Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3321/21.2T8STB.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: ERRO NA FORMA DO PROCESSO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
DIVISÃO DE COISA COMUM
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – É em face do pedido formulado pelo autor na petição inicial, coadjuvado se necessário pela causa de pedir, que se determina a forma do processo.
II – A formulação de pretensão desajustada à resolução do litígio, não é causa de erro na forma do processo, é causa de improcedência da ação.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 3321/21.2T8STB.E1


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. (…), solteiro, residente na Praceta (…), n.º 11, 2º-Esq., em Setúbal, instaurou contra (…), solteira, residente na Rua (…), n.º 14, Azeitão, ação declarativa com processo especial de prestação de contas.
Em resumo, alegou haver vivido com a R., em situação análoga à dos cônjuges, durante mais de dezassete anos consecutivos, tendo adquirido com o produto do seu trabalho dois imóveis, cujas aquisições foram registados em compropriedade com a R. e vários bens móveis sujeitos a registo, nomeadamente, vários motociclos e veículos automóveis, registados exclusivamente em seu nome, que em 23/6/2016, que após a separação do casal, outorgou uma procuração a favor da R., conferindo-lhe poderes gerais de representação e poderes especais necessários e suficientes para que esta pudesse em seu nome celebrar negócios, com vista à venda do património imobiliário comum, que a R., munida da procuração, procedeu à venda de um veículo automóvel e levou a efeito a venda consigo mesmo de um dos imóveis, pelo preço que quis, sem prestar contas das vendas ou lhe entregar qualquer quantia referente ao produto delas.
Concluiu pedindo a citação da R. para apresentar contas ou contestar o pedido sob pena de não poder deduzir oposição às contas por si apresentadas.
Contestou a R. excecionando o erro na forma do processo, porquanto a procuração que o A. lhe conferiu se destinou à divisão do património comum sendo, por isso, a ação de divisão de coisa comum a adequada à resolução do litígio e, contradizendo os factos alegados pelo A., considerou, em resumo, haver executado o mandato de acordo com instruções acordadas com o A., inexistindo qualquer saldo que cumpra solver.
Concluiu pela improcedência da ação e pela condenação do A. como litigante de má-fé, por dedução de pretensão cuja falta de pagamento não ignora.
Respondeu o A., na parte em que a resposta foi admitida, por forma a considerar improcedente a defesa da Ré.

2. Seguiu-se decisão que julgou improcedente a denominada exceção dilatória do erro na forma do processo, afirmou, no mais, a validade e regularidade da instância e dispôs, designadamente, a final:
“Por todo o exposto, o presente Tribunal decide que a Ré está obrigada a prestar contas, pelo exercício de funções de mandatária do Autor e, em consequência, determina a notificação da Ré para apresentar as contas quanto à sua atuação, na qualidade de procuradora do Autor, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que o Autor apresente, nos termos do artigo 942.º, n.º 5, do Código de Processo Civil”.

3. A Ré recorre da decisão e conclui assim a motivação do recurso:
1. A Douta decisão, ora recorrida, enferma de erro ao julgar improcedente a exceção dilatória de “erro na forma de processo”, invocada pela Recorrente.
2. A forma de processo que regula as relações patrimoniais de unidos de facto, quando existam bens em compropriedade, é a ação de divisão de coisa comum e não a ação de prestação de contas.
3. Não é pelo simples facto, de porquanto o Recorrido não residir em Portugal a maior parte do tempo, e de ter outorgado uma procuração para a Recorrente efetuar a divisão, que a forma de adjetiva do direito subjacente deixa de produzir efeitos.
4. Na ação de divisão de coisa comum a causa de pedir é a compropriedade, sendo o pedido a dissolução da mesma compropriedade.
5. Ora a ação de prestação de contas tem apenas por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
6. No caso vertente, o que se pretende é a divisão de património em compropriedade e não um mero apuramento de receitas obtidas e despesas realizadas.
7. A ser assim, teria de se incluir nesta ação, todos os bens passivos e ativos que faziam parte do acervo comum dos unidos de facto.
8. A situação do caso vertente, não se pode isolar os bens vendidos pela Recorrente, do remanescente dos bens detidos em compropriedade, nem das dívidas assumidas por ambos.
9. A composição do presente litígio, só se dirimirá de forma justa e equitativa, com a forma processual correta de divisão de coisa comum, em que se fará constar todos os bens pertencentes à comunhão à data da separação do casal.
Certo que, com o Mui Douto suprimento de V. Exas, será dado provimento ao presente recurso, revogando-se a Douta sentença recorrida, com o que se fará a costumada Justiça.”
Não foi oferecida resposta.

Questão prévia
Apesar da R., formalmente, recorrer da decisão proferida sobre a existência da obrigação de prestar contas, decisão que admite apelação [artigo 942.º, n.º 4, do Código de Processo Civil], em substância, recorre do segmento da decisão que conhecendo da questão do erro na forma do processo a julgou improcedente.
A decisão que julga improcedente a nulidade do erro na forma do processo, pois é como nulidade que a lei a qualifica [artigos 196.º, 198.º, n.º 1, 200.º, n.º 3, do CPC] e determina a prossecução do procedimento para apreciação do pedido do A., não se insere em nenhuma das previsões do artigo 644.º, nºs 1 e 2, o que significa que não admite apelação autónoma, sendo recorrível com o recurso da decisão final ou depois de transitada esta, nos termos previstos nos nºs 3 e 4 do mesmo preceito legal.
Ora, inexiste na motivação e, decisivamente, nas conclusões do recurso, qualquer razão de discordância com a decisão recorrida na parte em que reconheceu a obrigação da R. prestar contas, o que significa que a R. recorre da decisão interlocutória – do segmento da decisão que, em sede de saneador, julgou improcedente a nulidade do erro na forma do processo – sem recorrer da decisão final – do segmento da decisão que, conhecendo de mérito, reconheceu a obrigação da R. prestar contas.
Situação que, não obstante, não se encontrar especialmente prevista nos n.º 3 e 4 do artigo 644.º do CPC, justifica o conhecimento do recurso, enquanto única via de salvaguardar os interesses em presença[1], uma vez que é por efeito da inadequação da forma do processo que a R. pretende ver afastada a obrigação de prestar contas
Assim explicada a admissão do recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir se se verifica a nulidade do erro na forma do processo.


III. Fundamentação
1. Factos
A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. Em 23 de junho de 2016, em cartório notarial da (…), através de documento autenticado, (…) constituiu sua bastante procuradora (…), conferindo-lhe os poderes necessários e suficientes para, com a faculdade de substabelecer e com a faculdade de fazer negócio consigo mesma, praticar os seguintes atos: “e) prometer vender e vender, prometer comprar e comprar no todo ou em parte, bens móveis e imóveis em qualquer freguesia e concelho, pelo preço e condições que entender por convenientes, receber e/ou pagar o preço, dar/receber quitação, podendo outorgar e assinar a respetiva escritura, e/ou documento particular, bem como proceder a quaisquer retificações, caso se mostrar necessário; f) Proceder a divisão de coisa comum e assunção de dívida pelo preço e condições que entender convenientes de qualquer imóvel de que seja comproprietário, outorgando a respetiva escritura, receber ou pagar preço, acordar na composição de quinhões, dar ou receber tornas, das mesmas prescindir ou renunciar, conferindo quitações, pagar imposto municipal de transmissões onerosas de imóveis ou solicitar a sua isenção; j) Para junto de qualquer entidade competente vender veículos automóveis, podendo extinguir reservas, assim como vender, assinar os respetivos requerimentos assim como antecipar no todo ou em parte o pagamento do financiamento concedido para aquisição do identificado veículo, podendo usar ou desistir da preferência que lhe pertença em quaisquer contratos, podendo incluindo fazer cedência de posição”.
2. No dia 1 de setembro de 2016, perante (…), notária, compareceu (…), que outorgou por si e na qualidade de procuradora de (…), tendo declarado em nome de (…) vender, a si própria, pelo preço de € 31.000,00, que já recebeu para o seu representado, o direito a: “metade indivisa da fração autónoma, designada pela letra “J” que corresponde ao 1º andar esquerdo no Bloco C, que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua (…), (...), freguesia e concelho da Lourinhã, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lourinhã, sob o n.º (…), da dita freguesia, com a aquisição do mencionado direito registada a favor do seu representado pela apresentação (…), de 11 de novembro de 2013, com a constituição da propriedade horizontal registada pela apresentação (…), de 22 de setembro de 2009, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), da União das Freguesias de Lourinhã e Atalaia, com o valor patrimonial correspondente à referida metade indivisa de € 30.144,57”. A Ré mais declarou, por si, que aceitava a venda.
3. O Autor foi proprietário do veículo de matrícula (…), Marca Jaguar Land Rover Limite.
4. A Ré, em representação do Autor, vendeu o veículo de matrícula (…), Marca Jaguar Land Rover Limite.
5. Está registada a favor de (…) a propriedade do veículo de matrícula (…), Marca Jaguar Land Rover Limite com reserva de propriedade a favor do Banco (…), S.A..

2. Direito
2.1. Se ocorre erro na forma do processo
A decisão recorrida julgou improcedente a nulidade do erro na forma do processo, em essência, por haver considerado o processo especial de prestação de contas adequado à apreciação do pedido formulado pelo A. [Na sua petição inicial, o Autor alegou que entregou uma procuração à Ré, conferindo-lhe poderes para vender os seus bens e a Ré utilizou a procuração, vendendo alguns dos seus bens. Por força do artigo 1161.º, alínea d), do Código Civil, o Autor tem o direito de exigir a prestação de contas e a Ré tem o dever de as apresentar. Assim, face à factualidade alegada na petição inicial, estão reunidos os pressupostos, previstos no artigo 941.º do Código de Processo Civil para o Autor instaurar uma ação especial de prestação de contas”, considerou-se].
A R. diverge e, em essência, argumenta que o A. pretende a divisão de património em compropriedade e não um mero apuramento de receitas obtidas e despesas realizadas e que o processo especial de divisão de coisa comum é aquele que permite a justa composição do litígio [cclºs 6 e 9].
Apreciando.
De acordo com as formas de processo previstas na lei e sua aplicação, o processo pode ser comum ou especial, aplicando-se o processo especial nos casos expressamente designados na lei e o processo comum a todos os casos a que não corresponda processo especial [artigo 546.º do CPC].
O campo de aplicação do processo comum determina-se por exclusão de partes, aplica-se quando à pretensão deduzida em juízo não corresponda processo especial.
E, ensina Alberto dos Reis, “como o fim para que, em cada caso concreto, se faz uso do processo se conhece através da petição inicial, pois que nesta é que o autor formula o seu pedido e o pedido enunciado pelo autor é que designa o fim a que o processo se destina, chega-se à conclusão seguinte: a questão da propriedade ou impropriedade do processo especial é uma questão, pura e simples, de ajustamento do pedido da ação à finalidade para a qual a lei criou o respetivo processo especial.[2]
Mais recentemente, Abrantes Geraldes: “[a] forma de processo escolhida pelo autor deve ser a adequada à pretensão que deduz e determinar-se pelo pedido que é formulado e, adjuvantemente, pela causa de pedir. É em face da pretensão de tutela jurisdicional deduzida pelo autor que deve apreciar-se a propriedade da forma de processo, a qual não é afetada pelas razões que se ligam ao fundo da causa.”[3]
É em face do pedido formulado pelo autor, interpretado se necessário à luz da causa de pedir, que se determina a forma do processo.
Forma do processo que o autor deve indicar na petição inicial [artigo 552.º, n.º 1, alínea c), do CPC] e em caso de erro, isto é, se a indicação não se mostrar apropriada à pretensão deduzida, deve ser corrigida para que o processo siga a forma adequada, anulando os atos que não possam ser aproveitados e ordenando a prática dos que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei [artigo 193.º, n.º 1, do C.P.C.].
No caso, o A. alegou que, mediante procuração, mandatou a R. para que esta pudesse em seu nome celebrar negócios, com vista à venda do património imobiliário comum e que esta procedeu à venda de um veículo automóvel e levou a efeito a venda consigo mesmo de um imóvel sem lhe prestar contas e pediu a citação da R. para apresentar contas ou contestar o pedido sob pena de não poder deduzir oposição às contas por si apresentadas.
De acordo com o artigo 941.º do C.P.C., “a ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
Exercitando o A. o direito à prestação de contas contra quem, na sua alegação, tem o dever de prestá-las, a forma de processo indicada na petição inicial - ação especial de prestação de contas – adequa-se à pretensão que deduz em juízo – a prestação de contas por parte da R.
A forma de processo indicada pelo A. é a adequada à pretensão que deduziu em juízo e, assim, não se verifica erro da forma do processo, como se decidiu.
A consideração da R., segundo a qual o A. “pretende a divisão de património em compropriedade e não um mero apuramento de receitas obtidas e despesas realizadas”, não encontra amparo no pedido formulado pelo A., comportando, se bem vemos, uma leitura corretiva do mesmo – o pedido devia ser outro – por forma a ajustá-lo aos termos do litígio, tal como a R. o configura; a ser como diz, isto é, a haver sido mandata para proceder à divisão do património comum, o que fez sem daí resultar qualquer saldo a favor do A., não é a forma de processo que é inadequada é a própria ação de prestação de contas que carece de fundamento.
As razões pelas quais a Ré considera inadequada a forma do processo, a verificarem-se, são causa de improcedência da ação e não causas de correção da forma do processo.
Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.

2.2. Custas
Vencida no recurso, incumbe à R./recorrente o pagamento das custas [artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC].

Sumário [da responsabilidades do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC]:
(…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 2/3/2023
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
__________________________________________________
[1] Neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 161.
[2] Código de Processo Civil anotado, 3ª edição, pág. 288.
[3] Temas da Reforma do Processo Civil, 1º vol., 2ª ed. pág. 280.