Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
767/11.0TAOLH-C.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL
ADVOGADO
QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A prevalência do segredo profissional do Advogado, ou, pelo contrário, do dever de cooperação com a justiça penal, dependerá da conclusão a que, em concreto, se chegar quanto ao interesse dominante.
II - Estando em causa dois crimes com assinalável gravidade (burla qualificada e abuso de confiança, em que a lesada sofreu um prejuízo de, pelo menos, € 244.500,00), sendo o depoimento da Drª DS essencial para se poder apreciar da suficiência ou insuficiência dos indícios (da pronúncia ou não da arguida como autora dos factos de que está acusada), e, além disso, tendo a Drª DS atuado em representação da ofendida, este é um dos casos em que o interesse comunitário na boa administração da justiça penal deve prevalecer.
Decisão Texto Integral:



Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:



I - RELATÓRIO

No âmbito dos autos de instrução com o nº 767/11.0TAOLH, do Tribunal Judicial de Faro (JIC), em que é arguida AMR, foi declarada aberta a instrução, a requerimento da arguida, a qual se encontra acusada pelo Ministério Público de um crime de burla qualificada e de um crime de abuso de confiança (em que é ofendida BHS).
No decurso do inquérito foi ouvida como testemunha a Ilustre Advogada DS, a qual referiu, relativamente ao contrato de compra e venda em causa nos autos, que não prestava depoimento, por tais factos estarem a coberto de sigilo profissional, uma vez que teve conhecimento dos mesmos devido à sua qualidade de Advogada (interveio nesse contrato de compra e venda em representação da ofendida BHS).
A arguida, no requerimento para abertura da instrução, requereu a inquirição, como testemunha, da referida Ilustre Advogada (DS), já que esta é capaz de esclarecer qual a real vontade da ofendida na celebração do aludido contrato de compra e venda, e, bem assim, qual o estado mental da ofendida na altura da celebração desse contrato (saber se a mesma estava em condições mentais de perceber o alcance dos seus atos).
No despacho que declarou aberta a instrução e determinou as diligências de instrução (proferido em 23 de Abril de 2014), a Mmª Juíza de instrução criminal deferiu a pretensão da arguida, entendendo também que a audição, como testemunha e sobre a referida matéria, da Ilustre Advogada DS, tem grande interesse para a descoberta da verdade.
Dado que a Ilustre Advogada em causa se escusou a prestar depoimento, no decurso do inquérito, invocando a obrigação de guardar segredo profissional, a Mmª Juíza de instrução criminal afirmou a legitimidade da escusa e suscitou a intervenção deste Tribunal da Relação, nos termos do preceituado no artigo 135º, nº 3, do C. P. Penal, em ordem à resolução do incidente de levantamento de sigilo profissional de Advogado.
Ao abrigo do disposto no artigo 135º, nº 4, do C. P. Penal, foi ouvido o Conselho Distrital de Faro da Ordem dos Advogados, o qual emitiu parecer no sentido de não ser autorizado o depoimento pretendido (cfr. fls. 64 a 70 dos autos), por dois motivos essenciais:
1º - Se a Ilustre Advogada (DS) tivesse praticado atos (celebrado um contrato de compra e venda), em representação da ofendida, com conhecimento de que esta não estava no pleno gozo de todas as suas faculdades mentais, incorreria numa conduta ilegítima (e até, eventualmente, criminosa).
2º - As faculdades mentais da ofendida, na altura dos factos em apreço, podem ser esclarecidas usando outros meios de prova, nomeadamente socorrendo-se o tribunal de competentes perícias médicas.
Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, chamado a pronunciar-se, foi de entendimento de que deve determinar-se a quebra do dever de sigilo e a referida Ilustre Advogada deve prestar depoimento (cfr. fls. 98 a 100), uma vez que, e em síntese, a revelação dos factos em apreço por banda da Ilustre Advogada em questão de modo algum quebra a relação de confiança e de confidencialidade que deve existir entre Advogado e cliente, e, além disso, perante as circunstâncias do caso, essa relação de confiança e de confidencialidade não está acima do objetivo de realização da justiça.
Efetuado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.



II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Factos relevantes para a decisão.

Compulsados os autos (deste “incidente por apenso”), e com relevo para a decisão a proferir, são de elencar os seguintes factos e circunstâncias:
a) O Ministério Público deduziu acusação contra a arguida AMR, imputando-lhe a prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14º, nº 1, 26º, 1ª parte, 217º, nº 1, e 218º, nº 2, als. a) e c), todos do Código Penal, e de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelos artigos 205º, nºs 1 e 4, al. a), do mesmo diploma legal.
b) Segundo tal acusação do Ministério Público (e em breve resumo), mostram-se fortemente indiciados os seguintes factos:
- A ofendida (BHS) é uma cidadã norueguesa, que, no ano de 2007, veio viver para Portugal, sofrendo de esclerose múltipla e epilepsia, e que, pelo menos desde a Primavera de 2007, sofre de ataques de epilepsia de repetição, associados a frequentes perdas de conhecimento (possuindo ainda disfunção cognitiva grave, com dificuldades de orientação, memória e aquisição de conhecimentos).
- Em 09 de Agosto de 2011, a ofendida e a arguida (AMR) outorgaram, na qualidade de vendedora e de compradora (respetivamente), uma escritura de compra e venda referente a um prédio urbano (correspondente à residência da ofendida).
- Nesse documento foi feito constar que a vendedora (a ofendida) assinou, através da aposição da sua impressão digital por não conseguir escrever, e que havia compreendido os termos do acordado, declarando ser sua vontade vender o referido prédio, pelo valor de € 225.000,00 (duzentos e vinte e cinco mil euros), à compradora (AMR), de quem já havia recebido o respetivo preço.
- No ato de outorga dessa escritura estiveram presentes, para além da ofendida e da arguida, as seguintes pessoas: DS, Advogada, AR, notária, e CR, Advogada estagiária do escritório de DS.
- No mesmo dia 09 de Agosto de 2011, a ofendida emitiu ainda uma procuração, através da qual constituiu como sua procuradora a advogada Dr.ª DS, conferindo-lhe poderes para efetuar transações bancárias junto do Banco BPI, S.A., e do “SpareBank” (um banco norueguês).
- A ofendida nunca recebeu, por qualquer meio, da arguida (da compradora), a aludida quantia de € 225.000,00.
- Aquando da realização da escritura em causa, a ofendida não tinha capacidade de discernir que estava a alienar a propriedade da sua casa à arguida sem receber qualquer contrapartida pela mesma.
- A ofendida nunca quis vender a sua casa à arguida.
- A ofendida nunca soube e/ou se apercebeu que tinha vendido a sua casa à arguida.
- Nos 38 dias subsequentes a 22-07-2011 (dia da morte do companheiro da ofendida), a arguida, fazendo uso de um cartão bancário de uma conta da ofendida no referido “SpareBank” - cartão pertença da ofendida -, fez compras e levantamentos no valor global de € 19.500,00.
- No dia 01-07-2011 o saldo dessa conta (relativa a esse cartão bancário) era de 447.524,39 coroas norueguesas (€ 53.702,92), e, a partir de 22-07-2011, a arguida, na posse do dito cartão bancário da ofendida, passou a movimentar quase diariamente essa mesma conta, tendo efetuado vários pagamentos e levantamentos, em seu benefício.
- Ao proceder a tais movimentos bancários (levantamentos e/ou pagamentos de bens e serviços), a arguida, sem o conhecimento e/ou o consentimento da ofendida (legítima titular dessa conta bancária), agindo de forma consciente e voluntária, obteve um benefício patrimonial indevido, em prejuízo da ofendida.
- A arguida conseguiu atingir tais desideratos abusando do débil estado de saúde físico (incapacidade de locomoção e de escrita manual) e psíquico (disfunção cognitiva grave, com dificuldades de orientação, memória e aquisição de conhecimentos) da ofendida, agravado pela recente morte do companheiro desta, bem como da dependência funcional e emocional da ofendida relativamente à arguida.
- A arguida sabia que, da forma como atuou (nas diversas situações acima elencadas), ia causar prejuízos patrimoniais à ofendida, no montante global de, pelo menos, € 244.500,00, o que quis e conseguiu, bem sabendo que a suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.


2 - Apreciação do mérito da questão.

A propósito do “segredo profissional” (de ministros de religião ou confissão religiosa, de médicos, de jornalistas, de advogados, etc.) estatui o artigo 135º, nº 1, do C. P. Penal que os Advogados “podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos”.
Por sua vez, prevê o nº 3 do mesmo artigo 135º do C. P. Penal uma fase do incidente para levantamento de tal sigilo profissional, que surge quando a autoridade judiciária pretende que, dado o interesse da investigação, se quebre o segredo profissional, caso em que a decisão sobre o rompimento do segredo é da competência do tribunal superior àquele em que se suscita o incidente.
À luz deste preceito legal (artigo 135º, nº 3, do C. P. Penal) é possível a quebra do segredo profissional, mediante incidente em que se afira do interesse preponderante ou prevalecente, devendo decidir-se pela prestação de testemunho, com quebra desse mesmo segredo profissional, “sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos”.
Face a este normativo legal, e no lapidar dizer do Prof. Costa Andrade (in "Comentário Conimbricense do Código Penal", Parte Especial, Tomo I, págs. 795 e 796), “(...) o tribunal competente só pode impor a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. Uma fórmula que se projecta em quatro implicações normativas fundamentais:
a) Em primeiro lugar e por mais óbvia, avulta a intencionalidade normativa de vincular o julgador a padrões objetivos e controláveis, não cometendo a decisão à sua livre apreciação.
b) Em segundo lugar, resulta líquido o propósito de afastar qualquer uma de duas soluções extremadas: tanto a tese de que o dever de segredo prevalece invariavelmente sobre o dever de colaborar com a justiça penal (...), como a tese inversa, de que a prestação de testemunho perante o tribunal (penal) configura, só por si e sem mais, justificação bastante da violação do segredo profissional (...).
c) Em terceiro lugar, o apelo ao princípio da ponderação de interesses significa o afastamento deliberado da justificação, neste contexto, a título de prossecução de interesses legítimos (...). Isto é: a realização da justiça penal, só por si e sem mais (despida do peso específico dos crimes a perseguir) não figura como interesse legítimo bastante para justificar a imposição da quebra do segredo (…).
d) Em quarto lugar, com o regime do art. 135º do C.P.P., o legislador português reconheceu à dimensão repressiva da justiça penal a idoneidade para ser levada à balança da ponderação com a violação do segredo: tudo dependerá da gravidade dos crimes a perseguir (...)”.
Como bem argumenta Garcia Marques (declaração de voto exarada no parecer da P.G.R. nº 28/86, in “Pareceres do Conselho Consultivo da P.G.R.”, VI, pág. 450), “a resolução do problema deve-se encontrar com base na aplicação dos critérios que, no caso concreto, sejam idóneos para determinar o peso relativo das representações valorativas dos deveres em conflito. Ou seja, a prevalência do segredo ou do dever de cooperação com a justiça dependerá da conclusão a que, em concreto, se chegar quanto ao interesse dominante”.
Isto é, confrontando-se, nos autos, dois interesses conflituantes - a tutela do segredo profissional do Advogado e o dever de colaboração com a administração da justiça penal -, deverá este Tribunal da Relação decidir no sentido da solicitada quebra de segredo profissional, caso esta se mostre justificada face ao princípio da prevalência do interesse preponderante e segundo um critério de proporcionalidade na restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como o impõe o nº 2 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.
Em primeiro lugar, e apreciando a questão a esta luz, há que enunciar o que está em causa nos presentes autos.
Assim, e de um lado, temos o segredo profissional do advogado.
Com efeito, dispõe o artigo 87º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei nº 15/05, de 26/01), que “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos serviços”, designadamente nos casos elencados nas alínea a) a f) de tal normativo legal.
Daqui decorre, por conseguinte, que o advogado está legalmente obrigado a segredo profissional no que respeita a factos conhecidos no exercício das suas funções, seja qual for a origem da fonte.
O dever de segredo do advogado tem subjacente, como é óbvio, razões de natureza pública, porquanto a rigorosa tutela a que se acha submetido tem por base um interesse social e não o interesse dos profissionais que recebem confidências, nem o interesse daqueles que revelam as suas confidências, correspondendo a sua preservação também a uma exigência de proteção da privacidade do defensor, dos seus demais clientes, e, por via disso, da própria liberdade do exercício da profissão.
Do outro lado, em confronto com o segredo profissional do advogado, temos o dever de colaboração com a administração da justiça.
Como é bom de ver, este dever de colaboração com a administração da justiça (da justiça penal, que é a aqui em causa) visa satisfazer o interesse público do jus puniendi, e, no caso concreto destes autos, a realização de diligências de prova que visam confirmar (em sede de instrução) a existência de indícios de crimes de burla qualificada e de abuso de confiança, imputados a determinada pessoa, sob a égide do princípio da descoberta da verdade material, e, assim, do interesse da boa administração da justiça penal.
Em segundo lugar, para a ponderação relativa dos apontados interesses em conflito, em ordem a determinar se a salvaguarda do segredo profissional deve ou não ceder perante o interesse da colaboração com a realização da justiça penal, temos de atender a todo o circunstancialismo fáctico em causa, analisado numa perspetiva concreta, e, perante ele, temos de aquilatar da diferente natureza e da efetiva relevância dos bens jurídicos em presença, segundo um critério de proporcionalidade na restrição, na medida do necessário, de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como impõe o acima aludido artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
Em suma: a resolução do problema que nos ocupa deve ser encontrada com base na aplicação dos critérios que, no caso concreto, sejam idóneos para determinar o peso relativo das representações valorativas dos deveres em conflito, sendo certo que não se deverá adotar o entendimento segundo o qual o dever de cooperação com a justiça prevalece sempre sobre o segredo profissional.
Por outras palavras: a prevalência do segredo profissional do Advogado, ou, pelo contrário, do dever de cooperação com a justiça penal, dependerá da conclusão a que, em concreto, se chegar quanto ao interesse dominante.
Revertendo ao caso dos autos:
Desde logo, lendo a acusação do Ministério Público que consta deste “incidente por apenso”, nela não se refere (pelo menos claramente) que a Drª DS tenha intervindo na escritura de compra e venda da casa da ofendida na estrita qualidade de advogada (ou melhor: com procuração para o efeito).
O que transparece é, isso sim, que no ato de outorga da escritura estiveram presentes, para além da ofendida e da arguida, “DS, advogada, AR, notária, e CR, advogada estagiária do escritório de DS”.
Aliás, a escritura de compra e venda ocorreu em 09 de Agosto de 2011, e foi nesse mesmo dia que a ofendida emitiu uma procuração através da qual constituiu como sua procuradora a Advogada DS, conferindo a tal Ilustre Advogada poderes para efetuar transações bancárias junto do Banco BPI, S.A., e do “SpareBank” - e não para intervir em escrituras de compra e venda de imóveis -.
Depois, não está minimamente dito na acusação em análise que a DS tenha cometido, por alguma forma, enquanto Advogada e contra os interesses da ofendida, atos ilegítimos ou menos corretos, atos esses eventualmente subsumíveis a ilícitos disciplinares e/ou criminais.
Mas, mesmo que assim fosse, e nos termos do disposto no artigo 132º, nº 2, do C. P. Penal, a DS, como qualquer outra testemunha, podia sempre recusar-se a responder a todas as perguntas de cujas respostas pudesse resultar a sua responsabilização penal (dispõe o citado normativo legal que “a testemunha não é obrigada a responder a perguntas quando alegar que das respostas resulta a sua responsabilização penal”).
Por fim (e mais importante) estão em causa dois crimes com assinalável gravidade (burla qualificada e abuso de confiança, em que a lesada sofreu um prejuízo de, pelo menos, € 244.500,00), sendo muito elevados quer o grau de ilicitude dos factos quer o grau de culpa da arguida.
Acresce que a ofendida, por evidentes motivos de saúde (física e psíquica), não terá, ao que legitimamente supomos, capacidade (atual) para esclarecer os factos em apreço, pelo que o depoimento da DS se revela essencial para se poder apreciar da suficiência ou insuficiência dos indícios e, por isso, da pronúncia ou não da arguida como autora dos factos de que está acusada.
A inquirição, como testemunha, da DS, assume, pois, particular relevância para apreciação e decisão da indiciação dos crimes imputados à arguida na acusação (maxime do crime de burla qualificada), sobretudo para apuramento da real vontade da ofendida aquando da celebração da escritura de compra e venda em causa, bem como para apuramento do estado mental da ofendida nessa ocasião (nomeadamente para se saber se a ofendida estava ou não em condições mentais de perceber o alcance e o significado dos seus atos).
Olhando a tudo o que vem de dizer-se, e já numa estrita perspetiva de ponderação dos interesses conflituantes, ou seja, entre, por um lado, os interesses prosseguidos com o estabelecimento do apontado dever de segredo profissional - de tutela da confiança do cliente no mandato outorgado ao seu Advogado e da própria dimensão social que a profissão tem imanente - e, por outro lado, o interesse comunitário na boa administração da justiça penal, este é um dos casos em que, com o devido respeito por opinião contrária, o último de tais interesses deve prevalecer.
Entendemos, pois, no caso concreto, e ponderando todas as suas específicas circunstâncias, que o segredo profissional da Ilustre Advogada DS não deve obstar à sua inquirição como testemunha e ao esclarecimento, pela mesma, dos factos criminosos em discussão nos autos.
Na verdade, e em jeito de síntese, está em causa a apreciação de um eventual crime de burla qualificada e de um eventual crime de abuso de confiança, cuja gravidade é muito significativa (a ofendida, pessoa debilitada, física e psicologicamente, sofreu um prejuízo patrimonial de, pelo menos, € 244.500,00, devido à atuação ilícita da arguida), mostrando-se essencial, para o apuramento da verdade material e para a eventual submissão da arguida a julgamento, o depoimento da Ilustre Advogada que esteve presente na celebração da escritura de compra e venda em que a ofendida interveio como vendedora e a arguida como compradora, por forma a esclarecer as circunstâncias em que a mesma foi outorgada, não se descortinando que outra diligência possa substituir validamente esse relevante depoimento.
Mais: ponderada a situação posta nos autos (onde não se devem esquecer também os direitos e os interesses legítimos da ofendida), não vislumbramos, minimamente, que a quebra do segredo profissional da DS possa violar a relação de confiança e de confidencialidade que manteve com a sua cliente (a própria ofendida), ou possa beliscar, ao de leve que seja, quaisquer outros direitos ou interesses legalmente salvaguardados, e, muito menos ainda, que essa quebra do segredo profissional possa estar acima do objetivo de, in casu, ser realizada a justiça.
Dito de outro modo: a situação concreta evidenciada nos autos reclama e legitima uma quebra do segredo profissional, pois a testemunha DS, sem invadir a essência da sua relação com a ofendida e dos seus deveres no âmbito dessa relação (Advogada/cliente), está em situação privilegiada para contribuir para que se persiga eficazmente a realização de um interesse público mais relevante, que é o cabal esclarecimento dos factos criminosos em discussão (de manifesta gravidade).
Face ao predito, justifica-se que, excecionalmente, cesse o dever de segredo profissional da Ilustre Advogada DS e se abra caminho a uma colaboração da mesma na descoberta da verdade material, única forma de se fazer a justiça que o caso concreto impõe.
Em conclusão: no caso em apreço, e na ponderação concreta dos interesses aqui presentes, deve determinar-se a quebra do segredo profissional invocado.



III - DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes desta Relação em conceder a pretendida quebra de segredo profissional, e, consequentemente, em determinar que a Srª. Drª DS preste depoimento como testemunha no âmbito dos autos de instrução com o nº 767/11.0TAOLH, do Tribunal Judicial de Faro (JIC).
Sem tributação.
*
Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 05 de maio de 2015

João Manuel Monteiro Amaro

Maria Filomena de Paula Soares