Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
878/13.8TBSSB-A.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: CONTRATO DE ADESÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
Data do Acordão: 02/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Nada obsta à validade das cláusulas de um contrato de aluguer de longa duração por força das quais, na hipótese de extinção da relação contratual por efeito da entrega do bem pelo locatário, este fica obrigado a pagar, cumulativamente, as prestações em dívida, juros de mora sobre estas prestações à taxa máxima permitida por lei, as despesas e encargos necessários para a cobrança do crédito do locador e uma indemnização correspondente a 50% do valor das prestações vincendas.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 878/13.8TBSSB-A.E1

Relatório


(…) deduziu os presentes embargos de executado contra (…) Bank (…), Sucursal Portuguesa, concluindo que deve:

a) Ser a presente oposição julgada procedente por provada e, em consequência, ser extinta a instância executiva, com reconhecimento da excepção de preenchimento abusivo, o que consubstancia a invalidade e ineficácia do título (livrança);

b) Ou, assim não se entendendo, ser aceite a oposição por embargos de executado, por violação dos deveres de boa-fé e de transparência exigidas em toda a formação do contrato (artigo 227º, nº 1, do CC);

c) Ser actualizado o valor do incumprimento em causa;

d) Ser declarado proibido o anatocismo, artigo 560.º do CC, com todas as consequências legais;

e) Mais se requerendo seja fixado oficiosamente o valor da acção, para efeitos do artigo 296.º do CPC;

f) Outrossim, deverá a requerente ser condenada como litigante de má-fé e, consequentemente, em multa e indemnização, consistindo esta, por a ela ter dado causa, no reembolso das despesas judiciais e extrajudiciais do requerido, incluindo os honorários ao seu mandatário, de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, nos termos dos artigos 542.º e seguintes do CPC.

Os embargos foram recebidos.

O embargado contestou, pugnando pela improcedência dos embargos.

Realizou-se uma tentativa de conciliação, sem êxito. Nessa diligência, o tribunal a quo comunicou às partes que o processo continha todos os elementos necessários para o conhecimento do mérito da causa. As partes prescindiram da realização de audiência prévia, tendo ficado com um prazo de 10 dias para exercerem, por escrito, o direito previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC.

Depois de as partes se terem pronunciado nos termos descritos, foi proferida sentença, julgando os embargos improcedentes.

O embargante recorreu da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. O acordo de 15Dez2010 é um contrato de adesão.

2. Lendo os seus termos e os elementos facultados pelos autos, vê-se que houve uma entrada inicial provada por não impugnada de 10 mil euros para 84 mensalidades, a primeira de 3.900,83 euros e as seguintes de 464,26 cada uma.

3. Existindo incumprimento como houve por falta de liquidez do embargante, só ficou previsto sobretudo o pagamento das prestações vencidas e não pagas, mais juros máximos e uma indemnização de 50% e, como se isso não fosse já suficiente, ainda um verba para cobertura da gama imensa de despesas ali discriminadas.

4. Salvo resolução, a devolução facultativa do carro só foi equacionada na secção reservada à cessação do contrato.

5. O automóvel foi restituído a 22Mar2014 em perfeito estado de conservação, já depois de o embargante ter liquidado 24 prestações (12.162 euros).

6. A embargada vendeu o automóvel e recusa-se a dizer por quanto, presumindo-se naturalmente (cfr. artigo 349º do Código Civil) que o fez pelo seu preço de mercado estimado nuns 28 mil euros, pelo que,

7. Em boa verdade, nada mais devia pedir ao embargante, uma vez que ficou ressarcida de tudo e com uma confortável margem de lucro final.

8. Face àquele incumprimento, foram preenchidas pela embargada as referenciadas livranças assinadas em branco e pela soma dos montantes acima especificados.

9. Trata-se nitidamente de um contrato de adesão de carácter leonino, com uma série acumulada de importâncias escandalosamente exorbitantes e sem mostrar o mínimo atendimento a circunstâncias relevantes como a quantia global realmente satisfeita pelo embargante e a restituição do objecto, nesse ínterim alienado pela embargada com óbvio lucro suplementar.

10. Sob o prisma do espírito do sistema (nº 3 do artigo 10º do Código Civil), estamos perante peças que comportam desde logo nulidade por contrariedade à lei, ofensa da ordem pública e ou dos bons costumes (artigos 280º e seguintes e ainda 809º, todos do mesmo Código Civil) e subsidiariamente um autêntico enriquecimento sem causa da embargada (artigos 473º e seguintes ibidem).

11. São cláusulas que propiciam situações abusivas, injustas ou violadoras da boa-fé negocial, pelo que devem ser desaplicadas.

12. Em obediência a interesses de ordem geral, nem sequer é preciso apurar qualquer grau de culpa do devedor.

13. A embargada ultrapassou amplamente os próprios limites estabelecidos pelo sistema.

14. A liberdade contratual do artigo 405º do Código Civil tem como restrição textual dentro dos limites da lei.

15. Ainda supletivamente, parece que o ensaio de cobrança pela embargada traduz um verdadeiro abuso do direito, por isso que vem exercê-lo excedendo manifestamente os tais limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e ou pelo seu fim económico ou social (artigo 334º também do Código Civil).

16. Acresce o teor de artigos como os 9º, 12º, 19º e 22º do referenciado Decreto-Lei nº 446 de 25Out1985.

17. A interpretação das declarações negociais é matéria de direito e daí da competência das instâncias superiores em via de recurso.

18. O que a embargante legitimamente espera é que, não sendo mera boca de lei, o julgador faça uma recensão crítica do circunstancialismo que presidiu à conclusão do contrato e procure aferir da existência das tais cláusulas excessivas e daí partir para a sua apreciação axiológica, à luz dos ditames que dão corpo àquele espírito do sistema e que abrange os respectivos preceitos não só na sua simples literalidade, mas também na sua ratio legis.

19. Em boa verdade, a verba inicial de 10 mil euros aproxima-se mais de um sinal de promessa de alienação da viatura do que propriamente da mera hipótese de locação financeira.

20. Assim sendo, então o cumprimento escrupuloso das mensalidades entretanto efectivamente convencionadas equivaleria à aquisição final do automóvel em apreço a benefício do embargante, ora recorrente, eventualmente com o acréscimo de igual modo combinado de um determinado valor adicional ou residual.

21. O incumprimento que efectivamente sucedeu daria assim à empresa creditícia o direito de proceder à cobrança desse montante entretanto em falta, mais a das despesas inerentes ao processo e supostamente com a possibilidade de penhora do respectivo veículo.

22. Mas a viatura foi entregue e vendida, pelo que, essa situação está ultrapassada.

23. Só que o que resta igualmente é intolerável e revoltante.

24. Em alternativa até se poderia admitir que a embargada cobrasse as prestações vencidas e não liquidadas e por isso sem juros, a não ser os correspondentes a alguma demora na reposição dessa quantia global.

25. Em via de princípio os juros funcionam como substituto da privação de importâncias, pelo que, pretendendo a embargada cobrar estas, já não haveria lugar a juros, excepto aqueles por eventual atraso.

26. Mas mesmo que se entenda que a embargada ainda tem direito a juros, é incrível que estes sejam fixados não à taxa comum, mas pela taxa máxima, o que implica o acréscimo anómalo ou extravagante de pontos percentuais.

27. Acresce aquela indizível ou inominável indemnização dos 50% que parece corresponder a uma genuína cláusula penal e especialmente revoltante porque a embargada a acciona como se não estivesse já a proceder à cobrança das demais quantias e todas elas geralmente descabidas.

28. Uma cláusula penal só pode em via de princípio assumir um carácter substitutivo, pelo que não é cumulável com qualquer obrigação tida como principal.

29. Também foi violada a boa-fé que deve presidir a todos os instantes ou momentos do contrato sem excepção, desde a partida à chegada, quer nos preliminares ou na formação, quer ao longo de todo o cumprimento (artigo 227º e nº 2 do 762º do Código Civil).

30. O caso sub judice justifica que nos louvemos no magnífico acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7Mar1991, in BMJ nº 405 - pp 465 e seguintes, a saber

31. Proibidas e nulas são as cláusulas que, concedendo à parte contratual economicamente mais forte a vantagem – ofensiva do equilíbrio contratual – de receber todas as quantias devidas, lhe outorgam ainda a possibilidade de agir contra a natureza do contrato e os direitos essenciais do devedor.

32. Deste modo e se o embargante restituiu intacto o objecto do contrato, isso é susceptível de ser tomado afinal e na visão de conjunto de todos os elementos a ele inerentes como uma verdadeira resolução da sua parte.

33. A prática jurídica racionalizou-se, as grandes empresas uniformizam os seus contratos de molde a acelerar as operações necessárias à colocação de produtos e a planificar, em diferentes aspectos, as vantagens que lhes advêm desta massificação, o que vale por dizer que o fenómeno das chamadas cláusulas contratuais gerais fez a sua aparição, estendendo-se aos domínios mais diversos.

34. Sem dúvida, a padronização negocial favorece o dinamismo do tráfico conduzindo a uma racionalização ou normalização e a uma eficácia benéfica aos próprios consumidores.

35. Não deve todavia olvidar-se que o predisponente pode derivar do sistema certas vantagens que signifiquem restrições, despesas ou encargos menos razoáveis ou iníquos para os particulares.

36. A embargada – economicamente mais forte – fixou claramente a seu bel-prazer todo o clausulado e sem qualquer discussão da contraparte.

37. A antiga forma simplista de pensar encontra-se ultrapassada, reconhecendo a lei a existência de desigualdade económica entre os contratantes e a sujeição a cláusulas injustas por necessidade de contratar para evitar mal maior e com assinatura resignada.

38. Parece que perante as cláusulas de antemão fixadas pela embargada de maior força económica sem oferecer à contraparte economicamente mais fraca a possibilidade preliminar de análise e discussão, a fim de obter supressão ou modificação, consideradas gravosas as redacções originais, a única alternativa para a contraparte economicamente mais débil, face a esse circunstancialismo, é arguir a sua nulidade perante o tribunal, por serem proibidas ou atentatórias dos ditames da boa-fé ou afectarem o equilíbrio do sinalagma, ficando o julgador autorizado a socorrer-se do instituto da redução do negócio, segundo os termos do disposto nos artigos 292º e seguintes do Código Civil, sempre que tal seja necessário, como aqui inegavelmente se afigura ser.

39. Em suma, a eventual aquisição do automóvel pelo locatário seria sempre uma decisão deste e insusceptível de ser configurada como imposição do locador.

40. Cfr. a título puramente exemplificativo os acórdãos do STJ de 5Jul1994 (processo com o nº 85.274) e 17Nov seguinte (processo nº 85.441).

41. Estamos aqui claramente perante um contrato de adesão, onde a vontade do aderente para além de não ser livre, também não estará, na maioria dos casos, plenamente esclarecida, mesmo que se leia o manancial de cláusulas extensas, impressas em letra miudinha e postas perante um potencial aderente carecido de conhecimentos jurídicos, foi precisamente o que aconteceu aqui.

42. Ademais, as alíneas c) e j) do artº. 8º. da CRP clamam no mesmo sentido, ao prescreverem deverem ser reprimidos os abusos do poder económico e todas as práticas lesivas do interesse geral, devendo proteger-se o consumidor, o que, aliás, está de acordo com o acórdão uniformizador de Jurisprudência nº 7/2009, DR I-A, de 5 de Maio de 2009 que estabeleceu o seguinte: “ No contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao artº 781º do CC, não implica a obrigação de pagamento de juros remuneratórios nela incorporados”.

43. Pelo que, interessa aqui realçar sobremaneira, como elemento diferenciador do regime geral das cláusulas penais, inserto nos artº.s 810º. a 812º. do C. Civil, é o de que as clausulas penais em contratos de adesão, quando abrangidas pelo DL nº. 446/85, de 25 de Outubro “… se forem desproporcionadas aos danos a ressarcir não são meramente redutíveis antes feridas de nulidade, por conjugação do disposto no artº. 19, alínea c), com a doutrina do artº. 12º.” – Pinto Monteiro, Livro Cláusula Penal e Indemnização, pág. 753).

44. Pelo que, o montante aposto na livrança, conforme é referido no artº. 18º. da resposta à oposição “ … acrescidos de juros de mora, montante indemnizatório igual a 50 % da soma dos alugueres vencidos …”, é completamente desproporcionado, injusto, desajustado e que justifica plenamente a nulidade das cláusulas em apreço.

Nestes termos e demais de direito e invocando o douto suprimento, deve a nem por isso menos douta sentença apelada de 20Jun2018 ser revogada, inter alia por inconsideração ou omissão e ou inapropriada ou incorrecta aplicação ou interpretação das normas acima invocadas e com o sentido inequívoco em que o são e consequentemente substituída essa decisão por outra que julgue os embargos provados e procedentes e absolvendo o embargante da execução e com o levantamento da penhora e a devolução ao embargante das verbas que tenham de o ser e estimadas por simples cálculo aritmético, por a embargada já se ter ressarcido da totalidade das verbas inerentes ao contrato e com uma margem de lucro sumamente confortável, isto para todos os efeitos e com todas as consequências legais inerentes, pois assim se cumpre o direito e assim se faz a elementar Justiça.

O recorrido contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

A. O presente recurso vem interposto da douta sentença que julgou a oposição à execução por embargos de executado improcedente.

B. Sentença essa que o recorrido a todos os títulos subscreve.

C. Desta forma, o tribunal a quo fez uma correcta aplicação do direito aos factos dados como assentes nos presentes autos.

D. Das alegações, salvo o devido respeito não se vislumbra de forma clara e inequívoca qual o objecto/fundamento do recurso, até porque este não é apresentado de forma clara, nem não é indicada a norma considerada violada, ou qual a omissão da norma ou qual a aplicação ou interpretação incorrectamente efectuada pelo tribunal a quo.

E. O que o recorrente pretende com o presente recurso é prevalecer-se nesta fase processual de alegações não antes trazidas ao processo e que não foram objecto de discussão prévia, como são exemplo as alegações referentes a contratos de adesão, cláusulas contratuais gerais nulas e extensão das mesmas ou violação de deveres de boa-fé na versão que agora é dada pelo recorrente, o que não deverá ser de admitir.

F. No ponto 18 das alegações, o recorrente expressa e passamos a citar: “O que a embargante legitimamente espera é que, não sendo mera boca de lei, o julgador faça uma recensão crítica do circunstancialismo que presidiu à conclusão do contrato e procure aferir da existência das tais cláusulas excessivas e daí partir para a sua apreciação axiológica, à luz dos ditames que dão corpo àquele espírito do sistema e que abrange os respectivos preceitos não só na sua simples literalidade, mas também na sua ratio legis”.

G. No humilde entendimento do recorrido, não é nesta fase que o recorrente deve invocar novamente questões que antes não foram discutidas, nem deve ser o tribunal a aferir da existência de tais cláusulas, sem ter sido expressamente arguida a nulidade das mesmas em momento oportuno, e ab initio.

H. O acórdão do STJ, no processo 09P0308 “I - É regra geral do regime dos recursos que estes não podem ter como objecto a decisão de questões novas, que não tenham sido especificamente tratadas na decisão de que se recorre, mas apenas a reapreciação, em outro grau, de questões decididas pela instância inferior. A reapreciação constitui um julgamento parcelar sobre a validade dos fundamentos da decisão recorrida, como remédio contra erros de julgamento, e não um julgamento sobre matéria nova que não tenha sido objecto da decisão de que se recorre. II - O objecto e o conteúdo material da decisão recorrida constituem, por isso, o círculo que define também, como limite maior, o objecto de recurso e, consequentemente, os limites e o âmbito da intervenção e do julgamento (os poderes de cognição) do tribunal de recurso. III - No recurso não podem, pois, ser suscitadas questões novas que não tenham sido submetidas e constituído objecto específico da decisão do tribunal a quo; pela mesma razão, também o tribunal ad quem não pode assumir competência para se pronunciar ex novo sobre matéria que não tenha sido objecto da decisão recorrida”.

I. Reportando-nos agora à douta sentença proferida no âmbito dos embargos, o douto tribunal a quo entendeu que face ao alegado pelo recorrente/embargante se poderia resumir a quatro questões:

1ª - Circunstâncias e consequências da entrega da viatura à exequente;

2ª - Preenchimento abusivo da livrança;

3ª - Valor de venda do veículo e validade da cláusula penal;

4ª - Abuso de direito/enriquecimento sem causa/litigância de má-fé.

J. O recorrente confessou nos embargos que face a dificuldades financeiras, procedeu antecipadamente à entrega da viatura ao recorrido/exequente, tendo a mesma ocorrido a 22 de Março de 2013, e sido assinando o auto de entrega da viatura.

K. Tendo assim antecipado o termo de vigência do contrato de aluguer de longa duração a consumidor, de acordo com disposto no n.º 4 do artigo 2.º das “Cláusulas Gerais” do contrato celebrado entre as partes em 15/12/2010 que previa o pagamento de 84 alugueres.

L. Assim, bem andou o douto tribunal a quo ao concluir que “Quanto ao documento assinado, o embargante refere que foi induzido em erro face a uma declaração que não consta do documento (em lado algum do mesmo se fez constar a expressão “livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades”), pelo que também não está em causa qualquer vício da vontade suscetível de afetar a validade da declaração. E a verdade é que, tendo o executado assinado um documento particular com o conteúdo do referido em 8 do elenco da matéria julgada assente, documento esse que tem força probatória plena, nos termos dos arts. 374.º, n.º 1, e 376.º, nºs. 1 e 2, do CC, não se pode deixar de ter por assente que o executado entregou o veículo de sua livre vontade, sendo o motivo da entrega a impossibilidade de cumprir o contrato, pagando os alugueres que em face do mesmo eram devidos.

M. Por outro lado bem andou o tribunal a quo ao concluir no que concerne à situação de excepção de preenchimento abusivo da livrança que: “Adentro da exceção do preenchimento abusivo, tem sido reiteradamente decidido pelos nossos tribunais superiores que é ao executado que incumbe fazer prova do desrespeito do pacto de preenchimento por parte do exequente, nos termos do art. 342º, n.º 2, do CC, não bastando para tanto a mera alegação de que não se sabe como é que o valor foi obtido, ou de que o exequente não demonstra quais os montantes que se encontravam em dívida. Assim se entendeu, entre outros, no ac. da RP de 03.06.2014, proc. 448/11.5BPRG-A.P1, in www.dgsi.pt, num caso em que o obrigado cambiário era o avalista, mas em que se considerou que o mesmo poderia opor a exceção do preenchimento abusivo: “No caso, ao exequente, compete demonstrar a regularidade formal da livrança, sob alegação do pacto de preenchimento, do que resulta a presunção de que nesse preenchimento se cumpriu o estabelecido no pacto. Por consequência, em sentido contrário, caberá aos avalistas, aqui opoentes, a demonstração de que a livrança dada à execução foi preenchida abusivamente, ou por não ter sido autorizado o respectivo preenchimento, ou porque, tendo havido essa autorização, dela abusou o exequente no acto do preenchimento, inscrevendo ali os elementos em falta mas em contravenção ao convencionado. Em qualquer caso, o ónus da prova de um tal abuso impende única e exclusivamente sobre os próprios opoentes, em função do determinado pelo artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil”.

N. Acrescendo ainda que: “Na situação sub judice, além de não estar provado que não foi autorizado o preenchimento do título (essa autorização foi concedida na cláusula 16ª, 3., do contrato que consubstancia a relação subjacente), o embargante não alegou factos suficientes no sentido de demonstrar que a inscrição da quantia foi feita em contravenção ao acordo de preenchimento, sendo que dos autos até resulta de que forma é que a exequente calculou o valor inscrito na livrança, atendendo a parcelas que ao abrigo do contrato poderia cobrar”.

O. Bem andou ainda o douto tribunal considerando que da excepção de preenchimento abusivo entroncam duas outras questões a saber: “a venda do veículo e a validade da cláusula penal, sobre as quais se discute se o valor da primeira devia ter sido atendido para cálculo do valor em dívida, e se a primeira deve ser considerada excessiva”.

P. Entre as partes foi celebrado um contrato de aluguer de longa duração, cujo propriedade é do locador até ao cumprimento integral do contrato e no qual é prevista a possibilidade de aquisição do mesmo pelo locatário, no termo do contrato mediante o pagamento ao locador do valor futuro previsto nas “Condições particulares” do contrato e desde que não se encontrem alugueres vencidos por liquidar.

Q. Ora, o recorrente enquanto locatário não cumpriu o contrato, nem liquidou o valor futuro, pelo que não ocorreu a transferência de propriedade da viatura, mantendo-se esta na esfera do locador/exequente.

R. Pelo que bem concluiu o douto tribunal a quo “Logo, o valor do veículo não pode ser tido em conta em sede de cálculo do montante em dívida, nem a entrega do mesmo pode ser havida como uma dação em cumprimento, que consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida, pressupondo o acordo do credor e fazendo extinguir imediatamente a obrigação – cfr. artigo 837.º do CC”.

S. “Não está também em causa uma dação “pro solvendo”, que se traduz numa dação em cumprimento condicional: há uma efetiva substituição da prestação no cumprimento, mas a extinção da obrigação só opera se o credor realizar o valor correspondente ao montante da prestação a que tinha direito, e na medida em que o realize (art. 840º, n.º 1, do CC)”.

T. Ao pronunciarem-se as partes sobre o mérito da causa, previamente à decisão proferida pelo douto tribunal a quo, veio o recorrente/embargante invocar – sem que anteriormente o tivesse feito em momento próprio nomeadamente aquando a dedução de embargos de executado – a nulidade da cláusula que permite ao exequente exigir um montante indemnizatório correspondente a 50% da soma dos alugueres vincendos.

U. Ainda assim, o douto tribunal a quo concluiu que: “Embora nestes autos vigore o princípio da preclusão do direito do executado deduzir matéria de exceção – com a dedução da oposição à execução por embargos fica precludido o direito do executado deduzir as exceções que ali não tenha alegado (neste sentido veja-se Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, vol. 3, pág. 323) –, a circunstância de se tratar de uma nulidade de conhecimento oficioso não nos deve impedir de sobre ela nos pronunciarmos – cfr. arts. 12º, 19º, c), e 24º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25/10; art. 286º do CC.”

V. Concluindo neste ponto o douto tribunal a quo que: “Na realidade, não resulta dos autos que tenha sido considerado o referido acréscimo de quatro pontos percentuais no preenchimento da livrança. O que a exequente reclamou foi o valor correspondente a 50% dos alugueres vincendos até ao termo do prazo de aluguer, não se vendo que tal percentagem se traduza num montante indemnizatório manifestamente excessivo, sobretudo atendendo ao número de prestações que foram pagas e ao facto de o veículo ter sido devolvido quando ainda faltava mais de metade de tempo para se completar o período de vigência do contrato – neste sentido, veja-se o ac. da RP de 04.05.2015, relatado no proc. 3791/09.0YYPRT-A.P1, que pode ser consultado em www.dgsi.pt, e que cita um acórdão também RP, de 08.07.2004, proferido no proc. n.º 0451945, que se pronunciou pela validade de cláusula penal de valor correspondente a 50% das rendas vincendas, em contrato de aluguer de longa duração”.

W. Além dos citados acórdãos supra expostos, ainda no mesmo sentido o Acórdão da Relação de Coimbra de 30/09/1997 defende que “é válida a cláusula penal inserta em contrato de Aluguer de Longa Duração de um veículo automóvel que se traduza no pagamento de uma indemnização igual a 50% das rendas vincendas até ao fim do contrato, não se pode dizer que o seu valor seja manifestamente excessivo” (Col. Jur., 1997, 4º-26 e BMJ, 469 -661)

X. Concluindo e bem o douto tribunal a quo pela validade da referida cláusula, e mesmo que assim não se entendesse sempre se diria que a referida cláusula poderia ser reduzida pelo tribunal nos termos do artigo 812º do Código Civil, caso se entendesse que a mesma fosse manifestamente excessiva, nesse sentido defende o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/1/2010 que “A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, bem como se a obrigação tiver sido cumprida. A intervenção judicial para a redução duma cláusula face à equidade só deverá acontecer em casos limites de manifesta ou ostensiva excessividade”.

Y. No que concerne à invocada questão de abuso de direito e de enriquecimento sem causa, bem como à alegação do exequente/recorrido litigar de má-fé, concluiu e bem o douto tribunal que: “No caso dos autos, não se vê como se pode sustentar que se verifica uma situação de abuso de direito, desde logo porque nada nos autos permite concluir que o direito da exequente tenha sido exercido em termos clamorosamente ofensivos das conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade”.

Z. Bem como que “Em sede de enriquecimento sem causa, os requisitos cumulativos do instituto são os seguintes: a existência de um enriquecimento; que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique – ou porque nunca o houve, ou porque, entretanto, desapareceu; que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição; que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído (arts. 473º e 474º do CC)”.

AA. Concluindo que “No caso dos autos, o bem era propriedade da exequente e foi-lhe restituído. Assim, mesmo que o veículo tenha sido vendido pela exequente, o que entrou no seu património foi o valor obtido com a venda e não qualquer outro; logo, não há qualquer enriquecimento injustificado. Posto isto, entendemos que os autos não contêm elementos suficientes para se concluir que a exequente excedeu manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, exercendo o seu direito em termos clamorosamente ofensivos das conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade, de forma a merecer a atuação fiscalizadora do tribunal, ou que tenha havido qualquer enriquecimento sem causa”.

BB. Relativamente ao pedido de condenação por litigância de má-fé requerido pelo embargante/recorrente o douto tribunal conclui, sem qualquer censura “que não existe fundamento legal para se condenar a exequente por litigância de má-fé”.

CC. Sucede que conforme supra explanado, vem agora o recorrente invocar de forma geral que o contrato celebrado é um contrato de adesão, denominando-o inclusivamente de leonino tecendo meras considerações relativas a cláusulas contratuais gerais, pese embora o já supra exposto pelo recorrido no presente articulado nos artigos 7º a 13º, por mera cautela de patrocínio sempre se dirá que o contrato celebrado entre as partes configure ou não um contrato de adesão, foi firmado entre partes de livre vontade ao abrigo da autonomia contratual (artigo 405º do CCivil).

DD. Ora, se o recorrente considerava que o contrato lhe era prejudicial ou que não concordava com as suas cláusulas, não apunha a sua assinatura no mesmo, pois poderia celebrá-lo livremente com outra entidade financeira, uma vez que se encontrava inteiramente na sua disponibilidade e autonomia a aceitação do clausulado do contrato ou não.

EE. O que não poderá deixar de ser frisado é que o recorrente não é, nem pode ser visto como é descrito nas doutas alegações como “parte mais débil e desprotegida, qua na sua natural leviandade ou ligeireza facilmente se deixa atrair ou fascinar pela proximidade de acesso à utilização de um bem sugestivo de que carece ou que quer possuir pelo simples prazer que lhe proporciona” (sublinhado nosso).

FF. O contrato foi negociado entre parte tanto que foram convencionadas as “Condições Particulares” do mesmo, escolhida a viatura, acordado o número de alugueres e valores mensais, etc.

GG. Dúvidas não restam que se o contrato tivesse sido cumprido dentro do previamente acordado, não seria em momento algum invocado qualquer hipotético tipo de cláusula abusiva.

HH. Considera assim o recorrido/exequente que tal configura abuso de direito nos termos do artigo 334º do CCivil, pois não deve ser de admitir, o facto de num contrato com 84 alugueres, e após o pagamento de 24 prestações, a arguição da nulidade, por parte do consumidor que tirou partido do bem e que só posteriormente se lembrou de invocar a nulidade, não tendo em momento anterior optado pela renúncia do contrato.

II. Assim, como não deve ser de admitir igualmente que apenas quando confrontados pela exigência do pagamento da divida e que posteriormente face ao incumprimento se socorram de todos os subterfúgios legais para justificar o não pagamento, invocando razões que deveriam ser invocadas ab initio.

JJ. O que acaba por estar em causa é a expectativa criada pela conduta do consumidor, em considerar válido o contrato que assinou e que pretendia cumprir e dele beneficiar, neste sentido e em defesa do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, defendem-no os acórdãos da Relação Lisboa 29.10.2009; da Relação do Porto de 16.12.2009; da Relação do Porto 9-10.2012 e o Acórdão Supremo Tribunal de Justiça em 17.06.2010.

Nestes termos, e nos melhores de Direito, cujo douto suprimento de V. Exas. se invoca, deve ser negado provimento ao presente recurso e, em consequência ser mantida a sentença recorrida, pois só assim é de Direito e se fará Justiça.

O recurso foi admitido.


Objecto do recurso


Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e delimitam o âmbito da intervenção do tribunal de recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as questões a resolver são as seguintes:

- Aplicabilidade do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais;

- Validade das cláusulas contratuais visadas pelo recorrente.


Factualidade apurada


Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. A exequente é portadora de uma livrança na qual figura como subscritor o executado, que apôs a sua assinatura no campo destinado à assinatura do subscritor.

2. A referida livrança foi emitida pela importância de € 18.243,12, preenchida com a data de 2010.12.15 como sendo a data de emissão, e ainda com a data de 2013.06.21 como sendo a data de vencimento.

3. No dia 15.12.2010, os representantes legais da exequente, de um lado, e o executado, de outro lado, subscreveram um documento denominado “Contrato de aluguer de longa duração a consumidor N.º (…)”, nos termos do qual foi declarado que a primeira cedeu ao executado o gozo temporário do veículo de marca BMW, matrícula 92-(…)-65, pelo prazo de 84 meses, mediante a contrapartida do pagamento de 84 alugueres mensais e sucessivos, sendo o primeiro no valor de € 3.900,83 (IVA incluído) e os restantes no valor de € 464,26 (IVA incluído) cada um.

4. Os artigos 2º, 4. e 5., 5º, 1., 13º, 1. e 3., 14º, 1., 2. e 3., 15º, 1., 4. e 5., e 16º, 3. do documento referido em 3., têm o seguinte conteúdo:

“(…)

Artigo 2º - Início de vigência e prazo de aluguer

(…)

4. O Locatário poderá antecipar o termo do prazo de vigência do contrato procedendo à entrega ao locador do bem objeto do mesmo, nos termos previstos pelo Artigo 13.º.

5. No caso de cessação do Contrato nos termos previstos no número precedente, o locatário ficará obrigado a proceder ao imediato pagamento dos alugueres eventualmente vencidos e não pagos, acrescidos de juros de mora, bem como de um montante indemnizatório igual a 50% da soma dos alugueres vincendos, sem prejuízo do direito do locador de exigir a reparação integral dos seus prejuízos, podendo o locador optar, em alternativa ao pagamento da referida indemnização, pela indemnização prevista no n.º 5 do artigo 15.º.

(…)

Artigo 5º - Encargos

1. Todas as despesas ou encargos inerentes ou resultantes da assinatura, vigência, execução, cumprimento e incumprimento do presente contrato e, bem assim, todas as despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogados, solicitadores e/ ou prestadores de serviços em que o locador venha a incorrer para garantia e cobrança dos créditos emergentes do presente Contrato, que desde já se fixam em 15% sobre os valores a cobrar, acrescidos dos impostos e demais encargos legais em vigor, são da responsabilidade do locatário.

(…)

Artigo 13º - Termo do aluguer

1. No final do prazo do presente Contrato e desde que nessa data não estejam por liquidar ao locador dívidas vencidas, o locatário poderá proceder à aquisição do bem mediante o pagamento do valor futuro previsto nas Condições Particulares, acrescido das despesas e encargos conexos, ficando a transferência da propriedade sobre o bem condicionada ao efectivo pagamento daquele valor futuro.

(…)

3. Não exercendo a opção de compra, o locatário deverá proceder à imediata devolução do bem ao locado, no local de devolução indicado nas Condições Particulares, em bom estado de manutenção e funcionamento, dotado de todas as peças e acessórios que o constituem, sendo o locatário responsável por todas as despesas com a devolução do bem

(…)

Artigo 14º - Mora

1. Em caso de mora no pagamento pelo locatário de quaisquer quantias devidas ao locador por força deste contrato, incluindo os valores referenciados no artigo 17.º, n.º 3, aquele pagará ao locador juros de mora calculados à taxa nominal contratada, ou à taxa supletiva legal se superior àquela agravada de qualquer caso da sobretaxa máxima permitida por lei.

2. O locatário só fará cessar a mora mediante a liquidação das quantias vencidas e não pagas, acrescidas de uma indemnização correspondente a 50% do que for devido.

3. Verificada a situação prevista no número 1 deste Artigo, e sem prejuízo do direito à resolução co Contrato nos termos do Artigo seguinte, o locador poderá desde logo executar qualquer das livranças entregues como garantia do pontual cumprimento das obrigações que para o locatário emergem do presente Contrato. (…).

(…)

Artigo 15º - Rescisão do Contrato

1. O locador poderá rescindir o presente contrato sempre que o locatário incorra na falta de pagamento de duas prestações sucessivas cujo montante perfaça 10% do montante total do crédito e, cumulativamente, o locatário não proceda ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas de eventuais encargos ou indemnizações devidas, no prazo de 15 (quinze) dias de calendário após o envio pelo locador ao locatário de comunicação interpelando-o para o efeito.

(…)

4. No caso de resolução do Contrato pelo locador nos termos previstos nos números precedentes, o locatário deverá:

a) Proceder à imediata devolução do bem nos termos previstos no artigo 13.º;

b) Proceder ao imediato pagamentos dos alugueres vencidos e não pagos acrescidos de juros de mora;

c) Proceder ao imediato pagamento de um montante indemnizatório igual a 50% da soma dos alugueres vincendos, sem prejuízo do direito do locador de exigir a reparação integral dos seus prejuízos.

5. Na resolução do Contrato nos termos previstos nos números anteriores, o locador poderá optar, em alternativa à indemnização prevista na alínea c) do n.º 4, pelo pagamento imediato de uma indemnização correspondente à diferença entre o valor futuro previsto nas Condições Particulares e o valor do capital amortizado pelo locatário através do pagamento dos alugueres vencidos.

(…)

Artigo 16º - Garantias

(…)

3. O locatário e os respectivos avalistas autorizam expressamente o locador, em caso de incumprimento do Contrato, a preencher as livranças em branco por aquele subscritas e por estes avalizadas nesta data, bem como as livranças que venham a ser subscritas nos termos do Artigo 14.º, n.º 3, designadamente no que se refere à data do vencimento, ao local de pagamento e ao seu montante, até ao limite das responsabilidades assumidas pelo locatário e não pagas.

(…)”

5. O executado deixou de pagar as prestações referidas em 3. - admitido por acordo (alegado no r.e. e não impugnado na petição).

6. A exequente enviou ao embargante uma carta registada com AR, datada de 07.03.2013, que foi efetivamente recebida pelo destinatário em 12.03.2013, e cujo conteúdo é além do mais o seguinte:

“(…)

Exmo(s). Senhor(es).

Informamos que se encontram por liquidar os alugueres relativos ao contrato em assunto, cujos valores e respectivas datas de vencimento constam da listagem que se junta em anexo por comodidade de consulta, os quais, acrescidas dos juros de mora convencionados e despesas, ascendem nesta data ao montante total global de 2.606,76 Euros.

Assim, e por forma a cessar a situação de mora em que V. Exa. se encontra, vimos pela presente solicitar que proceda ao pagamento do montante em dívida acima referido, acrescido de uma indemnização correspondente a 50% dos alugueres vencidos e não pagos, num montante total global de 3.589,54 Euros, no prazo máximo de 15 (…) dias (…).”

7. O veículo 92-(...)-65 foi entregue pelo embargante à exequente no dia 22.03.2014.

8. Aquando da entrega referida no ponto anterior, o embargante apôs a sua assinatura num documento denominado “Entrega voluntária de equipamento”, surgindo a mesma assinatura encimada pela seguinte declaração:

“Carlos Domingos Coelho Neves (…) vem por este meio declarar, que por sua livre e espontânea vontade, entregou (…) a viatura (…) Matrícula 92-(...)-65, objecto do contrato n.º (…).

Declara que o faz por impossibilidade de cumprir o referido contrato, reconhecendo, por isso, o direito da BMW a promover a resolução do mesmo, nos termos e com as consequências previstas nas Condições Gerais do contrato celebrado.

Mais declara reconhecer que a aceitação do veículo pela BMW não comporta a revogação, por acordo, do contrato celebrado.

(…)”.

9. A exequente enviou ao embargante uma carta registada com AR, datada de 01.04.2013, que foi efetivamente recebida pelo destinatário em 03.04.2013, e cujo conteúdo é além do mais o seguinte:

“(…)

Exmo. Senhor,

Tendo V. Exa. optado por proceder à antecipação do termo do prazo de vigência do contrato, procedendo à entrega do veículo objecto do mesmo, informamos que em conformidade com o disposto no n.º 5 do artigo 2º das condições gerais do contrato, se encontram por liquidar os seguintes montantes:

a) 3.071,70 Euros, a título de alugueres vencidos e não pagos, de juros de mora convencionados e de despesas;

b) 12.701,92 Euros, a título de indemnização, correspondentes a 50% da soma dos alugueres vincendos até ao termo do prazo do aluguer num total de 15.773,62 Euros.

Informamos que, caso o pagamento do valor acima indicado não seja efectuado no prazo máximo de 8 (oito) dias, instruiremos os nossos advogados para promoverem judicialmente a satisfação dos nossos direitos contratuais.

(…)”.

10. A exequente, através do seu I. mandatário, enviou ao embargante uma carta datada de 11.06.2013, que foi efetivamente recebida pelo destinatário em 17.06.2013, e cujo conteúdo é além do mais o seguinte:

“(…)

Exmo (a) Senhor (a),

Encarregou-nos a nossa constituinte (…) de propor contra V. Exa. a respectiva acção executiva para pagamento coercivo da quantia de € 18.243,12 de que V. Exa. é devedor (a) na qualidade de subscritor da livrança subscrita no âmbito do contrato acima identificado.

Ao abrigo do clausulado contratual, foi efectuado o preenchimento da livrança entregue para o efeito por V. Exa., com o montante de € 18.243,12. Este valor encontra-se a pagamento (…) até dia 21/06/2013 (data de vencimento da livrança).

(…)

11. Consta o seguinte no requerimento executivo, na parte referente à liquidação da obrigação:

«Liquidação da obrigação

Valor Líquido: 0,00 €

Valor dependente de simples cálculo aritmético: 18.243,12 €

Valor não dependente de simples cálculo aritmético: 6,00 €

Total: 18.249,12 €

Rendas Vencidas entre 28-11-2012 e 28-01-2013: € 2.158,07

Juros e despesas contratuais: € 689,01

Despesas de cobrança: € 2.379,53

Indemnização do capital vincendo – Cláusula 15º, n.º 4, al. c): € 12.701,92

Imposto sobre veículos: € 224,17

Reboque: € 90,42

TOTAL: € 18.243,12 (…)

€ 18.243,12 x 4% x 3/365 = € 6,0

€ 18.243,12 + 6,0 = € 18.249,12».




Fundamentação


Começamos por notar que a fundamentação das conclusões a que o recorrente chega acerca da validade jurídica das cláusulas contratuais contra as quais se insurge assenta, em boa parte, em factos essenciais que não foram alegados nos articulados e, por isso, não constam da sentença recorrida, nem como provados, nem como não provados. Estão nessas condições, desde logo, os factos que, a provarem-se, permitiriam concluir que o contrato dos autos é, como o recorrente veio pela primeira vez sustentar quando se pronunciou sobre o aspecto jurídico da causa antes da prolação da sentença e reiterou nas suas alegações de recurso, caracterizável como um contrato de adesão. Tais factos são referidos nas conclusões 36, 38 e 41 do presente recurso. Aí, o recorrente afirma que a recorrida, parte economicamente mais forte, fixou claramente a seu bel-prazer todo o clausulado, sem qualquer discussão; que nos encontramos perante cláusulas de antemão fixadas pela recorrida sem lhe oferecer a si, parte economicamente mais fraca, a possibilidade preliminar de análise e discussão, a fim de obter supressão ou modificação das redacções originais; e conclui que “estamos aqui claramente perante um contrato de adesão, onde a vontade do aderente para além de não ser livre, também não estará, na maioria dos casos, plenamente esclarecida, mesmo que se leia o manancial de cláusulas extensas, impressas em letra miudinha e postas perante um potencial aderente carecido de conhecimentos jurídicos”. Tratando-se de factos essenciais e não tendo os mesmos sido alegados pelas partes nos articulados, andou bem o tribunal a quo ao não os incluir na sentença recorrida, atento o disposto no artigo 5.º, n.º 1, do CPC. Aliás, o recorrente não impugna a decisão sobre a matéria de facto. Logo, os mesmos factos, porque inexistentes no processo, não poderão ser considerados em sede de recurso, o que tem por consequência a inaplicabilidade do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25.10, atento o disposto no n.º 1 do seu artigo 1.º, do qual resulta que constitui pressuposto da aplicabilidade desse regime que se esteja perante “cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar”.

Não é só no aspecto acabado de referir que o recorrente, nas suas alegações, toma por provados factos que o não estão, tornando-se, assim, necessário expurgar da sua argumentação tudo aquilo que se baseie em tais hipotéticos factos, sem o que será impossível conhecer do recurso com o devido rigor técnico. Assim, não está provado que o veículo tenha sido restituído em perfeito estado de conservação (conclusão 5), que a recorrente tenha vendido o veículo pelo seu preço de mercado e que este seja de cerca de € 28.000,00 (conclusão 6) e, ainda, que tal hipotética venda tenha sido realizada pela recorrida “com óbvio lucro suplementar” (conclusão 9).

A alegação, pelo recorrente, de que está em causa a necessidade, constitucionalmente consagrada, de repressão dos abusos do poder económico e de todas as práticas lesivas do interesse geral, bem como de protecção do consumidor (conclusão 42), também não encontra fundamento nos factos julgados provados na sentença recorrida. Na mesma conclusão, o recorrente invoca o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2009, mas é manifesto que o mesmo não é aplicável ao caso sub judice, sendo certo que a pretensão dessa aplicabilidade não se encontra fundamentada.

Nas conclusões 21 e 22, o recorrente fala na possibilidade de penhora do veículo pela recorrida. Porém, isso não faz sentido porquanto, sendo o contrato celebrado entre recorrente e recorrida de aluguer de longa duração, o mesmo veículo nunca deixou de ser propriedade desta última, que outorgou na qualidade de locadora. Trata-se, pois, de argumentação irrelevante.

Esclarecidos todos estes aspectos, concentremo-nos na segunda questão acima enunciada, a saber, a da validade das cláusulas contratuais visadas pelo recorrente.

O recorrente invoca a nulidade das cláusulas do contrato que preveem que, em caso de incumprimento pelo locatário, este fica obrigado a pagar, cumulativamente, as prestações vencidas e não pagas, juros de mora sobre essas prestações à taxa máxima permitida por lei, uma indemnização correspondente a 50% do valor das prestações vincendas e as despesas e encargos descritos na cláusula 5.ª.

A fundamentação jurídica expendida pelo recorrente para sustentar esta tese é, porém, muito vaga, pois limita-se a pouco mais que afirmações genéricas como as de que a atribuição cumulativa dos referidos direitos à recorrida contraria a lei e ofende a ordem pública e/ou os bons costumes (conclusão 10), gera um enriquecimento sem causa (conclusão 10), propicia situações abusivas, injustas ou violadoras da boa-fé negocial (conclusões 11, 29 e 38), ultrapassa amplamente os limites estabelecidos pelo sistema (conclusão 13), constitui um abuso do direito por exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e/ou pelo fim económico ou social desse direito (conclusão 15), afectam “o equilíbrio do sinalagma” (conclusão 38) e têm, como consequência, o preenchimento da livrança com um montante “completamente desproporcionado, injusto, desajustado” (cláusula 44). A isto, o recorrente acrescenta que o regime contratualmente fixado é “intolerável e revoltante” (conclusão 23), que é “incrível” que os juros sejam fixados, não à taxa comum, mas à taxa máxima (conclusão 26) e que a indemnização correspondente a 50% do valor das prestações vincendas é “indizível ou inominável” e, novamente, “revoltante” (conclusão 27).

Perante afirmações como aquelas que acabámos de reproduzir, algumas das quais se limitam a reproduzir conceitos jurídicos e outras nem isso, ficamos sem conhecer os concretos raciocínios jurídicos, fundados em factos julgados provados, que o recorrente terá desenvolvido para concluir que a atribuição cumulativa dos direitos acima descritos à recorrida contraria a lei (sem especificar qual), ofende a ordem pública e/ou os bons costumes, gera um enriquecimento sem causa, propicia situações abusivas, injustas ou violadoras da boa-fé negocial, ultrapassa amplamente os limites estabelecidos pelo sistema, constitui um abuso do direito por exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e/ou pelo fim económico ou social desse direito e afecta “o equilíbrio do sinalagma”. Em consequência disso, dificilmente se consegue ir além do mero não acolhimento, por falta de demonstração por parte do recorrente, das descritas afirmações genéricas.

O tribunal a quo analisou as referidas questões na medida daquilo que lhe foi possível tendo em conta as limitações da alegação do ora recorrente, concluindo, por um lado, que “não resulta dos autos que tenha sido considerado o referido acréscimo de quatro pontos percentuais no preenchimento da livrança” e, por outro, que o valor correspondente a 50% dos alugueres vincendos até ao termo do prazo do aluguer não constitui um montante indemnizatório manifestamente excessivo, “sobretudo atendendo ao número de prestações que foram pagas e ao facto de o veículo ter sido devolvido quando ainda faltava mais de metade do tempo para se completar o período de vigência do contrato”. Em sede de recurso, o recorrente não refuta directamente esta argumentação, limitando-se a reiterar alegações genéricas. Perante isto, diremos que concordamos com a argumentação expendida pelo tribunal a quo. No que concerne à indemnização correspondente a 50% dos alugueres vincendos até ao final do prazo do contrato, que constitui o alvo fundamental do inconformismo do recorrente, não nos parece que se trate de um montante desproporcionado, mesmo tendo em conta os restantes direitos que do mesmo contrato resultam para a recorrida. Isto porque, em consequência da extinção da relação contratual motivada pela entrega do veículo por parte do locatário (que constitui um facto a este imputável), o locador deixa de receber as prestações vincendas, com as quais legitimamente contava, assim se frustrando, ao menos parcialmente, a expectativa de lucro com que celebrou o contrato, e, em vez disso, recebe um veículo usado, sabido, como é, que os veículos automóveis são bens sujeitos a rápida e acentuada desvalorização. Para compensar tal perda económica do locador, o qual perspectivava a execução do contrato até ao fim e não a sua extinção prematura e as consequentes perda de rendimento e recepção de um veículo usado que terá o ónus de vender a terceiro, a referida indemnização afigura-se aceitável à luz de qualquer dos parâmetros invocados pelo recorrente. Nomeadamente, não há qualquer abuso de direito, ou enriquecimento sem causa, também nisso merecendo inteira concordância o decidido pelo tribunal a quo.

Concluindo, a sentença recorrida não merece censura, devendo o recurso ser julgado improcedente.


Sumário


1 – Cabe ao autor o ónus de alegação dos factos que constituem pressuposto da aplicação do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.

2 – Nada obsta à validade das cláusulas de um contrato de aluguer de longa duração por força das quais, na hipótese de extinção da relação contratual por efeito da entrega do bem pelo locatário, este fica obrigado a pagar, cumulativamente, as prestações em dívida, juros de mora sobre estas prestações à taxa máxima permitida por lei, as despesas e encargos necessários para a cobrança do crédito do locador e uma indemnização correspondente a 50% do valor das prestações vincendas.


Decisão


Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.

Notifique.


*

Évora, 14 de Fevereiro de 2019

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

José Manuel Barata

Conceição Ferreira