Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2696/13.4PTM.E1
Relator: SILVA RATO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
ACÇÃO DECLARATIVA
SUSPENSÃO
Data do Acordão: 06/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
Uma acção declarativa, de condenação, visando apenas a reposição do registo das garantias reais (hipotecas voluntárias), entretanto canceladas, destinadas a garantir o pagamento das verbas respeitantes a contratos de abertura de crédito celebrados entre uma Instituição Bancária e uma empresa sua cliente, não deve ser considerada como acção para cobrança de dívida, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do art.º 17º-E do CIRE.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Proc. N.º 2696.13.4PTM
Apelação
Comarca de Faro (Portimão-IL–SC-J1)
Recorrente: AA, SA
Recorrida: BB – Sociedade de Construções Ldª
R37.2016

I. AA, SA intentou a presente Acção Declarativa de Condenação, sob a forma de Processo Ordinário contra BB – Sociedade de Construções Ldª, peticionando que, pela procedência da acção, “… deverá a R. bem como qualquer terceiro titular de registo sobre estas fracções serem condenados a:
a) Reconhecer que o registo do cancelamento das hipotecas averbado respeitante às fracções autónomas identificadas pelas letras “AA”, “J”, “Z”, “P”, “L”,”M”, “T”, e “Q, propriedade de BB – SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES LDA. do prédio descrito sob ficha nº … na CRP de Portimão, concelho de Portimão, freguesia do Alvor, matriz …, é nulo, declarando consequentemente o Tribunal a respectiva nulidade destes registos de cancelamento;
E, em consequência desta declaração:
b) Reconhecer e declarar, que se mantém em pleno vigor relativamente às sobreditas fracções do mesmo prédio urbano o registo das hipotecas voluntárias em favor da A. de que esta é titular nos precisos termos em que os mesmos se encontravam antes de serem averbados os cancelamentos aludidos em a), decretando assim o Tribunal a reposição do registo das hipotecas em favor da A. nesses mesmos precisos termos em que se encontravam antes do seu ilegal cancelamento;
c) ….

Por Despacho de 06/Maio/2015, foi decidido o seguinte:

Tendo sido realizada audiência prévia na qual as partes acordaram quanto à factualidade a dar como provada, foi determinada a abertura de termo de conclusão com vista a ser proferida sentença.
Ocorre que entretanto foi junta informação relativa ao início de processo especial de revitalização (PER) – fls. 298 - ao abrigo do art. 17.º C, n.º 3, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Nos termos do art. 17.º E, n.º 1, do mesmo código a decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.
O despacho inicial no PER terá feito expressa referência à suspensão dos processos, incluindo este que recebeu a dita comunicação.
A citada norma obsta a que a presente ação prossiga, ficando suspensa – já citado art. 17.º E, n.º 1.
No entanto, e porque ao que parece a ação terá sido instaurada devido à ação de terceiros,
Juntando cópia da ata de audiência prévia, notifique o senhor administrador com vista a informar se nas negociações esta situação particular (cancelamento das hipotecas – ponto 1 de fls. 294 v. (audiência prévia) – cuja declaração de nulidade tem de ser conhecida por decisão judicial – art. 17.º do Código de Registo Predial) - está a ser salvaguardada ou se há oposição dos credores.
Os autos aguardarão notícias ou, nada vindo, solicite informação sobre aprovação e homologação eventual de plano, para os efeitos do art. 17.º E, n.º 1, parte final do CIRE (extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação – sublinhado nosso).
…”

Inconformada com tal decisão, veio a Autora interpor recurso de apelação, cujas alegações terminaram com a formulação das seguintes conclusões:
1. Inexistem fundamentos para se decretar a suspensão desta ação ao abrigo do preceituado no art. 17-E nº 1 alínea a) do CIRE por força de ter dado entrada em juízo um PER apresentado pela aqui apelada, no âmbito do qual foi já prolatado douto despacho de nomeação de administrador judicial provisório nos termos do art. 17-A nº 3 alínea a) do CIRE;
2. Com efeito, apenas as “ações para cobrança de dívidas” se encontram abrangidas na estatuição da norma do art. 17-E nº 1 do CIRE sendo certo que a ação aqui em causa manifestamente não respeita a qualquer cobrança de dívidas nem pode ser enquadrada em tal categoria, pelo que na convição da apelante não se justifica a suspensão da instância nem, tão-pouco, a audição do sr. administrador judicial provisório nos termos ordenados pelo douto despacho aqui recorrido;
3. Este Tribunal não está na dependência hierárquica do Tribunal que decretou a suspensão dos processos uma vez que ambos são Tribunais de 1ª instância não cabendo a nenhum deles dar ordens, instruções ou comandos ao outro, não decorrendo ademais do douto despacho prolatado no processo PER nenhum comando sobre este processo em especial no sentido de decretar a respetiva suspensão do mesmo.
Pelo que deverá o douto despacho recorrido ser revogado e decretada a continuação e prossecução desta ação.
.... “

Cumpre decidir.
***
II..Nos termos do disposto nos art.ºs 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, ambos do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 608º do mesmo Código.

A questão a decidir resume-se, pois, a saber se inexiste fundamento para decretar a suspensão da presente acção.

Por via da presente acção veio a Autora AA, S.A. peticionar a condenação da Ré a:
a) Reconhecer que o registo do cancelamento das hipotecas averbado respeitante às fracções autónomas identificadas pelas letras “AA”, “J”, “Z”, “P”, “L”,”M”, “T”, e “Q, propriedade de BB – SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES LDA. do prédio descrito sob ficha nº … na CRP de Portimão, concelho de Portimão, freguesia do Alvor, matriz …, é nulo, declarando consequentemente o Tribunal a respectiva nulidade destes registos de cancelamento;
E, em consequência desta declaração:
b) Reconhecer e declarar, que se mantém em pleno vigor relativamente às sobreditas fracções do mesmo prédio urbano o registo das hipotecas voluntárias em favor da A. de que esta é titular nos precisos termos em que os mesmos se encontravam antes de serem averbados os cancelamentos aludidos em a), decretando assim o Tribunal a reposição do registo das hipotecas em favor da A. nesses mesmos precisos termos em que se encontravam antes do seu ilegal cancelamento;
c) ….

Entendeu o Tribunal “a quo”, suspender a presente Acção Declarativa, até à decisão final do Processo Especial de Revitalização da Ré, por entender que “…Ocorre que entretanto foi junta informação relativa ao início de processo especial de revitalização (PER) – fls. 298 - ao abrigo do art. 17.º C, n.º 3, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Nos termos do art. 17.º E, n.º 1, do mesmo código a decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.
O despacho inicial no PER terá feito expressa referência à suspensão dos processos, incluindo este que recebeu a dita comunicação.
A citada norma obsta a que a presente ação prossiga, ficando suspensa – já citado art. 17.º E, n.º 1.
…”

No âmbito do Processo Especial de Revitalização, aditado ao CIRE, pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, entendeu o legislador, por certo para que o processo negocial subjacente fosse levado a bom porto, introduzir um mecanismo que impedisse a instauração de todas as acções para cobrança de dívidas contra o devedor, e a suspensão das em curso, após o despacho judicial que nomeia o administrador provisório à requerida, e durante o tempo que perdurarem as negociações (n.º1 do art.º 17º-E).
Embora a doutrina e a jurisprudência se dividam quanto à abrangência do conceito de acções para cobrança de dívidas, ora entendendo que o dispositivo se reporta apenas às acções executivas para pagamento de dívidas (PER … Salazar Casanova e Sequeira Dinis, em nota ao art.º 17º-E), ou também as acções declarativas condenatórias em que aprecie o reconhecimento de dívidas da devedora (vide, CIRE Anotado, 3ª Ed., Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, em nota ao art.º 17º-E, Alexandre de Soveral Martins, in Curso de Direito da Insolvência, 2016, págs. 521 e 522 e o Ac. do TRP de 14/04/2015, proferido no Proc. 39327/13.4YIPRT.P1), o debate sobre o conceito de acções para cobrança de dívidas tem-se restringido a este âmbito.

Ampliando o âmbito da discussão, importa apurar se devem também ser suspensas as acções declarativas em que apenas se discuta matéria atinente ao registo de garantias reais sobre o património da devedora relativas a créditos reclamados no PER.

A acção de declaração da nulidade do cancelamento do registo de hipotecas voluntárias que incidiam sobre o património imóvel da devedora, visa o exercício do direito à conservação da garantia patrimonial da credora, que é reconhecido, de forma genérica, pelo art.º 605º do Cód. Civ..
Sendo evidente que visando essas garantias reais, reforçar a posição jurídica da credora, acrescentando-lhe uma direito acessório no pagamento da dívida, tais garantias estão indissociavelmente ligadas ao crédito da credora sobre a devedora, embora tenham relativa autonomia no que respeita ao crédito que garantem.

Reclamado o crédito no âmbito do PER, invocando a credora as inerentes garantias reais do mesmo, a decisão a proferir no Incidente de Reclamação de Créditos do PER, apreciará a sua existência e âmbito, para efeitos de qualificação do crédito e do seu montante no âmbito do PER.
No entanto, a decisão a proferir nesse Incidente, dadas as suas peculiares características, apenas faz caso julgado no âmbito do PER, ou seja tem apenas efeito de caso julgado formal, nos termos do n.º2 do art.º 91º do NCPC (vide neste sentido CIRE Anotado, 3ª Ed., Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, a págs. 155, em nota ao art.º 17º-D, e PER … Salazar Casanova e Sequeira Dinis, a págs. 79, em nota ao art.º 17º-D).

Os créditos sobre a requerente do PER, e as inerentes garantias reais, têm vida para além da decisão final deste processo, qualquer que seja a decisão proferida no âmbito do Incidente de Reclamação de Créditos sobre os mesmos, quer porque o PER tenha sido encerrado sem o acordo dos credores, quer porque o plano de recuperação aprovado pelos credores não tenha sido homologado, quer ainda porque embora o PER tenha sido encerrado com a homologação, pelo juiz do processo, do plano de recuperação, tal plano venha a não ser cumprido entrando a requerente em insolvência.
Em qualquer destes casos, as decisões proferidas no PER quanto aos créditos sobre a devedora e às atinentes garantias deixam de ter qualquer efeito, por se restringirem ao âmbito do PER, podendo os respectivos credores vir a exercer os seus direitos de crédito contra a devedora, na sua plenitude, em qualquer outro processo, quer quanto ao montante do crédito e seus acessórios, quer quanto às respectivas garantias.

O que nos leva a concluir que o decurso da acção de declaração da nulidade do cancelamento do registo de hipotecas voluntárias que incidiam sobre o património imóvel da devedora não conflitua com o PER, embora a decisão a proferir na acção declarativa não possa ter efeitos no PER, dadas as peculiaridades deste processo, sendo certo que a extinção da dívida aprovada no contexto do PER, nomeadamente pelo seu pagamento, levará à extinção da hipoteca (art.º 730º, a), do Cód. Civ.) ou à extinção da instância das acções respeitantes a matérias do seu registo, por inutilidade superveniente da lide.

A homologação do plano de recuperação, pelo juiz do processo, implica a extinção das acções em curso para cobrança de dívidas, salvo acordo em contrário (n.º1 do art.º 17º-E), o que tem perfeito cabimento na lógica sistemática do PER, uma vez que, com a aprovação do plano de recuperação, todas as dívidas existentes (conhecidas) aí serão contempladas, vinculando todos os credores da empresa devedora, mesmo aqueles que não participaram nas negociações ou não aprovaram o plano, pelo que não faria sentido a continuação dessas acções.
No entanto, em nosso entender, não será de alargar o âmbito das acções que se integram no conceito de acções para cobrança de dívidas contra o devedor, para além das que respeitam ao litígio directo relativamente a créditos sobre a empresa devedora, por forma a abranger as acções em que são dirimidos direitos acessórios, que embora possam ser apreciados incidentalmente no âmbito do PER, nomeadamente no seu Incidente de Reclamação de Créditos, por via das decisões a proferir neste processo, que produzem apenas efeitos de caso julgado formal, uma vez que as decisões a proferir nas acções declarativas, dotadas de força de caso julgado material, perdurarão, no quadro que acima explanámos, para além do eventual acordo a plasmar no plano de recuperação, embora não contendendo com este, enquanto o mesmo vigorar.

Acresce que tratando-se de direitos reais que apenas produzem efeitos, mesmo relativamente às partes, após o respectivo registo (art.º 687º do Cód. Civ. e art.º 4º, n.º2 do CRPredial), importa não descurar os efeitos do registo provisório da acção em que se pede a nulidade do cancelamento do registo da hipoteca, tendo em vista a ordem de precedência na graduação dos créditos no pagamento pelo valor da venda dos bens hipotecados, quando a tal houver lugar (art.º 686º do Cód. Civ. e art.ºs 3º, n.º1, b), 5º n.º1, 6º n.ºs 1 e 2, 92º, n.º 1, a), 101, n.º 4, todos do CRPredial).

No caso dos autos, como vimos referindo, trata-se de uma acção declarativa, de condenação, visando repor o registo das garantias reais (hipotecas voluntárias), entretanto canceladas, destinadas a garantir o pagamento das verbas respeitantes a contratos de abertura de crédito celebrados entre a AA, S.A. e a empresa BB – Sociedade de Construções Ldª.
Do que se retira, à saciedade, de que não se trata de qualquer acção destinada à cobrança de dívida, quer no seu conceito restrito, por via executiva, quer no seu conceito alargado, por via do reconhecimento dessa mesma dívida.
Mas sim e só à reposição das garantias reais que incidiam sobre prédios da devedora, para garantir o pagamento do crédito da ora Autora sobre a ora Ré.
Não beliscando o direito que venha a ser reconhecido à Autora no âmbito da acção declarativa com os efeitos da decisão proferida no âmbito do Incidente de Reclamação de Créditos do PER, que apenas faz caso julgado no âmbito deste processo, perdurando a sentença proferida naquela acção fora do âmbito do PER.
Consequentemente não existe qualquer fundamento para que a presente acção seja suspensa ao abrigo do disposto no art.º 17º-E, n.º1 do CIRE.

Por fim cumpre dizer que qualquer que tenha sido o Despacho proferido no PER, que presumimos que seja de carácter genérico comunicando a todas as acções intentadas contra a devedora que as acções para cobrança de dívida ficam suspensas, não vincula o Tribunal “a quo” nem a Autora.

Face ao exposto, decide-se revogar o Despacho recorrido, determinando-se que a presente acção prossiga os seus termos.

Procede assim o presente recurso.
***
IV. Decisão
Pelo acima exposto, decide-se revogar o Despacho recorrido, determinando-se que a presente acção prossiga os seus termos.
Custas pela Apelada.
Registe e notifique.

Évora, 02 de Junho de 2016
Silva Rato
Assunção Raimundo
Mata Ribeiro