Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
382/18.8JAFAR-A.E1
Relator: LAURA MAURÍCIO
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
PRISÃO PREVENTIVA
PERIGO DE FUGA
PERIGO DE PERTURBAÇÃO DA ORDEM E TRANQUILIDADE PÚBLICAS
Data do Acordão: 03/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Decorre da experiência comum que uma fuga, sobretudo para o estrangeiro, implica o abandono de toda a estrutura pessoal e familiar e configura uma experiência não desejada.

II - Assim, a decisão de fugir apenas pode decorrer de fortes motivos exteriores que apresentam mais vantagens do que inconvenientes.

III - Ora, a alta probabilidade de o arguido ser condenado em prisão efetiva, aliada à circunstância de ser nacional de Cabo Verde e ter ligações com países estrangeiros como a Suíça e Cabo Verde, é um critério que permite avaliar a “vantagem” que a fuga representa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No âmbito dos autos com o NUIPC 382/18.8JAFAR, em que é arguido MM, foi o mesmo, em 13 de dezembro de 2018, sujeito a primeiro interrogatório judicial, onde consta:
“ (…)
*
Nos termos do disposto no artº 141º, nº 4, al. a), do C. P. Penal, a Mmª Juiz informou o arguido dos direitos referidos no art.º 61.º, n.º 1, do referido diploma legal, explicando-lhe os mesmos.

Em cumprimento das al. b), c), d) e e), do nº 4, do artº 141º (“ex-vi” artº 144º, nº 1) do C. P. Penal, a Mmª. Juiz informou o arguido do seguinte:

1- De que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova;

2 - Motivos da detenção:
Os factos denunciados configuram a prática por parte do arguido MM em autoria material, na forma consumada, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.ºs 131.º e n.ºs 1 e 2 al. e) e h), do art.º 132.º do Código Penal.

No entendimento do Ministério Público, a gravidade dos factos imputados ao arguido (art.º 193 nº 1 do CPP), o perigo de fuga (art.º 204º al. a); continuação da actividade criminosa por parte do arguido (art.º 204 al. c) do CPP), perturbação de inquérito e de grave perturbação da ordem e tranquilidade pública (art.º 204 al. b) do CPP), impõem exigências cautelares que a mera submissão do arguido a TIR não colmata sendo, por essa razão, necessário sujeitar o arguido a primeiro interrogatório judicial com vista à aplicação de outras medidas de coacção mais gravosas (art.º 194 nº 1 e nº 4 do CPP).

3 - Factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, das circunstâncias de tempo, lugar e modo:

1. No dia 09/12/2018, no interior do bar "C. Bar", em Monte Choro, Albufeira, por volta das 05 h :45 min, MM dirigiu-se a HH e por razões não apuradas, iniciou-se uma discussão entre ambos.

2. No seguimento dessa discussão, MM, munindo-se de uma faca de dimensões não concretamente apuradas que trazia consigo, desferiu pelo menos dois golpes no corpo do ofendido com tal instrumento, atingindo-o e perfurando-o no hemitorax esquerdo e no flanco esquerdo, na zona lombar.

3. De seguida, MM saiu do estabelecimento através de uma porta lateral de serviço e pôs-se em fuga.

4. Com a conduta acima descrita, MM provocou a HH traumatismo toracoabdominal penetrante, lesões que foram causa necessária e directa da morte do mesmo, às 07:32 h, no Hospital de Faro.

5. MM, ao desferir os referidos golpes no corpo da vítima, procurou atingir órgãos vitais desta, querendo, desse modo, tirar a vida a HH, o que conseguiu.

6. Agiu por motivo fútil e insignificante, ciente das características da faca que empunhava, tendo plena consciência da capacidade de agressão da sua parte metálica e cortante e das lesões graves que poderia infligir no ofendido ao cravá-la, por mais de uma vez, no corpo deste, não se coibindo de usar tal instrumento da forma supra descrita, incidindo com a mesma em zonas vitais, bem sabendo que ao actuar dessa forma infligiria na vítima lesões que determinariam necessariamente a sua morte.

4 – Elementos do processo que indiciam os factos imputados:

- Auto de notícia de fls. 4 e ss.;
- Informação clínica de fls. 12/13;
- Reportagens fotográficas de fls. 14 a 24; 36 a 43;
- Inquirições de testemunhas de fls. 26 a 28, 29 a 31;
- Auto de visionamento de fls. 32;
- Fotogramas de fls. 36 a 42;

Pelo arguido foi dito que desejava prestar declarações, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 15 horas e 46 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 59 minutos.

E mais não disse e assina.
*
De seguida, pela Mmª Juiz foi dada a palavra ao Digno Procurador-Adjunto a fim de se pronunciar acerca das medidas de coação a serem aplicadas ao arguido, estando a sua promoção gravada através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 15 horas e 59 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 7 minutos, tendo promovido que o arguido MM aguarde os ulteriores termos do processo, sujeito à medida de coação de Prisão Preventiva.

Após, pela Mmª Juiz, foi dada a palavra ao Ilustre Mandatário do arguido, a fim de se pronunciar acerca das medidas de coação a serem aplicadas ao arguido estando o requerimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 16 horas e 7 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 9 minutos, tendo requerido, em síntese, que o arguido MM, aguarde os ulteriores termos do processo, com a sujeição à medida de coação de obrigação da permanência na habitação com a utilização de meios de vigilância eletrónica.

Após, pela Mmª Juiz foi interrompida a presente diligência, pelas 16 horas e 9 minutos, a fim de ponderar a decisão a proferir.
**
Quando eram 16 horas e 45 minutos, foi retomada a presente diligência, pela Mmª Juiz tendo proferido o seguinte:

Seguidamente, a Mmº Juíza de Direito proferiu o seguinte

DESPACHO

I- Prazo de Apresentação do Arguido perante o JIC
Conforme resulta do auto de detenção foi observado o prazo máximo de 48 horas para apresentação do detido perante o Juiz de Instrução para primeiro interrogatório judicial (arts. 254º, nº1, al. a) e 141º, nº1 do C.P.Penal).

II – Detenção
A detenção efectuada, porque fora de flagrante delito e por crime público, punível com pena de prisão, obedeceu aos requisitos legais e como tal declaro-a válida (arts. 254º, nº1, al. a), e 257º, nº 1 do C.P.Penal).

III- Apreensões
Nada a determinar atento o facto de já terem sido validadas as detenções efectuadas, em conformidade com o art. 178º, nº5 do C.P.Penal.

IV – Factos Fortemente Indiciado
(Com a descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo – cfr. art. 194º, nº4, al.a) do C.P.Penal).

Com relevância para a ponderação da medida de coacção a aplicar, importa considerar os seguintes elementos:

Factualidade Indiciária

Está fortemente indiciado que:
1. No dia 09.12.2018, no interior do bar “C. Bar”, em Montechoro, Albufeira, por volta das 05:45 horas, MM dirigiu-se a HH e, por razões não apuradas, iniciou-se uma discussão entre ambos;

2. No seguimento dessa discussão, MM, munindo-se de uma faca de dimensões não concretamente apuradas que trazia consigo, deferiu pelo menos dois golpes no corpo do ofendido com tal instrumento, atingindo-o e perfurando-o no hemotórax esquerdo e no flanco esquerdo, na zona lombar;

3. De seguida, MM saiu do estabelecimento através da porta lateral de serviço e colocou-se em fuga;

4. Com a conduta acima descrita, MM provocou a HH traumatismo toracoabdominal penetrante, lesões que foram causa necessária e directa da morte do mesmo, pelas 07:32 horas do referido dia, no Hospital de Faro;

5. MM, ao deferir os referidos golpes no corpo da vítima, procurou atingir órgãos vitais desta, querendo, desse modo, tirar a vida a HH, o que conseguiu;

6. Agiu por motivo fútil e insignificante, ciente das características da faca que empunhava, tendo plena consciência da capacidade de agressão do instrumento utilizado e das lesões graves que podia infligir ao ofendido ao deferir os golpes, por mais de uma vez, no corpo deste, não se coibindo de incidir com a faca em zonas vitais, bem sabendo que ao actuar dessa forma infligiria na vítima lesões que determinariam necessariamente a morte;

7. O arguido de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;

8. O arguido exerce a profissão de copeiro;

9. Vive com a sua mãe, em Lisboa;

10. Tem uma filha com 09 meses de idade, que vive e está entregue aos cuidados da Mãe.

Motivação

No essencial, os referidos factos resultam, conjugadamente de:
- Auto de notícia de fls. 04 e ss.;
- Informação clínica de fls. 12 e 13;
- Reportagens fotográficas, de fls. 14 a 24; 36 a 43;
- Inquirições de testemunhas, de fls. 26 a 28; 29 a 31;
- Auto de visionamento, de fls. 32;
- Fotogramas, de fls. 36 a 42.

Toda a prova foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º do C.P.Penal).

Para além de todos esses elementos de prova, valorou-se as declarações prestadas pelo arguido, o qual, de forma livre e espontânea confessou que, nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, terá agredido a vítima, com um canivete que trazia consigo.

Referiu que as agressões ocorreram num contexto de agressões físicas e mútuas, tendo tomado essa atitude como forma de se libertar do ofendido o qual, segundo referiu, o havia amarrado pelas golas e o agrediu no rosto.

Salientou que, vendo-se amarrado, sentiu necessidade de desferir os golpes no ofendido, de forma a se libertar e sair do local.

Assim, pelo exposto, e ante os elementos de prova já existentes nos autos, bem como as declarações do arguido, concluímos que os factos supra descritos se encontram fortemente indiciados.

V – Qualificação jurídica dos factos indiciados

Os factos descritos, sem prejuízo do desenvolvimento do inquérito e de uma consequente adequada qualificação jurídica dos mesmos, consubstanciam a prática, pelo arguido, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nº1 e 2, als. e) e h) do C.Penal.

VI – Exigências cautelares que se fazem sentir e medida de coacção a aplicar

As medidas de coacção visam acautelar a eficácia do processo criminal, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias.

A limitação à liberdade das pessoas só pode ocorrer em casos excepcionais e é condicionada por lei à verificação de certos pressupostos e à observância de determinados requisitos (cfr. art. 29º da C.R.P.). O art. 191º do C.P.Penal, referindo-se ao princípio da legalidade, estatui que a liberdade das pessoas só pode ser limitada total ou parcialmente, em função das exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei.

A lei admite a aplicação ao arguido de certas medidas cautelares restritivas dos seus direitos fundamentais, medidas que formula em abstracto ponderando, também em abstracto, a sua adequação, necessidade e proporcionalidade, mas prescreve também que nenhuma dessas medidas, excepção feita ao TIR, pode ser aplicada se, em concreto, não se verificar, no momento da sua aplicação: a) fuga ou perigo de fuga; b) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; c) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas (art. 204º do C.P.Penal).

Elencam-se assim as várias situações que consubstanciam exigências cautelares processuais e extraprocessuais, e que podem dar origem à aplicação de uma medida de coacção diferente e mais gravosa do que o TIR.

Os princípios da adequação e da proporcionalidade devem ser tidos em conta no momento da aplicação de uma medida de coacção e, de acordo com os mesmos, o juiz, quando considere necessário aplicar ao arguido uma medida de coacção deve aplicar-lhe, de entre as legalmente admissíveis, a que julgue idónea para salvaguardar as exigências cautelares que o caso requerer, sempre que a medida escolhida seja proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (cfr. art. 193º do C.P.Penal), devendo reservar-se a aplicação das medidas de coacção de prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação para as situações em que as demais medidas se revelem inadequadas ou insuficientes (art. 193º, nº 1 e 3). A lei estabelece uma certa progressão da gravidade das diversas medidas. Daí que, primacialmente, devam ser aplicadas as menos gravosas, desde que adequadas.

Por fim, na base do raciocínio de aplicação de uma medida de coacção tem de estar sempre presente o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32º da C.R.P., que impõe que não sejam aplicadas essas medidas senão nos estritos limites das necessidades processuais. Sobre o mesmo, diz FIGUEIREDO DIAS:

“Relativamente ao arguido como objecto de medidas de coacção, o princípio jurídico-constitucional em referência vincula estritamente à exigência de que só sejam aplicadas àquele as medidas que ainda se mostrem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente, e daí as exigências…de necessidade, adequação, proporcionalidade, subsidiariedade e precaridade que o artº 193º do Código integralmente produz” (“Sobre os Sujeitos Processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal. O Novo Código de Processo Penal”, Almedina, 1988, pág.27).

Para a aplicação de uma medida de coacção é sempre necessário que seja possível formular um juízo de indiciação da prática de um certo crime, não podendo haver aplicação da mesma se não se indiciarem os pressupostos de que depende a aplicação ao sujeito de uma pena ou de uma medida de segurança.

A indiciação do crime que nesta sede se exige significa “probatio levior”, isto é, torna-se necessário a convicção da existência dos pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de coacção, mas em grau inferior à exigida para a condenação.

Não existem dúvidas, em conformidade com o supra exposto, quanto à gravidade dos factos indiciados nos presentes autos e quanto aos forte indícios de que o arguido foi autor dos crimes em causa.

Da factualidade descrita pode-se concluir pela existência de perigo de fuga e de perturbação do decurso do inquérito.

Desde logo, verificamos que o arguido agrediu violentamente a vítima, sem qualquer motivo aparente que pudesse justificar tal conduta, causando-lhe a sua morte, demonstrando uma frieza de ânimo e uma personalidade adversa às sociais vigentes, para além de se haver alheado, em absoluto, do destino daquele, tendo-o abandonado à sua sorte, não chamando ajuda médica, nem sequer se certificando se ainda permanecia com vida, tendo, como o mesmo referiu, tomado conhecimento do decesso através dos órgãos de comunicação social.

Não obstante o arguido referir que agrediu a vítima como forma de defesa, a verdade é que não se poderá aqui fazer um juízo relativamente a uma eventual legitima defesa, já que não foi encontrado no local do crime qualquer elemento que nos permita concluir nesse sentido, para além de nenhuma das testemunhas já ouvidas ter referido qualquer luta ou agressão que justificasse o recurso a tal meio de defesa mortal. A vítima, foi atingida pelo arguido de forma cruel, tendo, posteriormente, sido abandonada à sua sorte, acabando por falecer.

É patente neste momento um sério risco de o arguido se colocar em fuga, não só porque o mesmo, após a prática dos factos se ter ausentado para local incerto, apenas se apresentando às autoridades policiais no decurso do dia de ontem, mas também porque aquele tem ligações com países estrangeiros como a Suíça e Cabo Verde.

Será de referir que, após a prática dos factos, o arguido abandonou o local e se ausentou para Espanha, com clara intenção de se furtar à acção da justiça.

O acto de apresentação voluntária às autoridades policiais não revela, por si só, a sua intenção de se manter no nosso país e de colaborar com a justiça, tanto mais que, não obstante ter confessado os factos, o arguido demonstra que não interiorizou, ainda, o desvalor da sua conduta e a gravidade dos seus actos, já que apresenta uma postura de desculpabilização da sua conduta, defendendo que actuou em legítima defesa, não percebendo a desproporcionalidade dos meios utilizados.

Não se poderia olvidar que do relato das testemunhas presentes no local resulta que o arguido revela ser um individuo com uma personalidade conflituosa, envolvendo-se em várias discussões e confrontos físicos, inclusive no local onde os factos aqui em análise ocorreram.

A partir do momento em que o arguido, após este interrogatório, percebe que se encontra indiciado pela prática dos factos, tomará consciência das consequências que lhe poderão advir com este processo, nomeadamente a aplicação de uma prisão efectiva, tendo todo o interesse em se colocar em fuga, para paradeiro incerto, furtando-se, desse modo, à acção da justiça.

De salientar que o arguido, como já referimos, é cidadão cabo-verdiano, possuindo facilidade de se ausentar no nosso país para qualquer outro, incluindo africano, encontrando-se, assim, reunidas todas as condições para se colocar em fuga.

Verifica-se, ainda, a existência de um perigo de perturbação do decurso do inquérito, porquanto, a proximidade espacial com as testemunhas já ouvidas nos autos, poderá conduzir o arguido a tentar influenciar os posteriores depoimentos destes para, desse modo, condicionar o desfecho dos autos.

Entendemos que existe ainda um perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, uma vez que, atenta a gravidade do ilícito aqui em análise, a coexistência do arguido com a sociedade iria preocupar a mesma, pois a violência com que os factos em análise foram praticados e a personalidade neles evidenciada, nomeadamente a frieza de ânimo e a vontade de matar inculcaria a ideia de que estas pessoas se consideram imunes e senhores capazes de tirar a vida a quem entendem e, portanto, que qualquer cidadão que se oponha ou consubstancie um obstáculo aos seus ímpetos criminosos poder ver da parte deste uma reacção violenta.
**
Considera-se, com efeito, em face dos factores expostos que nenhuma outra medida de coacção que não uma detentiva da liberdade será suficiente para salvaguardar os perigos concretos que se fazem sentir, desde logo em face da gravidade dos factos, da personalidade revelada pelo arguido e dos supra enunciados perigos.

A não se coarctar a liberdade do arguido, corre-se o sério e acentuado risco de o mesmo se colocar em fuga, deslocando-se para parte incerta e eximindo-se à acção da justiça.

Assim, por tudo o exposto, não se revelando adequadas e suficientes quaisquer outras medidas de coacção, atendendo a que as exigências cautelares de fuga e de perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e do decurso do inquérito não se bastam com qualquer medida não privativa da liberdade, a ponderação das exigências cautelares e da medida de coacção a aplicar reconduz-se à ponderação entre a aplicação da prisão preventiva e a aplicação da obrigação de permanência na habitação, não obstante o carácter subsidiário destas medidas de coacção (cfr. art. 28º, nº2 da CRP e 193º, nº2 do C.P.Penal).

Importa, no entanto, salientar que a medida de obrigação de permanência na habitação (art. 201º do C.P.Penal) não impediria, no caso, o perigo de fuga, pois o arguido sempre poderia tentar escapar ao controlo da justiça e conseguir encetar uma fuga e, desse modo, refugiar-se em local incerto, ou até alcançar ultrapassar as fronteiras do nosso país.

Sempre esta medida seria insuficiente para colmatar as exigências cautelares, pois, em face da inexistência de uma barreira física intransponível, o arguido, muito provavelmente, irá sair dela eximindo-se à Justiça, ausentando-se para lugar incerto, tanto mais que o mesmo já se desloca entre o Algarve e Lisboa, não possuindo paradeiro certo.

Para além disso, esta medida não seria suficiente para colmatar o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade pública já que a população circundante e conhecedora do violento crime perpetrado pelo arguido teria conhecimento da sua situação e sentiria a impunidade dos seus actos.

Em conformidade, considerando a gravidade dos factos, o alarme social provocado, o perigo de fuga, de perturbação do decurso do inquérito e da ordem e tranquilidade públicas e demais perigos e da personalidade desrespeitadora das regras sociais e de direito vigentes, demonstrada pelo arguido, só a medida de coacção de prisão preventiva se revela adequada às exigências cautelares do crime de homicídio, proporcional à gravidade do mesmo e da sanção que previsivelmente virá a ser aplicada ao arguido em sede de julgamento.

Em consequência, e à luz do disposto nos arts. 191.º, n.º 1, 193.º, n.º 1, 202.º, n.ºs 1, als. a) e b) e 204.º, als. a) b) e c), todos do C. P. Penal, considera-se que a conduta grave e persistente do arguido, aliada à circunstância da falta de sentido crítico para alterar a sua conduta, impõem a aplicação ao mesmo da medida de coacção mais gravosa, a de prisão preventiva - apesar de não se ignorar que a aplicação desta medida de coacção é de “ultima ratio”.

Como acima se referiu, qualquer outra medida de coacção, neste momento, não seria apta a afastar aquele mencionado perigos.

Assim, face aos perigos enunciados, e tendo em consideração os princípios da adequação, da proporcionalidade em relação à gravidade dos ilícitos, determina-se, tendo em conta o estatuído nos arts. 191º, 192º, 194º e 202º, nº1, als. a) e b), assim, como o estatuído no art. 204º, als. a), b) e c), todos do C.P.Penal, que o arguido MM aguarde os ulteriores termos processuais sujeito às seguintes medidas de coacção:

- TIR, já prestado;
- Prisão Preventiva.

Notifique, dando cumprimento ao disposto no art. 194º, nº10 do C.P.Penal, caso o arguido o pretenda.

Passe mandados de condução ao Estabelecimento Prisional.

Comunique ao T.E.P. (art. 35.ºda Portaria n.º280/2013, de 26.08).

Consigna-se que para a fundamentação da aplicação da medida de coacção aplicada foram considerados os factos e elementos do processo comunicados ao arguido durante a sua audição e que o arguido e o seu defensor podem consultar os elementos do processo que determinaram a aplicação da medida de coacção acima referida, no prazo previsto para a interposição de recurso, em conformidade com o disposto no art. 194º, nº 5 e 6 do C.P.Penal.

Remeta os autos aos Serviços do Ministério Público.
(…)”.
*
Inconformado com o decidido, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

a) Emerge o presente recurso do despacho, douto aliás, que determinou que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo em prisão preventiva;

b) aquele despacho peca por errada apreciação dos elementos dos autos e, consequentemente, errada interpretação e aplicação dos artºs 193°,201°, 202°, 204° e, bem assim, dos artigos 131 ° e 132°, nºs1 e 2, als. e) e h) do Código Penal;

c) As razões que estiveram na génese da aplicação da prisão preventiva ao arguido foram a convicção da existência de fortes indícios da prática do crime p. p. art° 131 ° e 132°, nºs 1 e 2, als. e) e h) do Código Penal e, bem assim, o entendimento de que se verificam os perigos das als. a), b) e c) do artº 204° do C.P.P.

d) Ao contrário do que se decidiu no despacho recorrido, a prisão preventiva não é a única medida adequada a acautelar os apurados perigos.

e) O tribunal a quo entendeu que a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com sujeição a vigilância electrónica não seria suficiente para obstar aos perigos enunciados, mormente o de fuga e o de perturbação, grave, da ordem e tranquilidade públicas;

f) No entanto, em face dos elementos dos autos não é possível concluir nesse sentido de modo nenhum, pois isso não resulta em concreto dos mesmo;

g) Com efeito, o arguido tem 20 anos de idade, confessou os factos que praticou de forma livre e espontânea e apresentou-se voluntariamente perante as autoridades públicas, sendo certo que este facto é adequado a afastar de forma peremptória a existência do perigo de fuga, ou, pelo menos, a mitigá-lo de forma consideravelmente acentuada.

h) Razões pela quais surge absolutamente desapoiada a conclusão tirada no despacho em crise.

i) Por isso mesmo verifica-se que no caso é possível acautelar os aventados perigos através da sua sujeição a OPHVE;

j) Neste quadro, deve revogar-se imediatamente a medida de prisão preventiva aplicada ao arguido em virtude do carácter absolutamente excepcional da sua aplicação e substituir- lha pela medida prevista no art° 201º do C.P.P., eventualmente com sujeição a vigilância electrónica, pois é, em qualquer circunstância, mais adequada às circunstâncias verificadas nos autos;

k) Tal é o que, presentemente, aconselham os elementos dos autos e uma boa e sã administração da justiça;

I) Coisa que o despacho recorrido não fez, pelo que se impõe a sua substituição por decisão que, fazendo uma correcta interpretação das normas legais invocadas e a melhor apreciação dos elementos dos autos, decida no sentido pugnado pelo recorrente

PELO EXPOSTO DEVE O DESPACHO RECORRIDO SER REVOGADO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE FAZENDO UMA CORRECTA INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS LEGAIS INVOCADAS E A MELHOR APRECIAÇÃO DOS ELEMENTOS DOS AUTOS SUBSTITUA A MEDIDA DE PRISÃO PREVENTIVA A QUE O ARGUIDO ESTÁ SUJEITO PELA DO ART.201º DO C.P.P. COM SUJEIÇÃO A VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA.

V. EXAS. FARÃO, COMO SEMPRE JU S T I Ç A!

O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.

O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência, e concluindo do seguinte modo:

“ Os factos imputados ao recorrente, fortemente indiciados nos autos, integram a prática em autoria material e na forma consumada um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 131º, n.ºs 1 e 2, aI. e) e b), do art. 132.° do Código Penal.
A qualificação jurídica dos factos não merece qualquer reparo.

A factualidade imputada ao arguido encontra-se fortemente indiciada, resultando a mesma da conjugação de toda a prova recolhida.

O despacho de aplicação da medida de coacção encontra-se suficientemente fundamentado, não padecendo de qualquer vício.

Atendendo à factualidade que se encontra fortemente indiciada deve-se concluir pela verificação dos perigos de perturbação do decurso do processo e da tranquilidade e ordem pública e, mormente, de fuga.

A aplicação da medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido é necessária e adequada às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade dos crimes praticados e às sanções que previsivelmente virão a ser aplicadas.

As demais medidas de coacção previstas na lei, menos gravosas para o recorrente, não têm a virtude de acautelar os enunciados perigos, pelo que não lhe devem ser aplicadas.

Assim, sendo não merece o douto despacho que determinou a aplicação da medida de coacção ao recorrente qualquer reparo, devendo-se manter na íntegra o aí determinado, por aplicação do disposto nos arts. 191.°, n.º 1, 192.°, n.º 1, 193.°, n.º 1 a 3, 194º, 196.°, 202.°, nº 1, a), 204.°, a) e b), todos do C.P.P., não violando este qualquer norma processual penal, penal ou mesmo constitucional.

Nestes termos e nos melhores de Direito deverá ser negado provimento ao recurso.

Assim, se fazendo a costumada e necessária JUSTIÇA.

No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não foi apresentada resposta ao Parecer.

Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

No caso sub judice as questões suscitadas pelo recorrente e que, ora, cumpre apreciar, são:

- não verificação dos pressupostos legais que fundamentaram a aplicação da medida de coação;

- violação dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade que presidem à aplicação das medidas de coação;

- alteração do estatuto coativo.

Apreciando e decidindo.

- Das alegadas não verificação dos pressupostos legais que fundamentaram a aplicação da medida de coação e violação dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade que presidem à aplicação das medidas de coação, e da pretendida alteração do estatuto coativo.

A aplicação de qualquer medida de coação pressupõe a observância em concreto dos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade (arts.192º e 193º do C.P.P).

Como refere Teresa Beleza, "em princípio, qualquer medida de coação e, sobretudo, a mais gravosa de todas que é a prisão preventiva, só deve ser aplicada para fins relativos àquele processo e àquela pessoa em concreto e fundamentalmente devem ter, neste sentido, fins de segurança, isto é, a prisão preventiva não deve, ao contrário do que acontecerá na realidade, funcionar como uma medida punitiva adiantada, mas deve funcionar, como qualquer medida de coação.... como uma garantia de segurança no sentido de que o arguido não se eximirá a estar presente no processo e não irá perturbar o decurso das investigações, destruindo a atividade na suspeita da qual ele está a ser sujeito a um processo crime" (cfr. Apontamentos de Direito Processo Penal, AAFDL, II, pp. 125 e 126).

Porém, nem a prisão preventiva nem qualquer outra medida de coação (com exceção do termo de identidade e residência) poderão ser aplicadas se, em concreto, se não verificar pelo menos um dos requisitos previstos no art° 204° C.P.P.

Estabelece o art.212º, nº1, als.a) e b) do C.P.P. que as medidas de coação são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei (al.a)), ou terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação (al.b)).

E dispõe o nº3 do mesmo art.212º do C.P.P. que quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coação, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução.

Ora, por despacho de 13 de dezembro de 2018 foi aplicada ao arguido a medida de coação de prisão preventiva por se encontrar fortemente indiciada a prática pelo mesmo, em autoria material, na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nº1 e 2, als. e) e h) do Código Penal, punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos, e por se considerarem verificados os perigos de fuga, de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e para a aquisição, conservação ou veracidade da prova e perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

Não resulta dos autos que a medida de coação tivesse sido aplicada "fora das hipóteses ou condições previstas na lei", ou que tivessem "deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação", ou sequer que tivesse ocorrido uma "atenuação das exigências cautelares".

Nenhum reparo merece o juízo formulado pelo tribunal recorrido quanto à existência de forte indiciação dos factos imputados ao arguido no despacho recorrido.

A exigência legal da existência de “fortes indícios”, numa fase em que a investigação ainda está em curso, satisfaz-se com a possibilidade de, com base nos elementos probatórios até esse momento adquiridos nos autos, relacionar, de forma idónea e suficiente, um concreto agente com um concreto facto ilícito em termos de atribuição àquele da prática deste.

Apreciadas as provas supra descriminadas outra não poderá ser a conclusão de que bem andou o Tribunal recorrido ao ter por fortemente indiciada a prática pelo recorrente de um crime de homicídio qualificado.

Na ponderação conjugada dos elementos de prova deixados referenciados resulta, pois, tornar-se inquestionável que os autos evidenciam a forte indiciação da prática pelo arguido/recorrente dos factos descritos no despacho sob recurso.

Conclui-se, assim, mostrar-se preenchido o requisito “fortes indícios” da al. a) do nº 1 do art. 202º do C.P.P.

Com efeito, são fortes os indícios de ter o arguido cometido um crime de homicídio qualificado, previsto pelos arts. 131º e 132º, nº1 e 2, als. e) e h) do Código Penal, punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos, e, relativamente aos requisitos de aplicação da medida de coação, nomeadamente prisão preventiva, elencados no art. 204º do C.P.P., que são alternativos (cfr. anotação do Cons. Maia Gonçalves ao art. 204), verificado que se mostre um desses requisitos, fica legitimada a aplicação da medida.

Para a imposição da medida de prisão preventiva é necessário, pois, que ocorra pelo menos uma das circunstâncias previstas no art° 204° do C.P.P.

No despacho recorrido entendeu-se existirem os requisitos das als. a), b) e c).

Quanto à existência de perigo de fuga consignou-se no despacho recorrido: “ Desde logo, verificamos que o arguido agrediu violentamente a vítima, sem qualquer motivo aparente que pudesse justificar tal conduta, causando-lhe a sua morte, demonstrando uma frieza de ânimo e uma personalidade adversa às sociais vigentes, para além de se haver alheado, em absoluto, do destino daquele, tendo-o abandonado à sua sorte, não chamando ajuda médica, nem sequer se certificando se ainda permanecia com vida, tendo, como o mesmo referiu, tomado conhecimento do decesso através dos órgãos de comunicação social.

Não obstante o arguido referir que agrediu a vítima como forma de defesa, a verdade é que não se poderá aqui fazer um juízo relativamente a uma eventual legitima defesa, já que não foi encontrado no local do crime qualquer elemento que nos permita concluir nesse sentido, para além de nenhuma das testemunhas já ouvidas ter referido qualquer luta ou agressão que justificasse o recurso a tal meio de defesa mortal. A vítima, foi atingida pelo arguido de forma cruel, tendo, posteriormente, sido abandonada à sua sorte, acabando por falecer.

É patente neste momento um sério risco de o arguido se colocar em fuga, não só porque o mesmo, após a prática dos factos se ter ausentado para local incerto, apenas se apresentando às autoridades policiais no decurso do dia de ontem, mas também porque aquele tem ligações com países estrangeiros como a Suiça e Cabo Verde.

Será de referir que, após a prática dos factos, o arguido abandonou o local e se ausentou para Espanha, com clara intenção de se furtar à acção da justiça.

O acto de apresentação voluntária às autoridades policiais não revela, por si só, a sua intenção de se manter no nosso país e de colaborar com a justiça, tanto mais que, não obstante ter confessado os factos, o arguido demonstra que não interiorizou, ainda, o desvalor da sua conduta e a gravidade dos seus actos, já que apresenta uma postura de desculpabilização da sua conduta, defendendo que actuou em legítima defesa, não percebendo a desproporcionalidade dos meios utilizados.”

Tal perigo decorre da gravidade do crime indiciado e respetiva previsibilidade da aplicação de pena efetiva de prisão, o que cria perigo de fuga no sentido de o arguido procurar eximir-se às consequências penais do presente processo.

Com efeito, decorre da experiência comum que uma fuga, sobretudo para o estrangeiro implica o abandono de toda a estrutura pessoal e familiar e configura uma experiência não desejada. Assim, a decisão de fugir apenas pode decorrer de fortes motivos exteriores que apresentam mais vantagens do que inconvenientes. Ora, a alta probabilidade de o arguido ser condenado em prisão efetiva, aliada à circunstância de ser nacional de Cabo Verde e ter ligações com países estrangeiros como a Suíça e Cabo Verde, é um critério que permite avaliar a “vantagem” que a fuga representa, não merecendo, neste particular, censura a decisão recorrida.

E há, também, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova – alínea b) do artigo 204.º, do Código de Processo Penal, tendo em conta que o inquérito se encontra ainda em fase inicial, e que, como referido na decisão sob recurso “ a proximidade espacial com as testemunhas já ouvidas nos autos, poderá conduzir o arguido a tentar influenciar os posteriores depoimentos destes para, desse modo, condicionar o desfecho dos autos. “

De igual modo, também o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas se verifica, tendo em conta a natureza do crime indiciado e a sua moldura penal, aliadas às circunstâncias da prática do mesmo e à comoção demonstrada pela comunidade.

A jurisprudência mais recente tem considerado que este perigo deve estar relacionado com o direito à liberdade e à segurança, instituído pelo art.º 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), não apenas na perspetiva do arguido, mas também na dos cidadãos que possam ser potenciais vítimas da sua conduta criminosa.

Não está aqui em causa, propriamente, uma questão de defesa social, mas antes um objetivo de salvaguarda da paz social, que foi afetada pelo comportamento do arguido (de contenção do conflito social provocado pela atividade delituosa).

No caso concreto, os factos fortemente indiciados revelam um comportamento altamente violento, alicerçado num motivo fútil.

O modus operandi utilizado revela ainda acentuada insensibilidade aos valores ético-jurídico vigentes, resultando a perigosidade social do arguido evidenciada do comportamento acima descrito, salientando-se ainda que este não demonstrou arrependimento sincero, procurando justificar a sua conduta.

Todas estas circunstâncias devidamente conjugadas, bem como a personalidade evidenciada pelo arguido no cometimento dos factos em apreço, apontam para a existência de potencialidades objetivas e subjetivas de o arguido continuar a alarmar, pelo que seria dificilmente compreensível pela sociedade que não estivesse sujeito a uma medida de coação privativa de liberdade alguém indiciado de ter cometido crime de homicídio nas circunstâncias também indiciadas.

Assim se concluindo que o comportamento do arguido gera perturbação da ordem e tranquilidade públicas, salientando-se também que o crime de homicídio atinge o bem jurídico supremo (a vida), sendo o próprio legislador que o define como sendo de criminalidade especialmente violenta (1.º al. l), do C.P.P.), sendo, por excelência, potenciador de sentimentos de vingança, de insegurança e de intranquilidade.

Deste modo, visto um tal circunstancialismo, afigura-se a este tribunal de recurso que existe, em concreto, perigo de fuga e perigo de perturbação do decurso do inquérito e aquisição de provas, bem como de perturbação da ordem e tranquilidade públicas por parte do arguido, encontrando-se preenchidos os requisitos das alíneas a), b) e c), do art.204°, do C.P.P..

Vejamos agora a conformidade aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, da medida de coação fixada.

Dispõe o artigo 193º/1 do Código do Processo Penal:

«As medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.»

Com fundamento constitucional, decorrente do princípio do Estado de direito democrático ou, de todo o modo, conexionado com os direitos fundamentais, é de todos bem conhecido o princípio da proibição do excesso ou princípio da proporcionalidade em sentido amplo que constitui, na realidade, um princípio de controlo a respeito da medida tomada pela autoridade pública no sentido de saber da sua conformidade aos princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade.

Ora, face aos elementos constantes dos autos entendemos que a medida de prisão preventiva é proporcional à gravidade do crime de homicídio qualificado - bem espelhada na moldura penal abstrata cominada. Acresce que as acentuadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir, relativamente a este tipo de crime, faz com que seja previsível que ao arguido venha a ser aplicada prisão efetiva - vd. art° 193°, n° 1, do CPP.

Por outro lado, também nenhum reparo merece a decisão recorrida quando considera a prisão preventiva como a única medida coativa adequada para obviar aos perigos de fuga,de perturbação do decurso do inquérito e aquisição de provas, bem como de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

Prevê o n.º 1 do art.º 193.º do CPP que as medidas de coação a aplicar, em concreto, devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

Com efeito, em face da gravidade objetiva do crime fortemente indiciado nos autos, a medida contemplada no art.º 200.º do CPP é insuficiente para acautelar os perigos existentes, que apenas poderão ser salvaguardados com uma medida de natureza detentiva.

Resulta do disposto no n.º 2 do art.º 193.º do CPP, na redação conferida pela Lei n.º que “a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação”, estabelecendo o n.º 3 do mesmo normativo que “quando couber ao caso medida de coação privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares”.

Estabelece o n.º 2 do art.º 28.º da Constituição da República Portuguesa que a prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada, nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.

Também o art.º 5.º da CEDH prevê que toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança e ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo quando houver motivos razoáveis e seja necessário impedi-lo de cometer uma infração ou de se manter em fuga depois de o ter cometido.

Em concreto, a simples medida de obrigação de permanência na habitação, mesmo que com recurso a vigilância eletrónica, também não será suscetível de afastar os perigos verificados, de fuga e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. Isto porque a comunidade não compreenderia que um suspeito de homicídio pudesse, após a prática do crime, permanecer em casa. Ou seja, tal medida não reporia a paz social, abalada pelo comportamento do arguido.

Com efeito, a medida requerida pelo recorrente revela-se insuficiente face à violência manifestada nos factos e não seria igualmente eficaz contra os perigos de perturbação do decurso do inquérito e da ordem e tranquilidade públicas, pela intensidade com que estes se fazem sentir, já que a respetiva eficácia depende da vontade do arguido em observar os comandos legais, o que não se perspetiva, sendo, pois, inadequada para obviar aos assinalados perigos, desde logo tendo em conta o modo de atuação do arguido.

Atenta a natureza de ultima ratio da prisão preventiva, ela apenas deverá ser decretada quando se justifique uma compressão do direito de liberdade do arguido por esta constituir ameaça grave e séria para a própria liberdade e segurança de terceiros.

E, no caso dos autos, manifestamente, os fortes indícios recolhidos apontam, precisamente, para a necessidade de comprimir o direito de liberdade do arguido, sob pena de o mesmo perturbar o decurso do inquérito, alarmar a ordem e tranquilidades públicas e permitir a sua fuga.

Todo o circunstancialismo descrito nos autos torna evidente que nenhuma outra medida de coação à exceção da prisão preventiva poderá assegurar as exigências cautelares que o caso requer, não sendo desproporcionada, face à gravidade do crime, expressa na moldura penal que lhe corresponde e à pena que previsivelmente virá a ser aplicada ao arguido.

Em suma, face à especial gravidade do ilícito fortemente indiciado e aos justificados perigos de fuga, perturbação do decurso do inquérito e aquisição de provas e da ordem e tranquilidade públicas, apenas a medida de coação aplicada se mostra adequada, além de ser proporcional – arts.202°, n°1, als. a) e b), 191° a 193° e 204°, als. a), b) e c), todos do C.P.P.

Os pressupostos que determinaram a aplicação da prisão preventiva mantêm-se, mostrando-se preenchidas as condições de aplicação de tal medida de coação previstas nos arts. 193.º, n.º 2, 202º, nº1, als .a) e b), e 204º, als. a), b) e c), todos do C.P.P., não tendo o despacho que a determinou violado qualquer preceito legal ou constitucional, nem posto em crise os princípios que devem ser tidos em conta no processo penal e na aplicação das medidas de coação, nomeadamente a de prisão preventiva.

O recurso é, assim, improcedente.

Decisão

Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido MM, confirmando-se a decisão recorrida.

- Condenar o recorrente em 3 UCs de taxa de justiça.

Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 12 de março de 2019

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Laura Goulart Maurício

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Maria Filomena Soares