Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
24/17.9PEBJA-A.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
SUBSTITUIÇÃO
"REBUS SIC STANTIBUS"
HOMICÍDIO TENTADO
TENTATIVA IMPOSSÍVEL
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – As decisões judiciais, que apliquem medidas de coacção, podem e devem ser alteradas pelo Tribunal que as tenha tomado, mas apenas quando se tenha verificado uma alteração relevante das circunstâncias, em sentido lato, que tenham dado origem à sua decretação. Nesta ordem de ideias, as decisões a que nos reportamos são dotadas de uma certa margem de imutabilidade, na medida em que se não tenham alterado as circunstâncias que as motivaram.

II - Não devem ser levadas à conta da impossibilidade da tentativa do crime de homicídio as diligências levadas a cabo pelo ofendido para se colocar a salvo dos propósitos agressivos do agente activo.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I - Relatório
No processo de instrução nº 24/17.9PEBJA, que corre termos no Juízo Local Criminal de Beja do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, em que é arguido AA, a Exª Juiz titular dos autos proferiu, em 16/3/2018, um despacho com o seguinte teor:

«O arguido AA foi sujeito à medida de prisão preventiva desde 21.11.2017 e encontra-se sujeito à medida de obrigação de permanência na habitação desde 08.12.2017.

Tal medida de coacção foi sucessivamente reexaminada e mantida.

Foi proferido despacho de acusação, sendo que a Digna Magistrada do Ministério Público, promoveu no sentido de se manter inalterada a medida coactiva aplicada ao arguido.

No seu requerimento de abertura de instrução veio o arguido requerer a substituição da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação por outra não privativa da liberdade, nomeadamente, apresentações periódicas semanais na PSP de Beja.

Para tanto alega que, o arguido nunca revelou qualquer perigosidade ao longo da sua vida, está enquadrado familiarmente beneficiando de apoio familiar. Sendo que, os factos ocorreram há 4 meses sem que se registe qualquer incumprimento da medida de coacção.

Notificado nos termos do disposto no nº 4 do artigo 212º do Código de Processo Penal, o Ministério Público promove que se mantenha a medida de coacção aplicada, sem prejuízo do seu reexame após serem conhecidos os resultados do exame pericial ao arguido.

Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do disposto no artigo 212º do Código de Processo Penal, na parte que ora importa, temos que:

"1 - As medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar:
(...)
b) Terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação.
(…)
3 - Quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução. "

Resulta do disposto no citado preceito que, as medidas de coacção só devem manter-se enquanto necessárias para a realização dos fins processuais que, observados os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, legitimam a sua aplicação ao arguido e, por isso, devem ser revogadas ou substituídas por outras menos graves sempre que se verifique a insubsistência das circunstâncias que justificaram a sua aplicação ou uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação.

Estando as medidas de coacção sujeitas à condição rebus sic stantibus, a substituição de uma medida de coacção por outra menos grave apenas se justifica quando se verifique uma atenuação das exigências cautelares que tenham determinado a sua aplicação.

A decisão que impõe a obrigação de permanência na habitação, apesar de não ser definitiva, é intocável e imodificável enquanto não se verificar uma alteração, em termos atenuativos, das circunstâncias que a fundamentaram, ou seja, enquanto subsistirem inalterados os pressupostos da sua aplicação.

Ora, nenhum' facto novo foi avançando pelo arguido que não tenha sido considerado no despacho que lhes aplicou a medida de coacção - nomeadamente, que o arguido nunca revelou qualquer perigosidade ao longo da sua vida e está enquadrado familiarmente beneficiando de apoio familiar da mãe - nem apontou terem deixado de existir as circunstâncias que justificaram a aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação - tanto que, foi requerido exame pericial psiquiátrico ao arguido para se aferir da sua imputabilidade à data dos factos, bem como, da sua perigosidade, sendo que os perigos verificados são o de continuação da actividade criminosa e perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas - ou que se verificou uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação, já que, o facto de não se registar qualquer incumprimento não atenua as exigência cautelares apenas revelando que a medida aplicada foi de facto a mais adequada aos perigos que se verificam no caso.

Mantém-se pois o perigo de continuação da actividade criminosa e perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.

Por outro lado, a medida em causa mostra-se proporcional tendo em conta a moldura penal aplicável aos crimes pelos quais o arguido foi acusado.

Face ao exposto, determino que o arguido AA continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação (artigos 191º, 192°, 193°, nºs 1 e 2, 194°, nº 1. 201º, nº 1 e 204°, alínea c), todos do Código de Processo Penal).
Notifique».

Do despacho proferido o arguido AA interpôs recurso, devidamente motivado, tendo formulado as seguintes conclusões (mantendo-se a numeração original que é sequencial com a da motivação propriamente dita):

60. O recorrente foi sujeito a medida de prisão preventiva desde 21/11/2017, encontrando-se sujeito à medida de permanência na habitação desde 08/11/2017.

61. O objeto do recurso incide na matéria do despacho que determinou a continuidade da sujeição do arguido à medida de coação de obrigatoriedade de permanência na habitação.

62. Não se verificam as condições e os pressupostos legais exigíveis para a aplicação de medida tão gravosa.

63. O Despacho recorrido viola os comandos constantes dos art.º 191.º, n.º 1, 193.º, n.º 2, 201.º, n.º 1, 204.º, alíneas b) e c) do CPP , bem como os art.ºs 18.º, n.º 2 e 27.º, n.º 1, da CRP.

64. A aplicação da Obrigação de Permanência na Habitação está sujeita não só às condições gerais contidas nos artigos 191.º a 195.º do Código de Processo Penal, em que avultam os princípios da legalidade, da adequação, da necessidade e da proporcionalidade e da subsidiariedade, como aos requisitos gerais previstos no artigo 204.º.

65. Pautando-se ainda tal aplicação pelo princípio constitucional da presunção de inocência.

66. A Obrigação de Permanência na Habitação, enquanto medida de coação de natureza excecional e de aplicação subsidiária, só pode ser determinada quando as outras medidas se revelem inadequadas ou insuficientes, devendo ser dada prioridade a outras menos gravosas por ordem crescente, conforme o artigo 193.º, n.º 2 do CPP.

67. No caso em apreço, ao Arguido foi mantida a medida de Obrigação de Permanência da Habitação, com base:

a) no perigo de continuação da atividade criminosa;
b) na perturbação da ordem e tranquilidade públicas;
c) e uma vez que a medida em causa, mostra-se proporcional tendo em conta a moldura penal aplicável aos crimes pelos quais o arguido foi acusado.

68. O tribunal a quo refere no Despacho recorrido que não foram alegados factos novos que permitam juízo diferente, no entanto não lhe assiste razão, pois a alegação constante do RAI, é toda no sentido quer da não existência de perigosidade, quer do não cometimento dos crimes pelos quais o arguido foi indiciado.

68-A. E a circunstância de ter sido solicitada perícia médico-legal no sentido de aferir da inimputabilidade e da perigosidade resulta da insuficiência do inquérito, como melhor se expõe no RAI.

69. A ausência de antecedentes criminais, a personalidade do recorrente, e a sua plena integração familiar e social afasta o perigo de continuação da atividade criminosa.

70. O Tribunal entendeu manter a medida aplicada em sede de primeiro interrogatório, porém discorda-se, pois as necessidades cautelares podem ser igualmente satisfeitas através de outras medidas de coação menos gravosas, nomeadamente e por ordem crescente, as constantes dos artigos 198.º (Obrigação de Apresentação Periódica), e 200.º (Proibição e Imposição de Condutas), ambos do CPP.

71. O recorrente não indicia nem nunca indiciou ao longo da sua vida qualquer perigosidade, sendo certo que esta é a primeira situação em que se vê confrontado com a justiça criminal, como demonstra o seu CRC, não regista qualquer incumprimento da medida e tem efetuado saídas autorizadas sem que tenha ocorrido qualquer problema, nem constando dos autos que tenha sido sujeito nessa parte a qualquer acompanhamento.

72. Não representa, pois, qualquer perigo, sendo improvável que tenha maior probabilidade do que qualquer outra pessoa de vir a cometer qualquer ilícito criminal.

73. Encontra-se a ser seguido pela Dr.ª L, médica especialista em psiquiatria do Hospital José Joaquim Fernandes em Beja.

74. Pugna o Tribunal a quo pela proporcionalidade da medida em causa tendo em conta a moldura penal aplicável aos crimes pelos quais o arguido foi acusado, porém não lhe assiste razão, pois,

75. Apesar de acusado de um crime de Ofensa à integridade física simples, de um crime de Detenção de arma proibida e de um crime de Homicídio qualificado, na forma tentada,

76. Os indícios não apontam no sentido do seu preenchimento, como melhor se expõe quer na motivação supra, quer no RAI, dado que os mesmos são insuficientes para imputar qualquer dos crimes em causa ao arguido.

77. Quanto à ofensa à integridade física, estamos em crer que foi a alegada vítima quem iniciou as agressões, quanto tentativa de homicídio, estamos em face duma tentativa impossível e quanto à detenção de arma proibida, não faz qualquer sentido imputar tal crime ao arguido, face às caraterísticas da faca.

78. O Tribunal a quo não observou os princípios e regras subjacentes à aplicação das medidas de coação, designadamente, os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade, o que viola, entre outros, dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da CRP e dos artigos 191.º, n.º 1, 192.º, n.º 2, 193.º, 201.º e 204.º, do Código de Processo Penal.

79. Nos termos do disposto no artigo 212.º do Código do Processo Penal, na parte que importa:

“ 1 – As medidas de coação são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar:
(…)
b) Terem deixado de substituir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação.
(…)

3 – Quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinam a aplicação de uma medida de coação, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução.”

Pelo que o Tribunal a quo também violou este comando legal.

80. Face todo o exposto conclui-se que a medida de coação de obrigação de permanência na habitação deve ser substituída por outra menos grave e não privativa da liberdade do recorrente.

Termos em que deve o despacho recorrido ser substituído por outro que revogue a Obrigação de Permanência na Habitação e aplique ao recorrente outra medida de coação que respeite os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e menor intervenção, designadamente e por ordem crescente de gravidade, nomeadamente a obrigação de apresentação periódica e a proibição e imposição de condutas,

Fazendo-se assim a costumada justiça

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, em separado, e efeito devolutivo.

O MP respondeu à motivação do recorrente, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 ° - Inconformado com o douto despacho proferido nos presentes autos e que manteve a medida de coacção de Obrigação de Permanência na Habitação que lhe foi aplicada veio o arguido dele interpor recurso com fundamento na falta de verificação dos pressupostos de aplicação e manutenção de tal medida de coacção.

2° - Para além dos factos que conduziram à sua detenção e sustentados nas declarações das testemunhas ouvidas nos autos, o arguido admitiu no seu interrogatório judicial os seus comportamentos tal como descritos no douto despacho de aplicação de medidas de coacção apenas não se recordando de ter gritado por diversas vezes "eu mato-te", dirigindo-se ao ofendido.

3° - A aplicação ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva foi devidamente fundamentada na moldura penal aplicável em abstracto aos crimes por si índiciariamente praticados, no perigo de continuação da actividade criminosa e no perigo perturbação da tranquilidade pública, ao abrigo do disposto nos artigos 202°, n.º 1, alíneas a) e b) e 204°, alínea c), ambos do Código de Processo Penal tal como se pode ler no douto despacho.

4° - Ao contrário do que o arguido refere no seu recurso mantém-se inalterados os pressupostos de facto que fundamentaram a aplicação da medida de coacção privativa da liberdade.

5° - É inquestionável o carácter excepcional e subsidiário que a prisão preventiva tem hoje face às outras medidas de coacção e que resulta claramente do disposto nos artigos 193°, n.º 2 e 202°, n.º 1 do Código de Processo Penal, segundo os quais a prisão preventiva só pode ser aplicada se, para além da verificação de um dos requisitos do n.º 1 do art. 202° do Código de Processo Penal, o juiz considerar inadequadas ou insuficientes as restantes medidas.

6° - E essa valoração passa por uma visão global de todas as circunstâncias da prática dos crimes e da conduta do arguido conhecida no decurso do processo, circunstâncias devidamente ponderadas no douto despacho que, a nosso ver bem, decretou a prisão preventiva do arguido fundamentando-se na gravidade dos crimes por cuja prática se encontra indiciado, na respectiva moldura da pena, no perigo de continuação da actividade criminosa e no perigo perturbação da tranquilidade pública e que considerou a prisão preventiva como a única medida de coacção proporcional e adequada.

7° - E tal como foi desde logo ponderado em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, atentas as circunstâncias de vida do arguido referidas nas suas alegações de recurso - a falta de antecedentes criminais e a sua inserção familiar - a medida aplicada de prisão preventiva seria substituída pela Obrigação de Permanência na Habitação, como efectivamente o foi.

8° - Refere o recorrente que no seu requerimento de abertura de instrução foram alegados factos novos no sentido da inexistência de perigosidade do arguido e do não cometimento dos crimes cuja prática lhe é imputada, pelo que não pode o despacho recorrido referir como fundamento para a manutenção da medida de coacção aplicada a inexistência de factos novos que permitam um juízo diferente do anteriormente formulado aquando da aplicação da medida coactiva.

9° - Pois bem, tais factos novos irão ser objecto de apreciação em sede de instrução a decorrer pelo que, ao contrário do que refere o recorrente, não podem ainda ser valorados para alteração da medida de coacção aplicada e sê-lo-ão certamente quando e se forem considerados como provados. Aliás, a serem dados como provada a totalidade de tais factos nem se porá a questão da manutenção da medida de coacção pois a consequência legal será a não pronúncia do arguido!

10° - Quanto aos pressupostos de aplicação de tal medida de coacção, demonstrada a sua verificação como acima se pretendeu, resta referir que tais pressupostos legais se mantêm e até se reforçaram, atendendo a que o arguido veio alegar em sede de requerimento de abertura de instrução padecer de doença que poderá afectar a sua imputabilidade e da perícia que requereu e foi deferida poderá resultar a conclusão de ser inimputável perigoso.

11° - Acresce a todas as circunstâncias supra descritas as necessidades cautelares e de prevenção do tipo de crimes pelos quais o arguido se encontra indiciado e que no seio da comunidade são vistos como os crimes mais graves por atentarem contra a vida humana e que pelo alarde social que provocam urge combater.

Por todo o exposto, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida nos seus precisos termos a douta decisão recorrida.

Fazendo-se JUSTIÇA!

O Digno Procurador-Geral Adjunto em funções junto desta Relação emitiu parecer sobre o mérito do recurso, no sentido da respectiva improcedência, o qual foi notificado ao recorrente, a fim de se pronunciar, não tendo ele exercido o seu direito de resposta.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância do despacho recorrido pretendida pelo recorrente, tal como transparece das conclusões por ele formuladas, centra-se na reversão do juízo de indeferimento que recaiu sobre um pedido de substituição da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, a que se encontra sujeito, por um regime coactivo não privativo de liberdade.

Os pressupostos da decretação de medidas coactivas encontram-se assim definidos pelo art. 204º do CPP:

Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:

a) Fuga ou perigo de fuga;

b) Perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Os pressupostos da medida de obrigação de permanência na habitação encontram-se definidos pelo nº 1 do art. 201º do CPP, nos termos seguintes:

Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a obrigação de não se ausentar, ou de não se ausentar sem autorização, da habitação própria ou de outra em que de momento resida ou, nomeadamente, quando tal se justifique, em instituição adequada a prestar-lhe apoio social e de saúde, se houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos.

O nº 3 do mesmo artigo prescreve:
Para fiscalização do cumprimento das obrigações referidas nos números anteriores podem ser utilizados meios técnicos de controlo à distância, nos termos previstos na lei.

A utilização de meios técnicos de controlo à distância, a que se refere a disposição agora transcrita, é regulada pela Lei º 33/2010 de 2/9.

A aplicação de medidas coactivas, em geral, rege-se pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, assim definidos pelo art. 193º do CPP:

1 – As medidas de coacção e garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

2 – A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas e insuficientes as outras medidas de coacção.

3 – Quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.

4 – A execução das medidas de coacção e de garantia patrimonial não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que caso requer.

Em matéria de revogação e substituição de medidas de coacção dispõe o art. 212º do CPP:

1 - As medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar:

a) Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou

b) Terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação.

2 - As medidas revogadas podem de novo ser aplicadas, sem prejuízo da unidade dos prazos que a lei estabelecer, se sobrevierem motivos que legalmente justifiquem a sua aplicação.

3 - Quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução.

4 - A revogação e a substituição previstas neste artigo têm lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, devendo estes ser ouvidos, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e devendo ser ainda ouvida a vítima, sempre que necessário, mesmo que não se tenha constituído assistente.

Finalmente, o art. 213º do CPP estabelece o regime de reapreciação periódica das medidas de coacção privativas de liberdade:

1 - O juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, decidindo se elas são de manter ou devem ser substituídas ou revogadas:

a) No prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame; e

b) Quando no processo forem proferidos despacho de acusação ou de pronúncia ou decisão que conheça, a final, do objecto do processo e não determine a extinção da medida aplicada.

2 - Na decisão a que se refere o número anterior, ou sempre que necessário, o juiz verifica os fundamentos da elevação dos prazos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.os 2, 3 e 5 do artigo 215.º e no n.º 3 do artigo 218.º

3 - Sempre que necessário, o juiz ouve o Ministério Público e o arguido.

4 - A fim de fundamentar as decisões sobre a manutenção, substituição ou revogação da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, o juiz, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, pode solicitar a elaboração de perícia sobre a personalidade e de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, desde que o arguido consinta na sua realização.

5 - A decisão que mantenha a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação é susceptível de recurso nos termos gerais, mas não determina a inutilidade superveniente de recurso interposto de decisão prévia que haja aplicado ou mantido a medida em causa.

O recorrente censura ao despacho impugnado a transgressão das disposições do nº 1 do art. 191º e do nº 2 do art. 192º ambos do CPP, cujo teor seguidamente reproduzimos:

- Nº 1 do art. 191º do CPP
A liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei.

- Nº 2 do art. 192º do CPP
A aplicação de medidas de garantia patrimonial depende da prévia constituição como arguido, nos termos do artigo 58.º, da pessoa que delas for objeto, ressalvado o disposto nos n.os 3 a 5 do presente artigo.

Finalmente, o recorrente alega ainda que o despacho sob recurso violou também as disposições do nº 2 do art. 18 e do nº 1 do art. 27º da CRP, a última das quais consagra o direito geral à liberdade e à segurança.

A primeira das invocadas disposições constitucionais é a sede normativa do princípio da subsidiariedade e reza:

A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

A sujeição das medidas de coacção previstas no CPP ao princípio «rebus sic stantibus», a que se faz referência no despacho sob recurso, tem vindo a ser repetidamente afirmada pela jurisprudência dos Tribunais da Relação, podendo nós indicar como apoiantes dessa tese, a título meramente exemplificativo, os seguintes arestos (todos disponíveis em www.dgsi.pt): Acórdão da Relação de Coimbra de 24/2/99, proferido no processo nº 171/99 e relatado pelo Exº Desembargador Dr. Serafim Alexandre; Acórdão da Relação do Porto de 30/3/05, proferido no processo nº 0541909 e relatado pela então Exª Desembargadora, actualmente Conselheira Dra. Isabel Pais Martins; Acórdão da Relação de Lisboa de 31/1/07, proferido no processo nº 10919/2006-3 e relatado pelo Exº Desembargador Dr. Ricardo Silva; Acórdão da Relação de Guimarães de 24/11/08, proferido no processo nº 2402/08-2 e relatado pelo Exº Desembargador Dr. Ricardo Silva; Acórdão da Relação de Coimbra de 18/11/09, proferido no processo nº 335/09.1JAAVR-B.C1 e relatado pelo Exº Desembargador Dr. Jorge Dias; Acórdão da Relação de Guimarães de 10/9/12, proferido no processo nº 48/12.2GAVNF-B.G1 e relatado pelo Exº Desembargador Dr. Fernando Monterroso; Acórdão da Relação de Évora de 29/1/13, proferido no processo nº 204/12.3GBMMN-B.E1 e relatado pelo Exº Desembargador Dr. João Gomes de Sousa.

De acordo com o evocado postulado «rebus sic stantibus», as decisões judiciais, que apliquem medidas de coacção, podem e devem ser alteradas pelo Tribunal que as tenha tomado, mas apenas quando se tenha verificado uma alteração relevante das circunstâncias, em sentido lato, que tenham dado origem à sua decretação.

O descrito regime legal procura atingir um ponto de equilíbrio entre a desejável flexibilidade das decisões que apliquem determinadas medidas, que têm natureza excepcional e que implicam sempre um maior ou menor grau de limitação do direito do arguido à liberdade, acarretando duas delas (a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação) o sacrifício do núcleo essencial desse direito, fora de uma decisão condenatória final, pelo que não devem manter-se por mais tempo do que o estado de coisas que as justificou ou tornou necessárias, e certos princípios de direito processual, como o do caso julgado e o da exaustão do poder jurisdicional do Juiz, por força dos quais a decisão judicial se impõe ao próprio Tribunal que a proferiu.

Nesta ordem de ideias, as decisões a que nos reportamos são dotadas de uma certa margem de imutabilidade, na medida em que se não tenham alterado as circunstâncias que as motivaram.

O pedido de alteração do regime coactivo imposto ao arguido, sobre o qual recaiu o despacho sob recurso, foi formulado no requerimento de abertura de instrução com que reagiu à acusação pública contra si deduzida, essencialmente pelos mesmos factos que estiveram na origem da aplicação da medida de coacção, que integrariam, segundo o MP, a prática dos seguintes ilícitos criminais: um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo art. 143º do CP, um crime de detenção de arma proibida p. p. pelos arts. 3º nº 2 al. F) e 86º nº 1 al. D) da lei nº 5/2006 de 23/2 e um crime de homicídio qualificado sob a forma tentada p. e p. pelos arts. 22º, 23º 73º e 132º nº s 1 e 2 al. i) todos do CP.

Sintetizando, o recorrente justifica a alteração em seu benefício do regime coactivo a que está sujeito com base nos seguintes argumentos (além de factos que já eram do conhecimento do Tribunal, como a falta de antecedentes criminais ou o enquadramento familiar de que beneficia):

- O arguido não cometeu os crimes por que foi acusado;

- A ter praticado os factos por que responde, o arguido, padecia, na altura, de uma anomalia psíquica determinante da sua inimputabilidade pena;

- O arguido encontra-se sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação desde há quatro meses, sem registar qualquer incumprimento desta.

De acordo com a certidão, que instrui o presente recurso, o despacho judicial de 21/11/2017, que aplicou ao arguido AA a medida de coacção de prisão preventiva, posteriormente convertida em obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica, fez apelo aos perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas (fls. 3 a 17).

Antes de mais, cumpre salientar a manifesta inocuidade para o efeito jurídico visado pelo recurso em apreço do facto de o recorrente vir cumprindo os deveres inerentes à medida de coacção a que se encontra sujeito.

Na verdade, tal circunstância não denota, por si só, qualquer atenuação das exigências cautelares, que motivaram a decretação do regime coactivo questionado, em termos de justificar a sua modificação num sentido menos gravoso para o arguido.

Pelo contrário, seria a eventual inobservância pelo arguido dos deveres a que está vinculado, no âmbito da medida de coacção que poderia legitimar o seu agravamento, sujeitando-se aquele a prisão preventiva, ao abrigo do disposto no art. 203º do CPP.

Quanto à questão de invocada inimputabilidade do arguido, em razão de anomalia psíquica, importa ter presente que tal matéria é regulada pelo art. 20º do CP, cujo nº 1 estatui:

É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

Confrontado o requerimento de abertura de instrução (RAI) do arguido, certificado a fls. 39 a 50 dos presentes autos de recurso, o ora recorrente peticionou a realização de uma perícia médica tendente à demonstração do facto constitutivo (anomalia psíquica) da sua invocada inimputabilidade.

Se bem, compreendemos, o resultado dessa eventual perícia médica não constava do processo ao tempo da prolação do despacho recorrido, pelo que não poderá ser considerado por este Tribunal, caso já exista, tendo em atenção o princípio da identidade de objecto, vigente nos recursos ordinários, entre a decisão e aquela que conheça do recurso.

De todo o modo, mesmo que venha averiguar-se, por meio de prova pericial idónea, que o arguido sofre de anomalia psíquica suscetível de acarretar a sua inimputabilidade penal, tal circunstância não implicaria, em si mesma, a alteração do regime coactivo a que o mesmo se encontra sujeito.

Nessa hipótese, sempre poderia haver lugar ao prosseguimento do procedimento criminal com vista à aplicação de uma medida de segurança de internamento, nos termos dos arts. 91º e seguintes do CP, colocando-se a aplicação das medidas de coacção, nos mesmos termos que num processo movido a um arguido imputável, com as devidas adaptações.

No que se refere à alegação de o arguido não ter praticado os crimes por que foi acusado, verifica-se, desde logo, que um deles, o crime de ofensa à integridade física simples é irrelevante para a aplicação da medida de coacção questionada no presente recurso, porquanto lhe é cominada, pelo nº 1 do art. 143º do CP, pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, enquanto o nº 1 do art. 201º do CPP estatui que a medida nele prevista só pode ser aplicada perante fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de limite máximo superior a 3 anos.

O mesmo juízo já não pode ser emitido acerca dos restantes crimes acusados.

Assim, o crime de detenção de arma proibida, na modalidade imputada ao arguido é punível, por força da al. d) do nº 1 do art. 86º da Lei nº 5/2006 de 23/2, com prisão até 4 anos e multa até 480 dias.

Por seu turno, ao crime de homicídio qualificado sob a forma tentada é cominada a moldura punitiva do crime consumado, no caso, prisão de 12 a 25 anos (art. 132º do CP), especialmente atenuada, o que nos remete para o limite mínimo de 2 anos, 43 meses e 24 dias de prisão e o limite máximo de 16 anos e 8 meses de prisão.

Em sede de recurso, o arguido sustenta a que a conduta que lhe foi imputada na acusação é atípica do crime detenção de arma proibida, na medida em que a faca que empunhou, não obstante as suas características e dimensões, tinha aplicação definida e ele justificou a sua posse.

Quanto ao crime de homicídio tentado, defende o recorrente que nos encontramos perante uma actuação que releva da tentativa impossível e, como tal, não punível, por força do disposto no nº 3 do art. 22º do CP:

A tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime.

Embora o crime de detenção de arma proibida, pela moldura penal que lhe corresponde, seja susceptível de fundamentar, em abstracto, a imposição da medida coactiva a que o recorrente se encontra sujeito, torna-se evidente, em função dos valores que põe em causa, que foi a indiciação da prática pelo arguido do crime de homicídio qualificado tentado que despoletou as necessidades cautelares que conduziram à decretação de tal medida.

Nesta conformidade, pode este Tribunal dar de barato a possibilidade de assistir razão ao recorrente na impugnação da tipicidade da conduta integradora do crime de detenção de arma proibida, sem com isso afectar os fundamentos da decisão recorrida.

De acordo com a acusação, certificada a fls. 32 a 35, a conduta integradora do crime de homicídio qualificado tentado concretizou-se, em suma, em ter-se o arguido munido de uma faca com 17 centímetros de comprimento de lâmina, com a intenção de com ela retirar a vida ao ofendido L, e, empunhando a mesma, se ter dirigido ao prédio onde este reside.

Ao ver chegar o arguido, L recolheu-se no seu prédio, fechando a porta de entrada, o que fez com que o arguido tenha partido o vidro da porta, com o propósito de a abrir da parte de dentro, enquanto ia gritando que o matava e que não sairia dali vivo.

Ora, como pode verificar-se, a acusada conduta do arguido, na parte relevante para o preenchimento do crime de homicídio qualificado tentado, não é, à partida, susceptível de se reconduzir à figura da tentativa impossível, seja pela falta do objecto essencial do crime, seja pela inidoneidade do meio utilizado.

Não devem ser levadas à conta da impossibilidade da tentativa as diligências levadas acabo pelo ofendido para se colocar a salvo dos propósitos agressivos do agente activo, como parece pretender o arguido no seu RAI.

Nesta conformidade, e sem prejuízo de uma ulterior avaliação pelo Tribunal da justeza das teses factuais e jurídicas que o arguido pretendeu fazer valer, ao pedir a abertura de instrução, o que terá de ocorrer na sede própria, que é a decisão instrutória, não vislumbramos facto ou meio de prova que justifique, perante os normativos legais relevantes, a alteração do regime coactivo a que o arguido se encontra sujeito, de forma a não envolver a privação da sua liberdade.

Consequentemente, terá o recurso de improceder.

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça.
Notifique.

Évora, 12/7/18 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Povoas Corvacho)
(João Manuel Monteiro Amaro)