Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2620/16.2T8FAR.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 01/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Os mouchões localizados no leito do mar são bens de domínio público, nos termos dos arts. 3º, al. c) e 10º, nº 1, da Lei nº 54/2005, de 15 de Novembro.
2. Não é possível a aquisição por usucapião de parcelas do mouchão, face ao disposto no artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 280/2007.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2620/16.2T8FAR.E1
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…) intentou a presente ação contra o ESTADO PORTUGUES, representado pelo Ministério Público; A sociedade “POLIS LITORAL – RIA FORMOSA – SOCIEDADE PARA A REQUALIFICAÇÃO E VALORIZAÇÃO DA RIA FORMOSA, S.A.”; e A CÂMARA MUNICIPAL DE FARO, na pessoa do seu Presidente de Câmara, todos melhor identificados nos autos.
Peticiona que, através da presente ação, se reconheça e declare ser a dona e legítima possuidora do prédio urbano correspondente à casa n.º (…), da Rua das (…), no Núcleo do Farol, na Ilha da Culatra, inscrito na matriz predial urbana com o artigo (…) da União de Freguesias de Faro (Sé e São Pedro), por ter a posse correspondente ao direito real de propriedade, direito que alega ter adquirido por usucapião, condenando-se os réus no pedido.
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O réu Município de Faro deduziu contestação invocando a exceção de ilegitimidade processual passiva considerando que nenhum prejuízo lhe advém da procedência da ação, porquanto os terrenos em causa pertencem ao Estado Português e que não está em causa qualquer ofensa à legalidade urbanística.
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A ré POLIS deduziu contestação, invocando a exceção de falta de personalidade judiciária da 2.ª ré Câmara Municipal de Faro considerando que, aquela ré é apenas um órgão autárquico destituído de personalidade judiciária.
Em seguida, a ré POLIS deduz impugnação dos fundamentos de facto e de direito, considerando que a presente ação padece de manifesta falta de condições de procedência.
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O Digno Magistrado do Ministério Público contestou.
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Na sua resposta às excepções, o Autor respondeu às excepções.
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Foi proferido saneador sentença onde se decidiu julgar procedente a excepção de ilegitimidade processual passiva do Município de Faro e, por conseguinte, absolvê-lo da presente instância.
Foi também decidido julgar a acção improcedente.
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Desta sentença recorre o A. defendendo que o processo deve seguir para julgamento.
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Os recorridos Estado e Polis contra-alegaram defendendo a manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos.
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No final das suas alegações, a recorrente escreve que a sentença incorre na nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, Cód. Proc. Civil.
No entanto, em nada adiante as razões de tal entendimento apenas defendendo que a decisão deve ser uma conclusão lógica da matéria de facto provada.
Uma vez que nada se diz a respeito desta falta de lógica na sentença recorrida (mas sim que os factos não deviam ser agora dados por provados), não existe tal nulidade.
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A recorrente argui ainda a nulidade processual que resulta de não ter sido realizada a audiência prévia que apenas pode ser dispensada quando o processo seguisse para julgamento, o que não foi o caso.
Escreve o seguinte: «afigura-se-nos ter havido alguma precipitação, tanto mais que, numa questão complexa como a dos autos, não é comum ser proferida decisão final sem a produção de prova, pelo que foi cometida uma nulidade susceptível de influenciar o exame e a decisão da causa, tal como decorre do artigo 195º, n.º 1, do C.P.C.».
Em primeiro lugar, notaremos que a complexidade da questão não obriga a realização de julgamento; apenas obriga a isso a existência de factos controvertidos.
Por outro lado, não vemos que a falta de realização da audiência prévia tenha tido qualquer influência no exame da causa. As partes foram convidadas a pronunciarem-se sobre o mérito da causa e o A. expôs os seus argumentos.
Não há, pois, qualquer influência no exame e decisão da causa.
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A matéria de facto considerada pelo Tribunal é a seguinte:
1. O Autor mantem na Ilha da Culatra, Núcleo do Farol Nascente, a construção identificada pelo n.º (…).
2. O Autor não dispõe de título de aquisição do imóvel em causa.
3. O imóvel em causa não se encontra registado.
4. O Estado autorizou a transferência de um terreno com a área de 1.024.324 m2 para a Marinha com o pressuposto de que a Ilha da Culatra se situa em domínio público marítimo e “sem mutação dominial”.
5. E emitiu ainda diversas licenças a título precário, para instalação de barracas de madeira, na Ilha da Culatra, qualificando os terrenos em causa como situando-se “no domínio público marítimo”, designadamente:
i. Licença concedida pela Direção Geral de Serviços Hidráulicos do Ministério das Obras Públicas, datada de 9/4/1968, a (…), para legalização e manutenção de uma barraca de madeira, instalada na Ilha da Culatra, (casa n.º …) e licenças sucessivas;
ii. Licença concedida pela mesma Direção, datada de 4/6/1969 e sucessivas licenças, atribuídas a (…), para manutenção de duas barracas de madeira, instalada na Ilha da Culatra (casa n.º …);
iii. Licença concedida pela mesma Direção, datada de 31/7/1970 e sucessivas licenças, atribuídas a (…), para manutenção de duas barracas de madeira, instalada na Ilha da Culatra (casas n.º … e …);
iv. Licença concedida pela Direção Geral de Portos, datada de 5/1/1971 e sucessivas licenças, atribuídas a (…), para manutenção de uma barraca de madeira, da na Ilha da Culatra (casa n.º …);
v. Licença concedida pela Direção Geral dos Serviços Hidráulicos, datada de Fevereiro de 1971 e sucessivas licenças, atribuídas a (…), para manutenção de uma barraca de madeira, instalada na Ilha da Culatra (casa n.º …);
vi. Licença concedida pela Direção Geral de Serviços Hidráulicos, datada de Julho de 1971, atribuída a (…), para manutenção de uma barraca de alvenaria de tijolo e madeira, instalada na Ilha da Culatra (casa n.º …);
vii. Licença concedida pela Direção Geral de Serviços Hidráulicos, datada de Novembro de 1971, atribuída a (…), para manutenção de uma barraca de madeira, instalada na Ilha da Culatra (casa n.º …) e sucessivas licenças;
viii. Licença concedida pela Administração Geral de Serviços Hidráulicos, datada de Julho de 1931, atribuída a (…), para manutenção de uma barraca de madeira, instalada na Ilha da Culatra;
ix. Licença concedida pela Direção Geral de Serviços Hidráulicos, datada de Fevereiro de 1970, atribuída a (…), para manutenção de uma barraca de madeira, instalada na Ilha da Culatra e sucessivas licenças;
x. Licença concedida pela Capitania do Porto de Olhão, datada de Julho de 1958, atribuída a (…), para manutenção de uma barraca de madeira, instalada na Ilha da Culatra;
xi. Licença concedida pela Capitania do Porto de Olhão, datada de Setembro de 1957, atribuída a (…), para manutenção de uma barraca de madeira, instalada na Ilha da Culatra;
xii. Licença concedida pela Direção Geral de Serviços Hidráulicos, datada de Dezembro de 1971, atribuída a (…), para manutenção de uma barraca de madeira, instalada na Ilha da Culatra e sucessivas licenças;
xiii. Licença concedida pela Direção Geral de Serviços Hidráulicos, datada de Dezembro de 1971, atribuída a (…), para manutenção de uma casa, instalada na Ilha da Culatra e sucessivas licenças;
6. Em 2010 foi aprovado pela Assembleia Geral da Polis Litoral Ria Formosa – Sociedade para Requalificação e Valorização da Ria Formosa, S.A. o Plano Estratégico de Intervenção, Requalificação e Valorização da Ria Formosa.
7. Em 2015 o Autor foi notificado da intenção de tomada de posse administrativa e de demolição da edificação, sendo que a posse administrativa ainda não ocorreu.
8. Resulta da certidão subscrita pelo Sr. Vice-Presidente do Conselho Directivo da Agência Portuguesa do Ambiente:
«Para os devidos efeitos, a Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., certifica, com fundamento na Nota Técnica – DLPC nº2/2015, anexa à Informação nº 1006057-201505-DLPC, de 5 de Maio de 2015, cujas cópia que se juntam abrangem 49 folhas, numeradas e rubricadas, que a unidade morfológica comummente denominada Ilha da Culatra, bem como as restantes ilhas barreira da Ria Formosa, são consideradas leitos das águas do mar, na acepção do artigo 10º, nº 1, da Lei nº 54/2005, de 15 de Novembro, por as características do solo terem a natureza de areais formados por deposição aluvial, pertencendo ao domínio público marítimo do Estado, nos termos os artigos 1º, nº 1, 3º, alínea c), e 4º, mesma Lei.”
9. A referida Nota Técnica, constante da Informação nº 1006057-201505 - DLPC, de 05/05/2015, que se dá aqui por integralmente reproduzido, mereceu despacho de concordância do Sr. Presidente da APA, I.P, datado de 05/05/2015.
10. O sistema da Ria Formosa constitui a unidade morfológica dominante no Sotavento do Algarve.
11. Corresponde a um sistema de ilhas-barreira que engloba actualmente duas penínsulas: do Ancão, a Oeste, e de Cacela, a Leste e um conjunto de cinco ilhas-barreira (sucessivamente, de Poente para Nascente, Barreta, Culatra, Armona, Tavira e Cabanas).
12. O sistema de barreiras arenosas protege e assegura a manutenção de extenso sistema lagunar, nomeadamente exercendo o efeito barreira contra os processos de galgamento oceânico e de erosão provocada pelas ondas e pelo vento.
13. Nos últimos séculos a localização e o número de barras de maré (e consequente número e forma das ilhas) da Ria Formosa tem sofrido grandes alterações.
14. O sistema das ilhas barreira caracteriza-se por uma intensa morfodinâmica de constantes variações naturais (migração dos areais e galgamentos oceânicos).
15. As ilhas-barreira, onde se integra a ilha da Culatra aqui em apreciação, são areais formados por deposição aluvial.
16. As ilhas barreira modificam-se constantemente em virtude da dinâmica dos areais, acontecendo com frequência que tais ilhas se desfazem numa ponta e crescem no sentido da outra ponta.
17. A dinâmica das ilhas barreira da Ria Formosa, marcada pela abertura episódica de barras de maré e subsequente migração resultante da deposição de areias transportadas pela ondulação.
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O objectivo do recurso é que o processo continue com produção de prova em audiência de julgamento em ordem a apurar o direito alegado pelo A.. Pretende o recorrente que se devem indagar a localização da casa e as características do terreno.
No entanto, tal não será necessário se, em qualquer caso, o A. não tiver esse direito.
É que o problema não é só o da usucapião invocada mas também o de saber se o imóvel é usucapível.
É que se o não for, é indiferente que a casa esteja situada a mais de 50 metros da linha que limita o leito das águas (o que, de acordo com o art.º 11.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, significa já não estaria integrado em prédio do domínio público). Se a chamada Ilha da Culatra é domínio público, nunca haverá aquisição por usucapião, face ao disposto no art.º 19.º do Decreto-Lei n.º 280/2007.
Assim, parece-nos, o problema não é só este (o da localização da casa face à linha do mar) mas ainda este outro: o local onde está a casa, vulgarmente chamado Ilha de Culatra, é uma ilha ou um mouchão?
Se for uma ilha, solidamente erguida e fixa no leito do mar, o problema será o do citado art.º 11.º; se for um mouchão, ele integra o domínio público, nos termos do art.º 10.º, n.º 1, uma vez que ele está compreendido no leito das águas costeiras [cfr. art.º 3.º, al. c)]. Daí que não seja errado afirmar, ao contrário do que entende a recorrente, que toda a Ilha da Culatra possa ser domínio público porque todo o mouchão existente no leito do mar é bem do domínio público (cfr. Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes, Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico, Coimbra Editora, Coimbra, 1978, pp. 134-135; embora o diploma objecto do comentário seja o Decreto-Lei n.º 468/71, revogado pela Lei n.º 54/2005, o certo é que os textos não sofreram alteração). Ponto é que seja mesmo um mouchão e não uma ilha.
E note-se, também ao contrário do que afirma o recorrente, que o modo de formação dos mouchões é fundamental para a sua caracterização pois aquilo a que a lei alude são formações em constante mutação, por força das águas; não são ilhas rochosas que crescem do leito do mar, que são montanhas parcialmente submersas. A formação vulcânica e tectónica ou a formação arenosa dão origem a espaços diferentes e com diferentes tratamentos jurídicos. Por outro lado, temos ainda a Portaria n.º 204/2016, de 25 de Julho, que «estabelece a forma e os critérios técnicos a observar na identificação da área de jurisdição da autoridade nacional da água». O seu Anexo A, n.º 1, al. d), contém a seguinte estatuição: as «barreiras arenosas acumuladas nas fozes de estuários (temporários ou permanentes) ou de lagoas costeiras integram o leito das águas. As barreiras costeiras formadas por areias de deposição aluvionar, sob acção do caudal fluvial ou sob acção das ondas, integram o leito das águas». Não é mais do que já se encontra na Lei n.º 54/2005, designadamente, nos seus artigos 3.º, al. c), e 10.º, n.º 1.
A este respeito, o recorrente alega que a «decisão de direito resulta ainda de erro na aplicação da norma, uma vez que se fundamenta nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, de 15.11, quando, a norma a aplicar é a do artigo 10.º, n.º 2, por ser esta disposição, e não a citada, que se refere ao leito das águas do mar, bem como as demais águas sujeitas à influência das marés, que é o caso dos autos, quando a invocada pelo tribunal recorrido se refere apenas às águas fluviais, quando não influenciadas por cheias extraordinárias».
Mas não é assim. O n.º 1 define, em termos gerais, o que é o leito; os números 2 e 3 estabelecem os seus limites.
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O tribunal recorrido entendeu que a Ilha de Culatra é um mouchão de acordo com a certidão emitida pela Agência Portuguesa do Ambiente.
A recorrente discorda por entender que o caso não é o previsto no art.º 371.º, n.º 1, 1.ª parte, Cód. Civil, mas sim na parte final do mesmo preceito quando estabelece que os «meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador».
A certidão emitida pela APA é um documento autêntico; o seu valor probatório é que se discute aqui.
O que nela se contém é uma descrição morfológica do terreno em questão que, por seu turno, leva a uma conclusão jurídica.
Mas o que releva é a descrição que é esta:
(…) a unidade morfológica comummente denominada Ilha da Culatra, bem como as restantes ilhas barreira da Ria Formosa, [cujas] características do solo [têm] a natureza de areais formados por deposição aluvial.
Daqui retira a conclusão de que tal ilha integra o leito do mar e, como tal, é de domínio público.
Esta conclusão não tem qualquer força probatória, como é natural, pois que a aplicação de uma dada norma a um caso nada prova sobre a realidade das coisas. Mas já a descrição é abrangida pela força probatória plena que lhe é conferida pelo citado art.º 371.º.
E o fundamental é o que a autoridade pública atesta como sendo o objecto da sua percepção: as características do terreno, acima indicadas.
Perante este facto, provado nos termos expostos, não vemos que, como pretende o recorrente, se tenha que produzir prova sobre a morfologia da dita ilha. Como se expõe na sentença, «os factos atestados na certidão emitida pela Agência Portuguesa do Ambiente, no âmbito das suas atribuições e competências, relativos à natureza das faixas de territórios em causa, enquanto leitos ou margens das águas do mar, encontram-se plasmados em documento que, de acordo com a lei, se mostra dotado de força probatória plena (artigo 393.º, n.º 2, do Código Civil) e, como tal não será admissível prova testemunhal sobre o mesmo, salvaguardados os casos de falta ou vício da vontade».
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Perante o tipo de terreno aqui em causa, a conclusão a tirar, como já se deixou insinuado, é que o mouchão, que integra o leito do mar territorial, é um bem do domínio público.
Sendo assim, não podem os particulares adquirir por usucapião parcelas (onde se exerce a posse) de tal terreno. Por isso, se é certo que aqui apenas está em questão uma casa, é certo também que tal casa está implantada em terreno do domínio público.
O que leva a outra conclusão que arreda o outro fundamento do recurso: é indiferente que a casa dos autos esteja situada ou não a mais 50 metros da linha da água; isto teria interesse e seria relevante se o nosso caso tivesse por objecto físico uma ilha mas já não o tem quando se trata de um mouchão.
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Entendemos, pois, que o A. em caso algum tem o direito de propriedade sobre a casa dos autos uma vez que esta está implantado num imóvel de domínio público uma vez que este é um mouchão existente no leito do mar.
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Sendo esta a solução jurídica, é notório que não há necessidade de a acção prosseguir para julgamento: a solução seria sempre a mesma, quer a casa estivesse a mais de 50 m da linha de água ou não.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente.
Évora, 11 de Janeiro de 2018
Paulo Amaral
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho