Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
35/15.9MASTB.E1
Relator: LAURA MAURÍCIO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
APRECIAÇÃO DA PROVA
LEGÍTIMA DEFESA
DISPENSA DE PENA
Data do Acordão: 01/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I – A livre apreciação da prova não consiste na afirmação do livre arbítrio, já que também está vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório. A liberdade que aqui importa é a liberdade para a objetividade, aquela que se concede e que assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjetividade e que se comunique e que se imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objetividade é ela própria um princípio de direito, ainda que no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objetiva.

II - A objetividade que aqui importa não é a objetividade cientifica, é antes uma racionalização de índole prático-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável, proposta não à dedução apodítica, mas à fundamentação convincente para uma análoga experiência humana, e que se manifesta não em termos de inteleção, mas de convicção integrada sem dúvida por momento pessoal. É a convicção da verdade dos factos para além da dúvida razoável. Contudo, a convicção do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.

III - Para que se esteja perante a existência de legítima defesa, é necessário que se verifiquem os seguintes requisitos: a) existência de uma agressão a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro, que deve ser atual, no sentido de estar em desenvolvimento ou eminente, e ilícita, no sentido de o seu autor não ter o direito de o fazer; b) circunscrever-se a defesa ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a atuação do agressor, aqui se incluindo a impossibilidade do recurso à força pública, por se tratar de um aspeto da necessidade do meio; e c) “animus deffendendi”, ou seja, o intuito de defesa por parte do defendente, no caso concreto, e perante o crime que lhe é imputável.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Competência Genérica de Sesimbra - Juiz 2, no âmbito dos autos com o NUIPC nº35/15.9MASTB foi o arguido HR submetido a julgamento em Processo Comum e Tribunal Singular.

Após realização de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal, em 14 de maio de 2019, decidiu julgar a acusação procedente e, em consequência:

- Condenar HR pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante de € 750,00 (setecentos cinquenta euros), a que correspondem 100 (cem) dias de prisão subsidiária.
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Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

a) Salvo o muito respeito que nos merece o Tribunal a quo, considera o Recorrente que foi incorrectamente julgada toda a factualidade descrita nos Pontos 2, 3, 4, 5, 6 e 7 dos Factos Provados, a saber, que,

2. A certa altura, o assistente e o arguido iniciaram uma luta corpo a corpo, tendo caído ao solo.

3. Quando se encontravam ambos no solo e o assistente deitado de bruços, o arguido, de joelhos sob o assistente, fez-lhe uma “chave de braços”.

4. Após estarem em pé, assistente e o arguido reiniciaram luta corpo a corpo, tendo o arguido desferido socos no ofendido.

5. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, o assistente sofreu traumatismo crânio- facial, lesões estas que foram causa directa de 8 dias de doença para o assistente, com afectação da capacidade laboral pelo mesmo período.

6. O arguido, através da conduta supra referida, quis e logrou molestar fisicamente o assistente.

7. O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;

b) Na medida em que em todos e em cada um deles, se dá como provada a autoria dos factos em apreço nos autos pelo ora Recorrente, bem como quanto à sua dinâmica;

c) O suporte probatório da douta sentença condenatória, fundamentalmente suportado pelos depoimentos do Ofendido, do Arguido e da testemunha CP, cuja corroboração com os outros elementos de prova constante nos autos, e da sua análise crítica, não poderia resultar a condenação do Recorrente, mas sim imporia a sua absolvição, nomeadamente pela aplicação do instituto da legítima defesa previsto no artigo 32.º do Código Penal;

d) O Tribunal a quo, fundamentou a sua decisão quanto aos factos provados, no que tangue à sua autoria e à sua dinâmica, explicitando que “Resulta …( …) … uma divergência quanto à dinâmica dos factos que não permite ter certeza do que realmente se terá passado, designadamente quem iniciou a contenda física …( …) … . Não obstante não se ter logrado apurar quem agrediu em primeiro lugar, questão que tinha interesse para aferição da dispensa de pena ou legitima defesa, facto assente é que o arguido agrediu o assistente com socos, “mata leão” e “chaves de braços”, conforme pelo próprio confessado, e provocou no assistente as lesões documentadas nos autos.

e) Os depoimentos prestados em audiência de julgamento, conjugados com a restante prova produzida, respondem sem dúvidas à questão de quem agrediu em primeiro lugar, resulta inequívoco que foi o Ofendido AA quem iniciou a discussão e quem agrediu o Arguido, o que foi por si assumido e corroborado pelo Arguido e pela Testemunha CP;

f) No seu depoimento (ficheiro 20190321143405_3545539_2871817) o Ofendido AA, afirmou:

- Na passagem do depoimento ao minuto 7.º da gravação efectuada em CD pelo tribunal: “eu tava danado com a situação, naquele dia o Sr. HR passa acompanhado pelo outro senhor, CP acho eu, eu quando o vi explodi, tive de lhe dizer … (… )… eu e o Sr. CP távamos a discutir um com o outro”.

- Na passagem do depoimento ao minuto 08:25.º da gravação efectuada em CD pelo tribunal: “… (… )… as linhas ficaram cruzadas, o Sr. HR teve calado o tempo todo … (… )… pega no meu fio e vai cortar o fio. … (… )... Eu dirigi-me a ele empurrei-o, ele tava baixo, estava praticamente de joelhos, ele tombou.”

g) No seu depoimento (ficheiro 20190402111809_3545539_2871817) o Arguido HR disse,

- Na passagem do depoimento do Arguido ao minuto 05:45.º da gravação efectuada em CD pelo tribunal: “… (… )… o Sr. AA puxou as linhas que aquilo tem anzóis para tentar ferir-me nas pernas (… )… eu tirei um alicate … (… )… para cortar as linhas de pesca do Sr. AA para não me ferir, onde eu abaixei-me quando o Sr. AA chegou-se ao pé de mim e desferiu-me uma cabeçada no nariz, onde eu caí de costas … (… )… ”.

h) No seu depoimento (ficheiro 20190410104213_3545539_2871817) a Testemunha CP afirmou,

- Na passagem do depoimento da Testemunha ao minuto 06:30.º da gravação efectuada em CD pelo tribunal: “só vejo o outro senhor (Ofendido) chegar-se ao pé dele (Arguido) puxou a cabeça atrás, desferiu-lhe uma cabeçada, mas uma grande cabeçada, que o Hugo ficou sentado… .”

i) Pelo que não podia o tribunal a quo ter concluído, como concluiu que existe “uma divergência quanto à dinâmica dos factos … (… ) … designadamente quem iniciou a contenda física.”;

j) Como bem refere o Tribunal a quo na sua Fundamentação de Direito, “O bem jurídico protegido por este tipo legal é a integridade física da pessoa humana. Este é um crime material e de dano, ficando o respectivo tipo legal preenchido com a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independente da dor ou do sofrimento causados.”, e no Acórdão por si citado onde se lê “pode ser cometido através de uma conduta, nomeadamente um empurrão, que não deixe marcas ou consequências no corpo do ofendido”, pelo que dúvidas não existem de que a acção inicial do Ofendido consubstanciou uma ofensa à integridade física do Arguido, seja o empurrão por si assumido seja a cabeçada relatada pelo Arguido e da Testemunha CP;

l) Consequentemente, cabia ao Tribunal a quo, aferir da aplicação do instituto da retorsão, tendo necessariamente de concluir pela sua aplicabilidade;

m) Mas mais que isso, cabia-lhe aferir da aplicação do instituto da legítima defesa, pois demostrado que supra ficou que, da prova produzida, resultou assente que foi o Ofendido quem iniciou a acção, verbal e física, cabia então aferir do animus do Arguido nas acções por si praticadas, e quanto a este aspecto atender a que afirmou o Arguido ao minuto 07:00.º “… (…) … eu tentava-me proteger das agressões que ele me tava a dar …. Seguimos para o parque de estacionamento onde eu sempre tentei evitar o Sr. AA andando entre os carros. …. Eu sempre me tentei afastar das agressões dele”, ao minuto 10:10.º“euna altura estava em tratamento … (… )… só me tentei defender, estava em tratamento numa incapacidade no joelho de um acidente de trabalho.”, ao minuto 11:45.º ”ele ficou de joelhos eu de joelhos estava na areia e a segurá-lo para ele se acalmar.”, ao minuto 13:40.º “se causei algum ferimento, algum golpe no Sr. AA … . foi para me defender das agressões que ele me estava a causar” e, a Testemunha CP ao minuto 13:50.º “o Hugo voltou a defender-se.”;

n) O que deve ser conjugado com, como se refere na sentença, com o facto de o Ofendido foi quem “… procurou “a confusão” porque, conforme o próprio afirmou,“explodiu” porque alguém banalizara a arte de pesca que havia trazido para Sesimbra … ” e com o relato feito pelo Ofendido, que foi dizendo, ao longo do seu depoimento, conforme consta da gravação efectuada em CD pelo tribunal:

- minuto 07:50.º: “quando o vi (à testemunha CP) explodi; - minuto 11:12.º: “eu também já ia atrás dele” (do Arguido); . minuto 13:11.º “eu tive que me agarrar, tive que me segurar bastante naquele instante”; minuto 18:30.º “se ele invocar que lutou comigo … . houve ali alguma luta” … “também lhe dei um soco”; - minuto 22:15.º: “ainda lhe consegui dar outro soco”;

o) Assim, impunha-se ao Tribunal a quo ter decidido doutra forma, a saber, devia ter aplicado o instituto da legítima defesa, nos termos do disposto no artigo 32.ºdo Código Penal, e ao não o fazer violou esta disposição legal, ao não o fazer, o Tribunal a quo, disse ao Arguido que se alguém for vítima de uma agressão física, como lhe sucedeu, não conseguindo fugir da mesma, se tem que limitar a não fazer nada, pois que ao defender-se estará necessariamente a agredir, praticando um crime;

p) Entende-se que o Tribunal a quo decidiu mal na valoração que fez da prova produzida, nomeadamente dos depoimentos do Ofendido, do Arguido e da Testemunha CP, pois da análise crítica e conjugada desta, resulta foi o Ofendido quem deu início à agressão física ao Arguido, e que este, por sua vez, se limitou a tentar-se defender das agressões de que estava a ser vítima;

q) Estes depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, nomeadamente consta dos autos a queixa que o Arguido apresentou contra o Ofendido, tendo explicado no seu depoimento da mesma ter desistido por não querer “chatices”, permitem e impõem um juízo de certeza diferente daquele que o Tribunal a quo adquiriu, a de que existiu por parte do Arguido o exercício de legítima defesa e não teve qualquer intenção de agredir o Ofendido, não estando por isso preenchido o tipo penal no seu elemento subjectivo;

r) E assim, o princípio da livre apreciação do julgador plasmado no artigo 127º do Código do Processo Penal, foi violado pelo Tribunal a quo, que decidiu de forma contrária à prova produzida, quanto aos factos dados como provados, e em indiscutível contradição com as regras da experiência ao concluir que alguém que reage a uma agressão física, e pratica factos – socos - para repelir essa agressão, preenche o elemento subjectivo do tipo, sem mais;

s) Assim, outra não poderia ser a decisão do tribunal senão a de dar como provado que:

1. No dia 29 de Setembro de 2015, pelas 19 horas, na Praia da Califórnia, em Sesimbra, mais concretamente no areal em frente ao Hotel Sana-Sesimbra, o assistente AA e o arguido HR envolveram-se numa discussão, relacionada com o facto de o arguido estar a utilizar uma arte de pesca que o assistente reclamava terem sido ele a introduzir em Sesimbra.

2. A certa altura, o assistente dirigiu-se ao arguido e desferiu-lhe uma cabeçada no nariz, tendo este caído ao solo.

3. Envolveram-se numa luta corpo a corpo, tendo ficado ambos de joelhos, enquanto o arguido agarrava o corpo do assistente, imobilizando-o com uma “chave de braços”.

4. Após estarem em pé, assistente e o arguido reiniciaram luta corpo a corpo, tendo desferido socos reciprocamente.

5. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, o assistente sofreu traumatismo crânio-facial, lesões estas que foram causa directa de 8 dias de doença para o assistente, com afectação da capacidade laboral pelo mesmo período.

t) E, em conformidade, decidir o Tribunal a quo, em dar como factos não provados:

- O arguido, através da conduta supra referida, quis e logrou molestar fisicamente o assistente, e que

- O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;

u) Consequentemente, tinha o Tribunal a quo de ter absolvido o Recorrente, da prática de um crime ofensa à integridade física, previsto e punível pelo artigo 143º nº 1 do Código Penal;

v) Assim não entendendo, teria sempre de aplicar a dispensa da pena, nos termos do disposto na alínea b) do n.º3 do artigo 143.º do Código Penal, aplicando o instituto da retorsão.

Termos em que deve o presente Recurso ser legalmente admitido por legal e tempestivo e a final merecer provimento, alterando-se a decisão recorrida no sentido da absolvição do Arguido HR da prática do crime de ofensa à integridade física, ou assim não se entendendo ser-lhe o mesmo dispensado da pena, por aplicação do instituto da retorsão, nos termos da alínea b) do n.º3 do artigo 143.º do Código Penal.

Fazendo-se assim, a habitual e necessária justiça!
*
Por despacho de 18 de junho de 2019, o recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.
*
O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:

1. O Tribunal “a quo”, por sentença datada de 14.05.2019, condenou o arguido HR na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 5,00 Euros, num total de 750,00 Euros, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal;

2. O ora recorrente alega que atenta a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, deveria ter-se concluído que agiu em legitima defesa ou aplicar-se o instituto da dispensa de pena;

3. Porquanto das declarações do assistente, do arguido e das testemunhas resulta que foi o assistente que deu inicio ao conflito;

4. Resulta da prova produzida que, de facto, foi o assistente que interpelou o arguido, mas não que foi este que deu inicio às agressões físicas, uma vez que, face à discrepância dos depoimentos e à impossibilidade de dar prevalência a qualquer uma das versões apresentadas, não é possível concluir em que circunstâncias concretas ocorreram os factos e quem deu inicio às agressões físicas;

5. Por outro lado, ainda que se entendesse dar prevalência à versão dos factos trazida pelo arguido, atenta a demais prova produzida e os demais factos provados, sempre teria que se concluir que as agressões perpetuadas pelo arguido vão claramente para além do afastamento da agressão actual e ilícita, não permitindo que se afaste a ilicitude ou a culpa da sua conduta;

6. Acresce que, não se tendo provado as lesões do arguido, não é possível aplicar o instituto da dispensa de pena, por não ser possível concluir que se encontra reparado o dano pela compensação.

7. As lesões apresentadas pelo assistente não permitem concluir pela culpa diminuta do arguido, elemento essencial para aplicação do instituto da dispensa de pena;

8. A douta sentença recorrida procede à comparação, através da análise critica, dos diversos elementos de prova, especificando aqueles que foram decisivos para a formação da convicção do julgador, dando cumprimento ao disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal;

9. A sentença recorrida refere claramente os meios de prova a que atendeu para formar a sua convicção, seguindo um processo lógico e racional na apreciação da prova e na fundamentação de Direito;

10. Face à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, analisada “à luz das regras da experiência comum e juízos de normalidade”, bem andou o Tribunal “a quo” ao considerar provados os factos constantes dos pontos 1 a 7, dos factos provados;

11. Impondo-se assim, a condenação do arguido, ora recorrente;

12. A douta sentença ora recorrida não merece qualquer reparo ou censura, tendo feito uma correcta avaliação da prova produzida em audiência, conjugando-a com os demais elementos probatórios juntos aos autos, observando o princípio da livre apreciação da prova, e aplicando o direito à matéria de facto provada, não violando qualquer disposição legal;

13. Por tudo, a decisão proferida e ora em crise deverá manter-se nos precisos termos em que foi proferida.

No Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do C.P.P., não foi apresentada resposta ao Parecer.

Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso
Nos termos do disposto no art.412º, nº1, do C.P.P., e conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no art.410º, nº2, do C.P.P., mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, págs.74; Ac.STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, págs.96, e Ac. do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR I-A Série de 28.12.1995.

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso sub judice, as questões suscitadas pelo arguido/recorrente são:
- erro de julgamento;

- não preenchimento do elemento subjetivo do tipo legal de crime de ofensa à integridade física simples;

- legítima defesa;

- dispensa de pena, por aplicação do instituto da retorsão, nos termos da alínea b) do n.º3 do artigo 143.º do Código Penal.
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É do seguinte teor a sentença recorrida no que concerne a factos provados, factos não provados e motivação (transcrição):

“III. FUNDAMENTAÇÃO
A) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A.1) FACTOS PROVADOS

Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da mesma:

1. No dia 29 de Setembro de 2015, pelas 19 horas, na Praia da Califórnia, em Sesimbra, mais concretamente no areal em frente ao Hotel Sana-Sesimbra, o assistente AA e o arguido HR envolveram-se numa discussão, relacionada com o facto de o arguido estar a utilizar uma arte de pesca que o assistente reclamava terem sido ele a introduzir em Sesimbra.

2. A certa altura, o assistente e o arguido iniciaram uma luta corpo a corpo, tendo caído ao solo.

3. Quando se encontravam ambos no solo e o assistente deitado de bruços, o arguido, de joelhos sob o assistente, fez-lhe uma “chave de braços”.

4. Após estarem em pé, assistente e o arguido reiniciaram luta corpo a corpo, tendo o arguido desferido socos no ofendido.

5. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, o assistente sofreu traumatismo crânio-facial, lesões estas que foram causa directa de 8 dias de doença para o assistente, com afectação da capacidade laboral pelo mesmo período.

6. O arguido, através da conduta supra referida, quis e logrou molestar fisicamente o assistente.

7. O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou:
8. O arguido encontra-se inscrito na Segurança Social pelo regime de trabalhadores por conta de outrem e com último desconto datado de Outubro de 2018, com a remuneração mensal de € 339,76.

9. O arguido encontra-se incapacitado para o trabalho na sequência de acidente de trabalho.

10. Do certificado do registo criminal do arguido não constam antecedentes criminais.

A.2) FACTOS NÃO PROVADOS Não se provaram os seguintes factos:

I. O arguido HR, empunhava uma faca de mergulho da marca “NAVA” com 9 cm de cabo e 9 cm de lâmina e, em certo momento, o arguido desferiu uma pancada com o cabo da aludida faca que acertou na cabeça do assistente AA.

II. No decurso da aludida luta, o arguido HR desferiu, ainda, vários murros na cabeça do assistente, bem como um pontapé na zona das pernas.

A.3.) MOTIVAÇÃO DE FACTO
De acordo com o artigo 205.° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos Tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei.

Por sua vez, o Código de Processo Penal explicita, nos seus artigos 97.°, n.°4 e 374.°, n.° 2, que a sentença deve especificar os motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.

A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: deve o Tribunal lançar-se à procura do "realmente acontecido" conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o “agarrar” e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca, derivados da(s) finalidade (s) do processo.

Conforme decorre do Código de Processo Penal, um dos princípios que rege a audiência de discussão e julgamento, é o princípio da imediação que, como se afere do artigo 355.°, se traduz no facto de a convicção do Tribunal, em audiência, resultar da prova examinada ou que nela se produza.

Por seu turno, tal prova está sujeita ao princípio da livre apreciação, segundo o qual aquela é apreciada de acordo com as regras da experiência e da livre convicção da entidade julgadora (cfr. art. 127.º do CPP).

Quer isto significar que a prova deve ser apreciada na sua globalidade, não através do livre arbítrio, mas de acordo com as regras comuns da lógica, da experiência e dos conhecimentos científicos e vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório.

Todavia, não podemos esquecer que, pese embora este princípio seja a regra geral, existem algumas excepções, nomeadamente: o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (art. 169.° do CPP), a confissão integral e sem reservas no julgamento (art. 344.° do CPP) e a prova pericial (art. 163.° do CPP).

Em suma, a convicção do Tribunal forma-se, não só com base em dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.

Relativamente às declarações do arguido haverá que ter em conta, porém, o princípio da presunção da inocência, o qual se traduz em que até prova em contrário, o arguido deverá ser considerado inocente – cfr. art. 32.° n.°2 da Constituição da República Portuguesa.

Importa, pois, desta forma, proceder a uma fundamentação de facto que permita alcançar o raciocínio seguido pelo Tribunal na sua decisão.

Nesta conformidade, o Tribunal formou a sua convicção, sobre a factualidade provada e não provada, no conjunto da prova realizada em audiência de discussão e julgamento, analisada de forma crítica e recorrendo a juízos de experiência comum, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal.

A.3.1) Quanto ao crime de ofensa à integridade física

É costume dizer-se que na vida judiciária convivem diversas verdades: a dos arguidos e ofendidos; a das testemunhas; a verdade do julgador e a verdade processual. A que mais interessa para a prolação de uma sentença justa e conforme com os ditames de um Estado de Direito Democrático é a verdade processual porque, estribada na concatenação de toda a prova produzida e sujeita a contraditório, é o produto daquilo que o julgador consegue racionalmente fundamentar e defender e, por conseguinte, é facilmente sindicável através do confronto dos seus fundamentos.

O princípio da prova livre só quer dizer que o Tribunal livremente aprecia as provas (mas as provas), sem subordinação a regras ou critérios formais pré- estabelecidos. Não há qualquer convicção íntima do juiz que não se alicerce nas provas produzidas. Está afastado qualquer julgamento com base em meras opiniões ou conjecturas do julgador.

Por outro lado, o Tribunal na apreciação das provas, na reflexão dos factos, deve utilizar o seu saber da experiência, a sua capacidade de raciocínio, a reflexão nas regras da experiência comum, a sua compreensão das coisas. Mas esta essencial actividade só lícita na apreciação das provas e nunca se lhes substitui.

A convicção do Tribunal relativamente aos factos considerados provados formou-se com base, essencialmente, na análise crítica, ponderada e conjugada de toda a prova testemunhal, pericial e documental junta aos autos, conjugadas com as regras da lógica e da experiência comum.

Arguido, assistente e as testemunhas presentes no momento em que os factos ocorreram – MT e CP – confirmaram as circunstâncias de tempo e lugar em que os factos ocorreram, tal como confirmaram a altercação entre arguido e assistente e as agressões físicas mútuas (factos provados em 1) e 2).

Quanto às circunstâncias de tempo e lugar em que os factos ocorreram, o tribunal valorou também o auto de notícia de fls. 8, cuja autenticidade e veracidade de conteúdo não foram fundadamente postas em causa e foi cujo teor foi corroborado pelo agente autuante PF.

É quanto à dinâmica dos acontecimentos que as declarações do arguido e do assistente divergem, tal como os depoimentos das testemunhas.

AA, assistente nos autos, declarou que, quando se encontrava a exercer a arte de pesca do “barquinho” e ao constatar que o arguido fazia o mesmo e procedia à divulgação dos “barquinhos” para venda, situação que vinha a dificultar o exercício da actividade devido ao crescente número de utilizadores, “explodiu” (sic) e interpelou directamente CP, pessoa que acompanhava o arguido, e a quem o assistente comprara tinta para reparação do “barquinho” usado na aludida arte de pesca, no sentido de o chamar a atenção para a venda daquela arte.

O arguido, não obstante presente, nunca interferiu, até ao momento em que os fios das embarcações se cruzaram e o arguido, empunhando uma faca, dirigiu-se ao fio da embarcação do assistente para cortá-lo.

O assistente, que distava cinco metros do arguido, dirigiu-se a este e empurrou-o, provocando a sua queda ao solo.

Depois, seguiu no encalço do assistente na direcção da muralha desferindo facadas no ar. De seguida, desferiu-lhe um soco que provocou a sua queda ao solo, de bruços, ficando com a face imersa na água e o arguido sentado sob as suas costas. Sentiu uma pancada na cabeça com o cabo da faca que empunhava.

Quando conseguiu libertar-se estava cheio de sangue. Deferiu um soco no arguido, o qual retorquiu com dois socos e um pontapé nas pernas.

Após, o arguido “fugiu praia fora” (sic) mas depois surgiu calmamente.

Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, o assistente sofreu traumatismo crânio-facial, lesões estas que foram causa directa de 8 dias de doença, com afectação da capacidade laboral pelo mesmo período (conforme relatório pericial de fls. 18 a 20 e 3 a 46 e fotogramas de fls. 29-A a 29-C).

O arguido explica que se encontrava no local acompanhado de CP, proprietário de uma loja de tintas (pessoa com quem o assistente falara sobre a arte de pesca em causa) e pessoa que incentivou o arguido a construir “barquinhos” para venda, quando o assistente chegou ao local e, dirigindo-se a CP, disse “filho da puta”, “paneleiros”, roubaram as artes”, “sou reformado do exercito e tenho cinturão negro, como-te a ti e ao teu amigo”.

O arguido e CP ignoraram as palavras do arguido e continuaram no exercício da aludida pesca.

O assistente puxou o fio que agarra o seu barquinho e, atenta a posição do arguido e do assistente na pesca em curso, os anzóis iam ferir as pernas do arguido. Nessa medida, o arguido agachou-se para cortar o fio do barquinho do assistente. Nesse momento, o assistente desferiu-lhe uma cabeçada na cabeça, fazendo com que o arguido largasse o alicate que empunhava para se tentar equilibrar.

Quando se levantou, começaram as agressões mútuas na ”beira da praia” (sic) agrediram-se mutuamente até que ambos caíram ao solo e o arguido fez “uma chave de braços de joelhos” (sic) até o assistente se acalmar. Quando parecia mais calmo, o arguido soltou o assistente mas este continuou a agredi-lo, enquanto o arguido se desviava na direcção do paredão e dos veículos automóveis estacionados.

Quando o assistente subiu a rampa de acesso ao paredão foi interpelado por uma senhora que usava óculos, a qual parecia ser a sua esposa, tendo o assistente agredido a mesma.

No trajecto, o assistente desferiu um soco num rapaz e, quando a Guarda Nacional Republicana chegou ao local, pediu-lhes que fosse efectuado teste de pesquisa de álcool no sangue ao assistente pois o seu comportamento não parecia normal.

Quanto à faca apreendida nos autos, o arguido confirma que possuía uma faca de mergulho, guardada no interior de um tupperware no fundo da sua mochila, a qual entregou à Polícia Marítima quando lhe foi solicitado embora negue ter usado tal objecto no dia dos factos e no desentendimento ocorrido com o assistente.

MT, companheira do assistente e presente no paredão junto ao local onde os factos ocorreram, confirmou a discussão entre o assistente e o senhor que acompanhava o arguido e as agressões infligidas pelo arguido ao assistente, afirmando que viu o brilho da faca ao longe.

O seu depoimento, quando à dinâmica dos factos, foi coincidente com as declarações do assistente.

CP, que acompanhava o arguido, descreveu o comportamento exaltado e insultuoso do assistente para com ele e com o arguido, afirmando que o assistente desferia pancadas nas costas de ambos ao mesmo tempo que falava e os insultava (“filhos da puta”, “como-te o cú”, “como miúdos como vocês ao pequeno almoço na Marinha”, “vou-vos matar aos dois”).

Confirmou as agressões mútuas entre arguido e assistente e comportamento exaltado deste com a senhora que parecia ser a sua esposa (dizia “sai daqui” “deixa-me em paz”) e com a Polícia Marítima.

Quanto à dinâmica dos factos, a testemunha não diverge das declarações do arguido e, quanto à faca apreendida nos autos, a testemunha nega a sua utilização pelo arguido, bem como a utilização do alicate quando estavam envolvidos nas agressões reciprocas.

Por fim, PF, agente da Polícia Marítima autuante, não assistiu aos factos mas recorda a exaltação que encontrou no local à chegada e que a faca apreendida ao arguido estava guardada na mochila deste dentro de um tupperware.

O tribunal não vislumbra razão para conferir credibilidade às declarações do assistente, ainda que parcialmente corroboradas pela testemunha MT, a qual não é absolutamente isenta, atenta a relação amorosa entre ambos mantida e não estava junto aos intervenientes no momento das agressões, em detrimento das declarações do arguido, as quais são corroboradas pela testemunha CP, a qual estava ao lado dos intervenientes aquando do desentendimento e agressões ocorridas e relatou os factos com descrição pormenorizada mas que mantem uma relação de amizade com o arguido e acaba por ser responsável pelo motivo do desentendimento entre ambos.

Resulta, portanto, das declarações do arguido e do assistente e dos depoimentos das testemunhas uma divergência quanto à dinâmica dos factos que não permite ter certeza do que realmente se terá passado, designadamente quem iniciou a contenda física, ainda que resulte claro que foi o assistente quem interpelou CP e o arguido e procurou “a confusão” porque, conforme o próprio afirmou, “explodiu” porque alguém banalizara a arte de pesca que havia trazido para Sesimbra cerca de 4 anos e 6 meses antes, tornando o exercício da mesma quase impossível.

Da prova produzia também não resulta claro ter sido utilizada a faca apreendida nos autos como objecto da agressão ou qualquer outro instrumento, mormente o alicate cuja utilização foi referida pelo arguido para corte do fio de pesca.

Não obstante não se ter logrado apurar quem agrediu em primeiro lugar, questão que tinha interesse para aferição da dispensa de pena ou legitima defesa, facto assente é que o arguido agrediu o assistente com socos, “mata leão” e “chaves de braços”, conforme pelo próprio confessado, e provocou no assistente as lesões documentadas nos autos.

Quanto aos factos provados relativos ao elemento subjectivo refira-se que o processo psíquico em que assenta a verificação do dolo, porque nasce e se desenvolve no pensamento íntimo mais profundo do ser humano, exceptuando uma manifestação espontânea do seu autor, só se revela através de um juízo de inerência por parte do julgador. Sendo assim, o complexo de elementos revelado pelos autos, analisado de acordo com as regras da lógica e as regras da experiência comum de vida, conduz à conclusão que o arguido agiu sabendo que com a sua conduta podia molestar fisicamente o ofendido e ainda assim prosseguiu os seus intentos. Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.

A.3.2) Quanto à situação pessoal e sócio-económica do arguido
A condição pessoal e sócio-económica do arguido resulta do teor do documento da Segurança Social de fls. 195.

A.3.3.) Quanto aos antecedentes criminais
A ausência de antecedentes criminais do arguido resulta da análise do teor do certificado de registo criminal, junto aos autos a fls. 198.”
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Apreciando

- Do alegado erro de julgamento

Alega o recorrente que foi incorretamente julgada toda a factualidade descrita nos Pontos 2, 3, 4, 5, 6 e 7 dos Factos Provados, invocando, para fundamento do que alega, as declarações do arguido e do assistente e o depoimento da testemunha CP, transcrevendo excertos de tais declarações e depoimento.

E o Tribunal a quo fundamentou, assim, a sua convicção: “A convicção do Tribunal relativamente aos factos considerados provados formou-se com base, essencialmente, na análise crítica, ponderada e conjugada de toda a prova testemunhal, pericial e documental junta aos autos, conjugadas com as regras da lógica e da experiência comum.

Arguido, assistente e as testemunhas presentes no momento em que os factos ocorreram – MT e CP – confirmaram as circunstâncias de tempo e lugar em que os factos ocorreram, tal como confirmaram a altercação entre arguido e assistente e as agressões físicas mútuas (factos provados em 1) e 2).

Quanto às circunstâncias de tempo e lugar em que os factos ocorreram, o tribunal valorou também o auto de notícia de fls. 8, cuja autenticidade e veracidade de conteúdo não foram fundadamente postas em causa e foi cujo teor foi corroborado pelo agente autuante PF.

É quanto à dinâmica dos acontecimentos que as declarações do arguido e do assistente divergem, tal como os depoimentos das testemunhas.”
(…)
“O tribunal não vislumbra razão para conferir credibilidade às declarações do assistente, ainda que parcialmente corroboradas pela testemunha MT, a qual não é absolutamente isenta, atenta a relação amorosa entre ambos mantida e não estava junto aos intervenientes no momento das agressões, em detrimento das declarações do arguido, as quais são corroboradas pela testemunha CP, a qual estava ao lado dos intervenientes aquando do desentendimento e agressões ocorridas e relatou os factos com descrição pormenorizada mas que mantem uma relação de amizade com o arguido e acaba por ser responsável pelo motivo do desentendimento entre ambos.

Resulta, portanto, das declarações do arguido e do assistente e dos depoimentos das testemunhas uma divergência quanto à dinâmica dos factos que não permite ter certeza do que realmente se terá passado, designadamente quem iniciou a contenda física, ainda que resulte claro que foi o assistente quem interpelou CP e o arguido e procurou “a confusão” porque, conforme o próprio afirmou, “explodiu” porque alguém banalizara a arte de pesca que havia trazido para Sesimbra cerca de 4 anos e 6 meses antes, tornando o exercício da mesma quase impossível.

Da prova produzia também não resulta claro ter sido utilizada a faca apreendida nos autos como objecto da agressão ou qualquer outro instrumento, mormente o alicate cuja utilização foi referida pelo arguido para corte do fio de pesca.

Não obstante não se ter logrado apurar quem agrediu em primeiro lugar, questão que tinha interesse para aferição da dispensa de pena ou legitima defesa, facto assente é que o arguido agrediu o assistente com socos, “mata leão” e “chaves de braços”, conforme pelo próprio confessado, e provocou no assistente as lesões documentadas nos autos.

Quanto aos factos provados relativos ao elemento subjectivo refira-se que o processo psíquico em que assenta a verificação do dolo, porque nasce e se desenvolve no pensamento íntimo mais profundo do ser humano, exceptuando uma manifestação espontânea do seu autor, só se revela através de um juízo de inerência por parte do julgador. Sendo assim, o complexo de elementos revelado pelos autos, analisado de acordo com as regras da lógica e as regras da experiência comum de vida, conduz à conclusão que o arguido agiu sabendo que com a sua conduta podia molestar fisicamente o ofendido e ainda assim prosseguiu os seus intentos. Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.”

Como resulta da motivação da decisão de facto não há dúvida que o Tribunal explicou de uma forma coerente, convincente e lógica, a razão da decisão que tomou.

E, como é sabido, em processo penal vigora o princípio da livre apreciação da prova inserto no art. 127º, do CPP, segundo o qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, que não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, mas tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

Não há dúvida que a livre apreciação da prova não consiste na afirmação do livre arbítrio, já que também está vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório. A liberdade que aqui importa é a liberdade para a objetividade, aquela que se concede e que assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjetividade e que se comunique e que se imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objetividade é ela própria um princípio de direito, ainda que no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objetiva.

A objetividade que aqui importa não é a objetividade cientifica, é antes uma racionalização de índole prático-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável, proposta não à dedução apodítica, mas à fundamentação convincente para uma análoga experiência humana, e que se manifesta não em termos de inteleção, mas de convicção integrada sem dúvida por momento pessoal. É a convicção da verdade dos factos para além da dúvida razoável.

Contudo, a convicção do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.

No caso sub judice, como se viu, resulta da motivação da decisão de facto que o tribunal “a quo” não conferiu credibilidade às declarações do assistente, ainda que parcialmente corroboradas pela testemunha MT, em detrimento das declarações do arguido, as quais são corroboradas pela testemunha CP, a qual estava ao lado dos intervenientes aquando do desentendimento e agressões ocorridas e relatou os factos com descrição pormenorizada mas que mantem uma relação de amizade com o arguido e acaba por ser responsável pelo motivo do desentendimento entre ambos, daí retirando a conclusão que declarações do arguido e do assistente e dos depoimentos das testemunhas resulta uma divergência quanto à dinâmica dos factos que não permite ter certeza do que realmente se terá passado, designadamente quem iniciou a contenda física.

“A convicção do tribunal é construída dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos» (cfr. Ac. STJ de 20SET05, in www.dgsi.pt)

Aplicando esta doutrina ao caso dos autos, conclui-se que o Tribunal “a quo”, tal como resulta da motivação da decisão de facto, não atendeu a prova proibida por lei (art. 125º, do CPP), mas, pelo contrário, todas as provas apresentadas foram objeto de apreciação segundo as regras da experiência comum e da sua convicção (art. 127º, do CPP), não resultando qualquer apreciação arbitrária, procedendo à análise crítica da prova (art. 374º, nº2, do CPP). Aí se referem quais de entre as várias provas produzidas aquelas que serviram para a formação da convicção do tribunal, com uma fundamentação convincente, em que é feita a análise crítica das provas atendidas, designadamente a razão de ser pela qual o Tribunal não atendeu a uma versão em detrimento de outra, ou seja, quais as razões porque não deu credibilidade à versão do assistente, em detrimento da versão apresentada pela arguido.

Assim, reexaminada a prova em que o Tribunal “a quo” se baseou para dar como provada a matéria de facto, não há qualquer razão para este Tribunal de recurso alterar a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, como pretende o recorrente, nem se mostra violado o princípio da livre apreciação da prova, inserto no art. 127º, do CPP.
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- Do alegado não preenchimento do elemento subjetivo do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.143º do CP

Decorre do artigo 143.°, nº1 do Código Penal, que «quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».

Este tipo incriminador visa proteger um dos mais importantes bens da ordem jurídica portuguesa, a integridade física, um bem jurídico eminentemente pessoal.

O preenchimento deste tipo legal de crime exige uma conduta humana que seja causa adequada a provocar uma ofensa no corpo ou na saúde de uma pessoa.

Ou seja, trata-se de um crime material e de dano que abrange um determinado resultado, consistente na lesão do corpo ou da saúde de outrem, fazendo-se a imputação objetiva deste resultado à ação ou omissão do agente de acordo com as regras gerais.

Trata-se de igual modo de um crime de execução livre, ou seja, pode ser perpetrado por qualquer meio, para além de que é também um crime de resultado, exigindo-se que haja uma ofensa efetiva à integridade física ou psíquica do ofendido.

Como decorre do exposto, o tipo objetivo de ilícito fica preenchido mediante uma de duas modalidades: ofensas no corpo ou ofensas na saúde, o que sucede independentemente da dor ou do sofrimento causados.

Como refere PAULA RIBEIRO DE FARIA, "por ofensa no corpo poder-se-á entender «todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante» (S I S/EseI' § 223 3 e M / S / Maiwald / 80). Integram o elemento típico daquelas actuações que envolvem uma diminuição da substância corporal, com a perda de órgãos, membros, ou pele (. .. ), lesões da substância corporal, como nódoas negras, inchaços, alterações físicas ( .. ), a perturbação de funções físicas (…) ".

No que concerne à lesão na saúde, como tal deve entender-se "toda a intervenção que ponha em causa anormal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a; pertence a este âmbito toda a produção ou aprofundamento de uma constituição patológica (,.). É de considerar como lesão da saúde, em primeiro lugar, a criação de um estado de doença (. .. ). Integra também este elemento típico a conduta de quem contribua de forma decisiva para a manutenção ou agravamento de um estado de doença ou sofrimento já existente”.

No que toca ao elemento subjetivo, o tipo legal em análise exige a verificação do dolo, traduzido na consciência e vontade de produção da lesão.

Assim, analisado o tipo legal em causa, cumpre, tendo em conta os seus elementos típicos, verificar se se encontra preenchido pela conduta imputada ao arguido.

E, atenta a factualidade apurada, resulta que o arguido preencheu com a sua conduta os elementos objetivo e subjetivo do tipo em causa.

Com efeito, o arguido ofendeu o corpo do assistente fazendo-lhe uma “chave de braços” e desferindo-lhe socos, provocando-lhe lesões.

Em sede de tipicidade subjetiva, flui igualmente da matéria de facto provada que o arguido agiu dolosamente, com conhecimento e vontade de realizar o tipo.

A tipicidade indicia a ilicitude, uma vez que não se verifica, in casu, qualquer causa de justificação.

Do mesmo modo, a ilicitude indicia o juízo de censura em que se traduz a culpa, sendo certo que o arguido atuou de forma livre e deliberada, motivando-se de acordo com a sua consciência da ilicitude.

Conclui-se, assim, que o arguido praticou um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.°, nº1, do Código Penal, não merece censura a decisão recorrida no que concerne à qualificação jurídica.
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- Da alegada legítima defesa
Dispõe o art.31º, do CP, que o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade (nº1); nomeadamente, não é ilícito o facto praticado em legítima defesa (nº2, al.a)).

E dispõe o art.32º do CP que constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.

Ora, conforme já se disse, a decisão sob recurso é coerente, dela constando os factos que permitem integrar os elementos constitutivos do crime de ofensa à integridade física simples, pelo qual o arguido vinha acusado.

Vejamos, então, se se verifica legítima defesa, como alega o recorrente.

A legítima defesa, como causa de exclusão da ilicitude, constitui o exercício de um direito constitucionalmente consagrado (cfr. art.º 21º da C.R.P.) e que, de igual modo, se encontra previsto, para efeitos penais, como já se disse, no art.º 32° do C. Penal.

Para que se esteja perante a existência de legítima defesa, é necessário que se verifiquem os seguintes requisitos: a) existência de uma agressão a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro, que deve ser atual, no sentido de estar em desenvolvimento ou eminente, e ilícita, no sentido de o seu autor não ter o direito de o fazer; b) circunscrever-se a defesa ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a atuação do agressor, aqui se incluindo a impossibilidade do recurso à força pública, por se tratar de um aspeto da necessidade do meio; e c) “animus deffendendi”, ou seja, o intuito de defesa por parte do defendente, no caso concreto, e perante o crime que lhe é imputável.

A propósito dos requisitos da legítima defesa escreve Maia Gonçalves, em anotação ao art° 32° do seu Código Penal Português, 18ª ed.:

"Do que ficou exposto se deduz que são requisitos da legítima defesa:
A existência de uma agressão a quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro. Tal agressão deve ser atual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter o direito de a fazer; não se exige que ele atue com dolo, com mera culpa ou mesmo que seja imputável; é por isso admissível a legítima defesa contra atos praticados por inimputáveis ou por pessoas agindo por erro;

Defesa circunscrevendo-se ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a atuação do agressor. Aqui se inclui, como requisito da legítima defesa, a impossibilidade de recorrer à força pública, por se tratar de um aspeto da necessidade do meio. Trata-se do afloramento do princípio de que deve ser a força pública a atuar, quando se encontra em posição de o poder fazer, sendo a força privada subsidiária, e este requisito continua a ser exigido pela CRP. Não pode porém ser imposto ao agredido defendente o uso de meios desonrosos, v.g. a fuga, quando sejam meio adequado para evitar a agressão, tanto mais que isso precludiria também a função de prevenção geral da legítima defesa.

E quanto à exigência do requisito do animus defendendi entende-se que a vontade de defesa (animus deffendendi) constitui um requisito da causa exclusória da ilicitude em apreço”. É que, como referem M. Simas Santos e M. Leal Henriques, "a defesa tem que restringir-se a uma mera defesa, que, de resto, está claramente expressa na lei, quando o legislador se refere a «...facto praticado como meio necessário para repelir a agressão” (cfr. Noções Elementares de Direito Penal, 2ª ed. Editora Rei dos Livros, pág. 91).

Também Maia Gonçalves, in ob. cit., não deixa de salientar «… que se exige agora, por forma mais expressiva, o animus defendendi, ou seja o intuito de defesa por parte do defendente. A substituição de meio necessário à defesa por como meio necessário (de defesa) teve o propósito de vincar a necessidade de tal requisito».

Por outro lado, mesmo que verificados os pressupostos objectivos da legítima defesa, podem-se exceder os meios necessários para a defesa, quer quanto ao grau em que tais meios são utilizados, quer quanto à sua espécie, caindo-se então nas situações de “excesso de legítima defesa” que surgem, assim, entre as causas de exclusão da culpabilidade pela ocorrência de circunstâncias que impedem que determinado acto, considerado ilícito pela lei, seja atribuível de forma culposa ao seu autor, ou, se se quiser, a verificação de motivos que anulam o conhecimento ou a vontade do agente.

Revertendo ao caso em análise temos que, como refere o Ministério Público na resposta ao recurso “

4. Resulta da prova produzida que, de facto, foi o assistente que interpelou o arguido, mas não que foi este que deu inicio às agressões físicas, uma vez que, face à discrepância dos depoimentos e à impossibilidade de dar prevalência a qualquer uma das versões apresentadas, não é possível concluir em que circunstâncias concretas ocorreram os factos e quem deu inicio às agressões físicas;

5. Por outro lado, ainda que se entendesse dar prevalência à versão dos factos trazida pelo arguido, atenta a demais prova produzida e os demais factos provados, sempre teria que se concluir que as agressões perpetuadas pelo arguido vão claramente para além do afastamento da agressão actual e ilícita, não permitindo que se afaste a ilicitude ou a culpa da sua conduta”.

Assim, sendo sabido que pressuposto primeiro da legítima defesa é a existência de uma agressão actual, ou seja, um comportamento humano voluntário que ameaça um bem jurídico, já em curso ou iminente, considerando os referidos ensinamentos e vista a factualidade vertida na sentença, é manifesto que não se verifica este ou qualquer dos demais requisitos de legítima defesa, sendo certo que o recorrente não fundamenta a sua afirmação e é patente que os factos provados não suportam a sua tese.

E é de primeira evidência que a tese do recorrente não tem o mínimo fundamento e é contrária à realidade dos factos, não podendo falar-se em legítima defesa.

Termos em que o recurso é, também nesta parte, improcedente.
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- Da pretendida dispensa de pena por aplicação do instituto da retorsão, nos termos da alínea b) do n.º3 do artigo 143.º do Código Penal.

Nos termos do disposto no nº3 do artigo 143º do Código Penal o tribunal pode dispensar de pena quando:

a) Tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou

b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.

E, nos termos do artigo 74º, do Código Penal com a epígrafe de “dispensa de pena -, alíneas a), b) e c), do nº 1, verificam-se os pressupostos da dispensa de pena quando:

a) A ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas;
b) O dano tiver sido reparado; e
c) À dispensa de pena não se opuserem razões de prevenção.

Ora, no caso sub judice, não resultaram provadas lesões do arguido, e, não se tendo provado as lesões do arguido, não é possível aplicar o instituto da dispensa de pena, por não ser possível concluir que se encontra reparado o dano pela compensação.

A tal acresce a circunstância de as lesões apresentadas pelo assistente não permitirem concluir pela culpa diminuta do arguido, elemento essencial para aplicação do instituto da dispensa de pena.
Termos em que, também neste particular o recurso é improcedente.
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Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido HR, confirmando a sentença recorrida.

- Condenar o recorrente no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 21 de janeiro de 2020
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Laura Goulart Maurício

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Maria Filomena Soares