Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3537/17.9T8STB.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: EXERCÍCIO DO PODER PATERNAL
GUARDA DE MENOR
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Em princípio, a separação dos progenitores não deverá determinar a dos irmãos. Contudo, valores de ordem diversa podem justificar desvios a tal regra, não fazendo, nomeadamente, sentido que a qualquer dos irmãos seja imposta uma solução que não corresponda ao seu superior interesse com a exclusiva finalidade de a guarda de todos eles ser atribuída ao mesmo progenitor.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3537/17.9T8STB.E1

Relatório


(…) recorreu da sentença proferida no presente processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas a (…) e (…), tendo formulado as seguintes conclusões:

1. Deverá o ponto 2 da decisão da douta sentença recorrida ser revogado e em sua substituição ser fixado que: o … (e a …) ficará(ão) a residir com o pai.

2. As crianças (…) e (…) não deverão ser separadas, por tal não ser consentâneo com o seu superior interesse.

3. Não existe, nem foi apontada em sede de sentença, nenhuma razão ou necessidade que justifique a decisão de separação dos irmãos.

4. O pai tem melhores condições para assumir no dia-a-dia, as responsabilidades parentais atinentes ao afecto, protecção, estabilidade emocional, bem-estar, alojamento, sustento, disponibilidade de tempo, autoridade/estratégias de correcção e educação dos filhos e, ainda, é com o pai que a (…) deseja viver.

5. Deverá ser alterada a matéria de facto no que concerne ao facto não provado “que a mãe agrida fisicamente os filhos de forma repetida sempre que os tem consigo e que o tenha feito, em particular, quando passou a ficar com eles aos domingos, após fixação do regime provisório previsto em 14 dos factos provados” para: “A mãe agrediu, gritou com os filhos, bateu-lhes e pressionou a filha (…) a não contar nada do que se passava, de forma repetida quando os tinha consigo e fê-lo, mesmo quando passou a ficar com eles aos domingos, após fixação do regime provisório previsto em 14 dos factos provados”.

6. Para o efeito deverá ser devidamente ponderada e sopesada a seguinte prova: (1) audição da (…) em sede de audição técnica especializada e conclusão o respectivo relatório, (2) audições da (…) em Tribunal, (3) depoimento da professora da (…), a testemunha (…), (4) episódio de urgência hospitalar de dia 10 de Julho de 2018 e (5) relatório psicológico, elaborado pela psicóloga que acompanha a (…).

7. A prova documental que serviu de base aos factos provados n.ºs 27 e 28 não deverá ser considerada prova bastante das competências parentais da mãe ou do seu estado de saúde psicológico.

8. Ainda que, quando foi ouvida pela última vez, a (…) se tenha expressado relativamente à mãe de um modo que denotava que a mãe se encontrava desautorizada perante a criança, o que terá levado o tribunal a acreditar que a (…) empolou os seus relatos, porque queria viver com o pai, a criança explicou que a razão da sua “zanga” se prendia com o facto de a mãe saber o que fez, saber que a (…) sabia e ainda assim chamá-la de mentirosa (segundo as suas palavras).

9. De todo o modo, esse facto não deveria ser suficiente para descredibilizar as queixas da (…), pois, as suas declarações anteriores e as provas já carreadas para os autos, ao longo de todo o processo, corroboravam a veracidade das ditas queixas.

10. Na sequência da fixação da residência das crianças junto do pai deverá ser fixado um regime de convívios com a mãe e uma pensão de alimentos a pagar às crianças de acordo com o prudente arbítrio do tribunal.

A recorrida, (…) contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – A teoria do recorrente de que a mãe das crianças está desequilibrada do ponto de vista psicológico e que é uma mãe que maltrata os filhos, agredindo-os física e verbalmente, não teve qualquer suporte na prova produzida.

2 – Da prova produzida e correctamente avaliada resultou que ambos os progenitores têm competências para a prestação de cuidados aos filhos e se preocupam com a sua saúde, educação e desenvolvimento global.

3 – Perante o quadro factual e diferença de idades entre as crianças, a douta sentença recorrida estabeleceu a residência da (…) com o pai e a residência do (…) com a mãe por forma a respeitar a individualidade de cada um dos irmãos e, por conseguinte, garantir os seus diferentes interesses e necessidades.

4 – A douta sentença acautelou a possibilidade de um convívio regular e próximo entre os irmãos ao estabelecer que estão e estarão juntos todos os fins-de-semana, além ter definido um regime de férias que lhes permite estarem sempre juntos nas férias de Natal, Carnaval, Páscoa e Verão.

5 – Face ao exposto, deve ser negado provimento ao recurso e, em consequência, manter-se a douta sentença recorrida por acautelar o superior interesse da (…) e do (…).

O Ministério Público também contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – A melhor solução que salvaguarda os interesses da criança, é, designadamente após o divórcio dos progenitores, manter os irmãos juntos. Acontece que, como toda a regra, esta comporta excepções, pois haverá casos em que essa separação se impõe, como foi o caso em apreço.

2 – O (…) tem apenas 4 anos de idade e é muito ligado à mãe. Não havendo nada em desabono desta, e tendo condições para assegurar todos os cuidados que a criança necessita, tanto basta para concluir que o interesse do (…) impõe que seja fixada a sua residência junto da mãe.

3 – A (…), ao longo de todo o processo, mostrou um desejo muito forte de viver com o pai, de quem é muito próxima. Nesse seu desejo, estamos em crer que supervalorizou algum aspecto mais negativo da progenitora, como seja alguma falta de paciência e irritação, que poderiam ter ocorrido, numa fase em que aquela estaria mais fragilizada, após a ruptura do casamento.

4 – A (…), na sua determinação em ficar a viver com o pai, não perdeu uma oportunidade para descrever a progenitora de forma negativa, pelo que seria desaconselhável impor-lhe um regime que ela de todo não aceita.

5 – Ter fixado a residência da (…) junto da mãe, para evitar a indesejável separação dos irmãos, seria contribuir para agudizar o clima de tensão existente, quando o que se pretende é pacificar esta família.

6 – Por outro lado, fixar a residência do (…) junto do pai, para manter os irmãos juntos, seria privilegiar a relação entre irmãos, em detrimento da relação que existe entre mãe e filho, sendo esta, como todos sabemos, nos primeiros anos, a mais importante da vida de todo o indivíduo.

O recurso foi admitido.


Objecto do recurso


As questões a resolver são as seguintes:

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

2 – Guarda do (…).


Factualidade apurada


Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1) (…) nasceu a 2 de Julho de 2008 e (…) nasceu a 23 de Janeiro de 2014, sendo ambos filhos de … (requerente) e de … (requerido).

2) Requerente e requerido encontram-se separados desde meados de 2016.

3) Após a separação do casal, as crianças ficaram a viver com a mãe na casa que foi a de morada de família, em Palmela.

4) Por essa altura e já antes, desde 1 de Julho de 2012, o pai trabalhava em Sines, onde permanecia enquanto estava a trabalhar, deslocando-se e permanecendo em casa com os filhos e com a requerente quando estava de folga.

5) O tempo de trabalho do pai era organizado da seguinte forma: trabalhava 7 dias, folgava 3, trabalhava 14 dias, folgava 10 dias e nos 7 seguintes apenas teria que se deslocar ao local de trabalho apenas em caso de emergência.

6) Após a separação do casal, em fins de semana e períodos de férias, por vezes, o pai levava os filhos consigo para Sines.

7) A mãe trabalhava e ainda trabalha numa loja em Setúbal, por turnos rotativos das 9 às 19.30 horas, folgando aos domingos e noutro dia da semana, rotativo, contando com o apoio da sua mãe para assegurar as rotinas dos filhos, sempre que o seu horário de trabalho não permitia fazê-lo.

8) Em 2017, as crianças e a mãe passaram a viver em casa da avó materna, em Setúbal, onde também viviam o esposo desta e a sua mãe.

9) Por despacho proferido a 23 de Outubro de 2017, foi regulado o exercício das responsabilidades parentais quanto à (…) e ao (…), em termos provisórios, nos seguintes termos:

“1. As crianças residirão por períodos alternados com cada um dos pais, ficando com o pai nos períodos de folga deste, de 3 e 10 dias seguidos.

2. Para além disso, o pai poderá estar com os filhos sempre que o desejar, mediante acordo prévio com a mãe, podendo, designadamente, ir buscá-los à escola e jantar com eles, sempre que para tal tenha disponibilidade e a mãe não possa fazê-lo, por causa dos seus horários de trabalho.

3. As responsabilidades parentais, quanto às questões de particular importância para a vida das crianças, serão exercidas por ambos os pais.

4. Cada um dos pais assegurará as despesas correntes dos filhos nos períodos em que os têm aos seus cuidados e o pai suportará as despesas com a alimentação escolar dos mesmos.

5. Os pais suportarão, em partes iguais, as despesas com a educação e saúde dos filhos; para tal, o progenitor que suportar tais despesas entregará ao outro cópia dos respectivos comprovativos até ao último dia do mês em que tal suceda e o outro entregar-lhe-á a sua comparticipação até ao final do mês seguinte.”

10) Após ter sido fixado tal regime, a (…) começou a queixar-se que a mãe lhe batia e ofendia verbalmente, chamando-lhe, por exemplo, “porca” e “estúpida”.

11) Perante tais relatos da filha, o pai recusou-se a entregar os filhos à mãe e, a partir de 26 de Novembro de 2017, os mesmos passaram a ficar em casa dos avós paternos, em Azeitão, para onde o pai se deslocava quando estava de folga.

12) As crianças mantiveram, ainda assim, o contacto com a mãe, que ia visitá-las a casa dos avós paternos, com o consentimento destes, normalmente acompanhada pela avó materna ou por outro familiar.

13) As crianças manifestavam alegria pelo convívio com a mãe.

14) Por despacho proferido a 9 de Março de 2018, foi alterado o regime de exercício das responsabilidades parentais, ainda em termos provisórios, nos seguintes termos:

“1. A (…) e o (…) residirão com o pai e com a avó paterna na residência desta ou só com a avó, quando, por razões de trabalho, o pai aí não possa permanecer.

2. As responsabilidades parentais, quanto às questões de particular importância para a vida das crianças, serão exercidas por ambos os pais.

3. A mãe poderá visitar os filhos sempre que o desejar, mediante aviso prévio e a concordância da avó paterna.

4. Aos domingos, seu dia de folga, a mãe irá buscar os filhos a casa da avó paterna pelas 10 horas e irá entregá-los no mesmo local após o jantar mas, o mais tardar, às 21 horas.

5. Um dia por semana (a combinar com a avó paterna), a mãe irá buscar os filhos à escola, jantará com eles e irá entregá-los a casa da avó, o mais tardar, às 21 horas.

6. Nas férias escolares da Páscoa, a mãe passará com os filhos os seus dias de folga, mediante aviso prévio à avó, nos mesmos horários previstos para os domingos e, por ora, sem pernoita.

7. No domingo de Páscoa, as crianças almoçarão com um dos pais e jantarão com o outro.

8. A mãe pagará uma pensão de alimentos a favor de cada um dos filhos no valor de € 75,00 mensais, que depositará na conta bancária que a avó paterna lhe indicar, até ao último dia de cada mês.”

15) A partir da fixação deste regime, as crianças começaram a passar os domingos com a mãe.

16) No dia 13 de Julho de 2018, o pai levou a (…) aos Serviços de Urgência do Hospital de Setúbal, apresentando a criança equimose no braço esquerdo e referindo que tal foi provocado por “apertão por parte da mãe”.

17) A sós com a médica que a observou, a (…) disse que a mãe a trata mal, que grita com ela, chama-a de mentirosa, porca, estúpida…e lhe inflige agressões físicas (puxões de orelhas, partiu colher de pau no rabo, estalos/chapadas na cabeça…).

18) No dia 15 de Julho, domingo, a mãe deslocou-se à residência dos avós paternos para ir buscar os filhos mas os mesmos ou não se encontravam naquele local ou não lhe foram entregues por aqueles, situação de que se repetiu nos domingos seguintes.

19) Desde então, as crianças não voltaram a passar nenhum dia com a mãe.

20) A 4 de Dezembro de 2017 a requerente celebrou contrato promessa para aquisição de um apartamento em Setúbal, assumindo a obrigação do pagamento de € 250,00 mensais a partir dessa data.

21) A requerente vive nessa casa, a qual é composta por uma sala, um quarto, uma cozinha e uma casa de banho.

22) O quarto encontra-se mobilado com duas camas.

23) A requerente trabalha numa loja em Setúbal, para a empresa “(…) – Comércio de Vestuário, S.A.”, com turnos rotativos das 9 às 19,30 horas, de segunda-feira a sábado, com folga ao domingo e outra folga de segunda a sábado, de forma rotativa.

24) Aufere um vencimento base de € 650,00 mensais e, líquido, de cerca de € 750,00.

25) Quando a mãe tinha os filhos consigo e, por causa do seu horário de trabalho, não podia ir levá-los ou buscá-los à escola ou ao infantário, contava com o apoio da sua mãe.

26) A avó materna vive em Setúbal, é empregada doméstica e os seus horários de trabalho são flexíveis, o que lhe permite cuidar dos netos quando a mãe, por razões profissionais ou pessoais, não possa fazê-lo.

27) Por declaração emitida a 17 de Janeiro de 2018, a médica (…) atestou que a mãe “sempre apresentou sinais de robustez psíquica e comportamento adequado às circunstâncias”, desde que a observa em consulta da própria e quando acompanha os filhos nas consultas de vigilância de saúde infantil.

28) Em relatório datado de 27 de Abril de 2018, a Sra. Psicóloga escreveu, em conclusão: “(…) segundo a avaliação psicológica apresenta competências educativas para estar com os seus filhos, comprometendo-se claramente com o saudável cuidar e educar, quer do ponto de vista afectivo, emocional ou prático (higiene, alimentação), tendo por base valores reais e conscientes, com uma estrutura de personalidade e pensamento coerente e capaz.”

29) O requerido vive em Sines, com uma companheira.

30) Trabalha na mesma cidade, como motorista marítimo, para a Administração dos Portos de Sines e do Algarve, S.A., auferindo um vencimento base de € 1.254,40 e, líquido, de cerca de 1.800,00 mensais.

31) O horário de trabalho do requerido é rotativo, das 8 às 20 e das 20 às 8 horas e a alternância dos dias de trabalho e de folga mantém-se, conforme descrito em 5).

32) Para além de outras, o requerido suporta as seguintes despesas mensais: € 289,91 de crédito contraído para aquisição de habitação, acrescido de crédito individual de € 178,91, perante o (…) Banco; € 16,67 de IMI; € 18,55 de seguros; cerca de € 50,00 de electricidade; cerca de € 15,00 de água; € 35,00 de serviços de telecomunicações; € 155,59 de prestação automóvel; € 4,17 de IUC; € 138,14 de crédito no (…); € 143,000 de crédito (…); € 60,00 de crédito (…).

33) Os avós paternos das crianças vivem em Azeitão e mostram-se disponíveis para cuidar dos netos sempre que necessário.

34) No ano lectivo 2017/2018, a (…) frequentou o 4.º ano de escolaridade na Escola Básica de (…), em Setúbal.

35) O (…) frequentou “O (…)”, na mesma cidade, desde o segundo período do ano lectivo 2016/2017.

36) Segundo a Educadora do (…), a criança apresentava-se, em geral, em boas condições de higiene, vestuário e alimentação no infantário e os pais eram ambos interessados pelo dia-a-dia do filho, mantendo uma relação de confiança com a instituição.

37) A 10 de Novembro de 2017 o pai do (…) informou a referida educadora que a criança deveria deixar de ser entregue à mãe, por existirem suspeitas de maus tratos por parte desta, o que a deixou surpreendida, por nunca de tal se ter apercebido.

38) A partir dessa data, porém, foram notadas alterações no comportamento do (…), que voltou a procurar a chupeta, tinha dificuldade em dormir a sesta e começou a fazer xixi e cocó nas cuecas mas, passadas duas ou três semanas, o seu comportamento normalizou.

39) A (…) passou a ser acompanhada em consultas de psicologia a partir de 17 de Abril de 2018.

40) Em relatório elaborado em Setembro de 2018, a Dra. (…), psicóloga que a acompanha, escreveu, além do mais: “… a sua relação com a figura materna parece revelar uma ambivalência de tendências: por um lado a procura da sua proteção e aceitação e por outro um evitamento do contacto com a mãe devido a alguns receios que foi relatando ao longo das consultas, como por exemplo: “não me conseguir portar sempre bem e a mãe zangar-se connosco” ou “a mãe saber que eu contei o que se passou em casa quando estou com ela e zangar-se”. A (…) refere gostar muito da mãe, contudo achar que a mesma desde que não vive com o pai “está diferente e não tem paciência para nós”. A (…) refere ainda que a mãe já a agrediu verbalmente (“a mãe chamou-me porca e estúpida”) e também fisicamente (“chapadas, puxões de orelha ”). (…) Relativamente à figura paterna, a (…) refere sentir-se “segura e feliz” com o pai, relatando com satisfação os momentos entre eles partilhados. A (…) descreve-o como sendo “bondoso e sociável”, parecendo existir uma relação afectuosa entre ambos. Desenhou o pai com uma expressão feliz, não parecendo evidenciar preocupações quanto ao convívio com o mesmo.”

41) A (…) verbaliza que deseja viver com o pai, em Sines, e passar três fins de semana por mês com a mãe e um com a avó paterna.

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

- Que a mãe agrida fisicamente os filhos de forma repetida sempre que os tem consigo e que o tenha feito, em particular, quando passou a ficar com eles aos domingos, após fixação do regime provisório previsto em 14) dos factos provados.

- Que o pai não prestasse cuidados aos filhos, antes da separação do casal.

- Que o pai não cuide da higiene e alimentação dos filhos, quando os tem consigo, limitando-se a brincar com eles e entregando-os aos cuidados de terceiros.


Fundamentação


1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

A fundamentação da pretensão de alteração da decisão sobre a matéria de facto suscita dois tipos de problemas: a admissibilidade de valoração de alguns dos meios de prova invocados pelo recorrente em sede de sentença e o cumprimento dos ónus previstos do artigo 640.º do CPC.

O recorrente invoca, como meio de prova, declarações prestadas pela menor (…) em sede de audição técnica especializada. Porém, tais declarações não podem ser valoradas como meio de prova em sede de sentença. É o que resulta do n.º 6 do artigo 5.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, que apenas permite que as declarações prestadas pela criança em fase processual anterior possam ser consideradas como meio de prova em sede de sentença se forem prestadas perante o tribunal. Logicamente, também não são valoráveis como meio de prova as conclusões das técnicas que efectuaram a audição técnica especializada acerca das declarações da (…).

O recorrente também invoca aquilo que a (…) terá dito à psicóloga que a acompanha e a uma médica num episódio de urgência hospitalar. Também aqui, estamos perante declarações que não podem ser valoradas como meio de prova, pois não foram prestadas perante o tribunal.

Relativamente aos restantes meios de prova invocados pelo recorrente, suscita-se a questão do cumprimento dos ónus previstos do artigo 640.º do CPC.

O n.º 1 deste artigo estabelece que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. A al. a) do n.º 2 do mesmo artigo estabelece que, no caso previsto na al. b) do n.º 1, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

O recorrente afirma que a prova documental que serviu de base aos factos provados n.º 27 e 28 não deverá ser considerada prova bastante das competências parentais da mãe ou do seu estado de saúde psicológico. Porém, não especifica qual é a decisão que, no seu entendimento, deve ser proferida sobre as referidas questões de facto, nem justifica porquê, com indicação dos meios de prova que considera imporem tal decisão diversa. Incumpriu, pois, os ónus previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º.

No mais, o recorrente cumpriu os ónus previstos nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 640.º, pois indicou o ponto da matéria de facto que considera ter sido incorrectamente julgado e o sentido em que, no seu entendimento, deve ser proferida decisão sobre o mesmo. Concretamente, o recorrente pretende que, em vez de se julgar não provado “que a mãe agrida fisicamente os filhos de forma repetida sempre que os tem consigo e que o tenha feito, em particular, quando passou a ficar com eles aos domingos, após fixação do regime provisório previsto em 14 dos factos provados”, se julgue provado que “A mãe agrediu gritou com os filhos, bateu-lhes e pressionou a filha (…) a não contar nada do que se passava, de forma repetida quando os tinha consigo e fê-lo, mesmo quando passou a ficar com eles aos domingos, após fixação do regime provisório previsto em 14 dos factos provados”. Porém, quanto a esta matéria, o recorrente não cumpriu o ónus previsto na al. b) do n.º 1, com o conteúdo descrito na al. a) do n.º 2. O recorrente invoca declarações prestadas pela (…) perante o tribunal, mas não indica as passagens da gravação em que funda o recurso, nem transcreve os excertos que considera relevantes. Invoca também os depoimentos prestados pelas testemunhas … (depoimento este particularmente longo, pois teve a duração de 1 hora, 41 minutos e 37 segundos, de acordo com a acta respectiva) e (…) na audiência de julgamento, mas, novamente, não indica as passagens da gravação em que funda o recurso, nem transcreve os excertos que considera relevantes. Em relação a todos estes meios de prova, o recorrente incumpriu, pois, o ónus acima referido.

Flui do exposto que a decisão sobre a matéria de facto deverá manter-se inalterada.


2


O recorrente insurge-se contra a sentença recorrida na parte em que esta decidiu atribuir a guarda do (…) à recorrida. Considera o recorrente que tal guarda devia ter-lhe sido atribuída, à semelhança do que aconteceu com a da (…). A argumentação por si expendida para tentar demonstrar o bem-fundado da sua pretensão resume-se assim: salvo razões ponderosas que imponham solução diversa, os irmãos não devem ser separados; uma vez que tais razões não se verificam no caso sub judice, a guarda do (…) e da (…) deverá ser atribuída ao mesmo progenitor; considerando os problemas existentes entre a (…) e a recorrida, a vontade por esta manifestada e as condições de vida de cada progenitor, ambas as crianças devem ficar a residir consigo.

Tal como o recorrente sustenta, a separação dos progenitores não deverá, em princípio, determinar a dos irmãos. A sentença recorrida também reconhece a importância de os irmãos ficarem a viver juntos. Contudo, valores de ordem diversa podem justificar desvios a tal regra. Como acertadamente se observa na sentença recorrida, cada criança tem direito à sua própria individualidade, não fazendo sentido que a qualquer delas seja imposta uma solução que não corresponda ao seu superior interesse com a exclusiva finalidade de a guarda de todos os irmãos ser atribuída ao mesmo progenitor. Por outras palavras, não deverá o interesse de um dos irmãos ser sacrificado ao interesse do outro com o pretexto de se manterem a viver juntos. Se houver razões que a justifiquem, deve ser decidida a separação dos irmãos, cujos eventuais efeitos negativos poderão ser atenuados por um regime de convívios que garanta que passem juntos o maior tempo possível.

No caso sub judice, a guarda da (…) foi atribuída ao recorrente e, nessa parte, a sentença recorrida não foi posta em causa. Por aquilo que acabámos de afirmar, dessa circunstância não decorre, forçosamente, que a guarda do (…) também tenha de ser atribuída ao recorrente. O interesse em manter estas duas crianças a viver juntas constitui um factor a ter em consideração na definição da situação do (…), mas não mais que isso.

Considerou-se, na sentença recorrida, que o (…) deve continuar a viver com a recorrida porquanto, à data da sua prolação, tinha apenas quatro anos de idade e, por outro lado, quando deixou de viver com a recorrida para passar a viver com os avós paternos e o recorrente, apresentou alterações relevantes no seu comportamento e regrediu nas suas aquisições e competências. Ponderou-se ainda que, não obstante esta última situação ter sido ultrapassada, constituiu um sintoma de sofrimento emocional por parte da criança.

Esta tomada de posição por parte do tribunal a quo não merece crítica. O (…) nasceu em Janeiro de 2014. Até à separação do casal, em meados de 2016, o (…) estava a tempo inteiro com a recorrida; com o recorrente, estava apenas quando este, que trabalhava e permanecia em Sines, vinha a casa nos seus dias de folga. Após a separação do casal, o (…) continuou a viver com a recorrida; em fins de semana e períodos de férias, por vezes, o recorrente levava-o, juntamente com a irmã, consigo para Sines. No dia 10 de Novembro de 2017, o recorrente comunicou à educadora do (…) que este deveria deixar de ser entregue à recorrida, por ter suspeitas (não confirmadas) de maus tratos por parte desta. O recorrente recusou-se a entregar o (…) e a irmã à recorrida e, a partir do dia 26 do mesmo mês, estes últimos passaram a ficar em casa dos avós paternos, em Azeitão, para onde o recorrente se deslocava quando estava de folga. A partir de então, verificou-se uma regressão no comportamento do (…), o qual, não obstante estar a dois meses de completar quatro anos de idade, voltou a procurar a chupeta, passou a ter dificuldade em dormir a sesta e começou a fazer as suas necessidades nas cuecas, situação que se prolongou durante duas ou três semanas.

Resulta destes factos que, desde o seu nascimento, o (…) tem uma ligação mais forte à recorrida que ao recorrente. Antes da separação do casal, o (…) vivia a tempo inteiro apenas com a recorrida e a irmã, pois o recorrente trabalhava e pernoitava noutra localidade durante a maior parte do tempo. Assim continuou a ser após a separação, até que, em Novembro de 2017, o recorrente, unilateralmente, retirou o (…) e a irmã à recorrida e colocou-os em casa dos avós paternos, onde se deslocava quando estava de folga. Os efeitos negativos dessa retirada no comportamento do (…) durante as duas ou três semanas subsequentes não podem ser menosprezados, pois foram bem reveladores da sua muito forte ligação à recorrida e da grande perturbação que aquela retirada lhe provocou. Em suma, o (…) é uma criança ainda muito nova, com uma ligação especialmente forte à recorrida. Seria, por isso, contrário ao seu superior interesse retirá-lo à recorrida para atribuir a sua guarda ao recorrente. A solução de atribuir a guarda do (…) à recorrida tem o inegável custo de separar os irmãos. Contudo, esse custo é, por um lado, mitigado pelo amplo regime de convívios fixado na sentença recorrida e, por outro, largamente compensado pela evidente vantagem de se manter o (…) à guarda do progenitor com quem tem mais forte ligação e de quem mais necessita nesta fase da sua vida.

Concluindo, a sentença recorrida não merece crítica, antes devendo ser confirmada, com a consequente improcedência do recurso.


Sumário


1 – As declarações prestadas pela criança na audição técnica especializada não podem ser valoradas como meio de prova em sede de sentença proferida em processo tutelar cível.

2 – Em princípio, a separação dos progenitores não deverá determinar a dos irmãos. Contudo, valores de ordem diversa podem justificar desvios a tal regra, não fazendo, nomeadamente, sentido que a qualquer dos irmãos seja imposta uma solução que não corresponda ao seu superior interesse com a exclusiva finalidade de a guarda de todos eles ser atribuída ao mesmo progenitor.


Decisão


Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.

Notifique.

Évora, 28 de Fevereiro de 2019

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

José Manuel Barata

Conceição Ferreira