Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
267/17.5T8TNV.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÕES
CONSTITUCIONALIDADE
SANÇÃO ACESSÓRIA DE INIBIÇÃO DE CONDUZIR
CONTRA-ORDENAÇÃO MUITO GRAVE
NÃO SUSPENSÃO
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – A lei-quadro das contra-ordenações, em especial os artigos 33.º e ss, não estão feridos de inconstitucionalidade, por violação do artigo 32º n.º 1 e 2 da CRP (princípio da jurisdicionalidade).
II – Face ao disposto no n.º 1 do artigo 141.º, do CE, a suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir está reservada para a aplicada por contra-ordenação grave, excluindo dessa aplicação, a contrario sensu, aquela que a lei cataloga como muito grave.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 267/17.5T8TNV.E1
[1395]

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I

1 – Nos autos de recurso de contra-ordenação em referência, o arguido, BB, foi condenado, pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), pela prática (como reincidente) de uma contra-ordenação prevista e punível (p. e p.) nos termos do disposto nos artigos 81.º n.º 1, 133.º, 138.º, 143.º e 146.º alínea f), do Código da Estrada (CE), referente à condução automóvel com uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 0,90 g/l (já deduzido o valor do erro máximo admissível), em coima que pagou voluntariamente, e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de 180 dias.

2 – O arguido levou recurso de impugnação de tal decisão administrativa, alegando necessitar da carta de condução para o exercício da sua profissão de vendedor, ter carta de condução há cerca de 8 anos e ter pago voluntariamente a coima, pedindo a suspensão da sanção acessória, condicionada à prestação de caução de boa conduta e frequência de acções de formação.
Ofereceu prova testemunhal.

3 – A Mm.ª Juiz do Tribunal recorrido, por despacho de 19 de Abril de 2017, precedendo admissão do recurso, decidiu nos seguintes termos:
«A questão a decidir prende-se com a apreciação da possibilidade de suspender a sanção acessória, pelo que, sendo o objecto do recurso questão de direito, é possível conhecer e decidir por despacho.
Nestes termos, e ao abrigo do disposto no artigo 64.º n.º 2 do citado diploma [Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO)], notifique o Recorrente e abra vista ao Ministério Público para, no prazo de dez dias, declararem se se opõem à decisão por despacho, sendo que, caso nada digam, entender-se-á que não se opõem.»

4 – O Ministério Público e o arguido não manifestaram oposição à decisão por mero despacho.

5 – Em sequência, por despacho de 10 de Julho de 2017, a Mm.ª Juiz do Tribunal recorrido decidiu julgar o recurso improcedente e manter a decisão administratriva.

6 – O arguido interpôs recurso daquele despacho.
Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«1. Em Primeiro lugar, verifica-se que o, venerando tribunal “ a quo” em fase de não oposição do arguido e do Ministério Publico, nos termos e para os efeito do artigo 64 n.º 1 e 2 do RGCO - DL n.º 433/82, de 27 de Outubro decidiu por simples despacho, prescindido da audiência de discussão e julgamento.
2. Contudo não fundamentou a sua decisão, sendo que, a simples consideração de que entende desnecessária a existência de julgamento, não representa a fundamentação da sua própria decisão, porque não dá a conhecer ao arguido a razão de ciência para a referida conclusão, o que a torna nula nos termos das decisões conjugadas dos artigos 4.º do CPP e 615.º n.º 1 al. b) do Cod Processo Civil, aplicado subsidiariamente.
3. A desconsideração da nulidade, implicaria que o arguido, como o foi “ in casu” seja surpreendido com a não prova dos fatos que por si foram alegadas, sem que, perceba a razão pela qual os mesmos, no entender do tribunal quiçá eram desnecessários, para a decisão a proferir.
4. Todas as decisões têm de ser fundamentadas e sendo esta distinta da própria sentença em si, mas nela se integrando, terá de o ser, sob pena de nulidade, o que acarreta à posterior a nulidade da própria sentença.
5. A Sentença é pois nula.
6. Em segundo lugar, a decisão administrativa impugnada, viola o principio da jurisdicionalidade atento que representa a atribuição de poderes jurisdicionais a uma entidade administrativa.
7. A decisão administrativa viola o artigo 32 n.º 1 e 2 da CRP, violação do principio da jurisdicionalidade, inquinando consequentemente a douta sentença.
8. Em terceiro lugar, verifica-se que o tribunal interpretou o artigo 141/1 do CE no sentido de que apenas nas contra ordenações graves e já não nas contra ordenações muito graves a sanção de inibição de condução é susceptivel de ser suspensa.
9. Contudo verifica-se que o referido dispositivo não impede que por aplicação do artigo 50.º do cod. Penal a apreciação do regime da suspensão da pena que foi aplicada ao arguido, o tribunal, possa apreciar e sentenciar a referida suspensão.
10. Para tanto é mister em primeiro lugar consentir ao arguido fazer a prova dos fatos alegados em sede de impugnação da decisão administrativa, de forma a que o tribunal, à posterior possa apreciar se estão ou não reunidos os pressupostos para ser decretada a referida suspensão.
11. O tribunal tendo interpretado o artigo 141º do CE como é fez, interpretou-o de forma redutora e por isso não correta, devendo a interpretação ser no sentido supra referido, ordenando-se em consequência a produção de prova que em sede de impugnação foi requerida, afim de mais tarde aplicando o direito aos fatos que vierem a ser dados como provados fazer justiça.»

7 – O recurso foi admitido, por despacho de 12 de Outubro de 2017.

8 – O Ex.mo Magistrado do Ministério Público em primeira instância respondeu ao recurso, defendendo a confirmação do julgado.
Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:
«1) O objecto do presente recurso é delimitado pelas conclusões da sua motivação e restrito à matéria de direito, sem prejuízo da cognição pelo Tribunal ad quem dos vícios constantes do texto da decisão recorrida;
2) A douta sentença ora em recurso foi devidamente fundamentada, seja de facto, seja de direito, não existindo vícios no seu texto;
3) A sentença interpretou correctamente a prova produzida em audiência e fundamentou, de forma adequada, os concretos motivos de apreciação da mesma;
4) Da mera leitura da decisão e da análise do restante processado, resulta, com meridiana certeza, que a mesma procedeu à correcta determinação das normas legais e à sua acertada aplicação;
5) A douta sentença não violou qualquer preceito e considera-se não merecer qualquer reparo.»

9 – Nesta instância, a Ex.ma Magistrada do Ministério Público, aderindo à resposta, é de parecer que o recurso deve ser julgado improcedente.

10 – O objecto do recurso, tal como demarcado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, e seguindo um critério de lógica e cronologia preclusivas [artigos 608.º e 663.º n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), ex vi do disposto nos artigos 4.º, do Código de Processo Penal e do disposto nos artigos 41.º n.º 1 e 74.º n.º 4, estes do RGCO] reporta ao exame das questões relativas
(i) à violação, pela decisão administrativa, do princípio da jurisdicionalidade inscrito no artigo 32.º n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP),
(ii) à nulidade, por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1 alínea b), do CPC, ex vi do disposto no artigo 4.º, do CPP, da decisão que entendeu desnecessária a realização de julgamento e da sequente nulidade da decisão recorrida, e
(iii) ao erro de jure da Mm.ª Juiz do Tribunal recorrido, do passo em que entendeu interpretar o disposto no n.º 1 do artigo 141.º, do CE, como não aplicável às contra-ordenações muito graves, sem ponderação do disposto no artigo 50.º, do Código Penal (CP).
II

11 – A primeira questão respeita à pretextada violação, pela decisão administrativa, do princípio da jurisdicionalidade, afirmadamente inscrito no artigo 32.º n.os 1 e 2, da CRP.

12 – A respeito, alega o arguido, no essencial, que «a lei-quadro das contraordenações e em especial dos seus artigos 33º e seguintes, que regem o processo de contraordenação é inconstitucional, por violação do artigo 32º n.º 1 e 2 da CRP atento encontrar-se ferido o principio basilar do estado de direito assente no principio da jurisdicionalização ou da jurisdicionalidade».

13 – Às sempre avisadas reflexões do Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira (designadamente nas «Lições de Direito Penal – Parte Geral – I – A Lei Penal e a Teoria do Crime no Código Penal de 1982» - Reimpressão da 4.ª edição de Setembro de 1992, Almedina, Maio de 2010, pp. 115-118), transcritas pelo recorrente, não pode deixar de responder-se com a reflexão, esta aggiornata e incontornável, do Professor Jorge de Figueiredo Dias (em «Direito Penal – Parte Geral», Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007, p. 167, § 19):
«Estabelecida pela forma que fica descrita, a distinção entre ilícito penal e ilícito administrativo resulta clara, tanto quanto possível, e fundamentada. Ela adequa-se, por outro lado, ao devir histórico, ideológico, social e político dos dois ramos de direito desde os meados do séc. XVIII e não constitui um simples epifenómeno de locubrações doutrinárias obscuras e injustificadas, antes oferece legitimação a uma paulatina evolução e a um crítico desenvolvimento. Mais de um quarto de século de pacífica vigência do ilícito de mera ordenação social e das contra-ordenações mostra a sem razão dos que viram neles o fruto de uma acrítica importação de complicadas construções dogmáticas germânicas (como foi o caso de Ferreira, Cavaleiro de, I, pp 7, 43 ss).»

14 – Ademais, não se vê qualquer insuportável, inconstitucional, infracção do princípio dito da jurisdicionalidade ou da jurisdicionalização, na atribuição à Administração do exercício legítimo de actividade materialmente jurisdicional, desde logo quando (a) «nos encontremos numa zona cinzente, de contacto entre a função jurisdicional e a administrativa», (b) «depondo a favor da atribuição de tais funções à Administração valores constitucionalmente relevantes e suficientemente fortes (v. g. economia processual e a eficiência administrativa) para aconselharem uma alteração da normal distribuição de funções estaduais», e (c) «se visluimbre esquema alternativo de garantias, em que a expectativa dos cidadãos numa decisão justa esteja colocada, já não na independência do órgão aplicador do direito, mas num conjunto de outros mecanismos de algum modo compensadores» - J. P. Cardoso da Costa, em «O Princípio da Reserva do Juiz», pp. 35/36, ut Jorge Miranda e Rui Medeiros, «Constituição Portuguesa Anotada», Tomo III, Coimbra Editora, 2007, pp. 27/28.

15 – Podem ainda ver-se, com proveito, nesta matéria, Tiago Lopes de Azevedo, «Da subsidiariedade no direito das contra-ordenações: problemas, críticas e sugestões práticas», Coimbra Editora, 2011, Alexandra Vilela, «O Direito de Mera Ordenação Social – Entre a Ideia da “Recorrência” e a de “Erosão” do Direito Penal Clássico», Coimbra Editora, 2013, e Nuno Brandão, «Crimes e Contra-Ordenações: da Cisão à Convergência Material», Coimbra Editora, 2016.

16 – Tudo para concluir que, evoluída, cuidada e constitucionalizada (como, de resto, resulta expressa e claramente, do n.º 10 do artigo 32.º, da CRP), a lei-quadro das contra-ordenações, em especial os artigos 33.º e ss, não estão feridos da pretextada inconstitucionalidade.

17 – Termos em que, neste particular, o recurso não pode lograr provimento.

18 – Defende depois o recorrente que a decisão que entendeu desnecessária a realização de julgamento é nula, por falta de fundamentação, nulidade que se estende à decisão que julgou improcedente o recurso, invocando o disposto no artigo 615.º n.º 1 alínea b), do CPC, ex vi do disposto no artigo 4.º, do CPP.

19 – Ressalvado o devido respeito, a decisão em referência (transcrita acima, § 3), encontra-se fundamentada, nos termos prevenidos no artigo 205.º n.º 1, da CRP, e, ademais, seja no âmbito do disposto no artigo 64.º, do RGCO, seja nos termos do disposto no artigo 97.º n.º 5, do CPP, este ex vi do disposto nos artigos 41.º n.º 1 e 74.º n.º 4, do RGCO, do passo em que adianta que justifica a decisão por simples despacho na medida em que «a questão a decidir prende-se com a apreciação da possibilidade de suspender a sanção acessória».

20 – Não se vê, assim, a pretextada falta absoluta de motivação – que não pode ser assimilada a uma fundamentação deficiente ou pouco persuasiva (cfr., por todos, Alberto dos Reis, no «Código de Processo Civil, Anotado, Vol. 5.º, p. 140, e Miguel Teixeira de Sousa, «Estudos sobre o Processo Civil», p. 221, e o acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-3-2014, P. 15/10, em www-dgsi-pt) –, geradora da invocada nulidade.

21 – Por isso que, também nesta parcela, o recurso não pode lograr provimento.

22 – Acresce sublinhar que a invalidade prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º, do CPP, decorrente, não da (invocada) falta de fundamentação do deciso, mas sim da atribuição de um efeito cominatório ao silêncio do arguido perante a notificação levada nos termos do referido artigo 64.º, do RGCO, sempre estaria sanada, por falta de arguição, nos termos do disposto, conjugadamente, nos artigos 73.º n.º 1, do RGCO, 121.º n.º 1 e 410.º n.º 3, estes do CPP.

23 – De todo o modo, na medida em que, em vista do disposto no n.º 1 do artigo 141.º, do CE, a suspensão da execução da sanção acessória está reservada para a aplicada por contra-ordenação grave, excluindo dessa aplicação, a contrario sensu, aquela que a lei cataloga como muito grave (como é o caso da cometida pelo arguido), não cabendo recurso, face à especificidade de tal normação, ao disposto, designadamente, no artigo 50.º, do CP, sempre a realização da audiência (em que o próprio arguido pretextava debater tal suspensão) seria inútil, como tal interditada pelo disposto no artigo 130.º, do CPC.

24 – É que, como se adianta no acórdão, deste Tribunal da Relação de Évora, de 04-07-2006 (P. 941/06, em www-dgsi-pt, relatado pelo aqui adjunto), cuja tese, data venia, se avoca para o presente,
«Actualmente, para além da verificação dos pressupostos de que a lei geral faz depender a suspensão da execução das penas, exige lei que a coima se encontre paga e que a sanção acessória aplicada respeite a contra-ordenação grave (art.º 141 n.º 1 do CE).
Este regime, actualmente em vigor – introduzido pelo DL 4/2005, de 23.02 – baseou-se no Plano Nacional de Prevenção Rodoviária, que preconizou “a execução de um conjunto de medidas que permitam ir de encontro ao objectivo de uma redução consistente, substancial e quantificada da sinistralidade em Portugal” (veja-se o preâmbulo daquele diploma).
Para assegurar a realização desse objectivo – escreve-se no referido preâmbulo – “é necessária uma actuação eficaz a vários níveis... e a consagração de um quadro legal eficaz... as medidas propostas procuram, por um lado, incentivar os utilizadores a adoptar um melhor comportamento, designadamente através do cumprimento da legislação adequada, e, por outro, garantir a efectiva aplicação das correspondentes sanções”.
É neste contexto que tem de ser enquadrada, quer a eliminação da possibilidade de dispensa da inibição de conduzir, quer a eliminação da possibilidade de suspensão da execução da sanção aplicada relativamente às contra-ordenações muito graves, ou seja, perante este quadro, denunciador da necessidade de tomar medidas eficazes na defesa da segurança rodoviária e da prevenção de acidentes, não pode deixar de se entender que o que o legislador pretendeu foi, de facto, não permitir a suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir relativamente às infracções muito graves.
Isto resulta da letra da lei, mas também do pensamento legislativo que se retira das circunstâncias em que a mesma foi elaborada e do preâmbulo da mesma, onde se explicitam as razões que a determinaram e os objectivos que se visam alcançar, não podendo deixar de se anotar que na interpretação da lei o intérprete terá de presumir “que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (art.º 9 n.º 1 do Código Civil).»

25 – Termos em que, também nesta parcela, não pode conceder-se provimento ao recurso.

26 – O decaimento total no recurso impõe a condenação do arguido recorrente em custas, nos termos e com os critérios previstos nos artigos 92.º n.º 1, do RGCO, 513.º n.º 1 e 514.º n.º 1, do CPP, e no artigo 8.º e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais – ressalvado apoio judiciário e nos limites de tal benefício.
III

27 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se: (a) negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, BB; (b) condenar o recorrente nas custas, com a taxa de justiça em 3 (três) unidades de conta.

Évora, 8 de Maio de 2018
António Manuel Clemente Lima (relator)
Alberto João Borges (adjunto)