Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
422/14.0T9TMR-A.E1
Relator: MARIA DE FÁTIMA BERNARDES
Descritores: QUEBRA DO SEGREDO PROFISSIONAL
Data do Acordão: 01/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL
Decisão: INDEFERIDO
Sumário:
I – Só se justifica a quebra do segredo profissional de advogado se, no caso concreto, for absolutamente essencial e imprescindível à descoberta da verdade material, que se pretende alcançar.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:


I. Relatório


No âmbito dos autos de inquérito, n.º 422/14.0T9TMR, o Ministério Público proferiu despacho de acusação contra o arguido FF, melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática, em coautoria material e em concurso real, de três crimes de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11º, com referência ao artigo 3º, n.º 1, al. i), ambos da Lei n.º 34/87, de 16 de março e de dois crimes de participação económica em negócio, p. e p. pelo artigo 23º, n.º 1, do mesmo diploma legal, alegadamente cometidos no exercício das funções de Presidente da Câmara de ----.

Inconformado, o arguido requereu a abertura da instrução, alegando, nos artigos 28º a 40º do RAI, o seguinte:


28º
É verdade que o Arguido terá subscrito documentos referidos ao factoring de duas facturas, no valor de €500.000,00, apresentadas pela firma AA & Filhos ao BCP.


29º
Fê-lo inadvertidamente, assinando aquilo que supunha estar regularizado, até porque a sua assinatura não era suficiente para vincular a autarquia; confiou que os papéis que lhe foram apresentados para assinar seguiriam a tramitação legalmente adequada, o que infelizmente não aconteceu.

30º
Mas esse facto era insusceptível de causar dano à autarquia, até porque o BCP bem sabia que os documentos que lhe foram apresentados eram insuficientes para o efeito, porque faltavam as assinaturas necessárias para vincular a Câmara, como reconhece o gerente do BCP, à época, ACM, no seu depoimento de fls. 1880.


31º
De qualquer forma, a partir daí abriu-se um conflito com a firma AA & Filhos, que passou a reclamar da Câmara uma quantia astronómica relativamente a obras efectuadas de valor muito inferior ao que aquela empresa peticionava.


32º
Quando, em Outubro de 2012, o Arguido retomou as suas funções de Presidente da edilidade, que tinham estado suspensas em 6/07 e 15/10 de 2012, veio a toar conhecimento da propositura da ação que corria termos sob o n.º ---/12.4BELRA, no TAF de Leiria, na qual a referida AA. e Filhos demandava o Município de --- por obras que não mereciam o valor reclamado.


33º
Foi isso que o levou, no exclusivo interesse da justiça e do Município de ---, a celebrar o acordo compromissório de fls. 687, o qual devia levar á suspensão da acção, atribuindo a definição do valor das obras em causa a uma comissão arbitral, composta por um engenheiro indicado pelo Município, outro pela firma e um terceiro por acordo entre a lista de peritos oficiais do Ministério da Justiça.


34º
O Arguido ficou descansado que o assunto iria ser resolvido de forma conveniente aos interesses do Município.


35º
Renunciou ao cargo de Presidente em…, por ter sido, entretanto, desafiado para outro combate político, não mais tendo de se preocupar com a questão da acção de AA. e Filhos.


36º
Aconteceu, porém, que, por razões desconhecidas do Arguido – essas sim a merecerem uma adequada investigação criminal –, o Demandante boicotou o funcionamento da referida comissão arbitral e não deu instruções nem assegurou que a acção em apreço fosse contestada.

37º
Os peritos foram designados e estiveram sempre disponíveis para levar a cabo a sua função no âmbito da referida comissão arbitral, trabalhos esses que nunca puderam ser concretizados porque o participante, pura e simplesmente, por inconfessados motivos, nunca o quis e nunca o permitiu (cfr. depoimento de PT, a fls. 664 e documentos por ele então juntos).

38º
Foram várias as tentativas que os advogados e os peritos fizeram no sentido de levar a cabo a sua missão, o que deparou sempre com a obstrução ou a falta de empenho do Participante, circunstância que foi determinante para que um acordo compromissório tão benéfico para o Município de --- não pudesse ser levado a bom porto.

39º
Pelas suas acções e omissões, o Participante foi assim o principal responsável pelas consequências desastrosas para o Município do desfecho daquela acção administrativa.


40º
É extraordinário como o Participante fez o mal e a caramunha.

O arguido arrolou, nessa fase processual, como testemunhas, os peritos nomeados para integrar aquela comissão arbitral e os advogados designados por cada uma das partes, respetivamente, Eng.ºs, FJ, AM e MA e Drs. BB e HT.

O Sr. Dr. BB, era, à data dos factos, Advogado da sociedade de construções “AA. & Filhos” e a matéria sobre a qual o arguido o indicou a depor foi a vertida nos pontos 33º, 36º, 37º e 38º do RAI, supra transcritos.

Declarada aberta a instrução e designado dia para a inquirição das testemunhas, o Sr. Dr. BB veio informar nos autos ter requerido ao Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados a dispensa do segredo profissional, vindo, posteriormente, o Sr. Advogado a comunicar aos autos que aquele Conselho Distrital proferiu despacho de indeferimento da requerida dispensa do segredo profissional, juntando cópia do ofício em que tal lhe foi comunicado, pelo que, não poderá depor como testemunha à factualidade referida.


Nessa sequência veio o arguido, em requerimento dirigido ao Exmº. Senhor Juiz de Instrução e ao abrigo do disposto no artigo 135º, n.º 3, do CPP, requerer que seja determinada a prestação de depoimento da testemunha arrolada, Dr. BB, com a quebra do segredo profissional, cujo levantamento a Ordem dos Advogados não autorizou.

Para fundamentar a imprescindibilidade do depoimento da testemunha Dr. BB e a requerida quebra do sigilo profissional, o arguido, ora requerente, alega o seguinte:


«(…)

13º
A inquirição de cada um dos advogados é necessária para a descoberta da verdade e crucial para a defesa do Arguido.


14º
É fundamental que cada um desses advogados explicite as circunstâncias em que essa comissão arbitral pôde ou não pôde funcionar e porquê.


15º
Não se pede a revelação de qualquer “segredo” de uma das partes que as possa prejudicar e, por isso, não possa ser revelado.


16º
O que está em causa é matéria procedimental, a qual é decisiva para apurar a responsabilidade do Arguido na matéria da acusação.


17º
É neste contexto que é incompreensível que a Ordem dos Advogados não tenha deferido a dispensa do sigilo profissional – de resto, com fundamentos que se desconhecem – solicitada pelo Dr. BB, então advogado da firma “AA. & Filhos”, que é a pessoa que pode cabalmente explicitar se o não funcionamento da comissão arbitral tem a ver com alguma acção ou omissão da sua representada.


18º
Tal como as outras testemunhas arroladas poderão esclarecer, no âmbito das funções que estavam investidas, quem é que foi responsável pelo não funcionamento da comissão arbitral e porquê.


19º
É por isso que a inquirição da testemunha BB é necessária à descoberta da verdade e fundamental para o exercício da defesa do Arguido, valores que, in casu, consubstanciam interesses manifestamente preponderantes em relação aos que a Ordem dos Advogados possa invocar, que, de resto, não se vislumbra quais sejam, os quais, mesmo num juízo de prognose, não se vê como possam sobrelevar aos que o Arguido vem invocar.


(…)
21º
Está assim preenchido o requisito de que depende a possibilidade da quebra do segredo profissional ora em pauta, tal como definido pelo art. 135.º, n.º 3, do C.P.P..


22º
In casu, o interesse preponderante é o da defesa do Arguido, tendo em conta a gravidade dos crimes por que vem acusado e a relevância do depoimento do Dr.BB para a descoberta da verdade, o que contrasta com a ausência de qualquer fundamento concreto que justifique a recusa, a não ser, em termos abstratos, a necessidade de salvaguardar o sigilo do advogado, o que, contudo, neste caso, não se respalda em qualquer interesse conhecido e atendível.

23º

Ademais, o entendimento normativo dado ao art. 135º, n.º 3, do C.P.P., no sentido de que pode ser decidido que o segredo profissional prevalece sobre o interesse da descoberta da verdade e da defesa do Arguido, sem que se conheça, mesmo de forma sumária, o interesse concreto subjacente à recusa do seu levantamento, sempre seria inconstitucional, por violação das garantias de defesa, tal como previstas no art. 32º, n.º 1, da C.R.P. »


O incidente foi instruído com certidão das peças processuais pertinentes.

O Senhor Juiz de Instrução Criminal proferiu nos autos, em 04/12/2019, despacho do seguinte teor:


«Ouvida que foi a Ordem dos Advogados, ainda que por iniciativa da testemunha BB e sem interpelação do tribunal, e sendo pacífico nos autos que o respectivo objeto contende com matéria compreendida no sigilo profissional a que está adstrita aquela testemunha, inexistem motivos que permitam concluir pela ilegitimidade da recusa em depor por banda da mesma testemunha, BB. Antes pelo contrário.

Deste modo, bem veio o arguido FF suscitar o presente incidente de levantamento do sigilo profissional, valendo-se do disposto no art. 135º do C.P.P., incidente a dirimir pelo Tribunal da Relação de Évora.
(…).»


Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto, tendo Vista nos autos, apôs “Visto”.


Colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência, pelo que cumpre agora apreciar e decidir.


II. Fundamentação

Vem o arguido FF suscitar, ao abrigo do disposto no artigo 135º, n.º 3, do CPP, o incidente da quebra de segredo profissional a que está vinculado o Sr. Advogado, Dr. BB, que arrolou como testemunha, para depor à matéria que indicou, vertida no RAI.


Vejamos:
Como refere o Cons. Santos Cabral[1], «O segredo profissional define-se com a proibição de revelar factos, ou acontecimentos, de que se teve conhecimento ou que foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional. Consubstancia-se o mesmo, em temos genéricos, na reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções, ou como consequência do seu exercício, em relação a factos que lhe incumbe oculta, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou à sua profissão. O segredo profissional é, assim, o atributo correlativo indispensável de todas as profissões que assentam numa relação de confiança (…)».


O segredo profissional abrange tudo quanto tenha chegado ao conhecimento de alguém através do exercício da sua atividade profissional e na base de uma relação de confiança[2].

E é este o caso da advocacia.


«Pressuposto do correto desempenho da advocacia é a confiança que o que o cliente deposita no advogado e que este deve fazer por merecer não revelando factos (…) abrangidos pelo segredo profissional. Não havendo confiança absoluta no advogado para lhe revelar todos os factos, o mesmo não poderá, obviamente, exercer cabal e eficazmente a sua profissão.»[3]


O segredo profissional do advogado está regulado no artigo 92º, do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), na redação dada pela Lei 145/2015, de 9 de novembro[4], que dispõe:


«1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:


a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;


b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;


c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;


d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;


e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;


f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.


2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.


3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.


4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.


5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.


6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.


7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.


8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.»


O advogado está, pois, obrigado a guardar segredo dos factos e/ou documentos nos quais esses factos possam estar contidos, de que tenha tomado conhecimento ou de confidência que lhe tenha sido feita, no exercício da sua profissão.


Como se refere no Acórdão do STJ de 15/02/2018, proferido no proc. n.º 1130/14.7TVLSB.L1.S1, acessível no endereço www.dgsi:
«Radicando no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, o dever de segredo profissional transcende a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação para com o constituinte, para com a própria classe, a OA e a comunidade em geral.
Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue.»


A tutela jurídico-penal do segredo profissional tem consagração no artigo 135º do CPP, estatuindo o mesmo normativo, na parte que para o caso dos autos releva que:


«1. (…) os advogados (…) e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.


2. Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação de depoimento.


3. O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.


4. (…).


5. (…).»


Em processo penal, a regra geral quanto ao dever de testemunhar é a que consta do n.º 1 do artigo 131º do Código de Processo Penal, o qual preceitua que: «Qualquer pessoa que se não encontrar interdita por anomalia psíquica tem capacidade para testemunhar e só pode recusar-se nos casos previstos na lei.»


Todavia, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 135º, que supra se transcreveu, os advogados e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem recusar-se a depor, invocando, precisamente, esse dever.


Mas o segredo profissional não é absoluto, sendo legalmente previstos casos em que pode ser dispensado ou quebrado.


Tratando-se de Advogado, existem duas[5] situações em que, excecionalmente, pode ser, por assim dizer desvinculado, do segredo profissional, sendo uma a das situações a da dispensa do segredo profissional, requerida pelo Advogado ao Presidente do Conselho Regional competente e por este autorizado, nos termos do artigo 92º, n.º 4 do EOA e a outra situação, a da quebra do segredo profissional, por via do correspondente incidente processual, regulado no artigo 135º do C. Processo Penal.


É esta última a situação que, in casu, é submetida à apreciação desta Relação.

Como resulta do disposto no n.º 3 do artigo 135º, o tribunal superior pode ordenar a prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que se mostre “justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos”.

O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, no caso concreto, sobrepor-se ao outro[6].


«Os interesses em confronto são, por um lado, o interesse do Estado na realização da justiça, especificamente, na realização da justiça penal, e por outro, o interesse tutelado com o estabelecimento do segredo profissional na Advocacia, ou seja, a tutela da relação de confiança entre o advogado e o cliente e da dignidade do exercício da profissão que a Lei Fundamental considera elemento essencial à administração da justiça (art. 208º da Constituição da República Portuguesa)[7].»

Nesta ponderação, os elementos a atender, pelo tribunal para aferir qual o interesse preponderante que deve prevalecer, em ordem a justificar a quebra do segredo profissional e a determinar a prestação de depoimento por quem se encontre obrigado ao mesmo, são, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.

Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque[8], «A imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade significa duas coisas: a descoberta da verdade é irreversivelmente prejudicada se a testemunha não depuser ou, depondo, o depoimento não incidir sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional e, portanto, o esclarecimento da verdade não pode ser obtido de outro modo, isto é, não há meios alternativos à quebra do segredo profissional que permitam apurar a verdade.

A “necessidade” de protecção de bens jurídicos identifica-se com uma “necessidade social premente” (…) de relevação da informação coberta pelo segredo profissional, à luz da interpretação que o TEDH e o Comité de Ministros do Conselho da Europa têm feito do artigo 8º da CEDH[9] (…). Os “bens jurídicos” a que a lei se refere são os bens jurídicos tutelados pela lei penal Portuguesa, mas a quebra do sigilo profissional só é justificável se corresponder a um interesse social premente. (…)»

Portanto, nem todos os bens jurídicos tutelados pela lei penal justificam a quebra do sigilo profissional. O critério da necessidade da protecção dos bens jurídicos é ainda mais rigorosamente delimitado pelo critério da “gravidade do crime”. É aqui se reside o cerne do juízo de justificação feito pelo tribunal superior: na ponderação da gravidade do crime investigado em contrapeso com o prejuízo da intrusão na privacidade da pessoa obrigada ao segredo profissional. A gravidade dever ser aferida em abstracto e em concreto. Em abstracto, o conceito de “gravidade do crime” ou de “crime grave” deve ser condensado de acordo com a bitola fixada no artigo 187.º, nº 1, al.ª a)[10], isto é, considerando-se “crime grave” o crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos, atenta a similitude material entre a tutela do direito à privacidade pelo artigo 187º e a tutela do segredo profissional pelo artigo 135.º Ou seja, não deve o tribunal superior considerar justificada a quebra do segredo profissional nos casos de crime punível com pena de prisão até três anos. (…)


Isto não quer obviamente dizer que a revelação da informação sobre segredo profissional deva sempre ter lugar quando estiver em causa a investigação de crimes puníveis com pena superior a três anos de prisão. A ponderação da gravidade dos crimes puníveis com pena superior a três anos de prisão não é dispensável, pois a gravidade do crime deve ser aferida não apenas em abstracto, mas também em concreto, em face das concretas circunstâncias que envolveram a prática do crime. (…).»

É incontroverso que a quebra do segredo profissional, em favor do interesse da descoberta da verdade dos factos e da administração da justiça, tem carácter verdadeiramente excecional e, em nosso entender, só deve ser determinada por razões imperiosas, de outro modo inultrapassáveis, nomeadamente, estar a parte impedida de produzir a prova que lhe compete sem o depoimento da testemunha adstrita ao segredo profissional[11], ou, dito de outro modo, só é justificada a quebra «quando não haja meios alternativos à quebra do segredo profissional que permitam apurar a verdade.[12]»


Tendo presentes as considerações que se deixam expendidas e baixando ao caso concreto:


Antes de mais, importa referir que não se determinou a audição da Ordem dos Advogados, como se estabelece no n.º 4 do artigo 135º do C. Processo Penal, atendendo a que o Sr. Advogado, Dr. BB juntou aos autos cópia da notificação que lhe foi dirigida pelo Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados, de que foi proferido despacho de indeferimento do pedido de dispensa de sigilo profissional que, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 92º do EAO, formulou, tal audição se traduziria numa mera e desnecessária repetição e portanto, na prática de um ato inútil.


Por outro lado, a circunstância de não serem conhecidos nos autos, os fundamentos em que o órgão competente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados se baseou para indeferir o pedido de dispensa de sigilo profissional apresentado pelo Dr. BB, ao abrigo do n.º 4 do artigo 92º do EAO e que constarão do despacho proferido que foi notificado ao Sr. Advogado que requereu aquela dispensa[13], não tem qualquer relevância para a apreciação da questão trazida à apreciação desta Relação, quer por que esse despacho recaiu sobre um pedido dirigido pelo Sr. Advogado ao Presidente daquele Conselho Distrital, de dispensa do sigilo profissional - seguindo o procedimento previsto no artigo 92º, n.º 4 do EOA e no Regulamento nº. 94/2006, de 12 de junho -, quer porque essa decisão é vinculativa apenas para o Sr. Advogado e não para este Tribunal. E por que assim é, o desconhecimento, no processo de onde foi extraído o presente traslado, dos fundamentos daquele despacho e, ressalvado o devido respeito por entendimento contrário, não pode servir para que o arguido, ora recorrente, possa invocar, como o faz, a inconstitucionalidade do artigo 135º, n.º 3, do CPP, na interpretação «de que pode ser decidido que o segredo profissional prevalece sobre o interesse da descoberta da verdade e da defesa do Arguido, sem que se conheça, mesmo de forma sumária, o interesse concreto subjacente à recusa do seu levantamento, por violação das garantias de defesa, tal como previstas no art. 32º, n.º 1, da C.R.P..»


Posto isto, apreciemos, então, se, in casu, a quebra do segredo profissional se revela justificada:


Os crimes por que o arguido se encontra acusado, de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11º, com referência ao artigo 3º, n.º 1, al. i), ambos da Lei n.º 34/87, de 16 de março e de participação económica em negócio, p. e p. pelo artigo 23º do mesmo diploma legal, são graves, considerando a moldura penal abstrata que lhes corresponde (que é, respetivamente, de 2 a 8 anos de prisão e de prisão até 5 anos e multa de 50 até 100 dias) e a própria natureza desses crimes e a necessidade de proteção de bens jurídicos tutelados.


Relativamente a este último aspeto, como se faz notar no Acórdão desta Relação de Évora de 07/05/2019, proferido no processo 248/12.5TAELV-B.E1, a prevaricação de titular de cargo político, demonstra, por si só, «a premência de resguardo da sociedade que deve confiar nos seus eleitos para uma boa e saudável representação».

Por outro lado, afigura-se-nos incontroverso que o Sr. Dr. BB, Advogado da sociedade “AA. & Filhos, S.A.”, à data a que se reportam os factos por cuja prática o arguido, ora recorrente, se encontra acusado, e que, no exercício dessas suas funções, terá acompanhado e intervindo em contatos estabelecidos entre o Município de --- e o ora arguido, na qualidade de Presidente da Câmara, por um lado e a sociedade e “AA. & Filhos” e no acordo de cláusula compromissória celebrado (na sequência da instauração da ação que corria termos no TAF de Leiria, sob o n.º ---/12.4BELRA, instaurada por aquela sociedade contra o Município de ----), acordo esse que previa que uma comissão arbitral efetuasse uma peritagem às obras realizadas pela sociedade “AA. & Filhos” para o Município de --- e referenciadas na petição inicial daquela ação, com vista a apurar os respetivos valores, e que estará inteirado dos procedimentos e diligências que, subsequentemente, terão sido desenvolvidas e/ou omitidas, com vista à execução desse acordo e, por isso, terá o Sr. Advogado um conhecimento privilegiado, nomeadamente, dos factos que se prendem o funcionamento da comissão arbitral e aspetos relacionados com a atuação das partes, uma delas a sociedade de Construções “AA. & Filhos, S.A.”, de que era Advogado, atribuindo o arguido à mesma sociedade a responsabilidade pelo bloqueio do funcionamento dessa comissão, com as consequências daí decorrentes, para o Município de ---.
Nesta perspetiva, é de admitir que o Sr. Advogado Dr. BB, tenha conhecimento do que se passou com a referida comissão arbitral, posto que terá acompanhado, no exercício da sua profissão, o evoluir da situação, estando a par das «circunstâncias em que essa comissão arbitral pôde ou não pôde funcionar» e das razões por que tal aconteceu.

Porém, em face dos elementos trazidos aos autos, não se pode concluir que o depoimento do Sr. Advogado, Dr. BB, que, no exercício das suas funções profissionais, representou a sociedade “AA. & Filhos, S.A.”, seja imprescindível para que o arguido, ora requerente, possa fazer prova da matéria que alega no RAI e, especificamente, dos factos que indicou para que recaísse o depoimento da testemunha Dr. BB, sendo que, as outras testemunhas arroladas pelo arguido, ora requerente, para prestarem depoimento sobre esses mesmos factos, também deles terão conhecimento e poderão contribuir para a descoberta da verdade material, sem que resultem, desse modo, prejudicadas as garantias de defesa do arguido.


Entendemos, pois, que o depoimento do Dr. BB não se mostra, no caso concreto, imprescindível à descoberta da verdade material, que se pretende alcançar e, na perspetiva da defesa do arguido, ora requerente, não se vislumbra que sem esse depoimento, fique inviabilizada a possibilidade de fazer prova da matéria que alegou no RAI e a que indicou o Dr. BB, pois que, existem outras testemunhas indicadas a essa matéria e que igualmente terão conhecimento desses factos.

Assim sendo, não se revelando o depoimento do Sr. Advogado, Dr. BB, imprescindível para a descoberta da verdade e atentas as considerações supra expendidas, forçoso é concluir que não se mostra justificada a quebra do segredo profissional a que o Sr. Advogado está vinculado.

III. Decisão


Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Penal deste Tribunal da Relação de Évora, em julgar improcedente o presente incidente de quebra do segredo profissional, suscitado relativamente ao Senhor Advogado, Dr. BB, arrolado como testemunha pelo arguido, aqui requerente, FF, mantendo-se aquele vinculado ao segredo profissional e, como tal, impossibilitado de prestar depoimento sobre os factos indicados no RAI apresentado pelo arguido de que terá tido conhecimento no exercício da sua aludida profissão.


Sem tributação o incidente.


Notifique.

Évora, 07 de janeiro de 2020


MARIA DE FÁTIMA BERNARDES


FERNANDO PINA

BEATRIZ MARQUES BORGES
__________________________________________________
[1] In Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição, Almedina, anotação 2 ao artigo 135º, pág. 494.


[2] Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3ª Edição, Editora Rei dos Livro, 2008, pág. 961


[3] Cfr. Cons. Santos Cabral, in ob. cit., anotação 5 ao artigo 135º, pág. 499.


[4] E também no Regulamento nº. 94/2006, de 12 de junho (Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional da AO, pub. no DR IIª Série, de 25 de maio de 2006).


[5] Certo setor da jurisprudência considera ainda existir uma terceira situação que é a que decorre da desvinculação feita pelo próprio cliente, isto é, quando este autoriza a revelação do segredo– neste sentido, vide, entre outros, Ac. desta RE de 07/05/2019, proc. 248/12.5TAELV-B.E1 e Ac. da RC de 28/11/2018, proc. n.º 305/14.3T9LRA-A.C1, ambos acessíveis no endereço www.dgsi.pt e Paulo Pinto de Albuquerque –, não sendo este entendimento consensual, defendendo outro setor da jurisprudência e da doutrina, que do ponto de vista da desvinculação, o consentimento do cliente é irrelevante – neste sentido, vide, entre outros, Ac. da RP de 07/12/2018, proc. 430/14.0TAAMT.P1, também acessível no referenciado endereço –.


[6] Cf. referenciado Ac. da RC de 28/11/2018, proc. n.º 305/14.3T9LRA-A.C1,


[7] Idem.


[8] In Comentário do Código de Processo Penal …, 3ª edição, 2009, Universidade Católica Editora, anotações 8, 9 e 10 ao artigo 135º, páginas. 363 e 364.


[9] Normativo que têm por epigrafe, “Direito ao respeito pela vida privada e familiar” e que dispõe:


1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.


2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.


[10] Que se reporta à admissibilidade das escutas telefónicas.


[11] Cfr. Ac. da RL de 25/03/2014, proc. 602/08.7TBBNV-A.L1-7


[12] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit. anotação 11 ao artigo 135º, páginas 364 e 365.


[13] Sendo que da notificação que foi remetida ao Sr. Advogado BB e cuja cópia fez juntar aos autos, a fls. 2243, consta que lhe foi enviada cópia desse despacho e a advertência de que este último se encontra abrangido pelo segredo profissional, pelo que a sua utilização é suscetível de constituir infração disciplinar.