Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
67/21.8PTSTR.E1
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
ACUSAÇÃO ALTERNATIVA
OBJECTO DO PROCESSO
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O requerimento de abertura de instrução por parte do assistente, que consubstancia uma acusação alternativa, caso não obedeça aos requisitos da acusação previstos no art. 283.º, n.º 3, als. b) e c), do CPP, deve ser rejeitado e não é suscetível de ser repetido ou de convite à correção - com as consequências da impossibilidade de exercício da ação penal e do arquivamento do processo.
II. O requerimento para abertura de instrução formulado não delimita suficientemente a factualidade relevante, porque não demarca a totalidade do objeto do processo, não identifica cabalmente a arguida, não situa os acontecimentos – base do ilícito - temporal e geograficamente, não indica o modo de cometimento dos mesmos nem as respetivas consequências, mormente do embate.
III. Não compete ao tribunal extrair da prova indicada os factos relevantes para os vir a inserir, a final, na pronúncia, numa manobra de aperfeiçoamento. O que lhe compete é aferir se os factos “imputados na acusação” (que deveria constar do RAI) estão suportados por essa prova, já constante ou produzida nos autos ou na que foi indicada como a produzir nesta fase processual.
IV. Admitir-se a primeira hipótese, seria atribuir ao JIC poderes investigatórios novos, por referência ao quadro factual que (não) lhe é apresentado pelo assistente, que conduziriam a um aperfeiçoamento dessa acusação inserida no RAI o que representaria uma clara divergência da linha jurisprudencial que nessa matéria foi estabelecida no Ac. Un. Jur.do STJ n.º 7/2005 de 14.05.2005 e do Ac. TC 636/2011 de 20.12.2011.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I.
No processo n.º 67/21.8PTSTR que, em fase de instrução, corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Santarém, Comarca de Santarém, o assistente AA, veio interpor recurso da decisão do Mmo. J.I.C. datada de 14.06.2022 que rejeitou o requerimento de abertura de instrução por si requerida, com os fundamentos constantes das respectivas motivações que aqui se dão por reproduzidas e as seguintes conclusões:
A) O requerimento de abertura de instrução somente poderá vir a ser rejeitado por extemporâneo, incompetência do juiz ou inadmissibilidade legal da instrução (artigo 287.º n.º 3 do CPP).
B) O despacho recorrido rejeita o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal.
C) A rejeição por inadmissibilidade legal, reporta-se aos casos em que aos factos não corresponde infração criminal, ou seja, casos de falta de tipicidade, de existência de obstáculo impeditivo de procedimento criminal e de abertura de instrução, como por exemplo a ilegitimidade do requerente ou os casos relativos a crimes particulares e processos especiais, como bem é explicitado por Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, Almedina, pág. 445.
D) No caso vertente tal não acontece, nada justificando o despacho recorrido.
E) Com efeito, a decisão do tribunal a quo viola diretamente o disposto no n.º 3 do artigo 287.º do CPP.
F) Caso alguma imprecisão existisse – o que não é o caso-, a cominação aplicável seria a prevista no artigo 123.º, n.º 2 do CPP, ou seja, deveria ser ordenada oficiosamente o seu aperfeiçoamento.
G) Como facilmente se observa no requerimento apresentado pelo assistente, estão descritos factos passíveis de incriminação.
H) É ainda demonstrado no requerimento de abertura de instrução, a errónea interpretação e aplicação da lei, bem como a necessidade de proceder a mais diligências probatórias, para determinar com exatidão a punibilidade da conduta da arguida.
I) O entendimento perfilhado no despacho de que ora se recorre, ao considerar que o disposto nas alíneas b) e c) do n.º3 do artigo 283.º, ex vi, n.º2 do artigo 287.º, do CPP, exige ao assistente, especificação cristalina da factualidade que justifique a aplicação ao arguido de um pena ou medida de segurança, e consequente acusação, substituindo-se diretamente ao Ministério Público e ao Tribunal, na acusação do arguido, sob pena de violação das garantias de defesa do arguido, é inconstitucional, violando os mais elementares princípios caracterizadores do Estado de Direito democrático.
J) Os princípio de Estado de Direito Democrático, da legalidade, acesso ao Direito e à Justiça, Direito a que a fase de instrução seja efetuada por um juiz, artigos 2.º, 3.º, 9.º, n.º4 do 32.º, todos da Constituição da República Portuguesa, impõe e permitem, que o requerimento em que se solicita a abertura de instrução, não seja acompanhado da descrição factual necessária à imediata concretização de uma pena ao arguido, sob pena de, neste caso, os assistentes terem que se substituir aos órgão de polícia criminal, ao ministério público e aos tribunais.
K) O entendimento sufragado no despacho recorrido, consagraria em última instância a consagração da Lei de Tailão – proibida num Estado de Direito!
L) Acresce que o requerimento de abertura de instrução contém todos os requisitos necessários, para que possa ser admitido, nos termos do n.º 3 do artigo 287.º do CPP, nomeadamente:
a) Razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação- cfr. 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 12, 13, 15 16 e 17 do RAI
b) Indicação dos actos de instrução que se pretende sejam levados a cabo – cfr. 18 a), b), c) e d)
c) Meios de prova desconsiderados no inquérito – cfr. 13, 14, 15 e 18
d) Factos que, através de uns e de outros, se espera provar –5, 6, 8 a 17 inclusive, conclusão.
M) O requerimento de abertura de instrução rejeitado, contém assim todas as exigências feitas pelas alíneas b) e c) do artigo 283.º, ex vi, artigo 287.º do CPP.
N) Contrariamente ao que se refere no despacho recorrido, a factualidade encontra-se perfeitamente delimitada;
O) A arguida poderá cabalmente exercer a sua defesa;
P) O assistente é que se vê privado do exercício dos seus direitos.
Q) O ora recorrente, descreveu a conduta passível de incriminação para com o condutor da viatura ligeira, indicando todos os requisitos necessários e elucidativos da discordância do despacho de não acusação, bem como da pertinência de realização de diligências probatórias complementares.
R) O requerimento de abertura de instrução apresentado, garante o exercício de todas as garantias de defesa, sabendo e conhecendo todos os factos que lhe são imputados.
S) Acresce que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, como determina o n.º 2 do artigo 287.º do CPP.
T) O requerimento de abertura de instrução somente tem que respeitar os requisitos previstos nas alíneas b) e c) do artigo 283.º do CPP, não os impostos à validade de uma acusação.
U) Tais requisitos in casu, encontram-se preenchidos.
V) Mais não era possível! Nem Exigivel!
W) A acusação é distinta do requerimento de abertura de instrução, naquela apontam-se factos precisos que se reputam já indiciados, neste podem indiciar-se factos hipotéticos que se desejam averiguados em sede instrutória.
X) A instrução compreende, para além do mais, atos de investigação e de recolha de prova, de debate sobre os factos probatórios recolhidos durante a instrução e no inquérito, formulação e debate sobre questões de direito de que depende o sentido da decisão instrutória e de decisão judicial sobre se a causa deve ou não ser submetida a julgamento.
Y) Cabe ao juiz analisar os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados, pronunciar o arguido pelos mesmos – cfr. Artigo 308.º do CPP.
Z) A indiciação de factos pelo assistente no requerimento de abertura de instrução pode resultar somente dos actos de instrução requeridos, sendo que a instrução não é apenas uma mera actividade de comprovação judicial.
AA) Com o despacho proferido pelo tribunal a quo foram violadas as normas presentes nos seguintes artigos do CPP:
a) artigo 287.º, n.º3;
b) artigo 287.º, n.º1, alínea b);
c) artigo 287.º, n.º2;
d) artigo 286.º, n.º1;
e) artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c);
f) artigo 123.º, n.º2.
BB) Sendo corretamente aplicáveis tais normas, desde que interpretadas com o seu elemento literal, a jurisprudência e doutrina dominantes.”
Termina no sentido de ser revogada o despacho recorrido e seja substituído por outro que ordene a abertura de instrução, ou, caso assim não se entenda, a substituição por outro que determine a reparação/aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução.

A este recurso veio responder o M.º P.º:, com as respectivas conclusões:
“1ª. O despacho em crise não violou qualquer disposição legal, contrariamente ao sustentado pelo recorrente.
2ª. A pretensão deste, caso fosse acolhida, comportaria violação de jurisprudência fixada em, pelo menos, dois AUJ.
3ª. Por isso, o recurso não merece provimento.
4ª. Pelo que deverá ser mantido nos seus precisos termos.”

Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunto elaborou parecer em que remete para a resposta ao recurso.
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º n.º 2 CPP.

II.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
É do seguinte teor o despacho recorrido, na parte relevante para o recurso interposto:
AA, assistente, requereu a abertura de instrução com vista a comprovar judicialmente a decisão do Ministério Público de não acusar a arguida BB, visando a prolação de despacho de pronúncia da arguida pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, na forma negligente, p. e p. pelo art. 148.º do CP, e de um crime de omissão de auxílio, na forma dolosa, p. e p. pelo art. 200.º, do CP.
Apreciando.
A finalidade da instrução é a comprovação dos pressupostos legais para a submissão, ou não, do arguido a julgamento – cfr. artigo 286.º, n.º 1 do CPP. Visa-se apurar a existência de indícios suficientes da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança – cfr. art. 308.º, n.º 1 do CPP.
Verificando-se a existência de indício suficientes dos pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança, impor-se-á a prolação de uma decisão de pronúncia e, ao invés, inexistindo indícios suficientes deverá o juiz de instrução proferir despacho de não pronúncia do arguido.
A atividade do juiz em sede de instrução é balizada pelas razões de facto e de direito alegadas no requerimento de abertura de instrução, de tal modo que aí se define o thema probandum desta fase, não podendo o tribunal pronunciar o arguido por factos diferentes daqueles mencionados no requerimento – cfr. art. 303.º e 309.º, do CPP.
Em conformidade, nos termos do artigo 287.º, n.º 2 do CPP, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente deverá conter os requisitos previstos para a acusação, consignados no artigo 283.º, n.º 3, al. b) e c) do Código de Processo Penal, ou seja, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena e a indicação das disposições legais aplicáveis
Da conjugação destes citados normativos conclui-se que o requerimento do assistente para a abertura de instrução deverá conter, em substância, uma acusação com a descrição dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, isto é, a indicação dos elementos objetivos e subjetivos dos crimes cuja prática é imputada au arguido.
In casu, o assistente não formula uma acusação contra a arguida, limitando-se a expor as suas divergências relativamente às considerações vertidas pelo Ministério Público no despacho de arquivamento. Termina indicando os atos de instrução que pretende ver produzidos.
Com efeito, o assistente não procedeu à narração dos factos que, no seu entender, são suscetíveis de integrar a prática por parte da arguida dos crimes de ofensa à integridade física simples, na forma negligente, p. e p. pelo art. 148.º do CP, e de omissão de auxílio, na forma dolosa, p. e p. pelo art. 200.º, do CP.
Sobre esta questão pronunciou-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, a 29.11.2017, proc. n.º 10/17.9T9SPS.C1 nos seguintes termos: “O requerimento para abertura da instrução do assistente deve estruturar-se como uma acusação, dele tendo que constar, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido e as normas legais aplicáveis. (…) Quando o requerimento não contém o quis, o quid, o ubi, o quibus auxiliis, o quomodo e o quando, definidores da indispensável narração – estando, consequentemente, ferido de nulidade –, a instrução carece de objecto, o que – independentemente de determinar ou não, a sua inexistência jurídica conduz à inadmissibilidade legal desta fase do processo”. No mesmo sentido, vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 06.11.2017, proc. n.º 280/16.0T9BRG.G1: “Se o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento não contiver todos os factos essenciais para imputar um qualquer crime ao arguido, tal situação traduzir-se-á na inutilidade dessa fase processual, por necessariamente redundar num despacho de não pronúncia. (…) No conceito de inadmissibilidade legal da instrução haverá que incluir, para além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução, também os fundamentos genéricos de inadmissão dos atos processuais em geral, como é o caso de serem atos inúteis. (…) Se porventura, numa tal situação, o juiz de instrução não rejeitar o RAI e levar a cabo a instrução, a consequência não poderá deixar de ser outra que uma decisão de não pronúncia do arguido (…)”.
Na esteira da jurisprudência citada, a mencionada ausência de narração dos factos integradores dos crimes imputados à arguida, constitui uma nulidade do requerimento de abertura de instrução pelo assistente – cfr. art. 283.º, n.º 3, al.s b) e c), 287.º, n.º 2, in fine, -, a qual não é passível de sanação – vd. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2015, de 27 de Janeiro: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”.
Por outro lado, não obstante os poderes de investigação do juiz, a estrutura acusatória do processo penal, o princípio do contraditório, bem como o direito de defesa do arguido impõe que o tribunal esteja vinculado pela factualidade descrita no requerimento de abertura de instrução.
Por conseguinte, no presente circunstancialismo, em que se constata a ausência da narração dos factos que, segundo o assistente, são suscetíveis de integrar a prática de crime por parte da arguida, qualquer inclusão no despacho de pronúncia de factos que integram os ilícitos imputados, seria sempre considerada uma alteração substancial dos factos, sem qualquer cabimento legal, sob pena de violação dos direitos de defesa da arguida – cfr. art. 1.º, al. f), 303.º e 309.º, todos do CPP.
Ora, uma instrução que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido, sem que sejam acrescentados os elementos do tipo de ilícito, não é admitida por lei.
Em conformidade, impõe-se rejeitar o requerimento de abertura de instrução, uma vez que o mesmo, em face do seu teor, nunca poderia conduzir à prolação de despacho de pronúncia, não sendo admissível a prolação de qualquer despacho de aperfeiçoamento, conforme sufragado no mencionado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2005.
*
Em face do exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 283.º, n.º 3, al. b) e 287.º, n.os 2 e 3, ambos do CPP, não se admite o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente Daniel Januário Alexandre, por inadmissibilidade legal da instrução.”

Vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que a questão suscitada se resume a saber se houve incorrecta interpretação e aplicação, no despacho recorrido, do disposto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, relativamente à rejeição do requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente.
Passando a apreciar.
O despacho recorrido manifesta que no requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, ora recorrente, se verifica a omissão de narração dos factos que, no seu entender, são suscetíveis de integrar a prática por parte da arguida dos crimes de ofensa à integridade física simples, na forma negligente, p. e p. pelo art. 148.º do CP, e de omissão de auxílio, na forma dolosa, p. e p. pelo art. 200.º, do CP., limitando-se a expor as suas divergências relativamente às considerações vertidas pelo Ministério Público no despacho de arquivamento. Termina indicando os atos de instrução que pretende ver produzidos.
Começaremos por frisar que nos termos do disposto no art.º 286.º n.º 1 do CPP a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Estatui depois o art.º 287.º n.º 1 b) do mesmo Código que a abertura de instrução pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento criminal não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o M.º P.º não tenha deduzido acusação.
Como se mencionou no ac. da Relação de Lisboa datado de 25/10/2016, disponível em www.gde.mj.pt: “… embora a afirmação algo enganadora com que o art. 287.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, abre a sua estatuição, proclamando que o requerimento para abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais”, a verdade é que deverá conter, por um lado, uma súmula “das razões de facto de direito, de discordância relativamente à (…) não acusação” (art.º 287.º, n.º2).
Mas porque lhe é também aplicável o disposto no art.º 283.º, n.º 3, al.ªs b) e c), do mesmo diploma (que rege a acusação formulada pelo Ministério Público), terá que incluir, por outro, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deva ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis”.
Ora por via da alteração legislativa conferida pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, do desenvolvimento da estrutura acusatória do processo penal consagrada pelo art.º 32.º, n.º 5, da CRP, e das suas implicações directas na definição do objecto do processo e nas questões adjectivas colocadas pela sua eventual alteração, esta é uma matéria que, nos tempos mais recentes, conheceu uma significativa evolução Doutrinal e Jurisprudencial apontando sempre no sentido do reforço da exigências colocadas na sua satisfação.
Nas situações, como a presente, em que o Ministério Público se absteve de acusar, é correcto afirmar-se que o requerimento de abertura de instrução deverá equivaler a uma acusação alternativa, ou como o refere o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, pág.ª 139), deverá conter “uma verdadeira acusação”.
E isto porquê?
Porque “na instrução a requerimento do assistente, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (art.ºs 308.º e 309.º). Não há lugar a uma nova acusação; o requerimento do assistente actuou como acusação e, assim, se respeita formal e materialmente a acusatoriedade do processo” (obra citada, pág.ª 140).
Dito por outras palavras, nem a Instrução traduz um novo inquérito para colmatar eventuais faltas investigatórias que tenham ocorrido naquela fase, nem após a realização das diligências instrutórias se abre a possibilidade de formulação da acusação.
Ora, ainda que nos termos do art.º 283.º, n.º 3, al.ª b), do Cód. Proc. Penal, a narração dos factos possa ser sintética, a verdade é que terá que ser suficiente para albergar a consequência de poder fundamentar a aplicação de uma pena.
Essa suficiência mede-se, pois, não só pela possibilidade do libelo acusatório conter todos os elementos subjectivos e objectivos indispensáveis à perfectibilização subsuntiva da infracção, como também, num outro domínio, o de poder funcionar como uma peça processual autónoma, ou seja, sem que para definição desses mesmos elementos se tenha de recorrer a outras peças do processo.
São assim lógicas e compreensíveis as exigências de conteúdo constantes dos preceitos acima consignados, impostas pela evidente premência, num tal contexto, de demarcar os factos concretos susceptíveis de integrar os ilícitos que o assistente pretende indiciados.
Com efeito, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos:
- Um, inerente ao objectivo imediato da instrução: a comprovação judicial da pretensa indiciação (que, para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados) e
- Outro, implícito a uma finalidade mediata, mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objecto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a este a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.
Como refere o acórdão da Relação do Porto de 04/02/2015 em que foi relatora a Exma. Desembargadora Élia São Pedro, disponível em www.gde.mj.pt/jtrp : “Contudo, daí não se pode concluir que o requerimento para abertura da instrução (formulado pelo assistente) seja imutável. Na verdade, se é certo que não é permitida nunca uma alteração substancial dos factos, o mesmo já não acontece com uma possível alteração não substancial dos factos da acusação – cfr. art. 303º do CPP, regulando a “alteração dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução. Nesta última hipótese, isto é, se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, ou da respectiva qualificação jurídica, o juiz procederá de acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 5 do citado art. 303º do CPP. Cumprida a ritologia prevista no n.º 1 do art. 303º do CPP (comunicação da alteração, audição do arguido sempre que possível e concessão de prazo para preparação da defesa), a pronúncia respectiva poderá validamente conter factos não constantes da acusação (desde que não comportem uma alteração substancial) ou alterar a sua qualificação jurídica.
Do exposto decorre que pode não haver completa identidade entre os factos descritos no requerimento para abertura de instrução e a pronúncia, como pode não haver identidade entre a qualificação jurídica feita nesse requerimento e a respectiva pronúncia.
Por outro lado, não exigindo a lei formalidades especiais na elaboração do requerimento para abertura da instrução, deve admitir-se a possibilidade de o elemento subjectivo dos crimes imputados ao arguido poder ser descrito através de factos que inequivocamente o revelem. O que importa, no essencial, é que o objecto do processo esteja bem delimitado e que os dados de facto susceptíveis de evidenciarem elementos psicológicos, como o dolo e a consciência da ilicitude, sejam de tal modo claros e evidentes que não tenha sentido algum pôr em causa a sua imputação.”
Retomando o caso concreto e percorrendo o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente, somos confrontados nele com a esparsa indicação de algumas realidades objectivas - “o veiculo do assistente, estava a ultrapassar o da arguida, embatendo no mesmo quando a mesma inicia a manobra”, “a mesma (arguida) não observou todos os cuidados a que estava obrigada, nomeadamente, verificar se algum veículo se encontrava a efetuar uma ultrapassar, evitando o risco de colisão - tal como ocorreu”, “Após o embate, o assistente ficou gravemente ferido”, “o assistente dirigiu-se primeiramente à arguida, implorando-lhe que o ajudasse, um pano para segurar o sangue da mão, que ligasse para o INEM pois precisava de ajuda. A arguida recusou toda e qualquer ajuda ao assistente.”, “Esta atitude da arguida, foi consciente, decidida e ponderada.” -, mas que na sua globalidade não são susceptíveis de demarcar a totalidade do objecto do processo, in casu da instrução. Note-se, desde logo, que, no requerimento em apreço, o assistente não consegue identificar cabalmente a arguida (limitando-se a referir “arguida”, situar temporal e geograficamente o evento base dos ilicitos, não indica o modo de cometimento dos mesmos nem as respectivas consequências, mormente do embate.
Todo esse conjunto de omissões compromete fatalmente a instrução.
A este nível, o requerimento de instrução é mesmo inexistente, limitando-se a discutir questões relativas a um despacho proferido pelo Ministério Público que poderia e deveria ser objecto de intervenção hierárquica, nos termos do disposto no artigo 278º, do Código de Processo Penal e nunca ser objecto de recurso para este Tribunal da Relação.
Há assim que concluir, como bem o fez o tribunal recorrido, que o dito requerimento não alcança o exigido pela lei no que concerne à narração – ainda que sintética – de todos os factos, objectivos e subjectivos, que permitam alcançar uma definição de crime, para desse modo se desenhar a possibilidade de aplicação de uma pena à pessoa contra quem é deduzida a instrução.
A falha supra apontada, no domínio da dimensão objectiva e subjectiva dos crimes em causa e do seu autor, torna inevitável a conclusão que o assistente olvidou elementos imprescindíveis para que da instrução por si pretendida pudesse vir a ser, na previsibilidade de se seguir o julgamento, aplicada uma pena.
Deste modo, o requerimento que o assistente apresentou para abertura da instrução, ao não conter tais elementos, não é processualmente prestável para a finalidade a que se destinava, o que equivale a dizer que não pode cumprir a função processual a que estaria vocacionado, o que gera que a instrução requerida seja inviável, por falta de requisitos legais.
Ora, estas omissões, para além de comprometerem o sucesso da instrução e da eventual pronúncia que viesse a ser proferida, trazem também uma intolerável limitação à real possibilidade de defesa por parte da acusada /arguida que se mostra visada nas imputações.
É certo que o assistente indica no seu RAI vária e extensa prova que, na sua perspectiva, aponta para os actos que pretende imputar, individual ou colectivamente, mas não compete ao tribunal extrair dessa prova os factos para os vir a inserir, a final, na pronúncia numa manobra de aperfeiçoamento; apenas lhe compete aferir se os factos “imputados na acusação” (que deveria constar do RAI) estão suportados por essa prova, já constante ou produzida nos autos ou na que foi indicada como a produzir nesta fase processual. Admitir-se a primeira hipótese, seria atribuir ao Mmo. JIC poderes investigatórios novos, por referência ao quadro factual que (não) lhe é apresentado pelo assistente, que conduziriam a um aperfeiçoamento dessa acusação inserida no RAI o que, as ser feito, representaria uma clara divergência da linha jurisprudencial que nessa matéria foi estabelecida no Ac. Un. Jur.do STJ n.º 7/2005 de 14.05.2005 e do Ac. TC 636/2011 de 20.12.2011, in DR II Série, n.º 19, de 26.01.2012.
Como se refere no ac. STJ de 12/06/2014, disponível em www.gde.mj.pt/jstj: “A instrução não constitui uma nova fase de inquérito. A instrução, como puro instrumento de controlo apenas, e não como instrumento de fiscalização da atividade desenvolvida pelo MP durante o inquérito, nem como complemento de investigação, assegura a necessária compatibilização com o modelo acusatório (articulado com o princípio da investigação) imposto pela CRP (art. 32.º, n.º 5). Se o requerente pretendia uma nova investigação ou a realização da investigação que, segundo o seu entendimento, não foi realizada, deveria ter usado a faculdade que o art. 278.º do CPP lhe concedia — a de requerer a intervenção hierárquica para que fosse avaliada a necessidade (ou não) de prosseguir a investigação.”
O STJ tem entendido que “não faz sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento, sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido” (acórdão do STJ de 22.10.2003 — proc. n.º 2608/03-3), pelo que tem concluído ser de “rejeitar, por inadmissibilidade legal «vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução», o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito” e “omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime” (acórdão do STJ de 22.03.2006 – proc. n.º 357/05-3 e acórdão de 07.05.2008, proc. n.º 4551/07-3). E, de uma forma mais vincada e explicita, o acórdão de 07.12.1005 (proc. n.º 1008/05), onde foi decidido que “se o requerimento do assistente para abertura da instrução não narra factos susceptíveis de integrar a prática de qualquer crime não pode haver legalmente pronúncia (cf. art. 308.° do CPP), pois a instrução seria, então, um acto inútil, cuja prática a lei proíbe (arts. 137.º do CPC e 4.° do CPP), e como tal legalmente inadmissível”, sendo certo que “a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento para abertura da instrução, nos termos do n.º 3 do aludido art. 287°”.
Por força de todo o exposto, o recurso não merece provimento sendo de confirmar o despacho recorrido.

III.
Face ao exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal em julgar improcedente o recurso do assistente AA e, consequentemente, manter a decisão recorrida.
Custas a cargo do assistente com taxa de justiça em 4 UC.
Feito e revisto pelo 1º signatário.
Évora, 10 de Janeiro de 2023
João Carrola
Maria Leonor Esteves
Gomes de Sousa