Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2338/13.8TBSTB-A.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: EXECUÇÃO
LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
AVALISTA
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - Tendo uma livrança em branco sido entregue ao Banco exequente para garantir as obrigações resultantes de um contrato de mútuo com uma sociedade, vindo a mesma a ser preenchida antes do PER ter sido sequer requerido pela dita sociedade e, por conseguinte, antes de ter sido homologado, nada impede que a execução prossiga contra os respectivos avalistas da livrança;
II - O único reflexo que o PER poderá ter na dívida exequenda, titulada pela livrança é obter a sua redução na mesma proporção em que a sociedade por via do plano o for liquidando, sob pena de um injustificado locupletamento do credor (que assim receberia o seu crédito por duas vias).
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I- RELATÓRIO

1. Por apenso à execução para pagamento de quantia certa contra si instaurada por AA, SA. em 17.4.2013 vieram os executados BB e CC deduzir oposição à execução.

Para alicerçarem a sua pretensão, invocaram os seguintes fundamentos:

- relativamente à execução baseada em livrança preenchida pela importância de € 1.762.415,60, alegaram que a sociedade subscritora do título (“DD, SA”) requereu PER, tendo sido nomeado administrador judicial provisório e tendo-se dado início às negociações, razão pela qual se encontra vedada a possibilidade de execução do aval por eles prestado, pelo menos enquanto decorrerem as negociações, sendo inexigível a obrigação exequenda;
- relativamente à execução baseada em livrança preenchida pela importância de € 76.096,38, alegaram que o empréstimo subjacente à emissão do título se destinou exclusivamente ao pagamento de dívidas da sociedade acima identificada, sendo em termos materiais uma dívida dessa sociedade, valendo tudo o foi expendido relativamente à primeira execução, dada a pendência do PER.
Concluíram requerendo a procedência dos embargos, determinando-se a suspensão da execução até homologação do plano de recuperação, no âmbito do PER em curso.
Foi entretanto junta ao processo uma certidão da sentença de 16.12. 2013 que homologou o plano de revitalização (cf. fls. 41-45).
Os embargos foram rejeitados liminarmente por manifesta improcedência.

2. E é dessa decisão que os oponentes recorrem, formulando as seguintes conclusões:

1. Veio a EE apresentar acção executiva contra os ora Recorrentes, fundamentando a sua pretensão, em síntese, no incumprimento de um contrato de mútuo celebrado em 9 de Novembro de 2009, entre a ora Recorrida, na qualidade de mutuante, e a sociedade “DD, S.A.”(de ora em diante a “Sociedade”), na qualidade de mutuária, no montante de capital de € 1.520.000,00 (um milhão quinhentos e vinte mil euros), a que foi atribuído o n.º 59063676316 e ao qual os ora Recorrentes prestaram o seu aval, e, no remanescente, b) um contrato de mútuo celebrado em 1 de Julho de 2011, entre a EE, na qualidade de mutuante, e o Recorrente BB, na qualidade de mutuário, no montante de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), a que foi atribuído o n.º 56051349278 e ao qual o Recorrente CC prestou o seu aval.

2. Apresentaram os Recorrentes a competente oposição à execução, defendendo, em síntese, a suspensão da execução, atento o facto de se encontrar em curso o processo especial de revitalização da Sociedade (n.º 873/13.7TYLSB que correu termos na Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio, J2) e, nessa medida, como estabelece o artigo 17.º - E do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (doravante apenas o “CIRE”), estarem os credores impedidos de intentar acções para cobrança de dívida.

Com efeito,

3. A EE não só reclamou o seu crédito, como foi o mesmo alvo do devido reconhecimento pelo administrador judicial provisório nomeado, importando realçar que a dívida exequenda corresponde, na íntegra, à dívida reclamada, e reconhecida, no PER.

4. O Plano de Recuperação apresentado acabou por ser homologado porsentença transitada em julgado em 30-09-2014.

5. A concreta forma de pagamento da dívida exequenda ficou assim regulada no Plano de Recuperação apresentado, aprovado e homologado, motivo pelo qual, reitere-se, inexiste qualquer incumprimento que pudesse legitimar a execução dos avalistas.

6. Incidindo a presente execução sobre os avalistas de uma dívida cuja concreta forma de pagamento está expressamente prevista num plano de recuperação aprovado, homologado e transitado em julgado, importará analisar os efeitos de tal plano de recuperação, nomeadamente nas relações estabelecidas entre a EE e os Avalistas dos seus créditos.

7. Estatui o n.º 6 do artigo 17.º - F do CIRE que “a decisão do juiz vincula os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações (…).” –o plano tem, portanto, carácter vinculativo para todos os credores, tenham ou não participado nas negociações.

8. Assim, verificados todos os requisitos legalmente exigidos para a aprovação do Plano, bem como o seu posterior controlo jurisdicional, a lei prevê expressamente a imposição das alterações previstas no Plano aos créditos a todos credores, ainda que contra a vontade expressa destes, verificando-se, desta forma, um verdadeiro suprimento da vontade de todos os credores, nomeadamente, os credores discordantes do Plano e daqueles que nem sequer se pronunciaram quanto ao mesmo – e que, não obstante tal falta de pronúncia, lhe vêm ser impostas, por previsão legal expressa, as medidas previstas no Plano.

9. Entendimento diferente não encontra qualquer suporte legal nem nas concretas normas do CIRE que regem este tipo de procedimento, nem tão pouco no próprio PER, holisticamente considerado, sendo caso para questionar, a admitir-se entendimento diferente, qual o alcance prático do n.º 6 do artigo 17.º – F do CIRE?

10. Ora, não obstante tal regime, veio a EE apresentar a presente execução contra os garantes de uma obrigação cujo pagamento se encontra regulado num plano de recuperação, ao arrepio não só da letra da lei, mas, porventura mais relevante, ao arrepio das próprias negociações em que participou!

11. Mas também, e ainda, ao arrepio dos mais elementares e basilares princípios transversais ao nosso ordenamento jurídico, sendo de destacar, pelo relevo que têm in casu, os princípios da boa - fé, da lealdade, da segurança jurídica e da confiança. Em concretização dos mesmos, dispõe o nº 10 do artigo 17º -D, do CIRE, que “durante as negociações os intervenientes devem atuar de acordo com os princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros nº43/2011, de 25 de Outubro”. Estabelecendo-se, no segundo dos referidos princípios que ” durante todo o procedimento, as partes devem actuar de boa -fé, na busca de uma solução construtiva que satisfaça todos os envolvidos.”

12. Temos, assim, a boa – fé expressamente prevista como linha orientadora da conduta de todos os interveniente processuais ao longo de todo o procedimento, no sentido da obtenção de uma solução que satisfaça todos os envolvidos.

13. Como já referido supra, a EE reclamou os seus créditos, manifestou a intenção de participar nas negociações e participou nas negociações do PER da Sociedade. O que porventura não logrou foi obter o resultado que pretendia. E, como não o fez, veio agora cobrar coercivamente um crédito cuja concreta forma de pagamento de encontra regulada num plano de recuperação - vinculativo para a EE -, cujo pagamento é, em bom rigor, da responsabilidade da Sociedade.

14. Efectivamente, e apesar de originariamente a obrigação exequenda ser da Sociedade, a mesma foi avalizada pelos ora Recorrentes, conforme alegado a EE e, de resto, assumido por aqueles. Sucede que os avales prestados não poderiam ter sido accionados, já que inexiste um qualquer incumprimento por parte da sociedade.

15. De facto, constituindo o aval o acto pelo qual um terceiro garante o pagamento de uma letra ou livrança por parte de um dos seus subscritores (conforme artigos 30.º, 31.º, 32.º e 77.º da (LULL), o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, conforme expressamente estatuído no referido artigo 32.º da LULL.

16. A responsabilidade do avalista é, de resto, solidária com a do obrigado principal, sendo que, se por um lado, tal solidariedade implica que o credor possa exigir a totalidade da prestação de qualquer um dos credores (devedor principal ou avalistas), não poderá também deixar de implicar uma identidade e unicidade da prestação - a obrigação assumida pelo devedor principal e avalizada pelo avalista é apenas uma, e é una.

17. Pelo que, alterada a forma de pagamento da obrigação relativamente ao obrigado principal, não poderá deixar de considerar-se tal obrigação alterada também relativamente os avalistas transmudada que foi a obrigação principal pelo plano de recuperação (plano vinculativo para a EE, como já referido), transmudada estará também, por maioria de razão, a obrigação dos avalistas que garantiram o pagamento de tal dívida.

18. Pelo que permitir a execução dos ora Recorrentes, como fez o tribunal a quo, por força dos avales prestados a uma obrigação expressamente regulada num Plano de Recuperação, inexistindo qualquer incumprimento por parte da Sociedade, constitui uma violação expressa do n.º 6 do artigo 17º – F do CIRE. Até porque, como já ficou referido supra, inexistindo incumprimento (que inexiste), a dívida exequenda é inexigível – tanto à Sociedade como aos seus avalistas.

19. De facto, estranho seria que, expressamente imposta a boa – fé no período das negociações a todos os intervenientes, vigorando, ainda, um princípio geral de não hostilidade, tanto relativamente ao devedor, como ainda relativamente aos eventuais avalistas das dívidas da Sociedade, tais linhas orientadoras se extinguissem com a aprovação e homologação do plano de recuperação.

20. Assim, para além de constituir violação expressa do disposto no artigo 17.º - F, n.º 6, não é coerente com a recuperação da Sociedade, nem tão pouco com a participação nas negociações pela EE, a instauração de execuções movidas contra os avalistas.

21. Assim e face a tudo o que ficou exposto, a EE não podia como fez, executar os avalistas do seu crédito, ignorando as negociações e o plano aprovado e homologado, por tal constituir, desde logo, uma violação clara e ostensiva tanto do artigo 17.º - F, n.º 6 do CIRE, bem assim como do princípio da boa – fé, bem como duma interpretação holística e sistemática do próprio PER (que se impõe). Neste sentido, de referir a posição sufragada por LUÍS MARTINS, in https://www.luismmartins.pt/blog, bem assim como pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-12-2007 (proc. n.º 07B4176) ou pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24-04-2012 (proc. n.º 1248/10.5TBBCL-A.G2), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

22. Com a aprovação do Plano de Recuperação, o título ora dado à execução transmudou-se, passando a existir um novo título executivo – o plano de recuperação.

23. Quanto ao n.º 4 do artigo 217.º do CIRE, importa sublinhar que o regime legal do PER, constante dos artigos 17.º - A a 17.º - I, não contém regra idêntica, nem tão pouco resulta de tal regime qualquer remissão geral para o regime da insolvência.

24. De facto, da análise do regime legal do PER, resulta claro e inequívoco existirem remissões pontuais para o regime da insolvência, aplicando-se ao PER, sempre com as devidas adaptações, alguns artigos, expressa e individualmente mencionados pelo legislador, relativos ao processo de insolvência.

25. Do exposto resultam duas ilações essenciais: a primeira relativa ao facto de as remissões constantes do regime do PER para o regime da insolvência serem remissões pontuais – o que, no mínimo, indicia a opção clara do legislador de evitar aplicação (e confusão!) de regimes que, na sua essência, são, efectivamente diferentes.

26. Em segundo lugar, importará reter que, para além de pontuais, as remissões efectuadas sempre deverão ser efectuadas, nas palavras do legislador, com as necessárias adaptações (cfr. artigos 17.º C, n.º 3, alíneas a) e b); 17.º - F, n.º 4 e 5 e n.º 4 do artigo 17.º - G), apenas se prescindindo da necessária adaptação quando a simplicidade e objectividade do concreto aspecto do regime previsto para a insolvência, e que se pretende aplicar ao PER, torna desnecessário esse esforço de adaptação de regime.

27. A última nota prende-se com a remissão efectuada no n.º 5 do artigo 17.º - F, remissão que impõe, desde logo, a necessidade de um esforço de adaptação das normas para a qual remete (relativas ao plano de insolvência) ao regime do PER. Por outro lado, para além de exigir a adaptação de regimes, o preceito remete para as regras vigentes em matéria de aprovação e de homologação do plano de insolvência e não para quaisquer outras. Assim, não obstante a remissão para um concreto Título do CIRE (relativo ao processo de insolvência), o legislador fez questão de, para além de inserir a obrigatoriedade da adaptação, delimitar, expressa e objectivamente, a remissão efectuada.

28. Ora, as regras vigentes em matéria de aprovação e de homologação do plano de insolvência constam do Capítulo II do Título IX do CIRE (artigos 209.º a 216.º). O artigo 217.º pertence já ao Capítulo III do Título IX, relativo à execução do plano de insolvência e seus efeitos – temos, assim, e para o que ora nos interessa, expressamente excluído da remissão efectuada no n.º 5 do artigo 17.º - F o artigo 217.º do CIRE, mais concretamente, o seu n.º 4. De resto, contemplando tal normativo um regime excepcional face ao regime geral da acessoriedade das garantias, fica definitivamente afastada a sua eventual aplicação analógica ao processo de revitalização.

29. Admitir a aplicabilidade do n.º 4 do artigo 217.º ao PER, bem assim como, consequentemente, a possibilidade de execução dos avais prestado a uma sociedade em PER, tanto no período das negociações como posteriormente, ofende, frontalmente, o novo paradigma que esteve subjacente à previsão do PER no ordenamento jurídico português.

30. Temos, assim, que será inaplicável ao PER o n.º 4 do artigo 217.º, só assim se logrando obter uma interpretação que permita alcançar os fins do PER, de forma a que sejam alcançados os objectivos gizados na Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25/10.

31. Nem de outra forma poderia ser, até porque importará sublinhar o facto de o Título IX do CIRE se referir a planos de insolvência e não a planos de recuperação, sendo que, mesmo em sede de insolvência, a possibilidade de apresentação de dois tipos de planos (plano de insolvência e plano de recuperação) implica, de per si, adaptações de regime, sendo que um plano de recuperação em insolvência não poderá ser confundido com um plano de recuperação em PER: se o primeiro é ainda uma expressão da liquidação universal em que consiste o processo de insolvência, em ordem à satisfação dos credores, o segundo traduz já o novo paradigma introduzido com a última alteração ao CIRE, visando, primordialmente, a recuperação do devedor.

32. Acresce que, ainda que se admitisse a aplicabilidade daquele n.º 4 do artigo 217.º do CIRE ao PER, no que não se concede, sempre estaria a EE impedido de avançar com os presentes autos, pois que o caso em análise não é abrangido pelo âmbito de aplicação do referido preceito.

33. De facto, estabelece tal normativo legal que “as providências previstas o plano de insolência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação (...).(realce e sublinhado nossos)

34. O preceito é claro: as medidas previstas no plano não afectam a existência ou o montante dos direitos do credor perante terceiros garantes, nada estando estabelecido quanto a eventuais moratórias.

35. O legislador foi, assim, preciso ao delimitar o âmbito dos direitos dos credores contra os condevedores e garantes insusceptíveis de serafectados pelas providências previstas no plano, circunscrevendo-o, de acordo com a letra do n.º 4 do artigo 217.º do CIRE à existência e montante dos créditos. A tutela excepcional prevista no n.º 4 do artigo 217.º do CIRE não se estende, assim, ao prazo e demais condições de pagamento.

36. A admitir-se a aplicabilidade deste preceito ao PER, teríamos, então, que, se houvesse sido estipulado um perdão do crédito, este não se repercutiria na esfera jurídico – patrimonial dos avalistas, pois que seria a própria existência do crédito (no caso de um perdão total) ou o seu montante (no caso de um perdão parcial) que seriam afectados.

37. Já não será assim se inexistir um qualquer perdão, como acontece in casu, pois que nem a existência do crédito, nem o seu montante foram alterados, mas apenas a sua forma de pagamento, circunstância que não se encontra prevista no normativo em análise.

38. Neste sentido, vide, Catarina Serra (“O PER na Jurisprudência”, Almedina, 2016, pgs. 113 e 114) ou Manuel Januário da Costa Gomes, “Sobre os poderes dos credores sobre os fiadores no âmbito da aplicação do CIRE. Breves Notas”, em III Congresso de Direito de Insolvência, Coordenação: Catarina Serra, Almedina, 2015, pág. 332.

39. Assim, e face a tudo o que ficou exposto, esteve mal o tribunal a quo ao indeferir liminarmente a oposição apresentada, pois que não assistia à CCAM o direito de apresentar, como fez, a presente execução depois de homologado o plano de recuperação, na medida em que, através da mesma, se pretende o ressarcimento de uma dívida objecto de alteração num plano de recuperação aprovado e homologado, alteração que se repercute inevitável e necessariamente na relação estabelecida entre a CCAM e os avalistas da Sociedade, ora Recorrentes.

Nestes termos e, nos demais de Direito, Deve o presente recurso ser considerado totalmente procedente, revogando-se, consequentemente, a sentença que: b) indeferiu liminarmente a oposição à execução deduzida.

Devendo tal sentença ser substituída por ma que julgue procedente a oposição deduzida pelos Recorrentes,

Assim se fazendo a Habitual Justiça! “.

3. Não houve contra-alegações.

4. Dispensaram-se os vistos.

5. O objecto do recurso – delimitado pelas enunciadas conclusões- centra-se na questão de saber se a execução que foi intentada contra os ora oponentes, um subscritor de uma das livranças exequendas, sendo o outro seu avalista, e ambos avalistas da outra livrança exequenda, que foi, por seu turno subscrita pela sociedade “ DD, S.A.” que entretanto requereu PER que veio a ser homologado, pode prosseguir contra os mesmos.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1. A factualidade a considerar, para além do que resulta do antecedente relatório, é a seguinte:

A. O banco exequente é dono e legítimo portador de duas livranças dadas à execução:

- uma, no montante de €76.096,38, à qual foi aposta a data de vencimento de 17.4.2013, subscrita “ em branco” pelo executado BB para garantia do cumprimento das obrigações emergentes de um empréstimo por si contraído com o nº. 56051349278, no montante de € 100.000,00 (cem mil euros), pelo prazo de 3 anos, a ser pago em prestações semestrais, à taxa nominal de 10,749%, acrescida de 4% de mora, e nos demais termos e condições constantes do contrato junto aos autos de execução, o qual foi igualmente avalizado pelo executado CC que no verso da mesma livrança apôs a sua assinatura sob a expressão “ bom por aval“;

- outra, no montante de € 1.762415,60, à qual foi aposta a data de vencimento de 17.4.2013, subscrita “ em branco” pela Sociedade “ DD S.A.” para garantia do cumprimento das obrigações emergentes de um empréstimo por si contraído com o nº. 59063676316, no montante de € 1.520.000,00 (um milhão quinhentos e vinte mil euros), pelo prazo de 3 anos, à taxa nominal de 6,243% e nos demais termos e condições constantes do contrato junto aos autos de execução, os quais no verso da mesma livrança apuseram a sua assinatura sob a expressão “ bom por aval à firma subscritora“.

B. A DD S.A.” sociedade referida no número anterior requereu, em 10 de Maio de 2013, um PER, tendo sido nomeado administrador judicial provisório e homologado o plano de revitalização em 16.12.2013 (cf. doc. de fls. 41-45).

2. Do mérito do recurso

Entendem os embargantes /executados que a aprovação do PER da sociedade “DD, SA” impede o Banco Embargado de prosseguir execução contra os mesmos com o argumento de que o crédito, mercê do Plano, se transmudou.

Vejamos então.

2.1. Relativamente à livrança de que o embargante BB foi subscritor, temos de convir que jamais o PER relativo à sociedade que não é subscritora da livrança teria a virtualidade de se reflectir no montante do crédito exequendo.

Por conseguinte, os embargos atinentes a esse crédito titulado pela livrança no valor de €76.096,38 são manifestamente improcedentes, como a sentença decidiu.

2.2. Cuidemos agora da livrança no valor de € 1.762415,60 à qual foi aposta a data de vencimento de 17.4.2013, subscrita “ em branco” pela Sociedade “ DD S.A.” para garantia do cumprimento das obrigações emergentes de um empréstimo por si contraído e na qual os embargantes deram o seu aval.

Faz-se notar, com toda a relevância para a dilucidação da questão que deixámos enunciada, que a livrança em apreço foi preenchida antes do PER ter sido sequer requerido pela dita sociedade e, por conseguinte, antes de ter sido homologado.

Nada o impedia, como veremos.

Por conseguinte, a questão que se coloca é quais os reflexos que o PER entretanto aprovado relativamente à sociedade subscritora da livrança tem relativamente ao crédito exequendo.

2.3. Antes de respondermos a esta questão, cumpre salientar o seguinte:

2.3.1. Como se viu, a livrança em apreço - livrança em branco - tem subjacente a existência de um empréstimo contraído pela sociedade, tendo os embargantes, na qualidade de avalistas da mesma, intervindo na sua celebração.

Isto significa que, no caso concreto, existe claramente entre o Banco exequente (credor cambiário) e os executados (avalistas), uma relação causal, subjacente ao aval, por via da qual se estipulou determinado pacto de preenchimento para a dita livrança em branco subscrita pela sociedade mutuária.

Estamos, portanto, no domínio de relações imediatas, como é entendimento pacífico da jurisprudência[1].

Por conseguinte, é livremente oponível pelos avalistas ao portador da livrança o abuso de direito ou o preenchimento abusivo por parte deste.

2.3.2. De igual sorte, impõe-se como premissa de raciocínio, traçar em linhas gerais o regime das livranças em branco.

A lei admite e reconhece a figura da livrança em branco, nos artigos 75º, 77º e 10º LULL., a qual se destina normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior, sendo a sua entrega acompanhada de poderes para o seu preenchimento de acordo com o denominado "pacto ou acordo de preenchimento".

Como nos explica Pais de Vasconcelos[2] é possível e é frequente que ao tempo do saque (o autor refere-se às letras mas o entendimento serve igualmente para as livranças) e do aceite não esteja ainda definitivamente determinado o valor do crédito subjacente, seja ainda ilíquido .Nesse caso a letra é passada com o valor em branco.".

In casu a livrança foi subscrita ( e avalizada) com o valor em branco.

Em que termos é que pode ser preenchida ?

É o pacto de preenchimento que nos dá essa resposta.

(…).

2.3.3. Como se viu, os embargantes apuseram a sua assinatura em tal livrança sob a expressão " bom por aval à firma subscritora", o que significa que garantiram, com o seu património, a obrigação do avalizado expressa no título.

Nas palavras de Ferrer Correia[3] :" Essa garantia vem inserir-se ao lado de um determinado subscritor, cobrindo-a, caucionando-a".

O artº 32º da LULL no respectivo §1º preceitua: " O dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada".

Por conseguinte, a extensão, o conteúdo da obrigação do avalista aferem-se pela do avalizado.

Tendo a livrança em apreço, como vimos, sido entregue ao Banco exequente para garantir as obrigações resultantes do dito mútuo e tendo os embargantes autorizado o seu preenchimento no caso de incumprimento do contrato, suas eventuais prorrogações, alterações, aditamentos e /ou substituições, será que a prova produzida é de molde a concluir-se pela existência de um preenchimento abusivo i.e. em desconformidade com o acordo que esteve subjacente ao seu preenchimento e portanto em medida que exceda a responsabilidade dos embargantes.

A resposta é inequivocamente negativa.

Os próprios embargantes não questionam ser o montante nela inscrito o correspondente ao valor em dívida à data do seu preenchimento.

A questão é, como vimos, outra e prende-se com os efeitos que o PER pode ter no crédito exequendo.

2.4. O processo especial de revitalização (vulgo PER), introduzido pela Lei 16/2012, de 20 de Abril, regulado nos artigos 1º, nº2, 17º-A a 17º-I do CIRE pretendeu "(…) assumir-se como um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente eminente mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência actual.(…)", cfr Exposição de Motivos da Proposta de Lei 39/XII, de 30 de Dezembro de 2011.

É um processo negocial extrajudicial do devedor com os credores, com a orientação e fiscalização do administrador judicial provisório, focalizado na obtenção de um acordo para a revitalização da empresa, permitindo que esta regularize os seus compromissos para com os seus credores de forma preventiva, isto é, antes de entrar numa situação irreversível de insolvência.

Tal acordo extra-judicial, assente numa ampla liberdade de estipulação pelos credores, poder-se-á configurar num negócio atípico que inequivocamente vincula quem o subscreveu ou votou favoravelmente ( artºs 405º e 406º do Código Civil).

Os embargantes não mencionaram sequer em que consistia o PER mas entendem que mercê da homologação de tal plano ocorreu uma transmutação das dívidas a ele submetidas, máxime da emergente do referido contrato de empréstimo e que nele terá sido contemplado.

Ainda que assim seja, e admitindo que a obrigações emergentes de tal contrato transmudadas por via do acordo exarado no plano estejam a ser integralmente cumpridas pela devedora e subscritora da livrança, o único reflexo que isso poderá ter no âmbito da dívida exequenda, titulada pela livrança, é obter a sua redução na mesma proporção em que a sociedade o for liquidando, sob pena de um injustificado locupletamento do credor (que assim receberia o seu crédito por duas vias).

Nenhum outro efeito sobre a dívida cambiária assumida pelos embargantes terá.

É aqui que a denominada “ autonomia do aval”, expressa no art.º 32º §, 2ºda L.U.L.L. se perspectiva com maior acuidade.

Como bem se assinala no Acórdão da Relação de Coimbra de 23.5.2017[4] :“A referida doutrina da autonomia da obrigação do avalista está conforme e harmoniza-se perfeitamente com o preceituado no art.º 217, n.º 4, do CIRE, sendo de concluir que a (eventual) aprovação e homologação de plano de recuperação ou de plano de insolvência da sociedade subscritora da livrança (…), e o que aí se faça constar quanto ao cumprimento das suas obrigações/débitos, não é invocável pelos respectivos avalistas/recorrentes, contra quem o Banco portador das livranças instaurou a presente execução.

Na verdade, o plano de recuperação ou o plano de insolvência é constituído por um conjunto de medidas que só se aplicam à sociedade em recuperação ou insolvente; e não seria razoável que o credor ficasse inibido de accionar os respectivos avalistas, que não são insolventes, nem se encontram impossibilitados de cumprir as obrigações que livremente assumiram, face à autonomia da obrigação do aval que prestaram. É a autonomia do aval relativamente à relação subjacente, que justifica que o aval não seja afectado pelas vicissitudes da relação subjacente, mais concretamente pela nova conformação do crédito decorrente da aprovação e homologação do plano de recuperação ou de insolvência.”.

2.5. Em suma: A aprovação do plano de recuperação/revitalização e sua homologação por sentença é, no caso, absolutamente irrelevante, nada inviabilizando que a execução prossiga contra os avalistas da livrança pelo crédito nela inscrito, sendo certo que, como se viu, também não ocorreu preenchimento abusivo do mesmo título.

II- DECISÃO

Termos em que se julga improcedente a apelação e se mantém a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.

Évora, 8 de Fevereiro de 2018
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente

________________________________________________
[1] cfr. entre outros, acórdão do S.T.J. de 23.4.2009 relatado pela Conselheira Maria dos Prazeres Beleza , consultável na base de dados do IGFEJ.
[2] Direito Comercial, Títulos de Crédito, ed.aafdl, pag. 105
[3] In Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, pag. 207.
[4] Consultável na Base de Dados do IGFEJ.