado.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto dos recursos define-se pelas conclusões que os recorrentes extraíram da respectiva motivação, de harmonia com o disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as cominadas com nulidade e vícios nos termos dos arts. 379.º e 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, mormente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995 – ainda, v. entre outros, acórdãos do STJ de 25.06.1998, em BMJ n.º 478, pág. 242, e de 03.02.1999, em BMJ n.º 484, pág. 271; Simas Santos/Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3.ª edição, a pág. 48; e Germano Marques da Silva, em “Curso de Processo Penal”, Verbo, 1994, vol. III, págs. 320 e seg..

Delimitando-os, versam unicamente em questões de direito, a saber:

1 - recurso do Ministério Público:

A) – se o quadro factológico dado como provado deve, na parte relevante, ser enquadrado no crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 2, do CP;

B) – se se impõe, dada a respectiva factualidade apurada, que o crime de homicídio seja agravado na pena aplicada, por via do art. 86.º, n.º 3, do RJAM;

C) – se, pela prática dos referidos crimes, o arguido deve ser condenado, quanto ao de violência doméstica, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão e, relativamente ao de homicídio, na pena de 18 anos e 4 meses de prisão e, em cúmulo, na pena única de 20 anos de prisão;

2 - recurso da assistente:

A) - se o comportamento do arguido integra, no segmento relevante, a prática de crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), do CP;

B) – se, nesse âmbito, deve ser condenado em pena não inferior a 20 anos de prisão.

À luz do texto da decisão recorrida, não é detectável qualquer nulidade ou vício que a inquine, o que, dispensando acrescidas considerações, remete, desde já, para a apreciação dos definidos objectos recursivos.

Assim,

Consta do acórdão recorrido:

Factos provados:
«1. AM e o arguido são casados entre si e residiam, até aquele ser preso preventivamente, em Quebradas, Alcoentre, nesta comarca.

2. A hora não apurada do dia 30 de Maio de 2010, após uma discussão entre o casal, a assistente saiu de casa e refugiou-se num anexo à sua habitação por algum tempo até que o arguido foi ter consigo e, agarrando-a com força pelos braços, arrastando-a pelo chão, trouxe-a novamente para o interior da casa do casal.

3. A conduta do arguido causou a AM dores e incómodos.

4. No dia 31 de Maio de 2010, cerca das 18 horas, o arguido, no interior da sua residência, envolveu-se novamente em discussão com a sua mulher, agarrou-a nos braços, puxou-lhe os cabelos e empurrou-a contra um sofá, tendo esta ido refugiar-se em casa dos pais, a qual dista da sua casa cerca de 1 250 metros e situa-se na Rua ..., em Quebradas, Alcoentre.

5. O arguido deslocou-se então também para a casa dos seus sogros munido de uma espingarda de caça de dois canos, marca F. Sarriugarte, de sua pertença.

6. Lá chegado encontrou AS seu sogro, na cozinha da habitação deste último e, acto contínuo, empunhando a referida espingarda na direcção daquele, efectua um disparo a curta distância, tendo-lhe causado as seguintes lesões: esfacelo e fractura da raiz da coxa/fémur direito.

7. Estas lesões constituíram causa directa e necessária da morte de AS, de 79 anos de idade, a qual veio a ocorrer às 21 horas e 16 minutos do dia 31 de Maio de 2010, no Hospital de Vila Franca de Xira, onde havia sido assistido na sequência do referido disparo.

8. O relatório de autópsia conclui que:

“A morte de AS foi devida a choque hipovolémico na sequência de graves lesões traumáticas vasculares na coxa direita, (...) estas lesões traumáticas, nomeadamente a nível da coxa direita, foram produzidas por tiro de arma caçadeira a curta distância (...)”.

9. O arguido conhecia perfeitamente as características da arma por si empregue e as suas potencialidades letais e que, ao disparar sobre AS nas condições descritas, tal era susceptível de lhe causar a morte, facto que aceitou como consequência possível da sua conduta.

10. O arguido sabia que tais circunstâncias constituiriam condições adequadas a provocar-lhe a morte, o que veio a acontecer pese embora a assistência médica prestada.

11. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente.

12. Igualmente ao adoptar os comportamentos nas circunstâncias de tempo, modo e lugar supra descritas, relativamente à sua mulher, AM, o arguido teve a intenção de a ofender e molestar fisicamente e, fê-lo agindo sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que dessa forma afectava a saúde física da ofendida, agindo sempre de molde a atingir a dignidade humana, o que pretendia e logrou alcançar.

13. No dia 11 de Junho de 2010 foi entregue à G.N.R. por AM uma arma com as seguintes inscrições: “Pistole P6E, Kal:: mm 6,35, made in West Germany”, pertencente igualmente ao arguido e a qual se encontrava guardada numa gaveta do louceiro existente na cozinha do anexo à habitação do arguido e de AM.

14. Pese embora esta arma encontrar-se em mau estado de funcionamento, o arguido sabia que a mesma pode ser utilizada para ferir ou matar, que é um objecto perigosos, cuja detenção é proibida.

15. Agiu, assim, livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que não lhe era permitido deter aquele objecto e que ao fazê-lo se encontrava na posse de uma arma proibida.

16. O arguido não tem antecedentes criminais.

17. O arguido, antes de preso, vivia com a assistente AM e encontrava-se desempregado; tem como habilitações literárias o 4.° ano de escolaridade.

18. No Estabelecimento Prisional trabalha por conta da firma Aerofil na montagem de frigideiras, auferindo 1,80€ por 8,5 quilos de frigideiras que monte.

19. O arguido tem duas filhas maiores que são independentes financeiramente.

20. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 4., 5. e 6. dos factos provados o falecido AS teve momentos de angustia, terror e medo da morte, assistindo impotente à sua mutilação.

21. Teve percepção da gravidade dos seus ferimentos e sofreu dores.

22. O falecido AS era uma pessoa trabalhadora e ocupada, com vontade de viver.

23. A demandante AM tinha uma relação muito próxima com o pai uma vez que viviam próximo um do outro.

24. A morte do pai causou na demandante AM desorientação, angústia por perdê-lo, de forma abrupta e violenta, sofrendo sentimentos de perda irreparável, tristeza e desgosto que ainda hoje se mantêm.

25. A demandante estava muito ligada ao pai, por quem nutria grande afecto, amor, respeito e consideração, continuando a recordá-lo e a sentir a sua perda.».

1recurso do Ministério Público:

A) -
O tribunal “a quo”, reportando-se expressamente aos factos provados sob os números 1 a 4, a que, diremos nós, se acrescenta o aludido sob o número 12, considerou consubstanciarem a prática de maus-tratos físicos e psíquicos e, por isso, preenchendo todos os elementos objectivos e subjectivos, previstos no artigo 152.º, n.º1, alínea a), do Código Penal.

Nada referiu acerca da eventual subsunção ao n.º 2 do mesmo preceito – No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto (…) no domicílio comum (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos -, o que motiva a discordância do recorrente, atendendo a que pugna por esse enquadramento, pese embora, é certo, já a acusação deduzida nos autos também tivesse imputado ao arguido o crime de violência doméstica sem essa circunstância agravativa da pena aplicável (fls. 310), mas, de todo modo, sem que existisse obstáculo legal para diferente entendimento se oportunamente cumprido o disposto no art. 358.º, n.º 3, do CPP.

O tipo legal em apreço, denominado de “violência doméstica”, com a autonomia que hoje lhe é conferida, foi introduzido pela Lei n.º 59/2007, de 04.09, sendo que, conforme fundamentado no acórdão, Actualmente, os maus tratos a um conjunto de pessoas com quem o agente mantenha ou tenha mantido um relacionamento conjugal ou análogo, seja do outro ou do mesmo sexo e ainda que sem coabitação, bem como àquelas que coabitem com o agente e se encontrem particularmente indefesas, têm previsão autónoma no actual art.º 152.º.

Alargou-se, com essa Lei, o âmbito das condutas penalmente relevantes da violência doméstica, bem como a punição mais severa de alguma dessas condutas, incluindo a susceptibilidade de aplicação de penas acessórias.

De qualquer modo, relativamente aos bens jurídicos protegidos com a incriminação, mantém-se a integridade física e psíquica, se bem que sem perder de vista a sua relação com a protecção mais abrangente da dignidade humana, incluindo a liberdade pessoal, a liberdade e a autodeterminação sexual, a honra.

Acompanhando Plácido Conde Fernandes, in “Violência Doméstica”, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305, «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos».

E, tal como se lê no acórdão, A incriminação visa punir condutas violentas, dirigidas a pessoa especialmente vulnerável em razão de uma dada relação (conjugal ou equiparada), que se manifesta como um exercício ilegítimo de poder sobre a vida, a integridade física, a liberdade, a honra do outro, caracterizado a mais das vezes por um estado de tensão, de medo, ou de sujeição da vítima.

Tais condutas podem ser, ou não, reiteradas, conforme a jurisprudência anterior já vinha entendendo à luz do preceito que antecedeu a revisão operada por aquela Lei (acórdãos do STJ de 17.10.1996 e de 14.11.1997, in CJ acs. STJ, respectivamente, ano IV, tomo 3, pág. 170, e ano V, tomo III, pág. 235).

O acórdão recorrido entendeu, e bem, que Os actos praticados pelo arguido na pessoa da assistente não constituem meras agressões físicas ou verbais à assistente; constituem ofensas à sua dignidade pessoal, a qual se encontra mais vulnerável em virtude da relação conjugal que a une ao arguido, pelo facto de viverem “debaixo do mesmo tecto”.Actos estes que lhe causaram um estado de tensão, de medo que a levou a deixar a residência do casal para se refugiar na casa dos pais e, por isso, a sua subsunção ao tipo de ilícito não merece reparo.

Todavia, se bem que, na respectiva fundamentação, tenha sido feita referência àquele n.º 2 do art. 152.º, não se extraiu a conclusão que se impõe de que, na verdade, os actos foram praticados pelo arguido no domicílio comum a si e à assistente, justificando a respectiva agravação do limite mínimo da pena aplicável.

Não se encontra fundamento para que assim não deva ser, já que os actos de 30.05.2010 ocorreram entre o anexo à habitação e esta e, os de 31.05.2010, na habitação, na qual, à data, arguido e assistente residiam.

A agravação aí prevista reflecte o propósito do legislador de censurar mais gravemente comportamentos ocorridos com menores ou na presença destes, em razão da sua própria vulnerabilidade, bem como os confinados ao domicílio comum ou da vítima, perante a maior dificuldade de reacção e de existência de quem os testemunhe.

Neste âmbito, ao recorrente, assiste, pois, razão, do que decorre que ao arguido deve ser cominada a prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do CP.

Não obstante e contrariamente à posição do recorrente, embora se esteja em presença de alteração da qualificação jurídica relativa aos factos que constavam da acusação, os quais foram tidos por provados no acórdão, afigura-se desnecessário o cumprimento do art. 358.º, n.º 3, ou do art. 424.º, n.º 3, ambos do CPP, na medida em que se trata de questão obviamente aflorada pelo recorrente, da qual foi dado o devido conhecimento ao arguido e a oportunidade para se defender, como aliás o veio a fazer.

2recurso da assistente:

A) –

A recorrente pugna pelo enquadramento dos factos no crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), do CP, apelando a que o arguido disparou sobre o seu sogro de surpresa, sem qualquer aviso, sem nada que o fizesse prever, pois, fê-lo logo que o encontrou, revelando assim cobardia e profunda deslealdade, impossibilitando por essa via, mas também em resultado da arma utilizada, que a vítima pudesse sequer esboçar qualquer espécie de defesa ou fuga e, além disso, ao utilizar a arma em causa – uma espingarda de caça de dois canos – e na forma e circunstâncias em que actuou e a utilizou, logrou “utilizar meio particularmente perigoso”.

Conclui, por isso, pelo cometimento do crime traduzindo uma maior culpabilidade e uma especial perversidade do arguido, merecedor de maior censurabilidade.

O tribunal recorrido, no essencial, fundamentou:

« (…) o art.º 132.º, n.º 1 do mesmo diploma prevê que:

Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente será punido com pena de prisão de doze a vinte cinco anos”.

E o n.º 2 desta norma legal preceitua que “É susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade, entre outras, as circunstâncias do agente:

Al. h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;

Esta a circunstância qualificativa imputada na acusação.

Sucede que a censurabilidade ou perversidade não constituem, como é sabido, elementos constitutivos do tipo legal - esses encontram-se emoldurados no art.º 131.º do Cód. Penal - mas tão somente indícios, confirmáveis ou não, de uma intensa culpa, ou de uma maior ilicitude.

Assim os índices exemplificados no art.º 132.°, n.º 2 do Cód. Penal, uma vez verificados no iter criminis, não são de funcionamento automático, isto é, não é por se terem verificado que se pode desde logo concluir que o comportamento do agente esteja revestido de uma especial censurabilidade. É necessário que, no caso concreto, exaspere a culpa ou a ilicitude (cfr. Ac. Sup. Trib. Justiça, de 28/09/94, in 'Col. Jurisprudência - Acórdãos do STJ', 94, tomo II, p. 207).

A inversa, porém, e por tal causa, não deixa também de ser verdadeira. O facto de não constar dos índices referidos qualquer circunstância verificada no caso concreto não afasta por si só a qualificação posto que possa tal circunstância, no concreto, demonstrar uma especial censurabilidade (cfr. Ac. Sup. Trib. Justiça, de 09/11/94, in 'Col. Jurisprudência - Acórdãos do STJ', 94, tomo II, p. 239).

Em qualquer caso, a integração dessa natureza especial exige do julgador prudência e bom senso.

Pode dizer-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.

E na referência do legislador à especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto, pois, um recurso a uma concepção emocional de culpa e que pode reconduzir-se “à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor”, de que fala Binder, citado por Teresa Serra, in “Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena”, 1990, p. 64.

Trata-se de uma censurabilidade especial, que existe quando as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude do agente manifestamente distanciada, adversa e contrária, às regras de direito, profundamente reprovável e repugnante.

Mas tem pautado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento constante de que a qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência inevitável da existência de qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2 do artigo 132.° do Código Penal, defendendo como sendo essencial que as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples.
(…)

Vejamos, agora, se está facticamente comprovada a circunstância da alínea h) do Cód. Penal, indicada na acusação, ou qualquer outra, legalmente exemplificada ou não.

Em doutrina, distingue-se entre a vontade e o móbil. A primeira é a faculdade de se determinar a acção (a intenção é a vontade orientada para um fim, ou seja, para o cometimento de um acto proibido por lei). O móbil é o sentimento que determina a acção e que para uma mesma infracção varia segundo os indivíduos e as circunstâncias.

No art.º 132.º do Cód. Penal, é o móbil que aparece como uma circunstância agravante qualificativa, determinando uma pena mais grave que no homicídio simples.

O ser humano e, por conseguinte, o delinquente, actua com o desígnio de atingir uma finalidade - tem, por isso, uma motivação.

Os motivos e objectivos do agente, a atitude interna que se reflecte no acto e a medida de infracção do dever, são circunstâncias que relevam para a avaliação da formação da vontade do mesmo agente, atenuando ou aumentando o grau de responsabilidade do crime.

Comecemos por escrutinar o factor de qualificação expressamente imputado na acusação. Se o arguido utilizou meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum.

A jurisprudência vem sustentando que só há lugar ao preenchimento de uma circunstância qualificativa agravante prevista no art.º 132.º do Código Penal, caso as ocorrências revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, como acima se referiu.

Sendo assim quando estamos perante crime de homicídio, parece mais ou menos óbvio que a simples utilização de uma arma de fogo não integra, por si só, aquele juízo desvalorativo da conduta do agente.

É que, se o agente tem (e actua com) intenção de matar, parece lógico que escolha um instrumento ou objecto adequado àquela finalidade. Será o caso de uma arma. Nesta medida, no caso de crime de homicídio, compreende-se e aceita-se que a simples utilização de um objecto adequado a matar alguém (p. ex. uma espingarda de caça) não seja elemento bastante para, por si só, se poder concluir, pela existência de especial perversidade ou censurabilidade.

É que, nestes casos (homicídio) a censura e o desvalor da conduta - tirar a vida de outrem - já estão previstas na norma incriminadora base (homicídio simples).

Do circunstancialismo descrito entendemos que o uso de uma arma de fogo (espingarda de caça) aparece como um instrumento adequado e proporcional ao objectivo do arguido. Não é um meio completamente desajustado ao propósito do arguido. A sua utilização, dentro do contexto do demais que se deixa dito, não é, em nosso entender, passível de um acrescido juízo de censura, de um significativo aumento de desvalor da actuação, que integra o conceito acima enunciado e constante no n.º 1 do art.º 132.° do C. Penal.

Sendo assim, a conduta do arguido não preenche a qualificativa da alínea h) do n.º 2 do art.º 132.° do Código Penal. Mas tal conduta, ainda que não se integre em nenhum dos exemplos padrão, poderá assumir a especial perversidade ou censurabilidade de que fala o n.° 1 do citado preceito legal, constituindo um homicídio qualificado atípico?

Tal entendimento, considerado pela doutrina como fonte de muitas incertezas, depara com dificuldades, como a referida por Teresa Serra (Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, p. 70/71), de “a ausência de qualquer das referidas circunstâncias (isto é, das circunstâncias legalmente descritas) indiciar a inexistência da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Logo, indicia que o caso se deve subsumir no art.º 131.°.” E acrescenta: “Só circunstâncias extraordinários ou um conjunto de circunstâncias especiais que assentam num aumento essencial da ilicitude e/ou da culpa e que sejam expressivas do leitbild dos exemplos-padrão, podem levar à afirmação da existência de especial censurabilidade ou perversidade do agente”, não sendo suficiente para tanto um mero aumento da culpa para justificar a diferença de grau existente entre o homicídio simples e o homicídio qualificado. Num bosquejo pela jurisprudência é possível encontrar casos em que se decidiu pela qualificação do homicídio apesar de os factos concretos não autorizarem a julgar verificada a subsunção em exemplos-padrão, como, aliás, decidiram os Tribunais superiores.
(…)

A par desta corrente, formou-se na jurisprudência uma outra, mais próxima das reflexões doutrinais, em que se atribui aos exemplos-padrão uma função delimitadora dos casos atípicos, deles se devendo apreender “não apenas o seu especial grau de gravidade, mas também a sua própria estrutura valorativa” (ac. de 15.05.2002 - proc. 1214/02-3). Por poder afectar o princípio da legalidade, não se permite, portanto, o “apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplo-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto ou de uma situação valorativamente análoga.” (ac. de 13.07.2005, proe. 1833/05-5, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa).

Esta parece-nos a melhor doutrina. Conforme se escreveu naquele acórdão, “a ocorrência destes exemplos não determina por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos.” Tal como se afirmou no acórdão de 23.05.2002 - proc. 2709/02, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira, “o recurso à figura do homicídio qualificado atípico há-de ser levado a cabo com alguma parcimónia, pois, no fim de contas, “é de facto uma ousadia criar homicídios qualificados... sobretudo na base da pirâmide normativa, onde actua o juiz, confrontado com o caso concreto e sem a legitimação (...) parlamentar em última instância, que tem o legislador penal” (Margarida Silva Pereira, Direito Penal II - Os Homicídios, 1ª edição, p. 67) e não é menos verdade que “a exigência de um grau especialmente elevado de ilicitude ou de culpa, para se poder afirmar um homicídio qualificado atípico, constitui um importante critério quanto à decisão a tomar relativamente a casos cuja pena concreta se venha a situar no âmbito de justaposição das molduras penais do tipo simples e do tipo qualificado” e, que, “com estas exigências, parece posta de parte qualquer possibilidade de multiplicação de casos de homicídio qualificado atípico” (Teresa Serra, Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, p. 75).

No caso dos autos temos que:

- Na sequência de uma discussão entre o arguido e a mulher, ora assistente, esta saiu de casa e foi para casa dos seus pais.

- O arguido deslocou-se então também para a casa dos seus sogros munido de uma espingarda de caça de dois canos, marca F. Sarriugarte, de sua pertença.

- Lá chegado encontrou AS seu sogro, na cozinha da habitação deste último e, acto contínuo, empunhando a referida espingarda na direcção daquele, efectua um disparo a curta distância, tendo-lhe causado as seguintes lesões: esfacelo e fractura da raiz da coxa/fémur direito.

Estas circunstâncias são suficientes para ser dada como provada a especial censurabilidade ou perversidade?

Como se referiu, trata-se de circunstâncias reportadas à culpa. Por isso, conforme refere o Prof. Figueiredo Dias, (Comentário Conimbricense, I, p. 43), “o que o aplicador tem de fazer é partir da situação tal como ela foi representada pelo agente. E a partir dela perguntar se a situação, tal como foi representada corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.” Nessa busca, não pode, para tanto, ser olvidado que “qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete. No homicídio qualificado, o que está em causa é uma diferença essencial de grau que permite ao juiz concluir pela aplicação do artigo 132.º ao caso concreto, após a ponderação da circunstância indiciadora presente ou outra circunstância susceptível de preencher o Leitbild dos exemplos-padrão” - (Teresa Serra, op. cit., p. 64), ou, segundo Figueiredo Dias, “o que motiva a agravação ... tem a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples” - (Homicídio qualificado, Colectânea de Jurisprudência, ano XII - 1987, tomo 4, p.52).

A atitude do arguido é altamente reprovável, não só por pôr em causa o bem supremo que é a vida, mas também por a agressão, que culminou com a morte do seu sogro, ter sido iniciada de surpresa, dificultando à vítima a possibilidade de defesa e colocando-a à mercê do arguido. Contudo, tal situação não pode ser tida como análoga à do exemplo padrão da al. c) - praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez - pois, como se refere no Comentário Conimbricense, a estrutura valorativa deste exemplo-padrão encontra-se ligada a uma situação de desamparo da vítima, o que não se apurou no caso concreto.

Aliás, o arguido quando se dirige a casa dos seus sogros nem sequer vai com o intuito de encontrar o seu sogro. O que lhe é imputado e resultou provado é que pretendia ir atrás da mulher e trazê-la para casa do casal, como aliás já tinha feito nessa mesma madrugada quando a foi buscar ao anexo da residência do casal, à força. Para além de que, não consta do libelo acusatório (com todas as limitações daí decorrentes) que existisse qualquer relação de inimizade entre o arguido e a vítima AS na qual se pudesse sustentar a conclusão de que era o sogro que o arguido pretendia encontrar no dia 31 de Maio de 2010.

Não sendo possível integrar, a conduta do arguido em nenhum dos exemplos­ padrão, haverá, ainda, que reconhecer que a factualidade apurada só por si também não é susceptível de atingir o especial grau de censurabilidade ou perversidade que o legislador considerou inerente ao homicídio qualificado.».

È pacífico que, designadamente conforme acórdão do STJ de 13.07.2005, in CJ Acs. STJ ano XIII, tomo II, pág. 247, o crime de homicídio qualificado é definido a partir da enunciação de uma cláusula geral – especial censurabilidade ou perversidade – contida no nº 1 do preceito e concretizada ou desenvolvida no nº 2 através de exemplos-padrão. Esses dois critérios – um generalizador e outro especificador – são complementares e têm mútua implicação. A partir deles, poder-se-á sintetizar assim a estrutura do tipo agravado: ocorre o homicídio qualificado sempre que do facto resulta uma especial censurabilidade ou perversidade que possa ser imputada ao arguido por força da ocorrência de qualquer dos exemplos-padrão enumerados no nº 2, ou, tendo estes natureza exemplificativa, sem deixarem de ser elementos constitutivos de um tipo de culpa, qualquer outra circunstância substancialmente análoga (…) Com esta formulação dual pretende assinalar-se a interacção recíproca entre o chamado critério generalizador e os exemplos-padrão.

Esse critério generalizador é determinante de um especial tipo de culpa, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados, devendo resultar de uma imagem global do facto agravada (v. Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, Coimbra, 1999, Tomo I, a págs. 25 e seg.).

Derivando, pois, a qualificação, de uma culpa agravada – ainda que algumas das circunstâncias elencadas no n.º 2 do art. 132.º contendam com um mais acentuado desvalor da acção, enquanto elementos da ilicitude -, o pensamento da lei é o de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (v. Figueiredo Dias, ob. cit., a pág. 29, citando ainda Teresa Serra, in “Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena”, 1990, a págs. 62 e segs.), pelo que, mesmo para quem defenda que tais circunstâncias constituem tipos de ilícito (J. Curado Neves, in “Indícios de Culpa ou Tipos de Ilícito. A difícil relação entre o nº 1 e o nº 2 do artigo 132º do C.P”. in “Liber Discipulorum, Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, a págs. 721 e segs.), toda a punição passará pela efectiva comprovação da especial censurabilidade ou perversidade do agente.

Assim, à luz da fundamentação do tribunal recorrido, pode dizer-se, contrariamente à perspectiva da recorrente, que operou adequada ponderação da imagem dos factos, tendo plenamente justificado a conclusão que extraiu e em termos que se nos afiguram acertados.

Se, efectivamente, a particular situação de indefesa da vítima se não coloca, ainda que esta tivesse então 79 anos de idade, já que nada se apurou no sentido de que o arguido se tenha disso aproveitado, também o uso da caçadeira, nas circunstâncias, não se afigura como de meio particularmente perigoso, não excedendo a normalidade de configurar meio idóneo à produção do resultado visado, não atribuível a perversidade e a censurabilidade para o efeito relevantes.

Por seu lado, a eventual subsunção à alínea i) do n.º 2 do art. 132.º, enquanto utilização pelo arguido de “meio insidioso”, ventilada, quer pelo teor da declaração de voto de vencido constante do acórdão, quer pela recorrente, também, em nosso entender, não deve proceder, dada a insuficiência de factos para tanto.

Tem-se aí em vista a actuação de agente que age dissimulada ou traiçoeiramente, sem permitir à vítima possibilidade razoável de defesa, designando-se de insidioso todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno – do ponto de vista pois do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto (v. “Comentário” cit., a págs. 38 e seg.).

Com efeito, para que a noção de insídia se verifique, necessário é que o agente aproveite a distracção da vítima para actuar, que a engane, criando situação que a coloque em posição de não poder resistir, como em circunstâncias normais sucederia (v. acórdão do STJ de 20.05.2004, Col. Jur. Acs. STJ ano XII, tomo II, pág. 197).

A factualidade provada apenas permite concluir que o arguido empunhou a arma e disparou a curta distância da vítima, o que, não obstante ter, como implícitas, alguma surpresa na sua forma de actuação e a inerente insusceptibilidade de defesa da última, não resulta bastante para suportar a ideia de que se tivesse rodeado de especiais (excepcionais) circunstâncias para lograr a sua conduta.

Por seu lado, se bem que, em geral, os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade (v. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica, 2008, pág. 349), os elementos disponíveis, considerando tão-só a relação de afinidade existente entre o arguido e a vítima, não confluem para desvalor de acção e de resultado, de excepcionalidade tal, que fundamente a referida culpa agravada, para a necessária qualificação do homicídio.

Concorda-se, pois, com o enquadramento sufragado pelo acórdão, de que o arguido cometeu o crime de homicídio (simples) p. e p. pelo art. 131.º do CP e, nesta vertente, improcedendo o recurso.

1- recurso do Ministério Público:

B) -
O recorrente entende que a pena aplicável ao crime de homicídio deva ser agravada, por via do disposto no art. 86.º, n.º 3, do RJAM (aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23.02, e alterada e reproduzida em Anexo pela Lei n.º 17/2009, de 06.05).

Dúvida não há de que o arguido cometeu o homicídio utilizando uma espingarda de caça de dois canos, sendo que esta não pode deixar de considerar-se como arma de fogo, segundo a definição legal do seu art. 1.º, alínea p), ainda que nos autos não tenha sido examinada, mas, de todo o modo, a ser classificada na classe C ou D (cfr. seu art. 3.º, n.ºs 1, 5 e 6).

Ora, nos termos do citado art. 86.º e no que ora interessa:

3 - As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravados de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.

4 - Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.

Com a previsão dessa agravação punitiva, acolheu-se a finalidade de dissuasão da detenção de armas, sabendo-se que estas, crescentemente, se apresentam como factor criminógeno e, note-se, mesmo em situações em que o detentor as tenha dentro das condições legais.


Em concreto, a previsão daquele n.º 4 do preceito não suscita dificuldade quanto a adequá-la à situação vertente.

Quanto ao funcionamento daquele n.º 3, a conclusão não é diversa.

Na verdade, o porte ou uso de arma não constitui elemento típico do crime de homicídio, nem a lei prevê especial agravação em função desse porte ou uso.

A agravação do homicídio, praticado com arma, só ocorrerá se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente e se a utilização da mesma consubstanciar meio particularmente perigoso ou que traduza a prática de crime de perigo comum (art. 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), do CP), enquanto que a relativa àquele art. 86.º, n.º 3, opera com a mera circunstância do crime ter sido cometido com arma.

Não se tendo qualificado o homicídio, nos termos que ficaram descritos em 2 – A), inexiste fundamento para afastar a agravação daquele Regime.

Por isso, o homicídio em que o arguido incorreu passará a ser punível com os limites legais agravados de um terço, ou seja, com o mínimo de 10 anos e 8 meses de prisão e o máximo de 21 anos e 4 meses de prisão.

C) -
Defende o recorrente a elevação das penas aplicadas pelos crimes de violência doméstica e de homicídio, essencialmente por referência às pretendidas alterações, as quais vieram a proceder.

Quanto à pena aplicada pelo crime de violência doméstica, o tribunal teve em conta o elevado grau de ilicitude da conduta do arguido; a actuação com dolo directo (que é a modalidade mais intensa de cometimento do crime); as diminutas exigências de prevenção especial (visto que o arguido, antes de praticar os ilícitos, revelou um comportamento social sem mácula) e as elevadas exigências de prevenção geral.

Na sua ponderação, partiu de diferente limite mínimo daquele que ora há que considerar (de 2 anos de prisão), tendo aplicado pena ligeiramente acima do mesmo (1 ano e 8 meses de prisão).

Relativamente à pena aplicada pelo crime de homicídio, lê-se no acórdão:

No caso vertente estamos perante um crime de homicídio, ilícito em que o bem jurídico tutelado é a vida humana, bem jurídico supremo do homem, que a Constituição declara inviolável – artigo 24.º.

Por isso, as necessidades de prevenção são muito elevadas. O arguido agiu com dolo eventual.

A ilicitude do facto é acentuada, atendendo ao modo de execução do mesmo – utilização de espingarda de caça – e o factor surpresa. A ilicitude é, no caso concreto, factor de séria preocupação social e causadora de alarme social conexo, ademais no caso de violação do direito à vida. A vítima era sogro do arguido.

Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.

Face a todo o descrito circunstancialismo, a pena terá necessariamente de situar-se na metade superior da moldura abstracta, respondendo, desse modo, às necessidades de prevenção geral (…)

Cominou a pena de 13 anos de prisão, dentro dos diferentes limites de que partiu (8 a 16 anos de prisão), perante os agora decididos (de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses de prisão).

Todas as aludidas considerações, para o efeito, se afiguram pertinentes, divisando-se exigências de prevenção geral e especial não reduzidas, antes pelo contrário, inevitavelmente merecendo punição que reflicta adequada resposta face ao desvalor da acção e do resultado revelado.

A determinação da medida das penas, dentro dos limites definidos, é feita em função da culpa do arguido e dessas exigências de prevenção, nos termos do art. 71.º, n.º 1, do CP, devendo levar-se em conta que, conforme art. 40.º, n.º 2, do mesmo Código, a pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa.

Por seu lado, constituem finalidades da punição, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º, n.º 1, do CP),

Como refere Figueiredo Dias, in ”Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias, 1993, pág. 214, culpa e prevenção são assim os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito ou de determinação concreta da pena).

Segundo Fernanda Palma (“As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva” em “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, AAFDL, 1998, pág. 25, e emCasos e Materiais de Direito Penal", Almedina, 2000, págs. 32/33), a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral,

Ainda, também conforme Figueiredo Dias, in “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, ano 3, 2º a 4º, Abril-Dezembro de 1993, a págs.186 e 187, o modelo de determinação da medida da pena consagrado no CP vigente comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o “quantum” exacto de pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente.

O juízo de culpa, que se reconduz ao suporte axiológico-normativo da punição, é um juízo de valor, de apreciação, que enuncia o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser o ponto de vista da sua validade lógica, ética ou do direito (acórdão do STJ de 10.04.1996, in CJ. Acs. STJ ano IV, tomo II, pág. 168).

A medida da pena não poderá exceder a medida desse juízo, na esteira de Roxin, in “Direito Penal”, 2004, págs. 65 e seg., o que permite fixar a pena a montante da culpabilidade se as exigências de prevenção tornarem desnecessária ou desaconselharem mesmo a pena num limite máximo da culpa.

Analisando-a na sua amplitude, a culpa do arguido é considerável, tal como transparece do acórdão, mormente no que concerne ao crime de homicídio.

Não se divisam, para além da ausência de antecedentes criminais, circunstâncias que verdadeiramente atenuem a sua conduta, sem embargo de que, relativamente ao crime de violência doméstica, o número de actos e a gravidade dos mesmos não apontem para um elevado desvalor, não obstante a reconhecida premência da respectiva protecção, multifacetada e de contornos e consequências inevitavelmente relevantes.

No que tange ao crime de homicídio, além do que ficou referido, revela-se, ainda que de modo algo impreciso, perturbador tipo de personalidade do arguido, ao ter transferido conflitos com a pessoa com quem vivia para o pai desta, sem que tivesse existido, que se saiba, explicação plausível para o seu comportamento, sendo certo que, também, como decorre da motivação da decisão de facto do acórdão, não contribuiu para o esclarecimento da verdade.

Ao nível das suas condições pessoais à data dos factos, tem-se em conta que contava 47 anos de idade e estava desempregado.

Ponderados todos os referidos aspectos, entende-se que, relativamente ao crime de violência doméstica, se justifica a aplicação de pena próxima da proposta pelo recorrente, de 2 anos e 6 meses de prisão e, quanto ao crime de homicídio, de pena mais elevada que a cominada pelo tribunal “a quo”, mas, ainda assim, algo distante da medida pelo mesmo pretendida, por ser esta excessiva.

Afigura-se, sim, adequada, proporcional e justa, ao crime de homicídio, a pena de 15 anos e 6 meses de prisão.

Fixadas as referidas penas parcelares, a que se junta a aplicada pelo crime detenção de arma proibida (1 ano de prisão) - não impugnada e sem razão para não manter -, altera-se o cúmulo das penas operado no acórdão.

A moldura penal do concurso fica, agora, estabelecida no mínimo de 15 anos e 6 meses de prisão (pena parcelar mais elevada) e no máximo de 19 anos de prisão (soma das penas parcelares) – art. 77.º, n.º 2, do CP.

Reapreciam-se, para tanto, conjuntamente, os factos e a personalidade do arguido (art. 77.º, n.º 1, do CP), sendo que a medida da pena conjunta é encontrada em função das exigências gerais de culpa e prevenção e Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade (“Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime” cit., a págs. 290 e seg.).

Trata-se, pois, de proceder a uma avaliação global que retrate a imagem, também global, dos factos e da personalidade e, assim, sem necessidade de outros considerandos para além dos já efectuados, reputa-se como justa a aplicação da pena conjunta de 17 anos de prisão.

2recurso da assistente:

B) -
De acordo com o que ficou definido, está prejudicada a aplicação da pena proposta pela recorrente, que tinha como sustentáculo medida aplicável a crime de homicídio qualificado, posição que, nos termos descritos em 2-A), foi afastada.

3. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se:

- conceder parcial provimento ao recurso do Ministério Público;

- negar provimento ao recurso da assistente;

- revogar o acórdão:

- quanto ao enquadramento do crime de violência doméstica, que se altera para a previsão e punição do art. 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do CP;

- no concernente à punição do crime de homicídio, que é agravada por via do disposto no n.º 3 do art. 86.º, da Lei n.º 5/2006, introduzido pela Lei n.º 17/2009;

- no atinente à pena aplicada pelo crime de violência doméstica, alterando-a para 2 anos e 6 meses de prisão;

- relativamente à pena aplicada pelo crime de homicídio, alterando-a para 15 anos e 6 meses de prisão;

- no tocante ao cúmulo das penas, aplicando a pena conjunta de 17 anos de prisão;

- no mais, manter o acórdão recorrido.

Custas a cargo da assistente, com a taxa de justiça em soma equivalente a 4 UC.


Processado e revisto pelo Relator.

Évora, 20 de Dezembro de 2011

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(Carlos Berguete Coelho)

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(João Gomes de Sousa)