Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
157/14.3TBLLE.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ALIMENTOS
Data do Acordão: 11/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: Articulando o regime inserto nos art.ºs 495.º n.º 3, 562.º e 564.º n.º 2 do CC, resulta que o direito a indemnização pelo dano da perda de alimentos
consagrado na 1.ª parte do n.º 3 do art.º 495.º do CC implica a demonstração de que aquele que reclama a indemnização estava em condições de legalmente os poder vir a exigir do lesado e de que previsivelmente, em certa e concreta medida, os alimentos seriam prestados.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


I – As Partes e o Litígio

Autores / Recorrentes: AA
BB

Réus / Recorridos: Fundo CC
DD

Trata-se de uma ação declarativa de condenação por via da qual os AA peticionaram a condenação dos RR a pagarem-lhes a quantia de €63.500 (sessenta e três mil quinhentos euros) acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento a título de indemnização pelos danos de natureza patrimonial e não patrimonial sofridos na decorrência do óbito de seu filho decorrente de acidente de viação causado pela conduta ilícita e culposa desenvolvida pelo R DD, cujo veículo não dispunha de seguro obrigatório de responsabilidade civil.


II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, condenando os RR a pagarem solidariamente à A AA a quantia de €900 acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, absolvendo os RR do mais peticionado.

Parcialmente inconformados, os AA interpuseram recurso daquela decisão, pugnando pela revogação da mesma com a substituição dela por outra que condene os RR a pagar aos AA a quantia de €12.500, acrescida de juros de mora desde a citação.

Concluem a alegação de recurso nos seguintes termos:
“I. O âmbito do recurso é a decisão que julga improcedente o pedido de 12.600.00 euros formulado ao abrigo do art.495 nº 3 do Código Civil, pois estão preenchidos os seus pressupostos.
II. A decisão recorrida faz uma inadequada aplicação do Direito, nomeadamente, do art. 495 nº 3 do Código Civil , e do art.º 608 nº2 CPC, devendo ser anulada e substituída por outra que julgue procedente o recurso
III. Apreciando a prova produzida e enquadrando-a na situação concreta, deverá determinar a procedência do recurso
IV. Começa-se por afirmar que os autores são pobres.
V. A prova de que ao AA são pobres resulta indiciariamente da concessão do apoio judiciário como igualmente decorre de factos constantes do processo
VI. Julgar ignorando essa realidade, equivale na prática a decidir face a pessoas carenciadas, da mesma forma como se decidiria caso essa carência não existisse, evidencia uma decisão contrária à lei e ao Direito.
VII. Descreve-se o agregado familiar ao tempo do óbito do Guilherme.
VIII. Da prova produzida em audiência, gravada em CD resulta que à data do óbito do EE o agregado era constituído pelos AA, pelo EE, pelo filho de meses deste, pela namorada do EE, e ainda por outro filho dos AA, menor. No total de 6 pessoas. Actualmente, o agregado é constituído pelos AA e um filho menor.
IX. O autor BB, pedreiro, está e já estava desempregado à data do óbito, não recebeu subsídio de desemprego pois como declarou, a entidade patronal para quem trabalhava faliu; não reunia as condições de acesso ao subsídio de desemprego. Está desempregado, faz uns biscates. Desses biscates, trabalho ocasional, resultam alguns proventos, necessários, porém, escassos
Actualmente, o BB tem 62 anos; tais factos constam do seu depoimento, cuja transcrição se transcreve;
(…)
X. O autor obviamente de acordo com a idade que tem 62 anos e exercendo a profissão de, pedreiro, não pode ter grandes perspectivas de emprego, num sector em crise.
XI. A Autora AA actualmente com 55 anos, conforme consta de depoimento . trabalhava ao tempo do óbito recebendo o vencimento correspondente ao salário mínimo nacional.
XII. O EE trabalhava e entregava aos pais 300€ mensalmente Com o seu falecimento o agregado deixou de receber os 300€ ,a namorada do EE começou a trabalhar 2 meses após o parto, actualmente ela e a filha não vivem no agregado dos AA .
XIII. A descrição do agregado familiar é relevante para uma justa decisão, circunstância que a
decisão recorrida não valorou. Estamos na presença de pessoas carenciadas.
XIV. Só a carência de recursos dos autores justifica que o EE com 20 anos ao invés de
estar a estudar, como seria normal, estivesse já a trabalhar. Igualmente é a carência de recursos que justifica que a mãe da bebé comece a trabalhar cerca de 2 meses após o nascimento da filha. Os 300€ que o EE entregava eram necessários para fazer face às necessidades básicas
XV. Será à luz deste enquadramento social que devemos apreciar o caso concreto
Na audiência de julgamento provou-se que:
EE trabalhava no hipermercado exercendo as funções de operador de loja e auferia um salário líquido de € 480,79 mensais
XVI. Porém, considera-se não provado que EE ajudava economicamente os Autores, com uma comparticipação de € 150.00 mensais exclusivamente para proveito próprio destes e que era necessária ao seu sustento.
XVII. Apesar de no processo existir prova bastante de que tal facto se deveria considerar provado.
XVIII. O Tribunal a quo escamoteu toda a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento .
XIX. Na sentença sobre as declarações pode ler-se:
Nas declarações de parte dos Autores: i. AA, mãe de EE, (…) O seu filho ganhava 400 e tal euros e contribuía com € 150,00 mensais para a água e a luz e dava mais € 150,00 por mês para ajudar a depoente e o seu marido, estando este à data desempregado, fazendo uns biscates. Quem pagava a comida era a depoente”
Depoimento que se transcreve;
(…)
AA: Nós éramos muitos também, não é? E depois tinha outra parte, que ele dava mais cento e cinquenta euros, que era para ajudar, eu e o meu marido.
Meritíssima Juiz: A senhora não trabalhava?
AA: Trabalhava.
Meritíssima Juiz: E o seu marido?
AA: Nessa altura estava desempegado.
Meritíssima Juiz:Então, e ao seu filho sobravam cento e oitenta euros para ele, para a filha e para a esposa? Eles comiam destes cento e oitenta euros?
AA: Não. Comida, a gente ia… tinha, não é?
00:05:22 Meritíssima Juiz: Quem punha a comida era a senhora, não era?
AA: Sim, sim.
Meritíssima Juiz: Eles… Há quanto tempo é que ele trabalhava no Jumbo?
AA: Ele estava no primeiro contrato ainda.
Meritíssima Juiz: Ele quando a Patrícia… quanto tempo antes é que a FF foi viver lá para casa? Foi quando ficou grávida ou foi depois disso?
AA: Foi quando ficou grávida, sim.
Meritíssima Juiz: Quando ficou grávida, pronto. Mas ainda não percebi. Ela trabalhou ainda durante algum tempo da gravidez ou quando foi para lá já estava desempregada?
AA: Quando ela foi para casa, ela estava desempregada.
00:07:34 Meritíssima Juiz: É sim, sim. Por meu intermédio, por favor.
Advogado dos Autores: A Sra. AA especificou propriamente parte dos cento e cinquenta euros que eram para despesas como água e luz. Pressuponho que também a alimentação estivesse incluída?
AA: Sim.
(….)
XX. Na sentença pode ler-se:
BB, pai de EE, o qual referiu que vivia com a esposa, o seu falecido filho(…) O filho dava € 150,00 por mês para as despesas da casa e contribuía com mais € 150,00 mensais para os pais, estando à data desempregado. A Autora é que tratava da comida da família, fazendo as compras com a ajuda do dinheiro do falecido filho.
Depoimento que se transcreve :
(...)
Meritíssima Juiz: Para uma creche. Olhe, e como é que funcionavam as coisas lá em casa relativamente às despesas? O seu filho contribuía?
BB: Contribuía, sim.
Meritíssima Juiz: Como é que ele contribuía?
BB: Contribuía… Dava cento e cinquenta euros mês, que era para as despesas da casa, luz, água, alimentação… E ainda dava mais dinheiro para a gente, que era para alimentação
Meritíssima Juiz: Quanto é que ele dava?
BB: Uns cento e cinquenta, que era para proveito exclusivo de nós próprios
Meritíssima Juiz: O senhor estava desempregado?
00:04:05 BB: Sim.
Meritíssima Juiz: Há quanto tempo mais ou menos?
BB: Naquele momento, há uns três meses desempregado.
(….)
XXI. Conforme declarado no seu depoimento pelos autores, os quais e de acordo testemunhal
que acima se transcreve: Não há duvidas que o EE que o dinheiro que o EE entregava aos autores 300€ , também , para pagar a alimentação do agregado familiar.
XXII. Prosseguindo na sentença pode ler-se:
Nas declarações das testemunhas: a. GG, irmã do falecido EE, a qual, relatou que (…) entregando € 300 por mês aos pais, sendo € 150,00 especificamente para estes por o pai estar desempregado. Foi a mãe que pagou o funeral. A depoente ajudava a família quando podia, não tinha emprego fixo.
Depoimento que se transcreve:
(…)
GG: O ordenado mínimo. Era o ordenado mínimo.
00:02:39 Advogado dos Autores: Estamos a falar de quê, quatrocentos, quinhentos, seiscentos, trezentos…?
GG: Ajudava. O meu irmão sempre foi amigo dos meus pais, ainda mais do que eu. Sempre que podia ajudava financeiramente. Ele recebia o ordenado mínimo, cheguei a ver n vezes ele a dar para a ajuda da água, da luz… dos trezentos euros, cento e cinquenta para essas contas, não é? Água, luz, gás… E como os pais na altura…
(…)
00:04:08 GG: Cento e cinquenta das contas, depois, mais cento e cinquenta para os meus pais, porque na altura o meu pai estava desempregado, era só a minha mãe a trabalhar...
(…)
GG: … eu sei que ele podia ascender na empresa, podia subir na carreira, pronto… Ele era um rapaz responsável e (impercetível) sei que ele queria continuar lá firmemente. Agora não me recordo ao certo se já tinha feito, isso não me recordo de ele ter feito isso.
Advogado do 1.º Réu: Olhe…
GG: Sei que ele queria manter-se lá.
(…)
XXIII. Na decisão recorrida não se releva o facto de o Guilherme ser um jovem amigo dos pais, responsável e empenhado no trabalho, almejando progredir na empresa, como foi afirmado pela testemunha GG que declara referindo-se ao EE.
Mais se lê na sentença
HH, amiga dos Autores, a qual conhecia EE referindo que o mesmo trabalhava, ajudava os pais e vivia com estes, (…) Ajudava o pai porque estava desempregado e a companheira do falecido também grande parte do tempo
Depoimento que se Transcreve
(…)
00:01:42 HH: O Guilherme era um menino que toda a gente gostava de ter na altura.
(…)
HH: Sim senhor.
Advogado dos Autores: E porque é que a senhora diz que o Guilherme era um menino de ouro?
Advogado dos Autores: À volta do ordenado mínimo. Sim. E sabe se essa parte do ordenado, esse ordenado que ele ganhava, se ele canalizava alguma parte desse ordenado para ajudar os pais?
00:04:04 Advogado dos Autores: Sim.
HH: Já trabalhava e ele tinha orgulho no trabalho que tinha.
(…)
Advogado do 1.º Réu: Diga-me, recorda-se se ele antes de trabalhar no Jumbo trabalhou nalgum local, noutro local?
HH: Acho que… Não tenho muito certeza, mas acho que ele fazia de vez em quando, quando não tinha trabalho, ele fazia umas coisinhas para fora. Que ele dizia-me que tinha de ajudar a mãe e o pai, agora, não… Já não me lembro muito bem. Mas sei que ele gostava de trabalhar, e praticamente eles gostavam dele lá.
(…)
A testemunha II, primo de EE afirmou que , o mesmo trabalhava, vivia em casa dos pais e preocupava-se com eles e tentava ajuda-los monetariamente porque o pai estava desempregado.
Depoimento que se trancreve
00:03:02 Advogado dos Autores: Claro, é normal. Olhe, e tinha conhecimento se, em termos lá na empresa, se ele trabalhava, se eventualmente ele comentou consigo se era bem visto por parte da empresa, por parte dos chefes dele? Se tinha perspetivas de futuro, de progressão na carreira? Se ele alguma vez ele lhe transmitiu isso em termos profissionais?
II: Na altura falávamos e ele mostrava-se bastante motivado. Que queria continuar lá, não via que o quisessem mandar embora. Ele estava com esperanças de continuar lá e progredir até onde o deixassem.
XXIV. Ora a prova produzida aponta no sentido de se considerar provado não existem nenhuma duvida que o EE do ordenado que recebia 480 .79 euros .
XXV. Entregava 300€ sendo uma parte,150€ era canalizado para as despesas correntes como alimentação, água , luz , de certo modo para compensar as despesas que faziam
XXVI. E os outros 150 euros param proveito próprio dos autores (seus pais) atendendo ao facto que o seu pai se encontrava desempregado.
XXVII. A sua mãe recebia o ordenado mínimo a data dos factos.
XXVIII. O tribunal a quo escamoteou por completo toda a prova testemunhal, produzida na
presente audiência de julgamento.
XXIX. O Tribunal alicerçou a sua convicção interpretando erroneamente a matéria de facto
sendo elucidativo o seguinte parágrafo da sentença
A qual se passa a citar ;
Assim, não foi produzida qualquer prova segura que permita concluir que o falecido EE, que auferia € 480,79 mensais de salário, sendo o seu contrato tido início cerca de 3 meses antes do óbito, tinha uma companheira que esteve desempregada durante quase toda a gravidez e após o nascimento da filha de ambos, que tinha 2 meses quando o pai faleceu, para além de contribuir para as despesas da família na casa dos pais, ainda ajudava economicamente estes com uma comparticipação de € 150.00 mensais exclusivamente para proveito próprio destes e que era necessária ao seu sustento. Desde logo, os próprios Autores, apesar de confirmarem essa entrega exclusiva, referem que quem pagava a alimentação da família que vivia em economia comum era a mãe do falecido EE, pelo que, salvo caso de doação e aí não necessitava da ajuda monetária do filho, necessariamente teria que o fazer com o dinheiro que este lhe entregava, se considerarmos a alimentação de 2 adultos e as despesas de uma casa dos mesmos, sendo perfeitamente credível que o falecido se preocupasse com as despesas da casa por ter o pai desempregado, mas o certo é que a sua “família”, que fazia despesa, englobava logo 3 pessoas, sendo ele o único com rendimento na maior parte do tempo em que teve um contrato. Por outro lado, apenas desde 3 de Julho de 2006 que o falecido tinha contrato, não tendo sido feita qualquer referência a outro trabalho anterior, pelo que, no máximo, poderia ter pago 2 mensalidades aos pais, atendendo ao seu lamentável óbito no início de Setembro de 2006, não se vislumbrando como é que os Autores e a testemunha GG referem tal facto como se fosse um hábito instituído. Aliás, não se vislumbras como poderia o casal viver e sustentar a despesa de uma filha bebé com os € 180,00 restantes, motivo pelo qual, por não ser minimamente compatível com as regras da experiência comum e os Autores terem um claro interesse na causa, existe uma dúvida séria se o falecido EE contribuía com € 150,00 mensais para sustento exclusivo dos pais.”
XXX. A fundamentação tem como referente uma economia familiar da classe média, não tem
em conta o caso concreto, pois normal seria que o EE estivesse a estudar, recebesse uma mesada, e não tivesse que contribuir para as despesas domestica.
XXXI. Quando a testemunha GG refere a ajuda como se fosse um hábito instituído, não quer significar a duração da ajuda , mas sim um dever moral de proporcionar ajuda; cumpre salientar que a entreajuda é prática necessária entre as camadas mais pobres, a entreajuda não é uma opção, é uma necessidade.
XXXII. Não fossem os AA pobres e nada aceitariam do filho, nem este sentiria o intenso dever de ajudar. A situação em apreço afasta-se dos padrões hoje vigentes na sociedade.
XXXIII. Os autores, para além do desgosto que a morte do filho viram-se em termos económicos privados de um apoio que tinham, com que contavam no presente e no futuro e que a morte definitivamente frustrou
XXXIV. A decisão recorrida não considera todo o campo de aplicação do art.º 495º nº 3 do C
Civil.
XXXV. Compaginando-se com a situação em apreço é de referir o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto Proc.nº 105/08.0TBVCD.P1, onde se pode ler: “O art. 495º nº 3 do CCiv. refere-se ao designado “dano da perda de alimentos” e abarca duas situações em que o terceiro reflexamente prejudicado tem direito a ser indemnizado: quando pudesse exigir alimentos ao lesado e quando este lhos prestasse no cumprimento de uma obrigação natural. (…) Provado que a vítima era filho (menor) dos autores (com quem vivia) e que exercia uma actividade remunerada à data da sua morte (decorrente de acidente de viação), têm aqueles direito a ser indemnizados pelo dano previsto no nº 3 do referido art. 495º, cujo cálculo é feito em função da equidade (…)
Analisando o nº 3 do art. 495º, começa o Prof. Antunes Varela [obr. e vol. cit., pg. 647] por perguntar se têm direito à indemnização por danos patrimoniais (…) E acrescenta que “se a necessidade de alimentos, embora futura, for previsível (…), nenhuma razão há para que o tribunal não aplique a doutrina geral do nº 2 do art. 564º” e, bem assim, que “ainda que a necessidade futura não seja previsível, nenhuma razão há para isentar o lesante da obrigação de indemnizar a pessoa carecida de alimentos do prejuízo que para ela advém da falta da pessoa lesada”.
Julgando um caso análogo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. Nº 9843.10.6TBOER.L1-7, pode ler-se: “Nos termos do disposto no art. 495º, nº 3 do C.C. têm direito de indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural. (…) .
Não contendo a nossa lei ordinária regras precisas destinadas à fixação da indemnização pela perda da contribuição da vítima para o sustento dos pais, (…) , deve o tribunal julgar segundo a equidade, (…).
Apurou-se que a vítima era solteira, tinha 20 anos de idade e que auferia um salário mensal de EUR
450,00, tendo perspectivas de vir a auferir vencimento de cerca de EUR 1.000,00, após a conclusão dos seus estudos.
Vivia com os seus pais, ora AA. em comunhão de mesa e habitação, contribuindo com parte dos seus rendimentos (entre EUR 200,00 a 250,00 Euros por mês) para as despesas familiares.
Nesta conformidade, atenta a idade da vítima à data do acidente, o montante da contribuição entregue para fazer face às despesas familiares, bem como a expectativa fundada de a mesma vir a ser aumentada na proporção dos rendimentos do trabalho da vítima, o tempo provável de duração dessa prestação que, na sociedade portuguesa, segundo as regras da experiência comum, se admite pudesse perdurar, pelo menos, por mais dez anos, cremos ser inteiramente adequada a um juízo de equidade a fixação dos danos a indemnizar na quantia de EUR 35.000,00.”
XXXVI. A sentença parece sufragar a interpretação vertida nos aludidos acórdãos, daí que exista contradição entre a decisão que profere e a interpretação que acolhe do art 495º nº 3 CC, contudo, não aplica.
Com efeito, na sentença pode ler-se:
Nos autos, uma vez que não estava judicialmente fixada qualquer obrigação de alimentos, a mesma apenas poderia ser equacionada se a vítima mortal prestasse alimentos ao abrigo de uma obrigação natural, ou seja, quando a obrigação é fundada num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça, tal como resulta do artigo 402º do Código Civil. De facto,
“1- É indemnizável, nos termos do art. 495º nº 3 do Código Civil, tanto no caso de morte como no de lesão corporal, o prejuízo sofrido por aqueles que poderiam exigir alimentos ao lesado – o cônjuge, os seus descendentes, ascendentes, irmão e sobrinhos (art. 2009º CC) – ou por aqueles a quem este os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.
2- Têm direito a tal indemnização as pessoas que, no momento da lesão, podiam exigir já alimentos ao lesado e também aqueles que só mais tarde viriam a ter esse direito, se o lesado fosse vivo.
3- Para ser exercitado tal direito, não é necessário estar-se já a receber alimentos, mas é necessário demonstrar, com razoável grau de previsibilidade, que se está (no momento da morte do obrigado a alimentos) em condições de, factual e legalmente, os poder vir a exigir”.
Uma vez assente que para ser exercitado tal direito, não é necessário estar-se já a receber alimentos, não faz sentido dizer: Nos autos, uma vez que não estava judicialmente fixada qualquer obrigação de alimentos, a mesma apenas poderia ser equacionada se a vítima mortal prestasse alimentos ao abrigo de uma obrigação natural.”
Acresce que não carece de se exigir alimentos se eles são prestados voluntariamente
XXXVII. Nos termos do art.º 608 nº2 CPC, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…) .
XXXVIII. O que significa que mesmo que se considerasse, inexistir qualquer obrigação natural, essa circunstância não obsta a que se equacione a frustração de alimentos, consumada com a morte do EE. Face à prova existente, deve ter-se por provada a previsível da necessidade de alimentos, aliás ela é patente. Assim, sempre o pedido formulado seria possível e legalmente fundado no art.º. 495º nº 3 do Código Civil .
XXXIX. A liberdade do tribunal, no que concerne à apreciação da questão de direito, é, uma
decorrência lógica do dever que sobre ele impende de uma apreciação esgotante de todo o objecto do processo. Uma apreciação esgotante da matéria de facto; a sua apreciação sob todos os pontos de vista jurídicos possíveis; no caso concreto indagar das duas situações previstas no art. 495º nº 3 do Código Civil.
XL. A previsibilidade da necessidade de alimentos relativamente aos AA está provada. Daí
que a pretensão dos AA dever-se-á julgar procedente por provada não sendo excessiva porquanto apenas se considerou uma ajuda alimentícia pelo período de 6 anos : 150.00 Euros x 14 meses (salários) = 2.100.0 00 euros x 6 anos = € 12 600,00.”

Não foram apresentadas contra-alegações.

Assim, são as seguintes as questões a decidir:
- da reapreciação da decisão relativa à matéria de facto;
- do direito dos AA a obter indemnização a coberto do disposto no art.º 495.º n.º 3 do CPC.


III – Fundamentos

A – Factos provados em 1.ª instância

1) EE faleceu em 09-09-2006 na sequência do despiste nessa mesma data do veículo de matrícula 00-00-SR, no qual seguia como tripulante e era conduzido pelo Réu DD, que seguia desatento e apresentava uma taxa de álcool de 1,05 g/l de sangue (artigos 1º e 3º a 11º da petição inicial).
2) EE era filho dos Autores (artigo 2º da petição inicial).

3) EE deixou como única herdeira a sua filha JJ, menor, tal como resulta de fls. 61 a 64, cujo teor se dá integralmente reproduzido (artigo 9º da contestação do Réu Fundo CC).

4) O proprietário do veículo de matrícula 00-00-SR não tinha havia transferido, à data do acidente, a responsabilidade civil emergente de acidente de viação para uma seguradora (artigo 64º da petição inicial).

5) Na sequência do despiste e do óbito, foi instaurado o inquérito n.º 1138/06.6 GTABF que correu termos nos Serviços do Ministério Público, com vista a apurar o responsável pelo sinistro, tendo o processo sido objeto de despacho de acusação contra DD pela prática de 2 crimes de homicídio por negligência em que uma das vítimas era EE, o qual foi notificado ao Mandatário dos assistentes e ora Autores em 30-10-2008, tendo sido deduzido pedido cível pelos ora Autores que foi admitido por despacho de 28-05-2009, tendo o procedimento criminal sido julgado extinto por prescrição e remetidas as partes civis para os tribunais cíveis por despacho de 19-04-2013, tal como resulta de fls. 17 a 25 e 33 a 38, cujo teor se dá integralmente reproduzido.
6) A Autora despendeu a quantia de € 900,00 com o funeral do seu filho EE (artigo 28º da petição inicial).

7) EE trabalhava no hipermercado exercendo as funções de operador de loja e auferia um salário líquido de €480,79 mensais (artigos 30º e 31º da petição inicial).

B – O Direito

Da reapreciação da decisão relativa à matéria de facto

Os Recorrentes sustentam que deve ser dado como provado o facto que a 1.ª instância julgou não provado, a saber: “EE ajudava economicamente os AA, com uma comparticipação de €150 mensais exclusivamente para proveito próprio destes e que era necessária ao seu sustento”.

Aludem à prova testemunhal produzida em sede de audiência final, que transcrevem, invocando dúvida não existir de que são pobres e de que o falecido filho lhes entregava a referida quantia monetária, mensalmente, para proveito próprio.

Ora vejamos.

Os AA alegaram na p.i. que o falecido filho e a sua companheira de facto integravam o agregado familiar que constituíam com outros dois filhos, “em plena comunhão de habitação”, omitindo, no entanto, a existência da filha menor do falecido filho e da companheira deste[1]. Alegaram ainda que o falecido filho ajudava os AA com €150 mensais para proveito exclusivo destes. Dinheiro que provinha do seu salário mensal de €480,79; que entregava metade do seu salário aos AA[2].

É certo que tanto as testemunhas inquiridas, nomeadamente a filha e um sobrinho dos AA, como os AA, em sede de declarações de parte, referiram que o A lhes entregava mensalmente a quantia de €300: €150 destinavam-se à sua contribuição nas despesas (de água, luz, etc., inerente a si próprio, à sua companheira e à filha, que tinha dois meses quando o pai faleceu, vindo a A a afirmar que era ela que provia a alimentação); €150 destinavam-se exclusivamente aos AA, era uma ajuda aos AA, estando o A desempregado, fazendo uns biscates ocasionais, sem subsídio de desemprego, e auferindo a A o salário mínimo.

Ora, não obstante estas declarações, afigura-se que a 1.ª instância levou a cabo uma correta apreciação crítica da prova, que acompanhamos integralmente. Depois de enunciar o que foi efetivamente afirmado pelas testemunhas e pelos AA, a apreciação da prova em 1.ª instância conclui, e bem, que não existe prova consistente de que o falecido, que auferiu € 480,79 mensais de salário durante três meses antes do óbito, tendo uma companheira que esteve desempregada durante quase toda a gravidez e após o nascimento da filha de ambos, que tinha 2 meses quando o pai faleceu, para além de contribuir para as despesas da família na casa dos pais para fazer face ao seu sustento, ao sustento da sua filha e da sua companheira, ainda ajudasse economicamente os AA, com uma comparticipação de €150 mensais exclusivamente para proveito próprio destes e que era necessária ao sustento dos AA, não já ao sustento do A, sua filha e companheira. Na verdade, integrando o falecido, a sua filha e companheira, o agregado familiar dos AA, como estes desde logo invocaram na p.i., e sendo a A a prover a alimentação de toda a família, não se concebe que os gastos inerentes à habitação (água, luz, aquecimento, etc.), alimentação, vestuário, artigos de farmácia e higiene, medicamentos do falecido EE, da sua companheira e da sua filha então de 2 meses ascendessem à verba de apenas €150; por certo que, entregando o falecido EE a quantia de €300 aos AA, a verba aplicada na aquisição de bens e serviços inerentes à vivência quotidiana do falecido EE, sua filha e companheira não se ficaria pelos €150. Até porque, tendo entregue o falecido EE a quantia de €300 mensais aos AA nos três meses em que trabalhou no Jumbo antes do seu falecimento, o remanescente de €180 era reduzido e insuficiente para se sustentar a si, à sua companheira e à filha de meses, durante um mês; logo, beneficiariam os três, necessariamente, da aplicação, pelos AA, dos €300 recebidos do falecido EE na gestão da economia doméstica.

Sendo certo que a prova produzida, nesta matéria, é apreciada livremente pelo tribunal (art.ºs 396.º do CC e 466.º n.º 3 do CC), cabendo ao tribunal da Relação a reapreciação da prova com a mesma amplitude de poderes e sujeitando-se às mesmas regras da 1.ª instância, em face do que se deixa exposto cumpre concluir não existir prova segura, firme e consistente de que o falecido EE entregasse aos AA €150 mensais que estes destinassem a seu proveito próprio.

Improcedem, pois, as conclusões do recurso atinentes à reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.

Do direito dos AA a obter indemnização a coberto do disposto no art.º 495.º n.º 3 do CPC

Nos termos do disposto no art.º 495.º n.º 3 do CC, normativo que alude à indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal, “Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural”.

Conforme vem sendo apontado pela jurisprudência e pela doutrina, este preceito consagra uma exceção à regra que, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual e por força do disposto no art.º 483.º do CC, estabelece que só o titular do direito violado tem direito à indemnização, e não já terceiros, ainda que reflexamente prejudicados pela atuação do lesante. Trata-se do dano da perda de alimentos, consagrando-se o direito a indemnização quer quando o terceiro pudesse exigir alimentos ao lesado quer quando este lhos prestasse no cumprimento de uma obrigação natural.

Em face de tal regime legal, o direito de indemnização é reconhecido não apenas àqueles a quem o lesado prestava alimentos no cumprimento de uma obrigação natural como ainda àqueles que podiam exigir alimentos ao lesado o que inculca a ideia de que, para ser reconhecido tal direito, basta ter a qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício do direito a alimentos[3]. O reconhecimento e atribuição de alimentos àqueles que os podem exigir não depende da prova em concreto de que, ao tempo da verificação do facto danoso, estivessem a recebê-los sendo suficiente, para tal efeito, a demonstração de que, à data do facto danoso, se estava em situação de legalmente exigir os alimentos[4].
Se o lesado não prestava alimentos, mas podia vir a ser obrigado a prestá-los (como sucede com o filho para com os pais), pode o titular do direito a alimentos exigir a indemnização dos alimentos que o lesado teria tido de prestar-lhe se fosse vivo[5].

Ora, a ser assim, importa apreciar se, no caso concreto, se pode aferir que o direito a alimentos alcançaria merecimento, que os alimentos seriam prestados não fosse o evento desencadeador da morte ou da lesão corporal[6]. Na verdade, decorre do art.º 562.º do CC que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. O art.º 564.º n.º 2 do CC determina que se atenda aos danos futuros, desde que previsíveis. Nas palavras de Vaz Serra[7], o art.º 495.º n.º 3 não significa que tenham direito a indemnização de quaisquer danos patrimoniais aqueles que tinham direito de alimentos contra o lesado, mas apenas e tão só que estes têm direito de indemnização do dano da perda de alimentos. Em consonância, ensina Antunes Varela[8] que se a necessidade de alimentos, embora, futura, for previsível, nenhuma razão há para que o tribunal não aplique a doutrina geral do n.º 2 do art.º 564.º. Se, pelo contrário, o tribunal não tiver elementos que lhe permitam determinar se os eventuais titulares a alimentos poderão vir a carecer deles não pode, então, fixar uma indemnização por danos futuros, por não serem previsíveis[9].

Articulando, pois, o regime inserto nos art.ºs 495.º n.º 3, 562.º e 564.º n.º 2 do CC,
é manifesto que o direito a indemnização pelo dano da perda de alimentos
consagrado na 1.ª parte do n.º 3 do art.º 495.º do CC implica a demonstração de que aquele que reclama a indemnização estava em condições de legalmente os poder vir a exigir do lesado e de que previsivelmente, em certa e concreta medida, os alimentos seriam prestados.


No caso em apreço, o lesado é filho dos AA. O direito a alimentos por parte deles depende de não poderem, por si, prover integralmente o seu sustento, incluindo este tudo o que for necessário à alimentação, vestuário e habitação – art.º 2003.º do CC. Aquele que pretende obter alimentos deve demonstrar a sua necessidade e a impossibilidade de, por si, os obter, provando que não pode trabalhar o bastante para o seu integral sustento e que não tem bens que ocorram às suas necessidades.[10]

É certo que sobre os descendentes recai o dever de prestar alimentos aos ascendentes – art.º 2009.º n.º 1 al. b) do CC. Certo é também que os alimentos são proporcionados aos meios daquele que haja de prestá-los, à necessidade de quem houver de recebê-los – art.º 2004.º do CC.

À luz de tal regime, afigura-se que, no caso em apreço, não é previsível que os AA viessem a obter sucesso ao exigir alimentos ao seu filho EE, caso este não tivesse falecido. Na verdade, EE auferia o salário mensal líquido de €480,79. Com este parco salário, teria de fazer face às despesas inerentes à sua vida quotidiana, bem como à de sua filha menor (a quem estaria obrigado a prestar alimentos, se estivesse vivo – art.º 2009.º n.º 1 al. c) do CC), suportando ou contribuindo nas despesas relacionadas com a habitação, alimentação, vestuário. Inexiste menção de que o falecido Guilherme fosse munido de escolaridade ou certificações que lhe permitissem vir a obter, previsivelmente, um incremento remuneratório significativo. Por conseguinte, os elementos apurados nos autos apontam antes para que, previsivelmente, o falecido EE não tivesse meios de prestar alimentos aos seus pais.

Resulta do exposto que os AA não reuniam as condições exigidas por lei para, com sucesso e alcançando merecimento, exigir alimentos ao falecido EE. O que implica que não sejam titulares do direito de indemnização previsto no art.º 495.º n.º 3 do CC.

Improcedem, pois, as conclusões do recurso.


IV – DECISÃO

Por todo o exposto, decide-se pela total improcedência do recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos Recorrentes.

Registe e notifique.


*


Évora, 3 de novembro de 2016



Isabel de Matos Peixoto Imaginário


Maria da Conceição Ferreira


Mário António Mendes Serrano




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[1] Art.ºs 15.º a 19.º e 38.º da p.i.
[2] Art.º 38.º da p.i.
[3] Ac. STJ de 04/05/2010 (Salazar Casanova) bem como Acs. aí citados.
[4] Ac. do STJ de 20/10/2009 (Nuno Cameira).
[5] Ac. STJ de 04/05/2010, já citado.
[6] V. apreciação crítica lavrada no Ac. STJ de 28/11/2013 (Serra Baptista).
[7] Anotação ao Ac. STJ de 16/04/74, in RLJ, ano 108.º, 180 e ss.
[8] Das Obrigações em Geral, vol. I, 5.ª edição, p. 584.
[9] Vaz Serra, RLJ ano 108.º, p. 185.
[10] Ac. STJ de 28/11/2013, já citado.