Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2427/19.5T8STB-A.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
INSOLVÊNCIA
NOVAÇÃO
AVALISTA
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. Os avalistas de uma livrança em branco conferem ao portador da livrança o direito de preencher o título de acordo com o clausulado no pacto de preenchimento.
II. O prazo de prescrição de uma livrança em branco - três anos nos termos do artigo 70.º da LULL ex vi do artigo 77.º da LULL – conta-se a partir da data de vencimento aposto na livrança, quer essa data coincida ou não com o vencimento da obrigação subjacente decorrente da declaração de insolvência, como previsto no artigo 91.º, n.º 1, do CIRE.
III. As modificações do crédito introduzidas pelo plano de insolvência só constituem novação da obrigação subjacente quando no mesmo esteja consagrada uma cláusula de irreversibilidade.
IV. Essas modificações não afetam a obrigação cartular dos avalistas dada as caraterísticas do aval (autonomia, independência, literalidade e abstração).
V. O artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, não viola o artigo 32.º da LULL, nem viola os princípios constitucionais da proporcionalidade e da segurança jurídica. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
Na oposição deduzida por embargos de executado que correm por apenso à execução ordinária para pagamento de quantia certa em que é exequente CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A. e executados M…, J…, D… e MA…, na qual foi apresentada como título executivo uma livrança subscrita pela sociedade E. Fortuna, Lda e avalizada pelos executados, com o valor de €178.058,97, emitida em 02-06-2009 e vencida em 04-02-2019, foi proferido despacho saneador-sentença que declarou improcedente a oposição e, em consequência, determinou o prosseguimento da execução.

Inconformados, apelaram os embargantes J… e M…, pugnando pela revogação da decisão, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«I. Na Livrança junto aos Autos, é sacadora a sociedade comercial E. Fortuna Lda, que foi declarada insolvente no dia 11 de Junho de 2013,
II. A Livrança foi avalizada pessoalmente pelos Recorrentes.
III. A Recorrida intentou a respectiva acção executiva contra os Recorrentes no dia 27 de Março de 2019.
IV. A sociedade comercial E. Fortuna Lda. foi declarada insolvente no dia 11 de Junho de 2013, quer dizer que, nos termos e efeitos do artigo 91.º do CIRE venceram-se todos os créditos na data da declaração de insolvência da E. Fortuna Lda, bem como que, entraram as partes em incumprimento definitivo após a declaração de insolvência no dia 11 de Junho de 2013.
V. Prevê a carta que foi pela Recorrida junta aos Autos – com a referência Citius 4816390 – que a Recorrida poderia “preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CGD, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte: a) a data de vencimento será fixada pela CGD quando, em caso de incumprimento das obrigações assumidas, a CGD decida preencher a livrança.”
VI. Prevê o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 30.04.2002 que “a circunstância de o preenchimento das letras constituir uma “simples faculdade” não significa que possa ser “livremente” exercida: optando por preencher as letras no contexto do incumprimento, a locadora deveria ter aposto na letra a data da resolução do contrato, apoiando-se não apenas no conteúdo do acordo de preenchimento (que previa que as letras em branco poderiam ser usadas em caso de mora superior a dez dias ou de incumprimento), como no interesse atendível do devedor “em ver delimitada claramente no tempo a sua responsabilidade” de onde resulta uma “imperatividade” quanto à coincidência entre a data de vencimento e a data da resolução do contrato por incumprimento”.
VII. Prevendo o pacto de preenchimento que a Recorrida está autorizada a preencher a livrança caso se verifique incumprimento dos Recorrentes – e tendo a presente livrança sido preenchida devido ao incumprimento definitivo das obrigações - então, quer isto dizer que, a Recorrida estava obrigada a indicar na Livrança a data da resolução do contrato, até porque, resulta do pacto de preenchimento uma imperatividade quanto à coincidência entre a data de vencimento e a data da resolução do contrato por incumprimento.
VIII. A Recorrente estava obrigada a preencher o título no exacto momento em que procede a resolução – vencimento da obrigação datada de 11 de Junho de 2013 – do contrato fundamental por incumprimento, uma vez que impende sobre a Recorrida o ónus de o fazer com alguma brevidade, sob pena de, decorridos (no máximo) três anos sobre esse instante perder definitivamente a possibilidade de exercitar o direito cambiário.
IX. Sendo certo que a Recorrida não está propriamente obrigada a preencher o título no exacto momento em que procede a resolução, ainda assim deve a Recorrida preencher e demandar os Recorrentes no prazo máximo de 3 (três) anos após a data de vencimento, sob pena de incorrer em preenchimento abusivo nos termos do art. 10.º da LULL, bem como, o direito cambiário considerar-se prescrito.
X. Se a Recorrida queria accionar – acção judicial - o título para lá desse limite temporal, ou seja, três anos após o vencimento da obrigação – que teve lugar em 11 de Junho de 2013 - incorre em preenchimento abusivo nos termos do art. 10.º da LULL e, por referência à data de vencimento correcta o direito cambiário deve considerar-se prescrito.
XI. Se a obrigação se venceu no dia 11 de Junho de 2013, com a declaração da insolvência da E. Fortuna Lda, quer isto dizer que, a data correcta de vencimento da Livrança não pode ser outra senão 11 de Junho de 2013.
XII. Tendo a acção apenas dado entrada em 27 de Março de 2019, então, dúvidas não existem que o direito da Recorrida prescreveu, uma vez que, foi a acção intentada depois do prazo de três anos, conforme previsto no artigo 70.º da LULL.
XIII. Assim sendo, uma vez que a Recorrida não exerceu o seu direito de demandar os Recorrentes no prazo de três anos a contar da data de vencimento da Livrança, conforme previsto no artigo 70.º da LULL, então, devem os Recorrentes serem totalmente absolvidos do pedido formulado pela Recorrida, nos termos e efeitos do artigo 70.º do LUL, bem como, pela inexistência de título executivo nos termos e efeitos do artigo 703.º e alínea a) do artigo 729.º do Código de Processo Civil.
XIV. Foi pelos Recorrentes alegado e requerido, em sede de Embargos de fls… que, este douto Tribunal lograsse pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade do número 4 do artigo 217.º do CIRE.
XV. Não obstante tal facto, o douto Tribunal ad quo apenas veio alegar que, “não seria razoável que o credor ficasse inibido de accionar os respectivos avalistas, que não são insolventes, nem se encontram impossibilitados de cumprir as obrigações que livremente assumiram, face à autonomia da obrigação do aval que prestaram. Com efeito, o credor do insolvente, ao votar favoravelmente um plano de insolvência, fá-lo apenas em relação ao insolvente. Os garantes estão fora do âmbito da insolvência e do que nesta se delibera.”
XVI. Ora, salvo douta melhor opinião não logrou o douto Tribunal ad quo verificar a constitucionalidade do número 4 do artigo 217.º do CIRE.
XVII. Na verdade, limitou-se a explicar o regime jurídico, contudo, não foi isso que foi pretendido.
XVIII. Ao prever o número 4 do artigo 217.º do CIRE que o dador de aval é responsável pelo pagamento de valores diferentes daqueles que o afiançado está obrigado, então, dúvidas não podem existir que o número 4 do artigo 217.º do CIRE é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade, princípio da segurança jurídica e do artigo 32.º da LULL.
XIX. Deve este douto Tribunal a quem pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade do número 4 do artigo 217.º do CIRE e, por conseguinte, considerar que, o número 4 do artigo 217.º do CIRE é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade, princípio da segurança jurídica e do artigo 32.º da LULL, bem como, que estamos perante um caso de novação das obrigações, pelo que, a serem responsáveis, são os Avalistas Recorrentes responsáveis pelos valores constantes do plano de insolvência.»

Na resposta ao recurso, a apelada defendeu a improcedência do mesmo e a confirmação da sentença.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:
- Da omissão de pronúncia sobre a inconstitucionalidade do artigo 217.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE);
- Da prescrição da obrigação dos avalistas.

B- De Facto
A 1.ª instância deu como provada a seguinte matéria de facto:
«1. A Exequente dona e legítima portadora de uma Livrança, subscrita pela sociedade E. Fortuna Lda., (já declarada insolvente), emitida na Cova da Piedade, em 02/06/2009, no valor de € 178.058,97 e vencimento em 04/02/2019, conforme Doc. 1, que aqui se junta e se dá por reproduzida para todos os devidos e legais efeitos.
2. A livrança foi entregue em garantia do cartão de crédito CaixaWorks, tendo a referência interna n.º 10041887356.
3. A livrança supra identificada foi subscrita pela subscrita pela sociedade E. Fortuna Lda., e avalizada por M…, J…, D… e Ma…, que nela apuseram a sua firma após a competente declaração de «Bom por aval ao subscritor» (Doc. 1), reconhecendo que pagaria à aqui Exequente o valor nele aposto.
4. Ora, vencida a Livrança junta como Doc. 1, a mesma não foi paga na data do respectivo vencimento, nem posteriormente, não obstante as diligências efectuadas nesse sentido pela exequente.”.
5. Os opoentes/executados subscreveram e assinaram documento que devolveram à exequente, onde consta assinaladamente o seguinte:
“Assunto: Cartão caixaworks: entrega de livrança em branco
Contrato nº 10041887356
Exm.os Senhores
Tal como solicitado, em complemento do contrato de atribuição e utilização do cartão em título, vimos pela presente carta proposta entregar à Caixa Geral de Depósitos S.A. (CGD) uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada, por nós subscrita e avalizada pelos avalistas abaixo assinados destinada a garantir e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes da utilização do referido cartão e de acordo com as respectivas Condições Gerais de Utilização. Pela presente carta, ainda, autorizamos a CGD a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CGD, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte: a) a data de vencimento será fixada pela CGD quando, em caso de incumprimento das obrigações assumidas, a CGD decida preencher a livrança; b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes da utilização do cartão, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e quaisquer encargos, incluindo os fiscais relativos à própria livrança; c) A CGD poderá inserir cláusula “sem protesto” e definir o local de pagamento. A livrança não constitui novação de crédito, pelo que se mantém as respectivas condições, incluindo as garantias. Em anexo: LIVRANÇA EM BRANCO (…) Cova da Piedade, 02 de Junho de 2009”.
6. A execução de que os presentes autos são apensos foi instaurada em 27.03.2019.
7. A sociedade E. Fortuna Lda. foi declarada insolvente por sentença datada de 31.05.2013 no âmbito do proc. nº 431/13.6TYLSB que correu termos no 4º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa.
8. A insolvente apresentou proposta de plano de insolvência o qual foi homologado por sentença de 20.05.2014, sem a participação da exequente.
9. Por cartas datadas de 05.02.2019 registadas e com A/R enviadas pela exequente aos opoentes/executados e que estes receberam, aquela considerou o contrato de atribuição e utilização do cartão Caixaworks, celebrado em 18.06.2009 com a insolvente, incumprido declarando ainda que “De acordo com o estabelecido no pacto de preenchimento da livrança em branco datada de 02/06/2009, que se encontra em poder desta Caixa devidamente assinado por V. Exa, havendo incumprimento de qualquer das obrigações garantidas, são consideradas vencidas todas as restantes, sendo exigível o pagamento da totalidade do nosso crédito. Desta forma, e nos termos contratados, consideramos vencida nesta data a totalidade do nosso crédito e fixámos para o dia 04.02.2019 o vencimento da livrança em branco subscrita pela E. Fortuna e avalizada por V. Exa. M…, J… e Ma… que preenchemos pelo valor de € 178 058,97 euros correspondente ao valor total do crédito na data de vencimento fixado, a que acrescem juros de mora e legais acréscimos, até integral pagamento. Solicitamos que proceda à sua liquidação no prazo de 5 dias a contar da receção da presente carta, sob pena de adequado procedimento judicial para cobrança do crédito (…)”.

III- DO CONHECIMENTO DO RECURSO
Identificadas as questões decidendas, passemos à sua análise.

1. Da omissão de pronúncia sobre a inconstitucionalidade do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE

Nas conclusões XIV até final, os apelantes vêm alegar que o tribunal a quo não se pronunciou sobre a invocada inconstitucionalidade do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE por violação dos princípios da proporcionalidade e da segurança jurídica e, ainda, do artigo 32.º da LULL.
No corpo da alegação, os apelantes reconduzem esta alegação à nulidade da decisão, enquadrando-a no artigo 615.º, alíneas b) e d), do CPC.
Na concretização da alegação dizem que, em relação à alínea b), que o desrespeito por este comando, viola o imperativo constitucional do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, bem como o artigo 607.º, n.º 3, do CPC.
Em relação à alínea d), correlacionando-a com o disposto no artigo 608.º, n.º 2 do CPC, alegam que o tribunal recorrido limitou-se a explicitar o regime jurídico emergente do referido n.º 4 do artigo 217.º do CIRE, e não a sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade, porquanto apenas referiu: «(…) não seria razoável que o credor ficasse inibido de accionar os respectivos avalistas, que não são insolventes, nem se encontram impossibilitados de cumprir as obrigações que livremente assumiram, face à autonomia da obrigação do aval que prestaram. Com efeito, o credor do insolvente, ao votar favoravelmente um plano de insolvência, fá-lo apenas em relação ao insolvente. Os garantes estão fora do âmbito da insolvência e do que nesta se delibera.»

Cumpre apreciar:
As nulidades da sentença encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do n.º 1 do referido artigo 615.º, do CPC e correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida.
Assim, excetuando a falta de assinatura do juiz [alínea a), do n.º 1, do artigo 615º], as alíneas b) a e) do preceito reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença.
«Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) [falta de fundamentação] e c) [oposição entre os fundamentos e a decisão e ocorrência de ambiguidades, obscuridades que tornem a decisão ininteligível]. Respeitam aos seus limites os das alíneas d) [omissão ou excesso de pronúncia] e e) [pronúncia ultra petitum][1]
A falta de fundamentação a que alude o n.º 1, alínea b) do artigo 615.º, do CPC, está em consonância com o dever de fundamentação as decisões, consagrado na CRP e na lei ordinária (artigo 205.º, n.º 1, da CPR, artigos 154.º, n.º 1 e 607.º, n.º 4, do CPC).
Porém, como tem sido entendido de forma consensual, a arguida nulidade só ocorre quando a falta de fundamentação for absoluta, o que não se verifica quando haja insuficiente ou errada fundamentação de facto e/ou de direito, vícios para os quais a lei tem remédios diversos que não passam pela declaração de nulidade do decidido (cfr., assim, artigos 639.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), 640.º e 662.º, n.º 1 e 2, alíneas c) e d), todos do CPC).

No caso em apreciação, a sentença elenca os factos provados decorrentes do requerimento executivo e convoca o regime legal que julgou aplicável, pelo que não existe falta total e absoluta de fundamentação, seja de facto, seja de direito.
Coisa diversa é saber se ocorreu erro de julgamento quanto à matéria de facto, que deve ser analisado em sede de impugnação da decisão de facto (que os apelantes não impugnaram), ou erro de julgamento quanto à aplicação do direito aos factos, a analisar em termos de apreciação do mérito do decidido.
Em suma, em face do modo como o tribunal a quo fundamentou a decisão de facto e direito, e considerando a fundamentação da arguição da nulidade da sentença, não se verifica a nulidade prevista na alínea b) do artigo 615.º do CPC, pelo que improcede este segmento do recurso.

Quanto à nulidade prevista na alínea d) do artigo 615.º do CPC, na vertente da omissão de pronúncia (aquela que os apelantes invocam, atento o modo como fundamentam a arguição), está diretamente relacionada com o comando do artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões[2]) alegadas relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor e da reconvenção e/ou das exceções invocadas na defesa[3].
Estando em causa uma oposição à execução mediante embargos, como é o caso, essas questões reportam-se aos fundamentos da oposição previstos no artigo 728.º e seguintes, do CPC.

No caso, a questão que os embargantes suscitaram foi a da inconstitucionalidade do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, alegando, em suma, que, prevendo este preceito que o plano de insolvência introduza alterações nos créditos reclamados pela exequente, as ditas alterações correspondem a novação das obrigações dos avalistas (embargantes), pelo que, sendo estes responsáveis da mesma maneira que a pessoa por eles afiançada, como decorre do artigo 32.º da LULL, então a alteração sobre o montante dos direitos da credora contra os garantes da obrigação também deve ter-se como modificada, pelo que o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, deve ser interpretado nesses exatos termos, sob pena de violação dos princípios da proporcionalidade e da segurança.

Na apreciação deste fundamento dos embargos, a decisão recorrida discordou da interpretação defendida pelos embargantes, com as seguintes premissas:
- Da previsão do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, resulta que as providências previstas no plano de insolvência com incidência sobre o passivo do devedor não afetam a existência, nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os terreiros garantes, sem prejuízo de estes poderem agir contra o devedor em via de regresso;
- As caraterísticas do aval, como decorre dos artigos 32.º e 47.º da LULL, consistem na autonomia, independência, literalidade e abstração da obrigação cambiária, pelo que o avalista apenas se obriga pelo pagamento da quantia aposta no título cambiário e não pela obrigação constituída pelo avalizado (obrigação subjacente), donde as vicissitudes da relação subjacente, exceto os vícios de forma e o pagamento, não se repercutem na relação jurídica cambiária;
- A autonomia da obrigação do avalista está conforme e harmoniza-se perfeitamente com a previsão do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, não resultando violada a CRP, como já foi decidido em jurisprudência que transcreveu.

Em face destas premissas, concluiu a decisão recorrida:
«Deste modo, tem de se concluir o seguinte: Sendo a obrigação cambiária do avalista abstracta, apenas formalmente ligada à do avalizado em que se apoia – nisso se esgotando a sua característica acessoriedade – mas material ou substancialmente desvinculada, autónoma e independente, a ponto de ela se manter, ainda que a obrigação garantida seja nula por qualquer razão (salvo vício de forma), implicando uma responsabilidade, directa e pessoal, distinta da daquele, que não contempla sequer oposição, pelo avalista, das excepções pessoais do avalizado em relação ao portador do título, compreende-se a coerência com o regime adoptado no nº 4 do artº 217º, do CIRE.»

A conclusão alcançada após o percurso jurídico-analítico espelhado na decisão recorrida, evidencia que o tribunal a quo se pronunciou no sentido da inexistência de qualquer contradição entre o regime do CIRE (artigo 217.º, n.º 4) e da LULL (artigo 32.º), suscetível de ser reconduzida a qualquer violação da CRP.
Donde não se pode concluir, contrariamente ao defendido pelos apelantes, que a decisão em recurso incorreu em omissão de pronúncia no que concerne à alegada inconstitucionalidade do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE.
Nestes termos, não se verifica a nulidade prevista na alínea d) do artigo 615.º do CPC, pelo que também improcede a alegação de nulidade com este fundamento.

2. Da prescrição da obrigação dos avalistas
2.1. Os apelantes nas conclusões I a XIII alegam a existência de erro de julgamento por defenderem que se verifica a prescrição da obrigação cambiária.
Em termos sintéticos, podemos identificar na alegação dos recorrentes, os seguintes fundamentos:
(i) Por força do artigo 91.º do CIRE, com a declaração de insolvência da subscritora da livrança (E. Fortuna, Lda) por sentença de 11-06-2013, venceram-se todos os créditos nesta data, ocorrendo uma situação de incumprimento por parte de todos os obrigados (subscritora da livrança e avalistas);
(ii) A interpretação do pacto de preenchimento da livrança em branco deve atender ao conteúdo do acordo mas também ao interesse atendível do devedor (avalistas), pelo que a portadora da livrança (exequente) encontrava-se vinculada («imperativamente») a preencher a livrança fazendo coincidir a data do vencimento com a data do incumprimento, no caso, seria a data da declaração de insolvência (11-06-2013) ou, quanto muito, a data correspondente ao prazo máximo de três anos após o vencimento (11-06-2016), sob pena de incorrer em preenchimento abusivo nos termos do artigo 10.º da LULL, daí decorrendo a prescrição do direito cambiário;
(iii) Tendo a execução sido intentada em 27-03-2019, foi-o depois do prazo de três anos previsto no artigo 70.º da LULL, encontrando-se tal direito prescrito, daí decorrendo a inexistência de título executivo (artigo 729.º, alínea a), do CPC);
(iv) A modificação dos créditos em sede de plano de insolvência corresponde a uma novação das obrigações que igualmente afetam os garantes/avalistas por aplicação do artigo 32.º da LULL;
(v) O artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, quando não seja interpretado em consonância com o referido em (iv) é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade e da segurança jurídica.

Importa, pois, começar por analisar estas subquestões em ordem a concluir, a final, se se verifica a alegada prescrição do direito de acionamento os avalistas com base na relação cambiária.

2.2. No que concerne ao vencimento da obrigação cambiária, começa-se por referir que o prazo de prescrição da obrigação cambiária decorre da remissão do artigo 77.º da LULL para os artigos 70.º e 71.º da mesma convenção, ao estipular que são aplicáveis às livranças estes preceitos, ou seja, como previsto no artigo 70.º, 1.º parágrafo, todas as ações contra o avalista do aceitante prescrevem em três anos a contar do seu vencimento .
Estando em causa uma livrança em branco (admissível ao abrigo do artigo 10.º da LULL, como é entendimento consensual), a prescritibilidade da obrigação cambiária depende do seu vencimento, que há-de decorrer desde o dia do vencimento aposto pelo portador e desde que não haja violação do respetivo pacto de preenchimento, caso o mesmo exista.
Trata-se igualmente de entendimento consensual na doutrina e jurisprudência e que nos escusa de tecer maiores considerações sobre esta questão.
Por outro lado, também não é controvertido que, no caso, existe um pacto de preenchimento e que os avalistas participaram no mesmo (cfr. facto provado sob o ponto 5).
Existindo pacto de preenchimento, tendo os avalistas outorgado o mesmo (configurando-se, assim, uma relação tripartida, entre o portador, o subscritor/aceitante e o avalista), encontrando-se o título nas relações imediatas (sem entrar em circulação, como sucede no caso em apreço) é reconhecida ao avalista legitimidade para efeitos de arguição da exceção de preenchimento abusivo, impendendo sobre o mesmo o ónus de prova que fundamenta a alegada exceção material contra o portador do título, atento o disposto nos artigos 342.º, n.º 2, 378.º do Código Civil e 576.º, n.º 3, do CPC.
Ou seja, para além do vício de forma aludido no artigo 32.º, 2.º parágrafo, da LULL, e do pagamento (como admitido pela doutrina e jurisprudência), também podem os avalistas opor ao portador da livrança o preenchimento abusivo por violação do pacto de preenchimento, provando que ocorreu violação do acordado.[4]

2.2. No que concerne ao momento em que ocorre o vencimento da obrigação cambiária – questão nuclear no âmbito deste recurso – já acima se referiu que tratando-se de uma livrança em branco, a data do vencimento é aquela que é aposta pelo portador da livrança.
A questão, porém, que o recurso coloca é se declarada a insolvência do subscritor de uma livrança em branco, o portador tem de apor na mesma como data de vencimento a data em que foi declarada a insolvência do subscritor e, se havendo pacto de preenchimento, subscrito igualmente pelos avalistas, o portador da livrança pode preencher a mesma com a data de vencimento que entender enquanto não decorrer o prazo de prescrição da obrigação causal.

A questão suscita duas ordens de considerações: em primeiro lugar, saber se existem normas específicas que regulem esta situação; em segundo lugar, analisar e interpretar o pacto de preenchimento.
Quanto à primeira vertente, há que atentar no disposto nos artigos 43.º, 3, e 44.º, último parágrafo, da LULL (ex vi do artigo 77.º da LULL) e no disposto no artigo 91.º, n.º 1, do CIRE.
Dos citados preceitos da LULL emerge que a situação de insolvência do emitente/subscritor/sacador da livrança, mormente da respetiva declaração de insolvência, faculta ao portador da livrança o direito de exercer o seu direito de ação, incluindo contra os avalistas, mesmo antes do vencimento da obrigação cambiária.
Por sua vez, do regime do CIRE decorre que «A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas ou sujeitas a uma condição suspensiva.»
Da conjugação dos dois regimes é lícito concluir que, mesmo nos casos em que a obrigação do devedor não se encontrava vencida à data em que é declarado insolvente, por força da declaração de insolvência vence-se aquela obrigação.
Resta saber se em relação à obrigação cambiária emergente da subscrição de uma livrança em branco, relação autónoma em relação à relação subjacente, atenta as características deste tipo de relação (autonomia, literalidade e abstração) se pode concluir que o portador da livrança se encontra obrigado a apor na mesma a data de vencimento como correspondendo à data da declaração de insolvência independentemente do que tiver sido acordado no pacto de preenchimento.
O que nos leva à segunda vertente da questão.

2.3. No caso, existe esse pacto de preenchimento e do mesmo resulta que as partes, incluindo os avalistas, acordaram: «a) A data de vencimento será fixada pela CGD quando, em caso de incumprimento das obrigações assumidas, a CGD decida preencher a livrança;».
As partes não questionam a validade e eficácia desta cláusula.
Os apelantes defendem, contudo, que a mesma deve ser interpretada no sentido de não conceder à portadora da livrança um faculdade de preenchimento, livremente exercida, mas antes uma obrigação (mencionam o termo «imperatividade») quanto ao tempo de preenchimento atendendo ao interesse do devedor, no sentido de limitar no tempo a sua responsabilidade, o que apenas se alcança fazendo coincidir a data do vencimento com a data da resolução do contrato por incumprimento, e de qualquer modo, nunca excedendo o prazo de três anos após este último momento.
Invocam a jurisprudência plasmada no acórdão do STJ de 30-04-2002[5] em abono da sua tese e, na doutrina, a posição de CAROLINA CUNHA, Manual de Letras e Livranças, 2016, p. 206.

O acórdão referenciado não se reporta a uma situação de vencimento da obrigação por força da declaração de insolvência, situando-se, antes, a controvérsia nele dirimida numa situação de incumprimento contratual e na interpretação das cláusulas do pacto de preenchimento onde ficou plasmada a vontade das partes quanto ao momento do preenchimento do título cambiário (no caso, uma letra). É nesse contexto de interpretação das declarações negociais que no acórdão se fala de «imperatividade» da vontade das partes e na procura da melhor interpretação que satisfaça o «interesse atendível» do devedor.
A jurisprudência ali firmada a ser transposta para o caso dos autos – obviamente diferente porque o vencimento aqui é ficcionado por força da lei e a cláusula do pacto de preenchido não tem o mesmo teor – sempre teria de o ser com as devidas cautelas e dificilmente se poderia concluir de forma perentória, como defendem os apelantes, que o preenchimento de uma livrança em branco tem de «imperativamente» revelar coincidência entre a data do vencimento e a data da declaração de insolvência por esta corresponder à data da resolução do contrato por incumprimento.
Desde logo, porque a razão de ser do vencimento antecipado e automático da obrigação por força da declaração de insolvência colhe a sua razão de ser no princípio «par conditio creditorum» ou princípio da igualdade entre credores (apenas excecionado quando existam diferenciações justificadas por razões objetivas), caraterístico do processo de insolvência, ou seja, após a declaração de insolvência, dada a natureza universal deste processo, todos os credores têm de ali reclamar os seu créditos, sob pena de a satisfação dos mesmos se encontrar prejudicada, o que impõe que todos estejam em situação de igualdade, mesmo quando o crédito ainda não se encontrava vencido (cfr. artigos 1.º, 90.º e 194.º, n.º 1, do CIRE).

O vencimento antecipado das obrigações do devedor, como refere SOVERAL MARTINS[6], permitido pelo artigo 91.º, n.º 1, do CIRE, ocorre sem necessidade de interpelação, conseguindo-se com este regime uma relativa estabilização do passivo, permitindo mais facilmente avaliar a situação do devedor e tomar decisões quanto aos procedimentos a adotar em termos falimentares. Sendo que o vencimento antecipado evita o benefício do credor de receber juros superiores, regulando o demais estabelecido do preceito o denominado «interusurium», fazendo-se o cômputo dos juros em função da data de declaração de insolvência e a data da exigibilidade da obrigação.[7]

No que concerne à doutrina aludida, subscrita por C…, efetivamente esta autora vem defender que, apesar de não ter sido estipulado um prazo fixo para o preenchimento da livrança, «(…) não significa que não possa extrair-se, por via interpretativa, uma limitação temporal: seguramente que não correspondia à vontade das partes, reconstituída com as ferramentas objectivistas proporcionadas pelo nosso ordenamento jurídico e integrada, se necessário, com auxílio correctivo da boa-fé (art. 239º CCiv), que o credor pudesse preencher e accionar o título cinco, dez ou mesmo doze anos depois da verificação do facto que legitimava esse comportamento. »[8]
Acrescentando, ainda, a mesma autora que da discrepância entre o prazo de prescrição ordinária (máximo de 20 anos – artigo 309.º do Código Civil) e a prescrição cambiária (3 anos para o aceitante/subscritor e o seu avalista – artigo 70.º da LULL), «(…) exprime uma valoração legislativa: a exigência de que o credor cambiário exerça rapidamente o seu direito. “Se o credor, pela sua inércia, deixar esgotar tais prazos, o direito cambiário extinguiu-se [por prescrição] – sem embargo, naturalmente, de continuar a poder exercer o direito de crédito emergente da relação fundamental.»[9]
Embora reconheça que, se é «(…) verdade que o credor não está propriamente obrigado a preencher o título nesse exacto momento [momento da ocorrência do incumprimento e eventual resolução do contrato subjacente], a verdade é que impende sobre si o ónus de o fazer com alguma brevidade, sob pena de, decorridos (no máximo) três anos sobre esse instante perder definitivamente a possibilidade de exercitar o direito cambiário contra o obrigado principal. (…)
Se persistir em preencher e/ou accionar o título para lá desse limite temporal, ou em indicar uma data de vencimento posterior a ele, incorre em preenchimento abusivo e culposo nos termos do art. 10º LU e, por referência, à data de vencimento correcta, o direito cambiário deve considerar-se prescrito.»[10]

Porém, trata-se de uma interpretação de jure condendo/constituendo e não de jure condito/constituto, o que sendo admissível em termos de discussão doutrinária de pendor mais teórico, esbarra com dificuldades na aplicação casuística, carecida de ser decidida à luz do regime vigente aplicável aos institutos jurídicos em aplicação, do pactuado entre as partes e do que as mesmas (obrigado, credor e avalistas quando estes também tiveram intervenção no pacto de preenchimento) podiam objetivamente deduzir e interpretar a partir do acordado, evidenciado em termos interpretativos à luz dos artigo 236.º e 239.º do Código Civil.

A questão que se coloca é precisamente a da interpretação da vontade das partes palsamada no pacto de preenchimento, podendo ocorrer que o vencimento ocorra por força da declaração de insolvência, como sucede no caso dos autos, ou pelo incumprimento contratual.
A questão do vencimento por força da declaração de insolvência e preenchimento da livrança em branco, em situação muito semelhante à dos presentes autos, foi analisada e decidida pelo STJ, no acórdão proferido em 16-09-2019, que confirmou o acórdão da Relação do Porto proferido no mesmo processo e que conclui no sentido de «I- Numa livrança em branco, o prazo de prescrição de três anos previsto no artigo 70º ex vi do artigo 77º da LULL, conta-se a partir da data do vencimento que venha a ser aposta no título pelo respectivo portador, quer essa data coincida ou não com o incumprimento do contrato subjacente ou com o vencimento da obrigação subjacente, nomeadamente quando esse vencimento decorre da insolvência do subscritor, em conformidade com o preceituado no artigo 91.º, n.º 1, do CIRE.»[11]
Igual conclusão foi alcançada noutros arestos em que estava em causa o vencimento da obrigação causal por incumprimento (e não pela declaração de insolvência), com base na constatação da inexistência de uma limitação temporal ao preenchimento da letra ou livrança emitida em branco, lendo-se, sugestivamente, no Acórdão da Relação de Coimbra de 14-12-2020[12] o seguinte:
«Nesta matéria é indiscutido que o nosso legislador não consagrou, ao contrário do que sucede noutros ordenamentos jurídicos, um limite temporal a esse preenchimento.
E a jurisprudência nacional, depois de numa primeira fase ter perfilhado o entendimento de que a ausência de previsão legal quanto a tal limitação implicava a estrita validade da data de vencimento que o portador viesse a incluir no título, tem vindo a entender, de forma unânime, que o prazo prescricional previsto no art.º 70º da LULL corre a partir do dia do vencimento inscrito pelo portador desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento, sendo que o preenchimento da data de vencimento não pode prescindir do que foi pactuado entre as partes e do que ambas podiam objectivamente deduzir ou interpretar a partir do assim pactuado, o que há-de resultar da aplicação ao pacto outorgado das regras de interpretação previstas no art.º 236º do CC.
A questão de saber se o início de contagem do prazo de prescrição de três anos, previsto no art.º 70º, 1º parágrafo, ex vi do art.º 77º da LULL, se afere em função da data de vencimento inscrita na livrança ou com base no vencimento da obrigação causal, tem sido respondida em sentido afirmativo da primeira proposição pela jurisprudência reiterada dos Tribunais Superiores, não havendo razões justificativas para nos afastarmos desta orientação consolidada.»

Também foi esse o sentido acolhido no aresto do STJ proferido em 19-06-2019, supra citado, e em muitos outros, mencionando-se exemplificativamente, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 19-04-2012[13], Acórdãos da Relação do Porto de 19-01-2015[14] e de 24-03-2015[15], este último confirmado pelo Acórdão do STJ, de 20-10-2015[16].

Não vemos razão para discordar da jurisprudência assim firmada, impondo-se, então, a interpretação do pacto de preenchimento, pois é este acordo que confere força e eficácia cambiária ao título em branco, sendo essa a base da reconstituição da vontade das partes.
Na verdade, o pacto de preenchimento é o ato pelo qual as partes no negócio cambiário ajustam os termos ou as condições em que deve vir a ser posteriormente completado o título de crédito, definindo a obrigação cambiária, ou seja as condições relativas ao seu conteúdo, como seja o montante, o vencimento, o lugar de pagamento, etc..

No caso em apreço, decorre do pacto de preenchimento que a portadora do título, ora apelada, foi autorizada pelos avalistas a «(…) preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CGD, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte: a) a data de vencimento será fixada pela CGD quando, em caso de incumprimento das obrigações assumidas, a CGD decida preencher a livrança;».
Ora, um declaratário normal que se pauta por ditames de razoabilidade e de boa-fé, medianamente informado e diligente, como é tido o declaratário real a que alude o artigo 236.º do Código Civil, que consagra a teoria da impressão do destinatário, em face do teor desta cláusula contida no pacto de preenchimento, entenderia que o vencimento da livrança ocorria após o incumprimento da subscritora da livrança e que este era uma condição necessária para o preenchimento da livrança; porém, não determinante para o preenchimento, pois o mesmo apenas ocorreria quando se mostrasse necessário para o acionamento do título tendo em vista a satisfação coativa do respetivo crédito. Ou seja, verificado o incumprimento da relação subjacente o portador da livrança podia, mas não estava obrigado a preencher a livrança.
Afigurando-se-nos que igual raciocínio seria facilmente transposto para a situação de insolvência da devedora e subscritora da livrança atento o vencimento (antecipado, sendo esse o caso) da obrigação.
Donde decorre, que a obrigatoriedade (ou imperatividade, na terminologia dos apelantes) de preenchimento da livrança na data do vencimento da obrigação subjacente por força da declaração de insolvência da emitente da livrança (E. Fortuna, Lda), ou, ainda, no prazo máximo de três anos após essa declaração de insolvência, não encontra apoio na declaração contida no pacto de preenchimento, interpretado segundo as regras do artigo 236.º e 238.º do Código Civil.
Ou seja, a livrança não se encontrava prescrita à data em que foi preenchida e nela aposta a data do vencimento, porquanto a ora apelada não se encontrava obrigada a apor na mesma a data da declaração de insolvência ou a data posterior aos três anos seguintes àquela declaração.

A sentença recorrida também concluiu pela não verificação da prescrição, embora não se acompanhe o raciocínio ali vertido quanto ao vencimento da obrigação se verificar não com a declaração de insolvência, mas apenas com a interpelação dos avalistas para pagamento.
Como decorre do que vem sendo dito, a declaração de insolvência da subscritora da livrança em branco e avalizada determina o vencimento antecipado da obrigação subjacente, permitindo ao credor reclamar no processo de insolvência o seu crédito, como também lhe permite exigir, desde logo, a respetiva obrigação cambiária, procedendo, ao preenchimento do título para tal fim, apondo-lhe a data de vencimento correspondente à da declaração de insolvência, podendo, assim, exigir dos avalistas o valor em débito, sem prejuízo de reclamar na insolvência o referido crédito, ainda abatendo o valor em débito eventualmente recebido.
Porém, não se encontra obrigado a preencher a livrança com essa data ou com outra compatível com o prazo prescricional, considerando que a lei não impõe uma limitação temporal para o preenchimento da livrança em branco e, por outro, porque do pacto de preenchimento também subscrito pelos avalistas resulta que compete à portadora da livrança preenchê-la quanto à data de vencimento de acordo com o melhor juízo que faça sobre quando pretende exercer coativamente o seu direito contra os avalistas.
Nem se diga que tal juízo de oportunidade por parte da portadora do título traduz uma situação de abuso de direito subsumível ao artigo 334.º do Código Civil (de resto, não invocado pelos apelantes), porquanto o mero decurso do prazo, sem mais, não permite ao devedor invocar uma legítima confiança na renúncia por parte do credor ao exercício dos direitos que lhe assistem, como tem sido consistentemente defendido pela jurisprudência.
Lendo-se a este propósito no sumário do Acórdão do STJ, de 19-10-2017[17] o seguinte:
«V. O simples decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é suscetível de, sem mais, criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende.
VI. O preenchimento de uma livrança, entregue em branco ao credor quanto ao montante e data de vencimento, decorridos mais de doze anos sobre a data da constituição da obrigação e mais de sete anos sobre a declaração de insolvência da sociedade subscritora da livrança, e a instauração da ação executiva contra a avalista desta sociedade, só por si, não consubstanciam fundamento bastante para o reconhecimento do abuso de direito previsto no artigo 334º do Código Civil, na modalidade de "venire contra factum proprium".»
Tal conclusão baseia-se no seguinte: «(…) enquanto a livrança não for preenchida e nela inserida a data de vencimento, não começa o prazo de prescrição da obrigação cambiária referido no artº 70º, ex vi do artº 77º, ambos da LULL, o qual conta-se a partir da data constante do título como sendo a do seu vencimento, porquanto só com a aposição do montante titulado e da data de vencimento é que a subscritora e seus avalistas passam a ser considerados como devedores perante o portador da livrança.»

Chegados a este ponto da análise, impõe-se a seguinte conclusão: tendo a livrança sido preenchida com data da vencimento em 04-02-2019, o prazo prescricional só se completaria em 04-02-2022, pelo que tendo a execução sido instaurada em 06-04-2019, ainda não tinha decorrido o prazo de três anos, pelo que não se verificava a prescrição da obrigação cambiária.

2.3. Alegam, porém, os apelantes que a modificação do crédito em sede de plano de insolvência corresponde a uma novação das obrigações que igualmente afetam os garantes/avalistas por aplicação do artigo 32.º da LULL.
A novação da obrigação corresponde a uma causa de extintiva da obrigação, consistindo no acordo pelo qual as partes extinguem uma obrigação entre elas existente, substituindo-a por uma nova obrigação (artigo 857.º do Código Civil). A novação, como estipula o artigo 859.º do Código Civil tem de ser expressamente manifestada.
Em sede de insolvência, com a sentença homologatória do plano de insolvência, produzem-se as alterações dos créditos sobre a insolvência, as quais abrangem todos os créditos, independentemente de tais créditos terem sido, ou não, reclamados ou verificados (artigo 127.º, n.º 1, do CIRE). E vincula todos os credores tenham ou não votado favoravelmente o plano de insolvência que venha a ser aprovado e homologado de acordo com os quóruns previstos na lei (artigos 212.º do CIRE).
Por outro lado, só afeta a esfera jurídica de terceiros que expressamente tal autorizem ou consintam (artigo 192.º, n.º 2, do CIRE). Daí que, nos termos do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, tenha sido estabelecido o princípio que as providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação.
Em relação ao devedor principal, o plano de insolvência pode implicar moratórias ou perdão, conferindo-lhe a sentença homologatória eficácia (artigos 196.º, n.º 1, alíneas a) a e), e 217.º, n.º 1 e 2, do CIRE). [18]
Porém, a novação da obrigação apenas existe se do mesmo plano constar expressamente uma cláusula de irreversibilidade da moratória ou do perdão concedido no plano (artigo 218.º, n.º 1, a contrario, do CIRE). Ou seja, tal como no regime estritamente civilista, também em sede de insolvência, a existência de uma nova obrigação substitutiva da anterior exige autorização ou consentimento das partes, expressamente inserida no plano de insolvência, sob pena de a modificação ficar sem efeito (cfr. artigo 218.º, n.º 1, proémio, do CIRE).
Assim, caso exista uma verdadeira novação só pelo meio previsto no artigo 233.º, n.º 1, alínea c), do CIRE, com o novo título executivo constituído pela sentença homologatório do plano dotado de cláusula de irreversibilidade poderão os credores intentar uma nova ação executiva contra o devedor subscritor e insolvente.
No caso de inexistir cláusula de irreversibilidade do perdão e da moratória, os credores poderão renovar as instâncias executivas verificado os pressupostos do artigo 218.º, n.º 1, alíneas a) ou b), do CIRE, ou então instaurar execução contra o subscritor dando à execução o título executivo constituído pelos contratos celebrados entre o subscritor insolvente e o devedor.

No caso em apreço, competia aos ora apelantes demonstrar que foi aposta no plano de insolvência uma cláusula de irreversibilidade em ordem a concluir que ocorreu uma novação da obrigação da devedora (artigo 342.º, n.º 2, do Código CIVIL), o que não lograram fazer, desde logo, porque nem tal alegaram.
Donde a conclusão que retiram quanto à verificação de novação da obrigação da devedora declarada insolvente não tem qualquer demonstração nos autos.

2.4. Mas, independentemente, da falta de demonstração da novação da obrigação subjacente, a verdade é que para efeitos de demanda dos avalistas, a questão é perfeitamente inócua, porquanto a responsabilidade dos ora apelantes radica na subscrição dos avales e não da obrigação causal aos mesmos.
E de acordo com o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, conjugado com o regime do aval e com o disposto no artigo 32.º da LULL, o credor tem o direito de exigir dos avalistas a prestação coativa com base no acionamento da relação cambiária, independentemente da modificação da obrigação subjacente ocorrida no plano de insolvência.
Cabe, agora, concretizar esta asserção do seguinte modo:
O artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, estipula do seguinte modo:
«As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.»
O escopo do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, consiste, essencialmente, na obtenção da aprovação de um plano de insolvência de forma a compatibilizar os interesses dos credores e do devedor, mantendo o credor, independentemente da posição que adote quanto à votação do plano, incólume os direitos que dispunha contra os codevedores e terceiros garantes podendo deles tudo exigir em conformidade como regime obrigacional que resulta das obrigações assumidas e das garantias que prestaram.
O que nos remete para a questão do regime jurídico da garantia em causa nestes autos, ou seja, o aval da obrigação cartular titulada por livrança.
A livrança é um título de crédito à ordem cujo conteúdo envolve, além do mais, a promessa pura e simples por uma pessoa de pagar a outra determinada quantia (artigo 75.º da LULL).
Pela aposição da assinatura na livrança, o subscritor, emitente desta, obriga-se a pagá-la na data do vencimento, responsabilizando-se da mesma forma que o aceitante de uma letra (artigo 78.º da LULL), ou seja, obriga-se a pagar como obrigado principal na época de vencimento.
Como prescreve o artigo 77.º da LULL são aplicáveis às livranças as disposições relativas ao aval prescritas nos artigos 30.º a 32.º da LULL.
O aval, nos termos do artigo 30.º da LULL, é o ato pelo qual um terceiro ou um signatário da letra ou de uma livrança garante o pagamento desse título, por parte de um dos respetivos subscritores.
A função do aval é uma função de garantia (pessoal) das obrigações cartulares, inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la ou caucioná-la, sendo o dador de aval, nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da LULL, responsável da mesma maneira que a pessoa por ele avalizada, o que significa que a medida da responsabilidade do avalista é a do avalizado.
Ou seja, a sua obrigação tem a mesma extensão e conteúdo que a do avalizado.
Porém, o aval é um garantia dada pelo avalista à obrigação cambiária e não em relação à obrigação extracartular ou subjacente, ou seja, a obrigação do avalista adquire a tipicidade das obrigações cambiárias (abstração, autonomia e literalidade).
O aval é irrevogável e não pode estar sujeito a condição, respondendo o avalista por uma obrigação autónoma, própria, direta e pessoal, não com o avalizado, mas perante o credor cambiário, pelo pagamento do título. O avalista garante que o título será pago e não que o avalizado o pagará. Daí que o avalista assuma igual responsabilidade cambiária de igual grau que a do avalizado.
Consequentemente, a obrigação do avalista subsiste independentemente da obrigação do avalizado, como resulta do artigo 32.º da LULL, ao estatuir que: «O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma»
Para além do vício de forma e das questões relacionadas com o pacto de preenchimento quando o avalista nele tenha tido intervenção, como já antes assinalámos, apenas o avalista pode opor ao portador a exceção de pagamento, nada mais que se reporte a exceções passíveis de serem opostas pelo devedor principal ao respetivo credor.
Assim, «(…) a responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado. Trata-se de uma responsabilidade solidária. O avalista não goza do benefício da excussão prévia, mas responde pelo pagamento da letra solidariamente com os demais subscritores (art. 47º, I). Além de não ser subsidiária, a obrigação do avalista não é, senão imperfeitamente, uma obrigação acessória relativamente à do avalizado. Trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da última quanto ao aspecto formal. De facto, a lei estabelece o princípio de que a obrigação do avalista se mantém, ainda que a obrigação garantida seja nula.»[19]
Como se consignou no corpo do AUJ n.º 4/2013, proferido em 11-12-2012[20] «(…) o avalista não se obriga perante o avalizado mas sim perante o titular da letra ou livrança, constituindo uma obrigação autónoma e independente respondendo, como obrigado cartular, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança», acrescentando-se de seguida, «A circunstância de a relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência na relação cambiária. A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhado as eventuais transformações temporais e/ou qualidades da obrigação causal», para concluir que a funcionalidade e a estrutura do aval «não são passíveis de ser redutíveis a relações contratuais ou de concertação de vontades» e sendo uma figura jurídico-comercial distinta de outras garantias pessoais, mormente da fiança, o aval «não pode ser reconvertível a um contrato consensualizado entre o avalista e qualquer dos demais obrigados cambiários (…).»
Por força do disposto nos artigos 43º a 48º da LULL., aplicável ex vi do artigo 77º do mesmo diploma, o portador pode exercer o seu direito de ação contra qualquer obrigado cambiário, reclamando o pagamento da livrança não paga, bem como juros, despesas de protesto, avisos dados e outras despesas.
Diz-se no artigo 47º do mesmo diploma que «Os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador».
Esta solidariedade é uma solidariedade imprópria posto que aqueles não se encontram vinculados nos termos em que o estão os devedores na solidariedade passiva (artigo 512.º e ss do Código Civil).
A solidariedade dos obrigados cambiários significa apenas que o portador do título pode exigir de qualquer dos responsáveis, individual ou coletivamente, a totalidade da letra ou de livrança, sendo o aceitante ou o subscritor o único obrigado direto, o devedor principal da prestação cambiária e, o sacador, endossante e respetivos avalistas são os obrigados indiretos.
É verdade que o avalista do subscritor da livrança responde perante o portador do título nos termos em que este responde, podendo ser acionado pelo portador, individualmente ou juntamente com os demais subscritores. Mas, como já referido, o avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado (obrigação subjacente), mas ao pagamento da quantia titulada no título de crédito (obrigação cartular), constituindo esta uma obrigação autónoma e independente daquela.
Ora, estas caraterísticas do regime jurídico do aval evidenciam que a obrigação do avalista é imune a alterações introduzidas por via contratual na estrutura da obrigação subjacente, ainda que até tenham sido aceites ou impostas pela regra das maiorias em sede de aprovação de um plano de insolvência.
A questão é mesmo de inoponibilidade desse acordo por parte do avalista ao portador do título cambiário. Nada mais, nem menos do que isso. Donde decorre que o credor do direito não se encontra limitado no direito de acionar de imediato o avalista desde que haja incumprimento do pagamento por parte do devedor principal e ainda que o mesmo se encontre abrangido por um plano insolvencial.
A larga maioria da jurisprudência tem alinhado neste sentido e tem sido essa a jurisprudência que o STJ tem vindo a aplicar noutros arestos, mormente no âmbito da oposição à execução instaurada pelo credor contra o avalista estando o devedor principal abrangido por um plano de insolvência.
Exemplificativamente:
- Acórdão do STJ, de 04-05-2017[21], com o seguinte sumário:
«I. O dador de aval de título cambiário é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.
II. O avalista não pode defender-se com as exceções próprias do avalizado, salvo quanto ao pagamento.
III. A exceção decorrente da aprovação do plano de recuperação da subscritora das livranças é inoponível ao portador das livranças.
(…).»

- Acórdão do STJ, de 26-02-2013[22], com o seguinte sumário:
«I. O aval é uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado.
II - O avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele e o avalizado.
III - A razão de ser do art. 32.º da LULL é constituir o aval um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma.
IV - A obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade provier de um vício de forma.
V - Por via dessa autonomia, o avalista não pode defender-se com as excepções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento.
VI - A aprovação de um plano de insolvência, com moratória para pagamento da dívida, de que beneficia a sociedade subscritora da livrança, não é invocável pelos avalistas contra quem é instaurada a execução para seu pagamento.»

Decorre da jurisprudência citada a conclusão inversa àquela que os apelantes defendem neste recurso, ou seja, o regime do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, encontra-se em plena e perfeita harmonia e sintonia com o regime do aval.
Não existe qualquer contradição. Sendo caraterística da circulação deste título de crédito, a autonomia da relação cambiária, sempre esta prevaleceria, não beneficiando, de todo, o avalista de quaisquer efeitos produzidos sobre a obrigação subjacente aprovados em sede de insolvência em relação ao terceiro portador do título, não lhe assistindo, assim, o direito de deduzir qualquer exceção causal e recusar o cumprimento que lhe seja exigido pelo portador do título.

2.5. Resta aferir da última questão suscitada pelos apelantes – da inconstitucionalidade do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE por violação do princípio da proporcionalidade, princípio da segurança e do artigo 32.º da LULL.
Em relação ao artigo 32.º da LULL já decorre do acima referido que não existe qualquer contradição ou oposição entre os dois regimes.
Os apelantes, salvo o devido respeito, vêm essa contradição porque incorrem em erro na interpretação do artigo 32.º da LULL ao confundirem a responsabilidade do devedor principal em relação à relação subjacente e a responsabilidade dos avalistas em relação à relação cartular.
Quando a lei menciona que «O dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada», como ensina FERRER CORREIA, «Significa, antes de tudo, que o avalista fica na situação do devedor cambiário perante aqueles subscritores em face dos quais o avalizado é responsável, e na mesma medida em que ele o seja», pois a «obrigação do avalista mede-se pela do avalizado»,[23] dado aval ter natureza de garantia, mas trata-se de uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado (e não à relação subjacente, da qual é materialmente autónoma).
O artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, tem como pressuposto precisamente esta caraterística da relação cartular, como acima ficou amplamente referido.
Consequentemente, na confrontação dos dois preceitos, não se descortina de que modo se pode equacionar a alegada inconstitucionalidade do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE.

No concernente à alegada inconstitucionalidade do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, por violação do princípio da proporcionalidade e da segurança jurídica, verifica-se que a alegação dos apelantes se centra na assunção de que os avalistas são responsáveis por pagamentos diferentes daqueles que o avalizado está obrigado.
O que, mais uma vez, denotam que confundem a responsabilidade do devedor principal resultante da relação subjacente e a sua responsabilidade em relação à relação cartular (que também subscreveu como emitente da livrança), bitola pela qual também os avalistas respondem. Ou seja, mais uma vez fazem tábua rasa das caraterísticas da relação cartular (autonomia, independência, literalidade e abstração).
Ora, o que decorre da obrigação cartular e porque a livrança incorpora uma promessa de pagamento de uma determinada quantia a prestar no seu vencimento pelo seu subscritor a favor do tomador ou do seu detentor legítimo, medindo-se a obrigação do avalista pela obrigação do avalizado, o avalista fica na situação de devedor cambiário perante aqueles subscritores em face dos quais o avalizado é responsável e na mesma medida em que ele o seja, tendo-se também presente que qualquer limitação de responsabilidade expressa por este no título aproveita àquele.
Por conseguinte, não descortinámos de que modo se pode equacionar uma violação do princípio da proporcionalidade e da segurança jurídica na interpretação normativa do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, que se encontra em perfeita sintonia com o regime do aval previsto no LULL, mormente no seu artigo 32.º.
De qualquer modo, e uma vez que os apelantes invocam a violação do princípio constitucional da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, e da segurança jurídica - princípio que o Tribunal Constitucional enuncia a partir do princípio do Estado de direito democrático, referenciado no artigo 2.º da CRP[24] (cfr., ainda, artigos, 282.º, n.º 4, 29.º, n.º 1, e 18.º, n.º 3, da CRP) – e não olvidando que em termos de fiscalização concreta por via da qual os tribunais podem apreciar e decidir sobre se quaisquer atos normativos são, ou não, inconstitucionais, visando, assim, aferir da conformidade de normas jurídicas com a Constituição e/ou da conformidade de determinada interpretação normativa com a Constituição (artigos 277.º e 280.º da CRP), importa analisar a alegação dos apelantes.
Em relação ao princípio da proporcionalidade, segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA,[25] bem como inúmera jurisprudência do Tribunal Constitucional que tem escalpelizado analiticamente este princípio[26], o mesmo desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adotar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).
Não descortinámos na alegação dos apelantes qualquer fundamentação – a não ser a mera invocação do princípio e uma interpretação do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE e do artigo 32.º da LULL que, como já dito, incorre em manifesto erro interpretativo - , que evidencie em que termos, considerando as valências supra referidas deste princípio, exista violação do referido princípio da proporcionalidade.
Não vemos, assim, em que termos os regimes legais em causa são desproporcionais, no sentido de excessivos e desadequados aos fins visados pelas normas em causa quando, na verdade, assentam, em relação aos avalistas, na configuração do instituto e natureza jurídica do aval.
Por outro lado, a segurança jurídica radica na ideia de proteção da confiança dos cidadãos na atuação do Estado, segundo os princípios do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expetativas juridicamente criadas.
Ora, o regime do aval e da responsabilização dos avalistas, em contexto de execução universal (insolvência) ou singular (ação executiva) do devedor principal, encontra-se perfeitamente definido na lei, pelo que não se descortina em que dimensão normativa-interpretativa esse regime pode colidir com tal princípio, nem, na verdade, os apelantes mais adiantam sobre essa alegação.
Nestes termos, naufraga por completo a alegação da referida inconstitucionalidade.
E deste modo, em face de todo o exposto, improcede a apelação.
Dado o decaimento, as custas ficam a cargo dos apelantes (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.

Évora, 28-10-2021
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)
__________________________________________________
[1] LEBRE DE FREITAS et al., Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 3.ª ed., 2017, Vol. 2.º, p. 735 (3).
[2] Cfr., entre outros, AC. STJ, de 06/05/2004, proc. 04B1409 e AC. STJ, de 27/10/2009, proc. 93/1999.C1.S2, em www.dgsi.pt
[3] Cfr, entre outros, Ac. STJ, de 16/09/2008, proc. 08S321, em www.dgsi.pt
[4] Cfr., entre outros, Ac. STJ, de 22-02-2011, proc. 31/05-4TBVVD-B-G1.S1; Ac. STJ, de 25-05-2017, e Ac. STJ, de 28-09-2017, proc. 779/14.2TBEVR-B.E1.S1, todos in www.dgsi.pt.
[5] Proc. 02A998, disponível em www.dgsi.pt
[6] A. SOVERAL MARTINS, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2016, 2.ª ed., p. 162.
[7] Cfr. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, QJ, 3.ª ed., p. 439 (4 e 5).
[8] CAROLINA CUNHA, Letras e Livranças, Paradigmas Actuais. Recompreensão de um Regime, Almedina, 2012, p. 607-608.
[9] CAROLINA CUNHA, Manual de Letras e Livranças, Almedina, 2016, p. 204.
[10] CAROLINA CUNHA, Aval e Insolvência, Almedina, 2017, p. 81-82.
[11] Proferido no proc. 1025/18.5PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[12] Proferido no proc. 4161/18.4T8PBL-A.C1, disponível em www.dgis.pt
[13] Proferido no proc. 27827/05.4YYLSB-A, com o seguinte sumário: « I - O pacto de preenchimento estabelecido é perfeitamente válido e permitia ao exequente apor na livrança a data de vencimento que entendesse, desde que se verificasse o incumprimento nos termos aludidos.
II - Termos em que a data, validamente aposta na livrança como data do seu vencimento, constitui assim o termo inicial de contagem do prazo de prescrição, não relevando para esse efeito a data do incumprimento do contrato, que era apenas a causa de que dependia o preenchimento da livrança quanto ao seu vencimento.»
[14] Proferido no proc. 7460/10.0TBMTS-A.P2, com o seguinte sumário:« II - Se não há violação do pacto de preenchimento, numa livrança em branco, o prazo de prescrição (de três anos) conta-se a partir da data de vencimento constante do título e que corresponde à data de vencimento nele aposta pelo seu portador, coincida ou não com o vencimento (incumprimento) do contrato subjacente.»
[15] Proferido no proc. 60/10.6TBMTS.P1, com o seguinte sumário: «I - A livrança em branco é prescritível no prazo referido no artº 70º, ex vi do artº 77º, ambos da LULL e a data do seu vencimento resulta da conjugação do contrato de preenchimento com o título cambiário.
II - Enquanto a livrança não for preenchida e nela inserida a data de vencimento, não começa o prazo de prescrição da obrigação cambiária.
III – Os avalistas da livrança em branco, destinada a caucionar um contrato de abertura de crédito em conta corrente, atribuem ao portador o direito de preencher o título nos termos constantes do contrato de preenchimento.»
[16] Cfr. proc. 60/10.6TBMTS.P1.S1, em www.dgsi.pt
[17] Proferido no proc. 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt

[18] Como decorre do artigo 196.º, n.º 1, alíneas a) a e), do CIRE, o plano de insolvência pode extinguir total ou parcialmente créditos sobre a insolvência, incidindo sobre o capital e juros, condicionar os reembolsos de todos os créditos ou parte deles à disponibilidade do devedor, modificar prazos de vencimento ou de taxas de juros, constituir garantias, fazer operar a cessão de bens aos credores, entre outras, uma vez que o elenco inscrito na norma é meramente exemplificativo.
[19] FERRER CORREIA, Lições de Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1966, p. 203 e ss).
[20] DR, I Série, n.º 14, de 21-01-2013, p. 433 e ss.
[21] Proferido no proc. 206/14.5T2STC-A.E1.S1.S1, em www.dgsi.pt
[22] Proferido no proc. 597/11.0TBSSB-A.L1.S1, em www.dgsi.pt
[23] FERRER CORREIA, ob. cit. p. 203 e ss.
[24] Cfr., entre outros, Ac. TC, 287/90, de 30-10-90, disponível em www.tribunalconstitucional.pt
[25] Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. 1.º, Coimbra Editora, p. 170.
[26] Cfr, entre outros, Ac. TC nº 632/2008, de 23-12-2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt .