Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | GOMES DE SOUSA | ||
Descritores: | DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA PROVA TESTEMUNHAL PROVA INDIRECTA PROVA PERICIAL DECLARAÇÕES DOS PERITOS | ||
Data do Acordão: | 06/07/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | I. As declarações para memória futura são uma forma legal de produzir prova testemunhal, em fase processualmente anterior à da audiência, sendo as mesmas valoradas como se nesta tivessem sido prestadas. II. É compreensível que a criança, traumatizada com o sucedido e já tendo relatado os factos várias vezes, em várias ocasiões e perante várias entidades, tenha acabado por se recusar relatá-los novamente (o que veio a suceder no momento processualmente mais relevante que o fizesse, ou seja, perante o JIC). III. Se nas declarações para memória futura a menor se limitou a dizer que contou o sucedido aos seus pais e que não se lembrava de nada, verdadeiramente nada de relevante e incriminatório disse acerca do arguido. IV. Nesta circunstância, apesar de reconhecidamente penoso e nada recomendável, o que resta e importará fazer é ouvir novamente a menor. V. Tal audição deverá ocorrer num ambiente o mais acolhedor e mais favorável possível, em local apropriado e com apoio técnico psicológico, de forma a proporcionar uma última possibilidade de se colher a prova que não foi ainda produzida. VI. É isso que impõem as cautelas e a impreterível garantia dos direitos de defesa do arguido - que se presume inocente. VII. A mais disso, a possibilidade de valoração das declarações da mãe do menor, da psicóloga e da médica, na parte em que estas relatam o que ouviram dizer à menor, tem que atender a algo de essencial: o saber se essas pessoas foram ouvidas na qualidade de testemunhas. VIII. E no caso da psicóloga e da médica, sendo a sua audição na qualidade de peritas, o que descreveram com referência ao que ouviram à menor, apenas poderá ser atendido como factos em que basearam o respetivo juízo pericial. E valendo os respetivos relatórios, na medida em que sejam técnica ou cientificamente atendíveis; mas não como depoimentos testemunhais. E, muito menos, sem contraditório! | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: A - Relatório Na Comarca de Setúbal – Juízo Local Criminal de Santiago de Cacém, J1 - correu termos o processo comum colectivo supra numerado no qual foi julgado o arguido AAA, (…) a quem foi imputada a prática de factos que integram a autoria material, na forma consumada, em concurso real efectivo de, pelo menos, dois crimes de abuso sexual de crianças, agravados, p. e p. pelos artigos 14°, nº 1, 26°, 171º, nº 1, 177º, nº 1, alínea c), 69º-B, nº 1 e nº 2, e 69º-C, nº 1 e nº 2, todos do Código. BBB, constituiu-se assistente e deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, com fundamento nos danos não patrimoniais por si sofridos em consequência dos factos constantes da acusação de que é ofendida, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia global de € 2.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal. * A final - por sentença lavrada a 06 de Outubro de 2021 - veio a decidir o Tribunal recorrido: A) Condenar o arguido, AAA, pela prática nos dias 20 e 21 de Abril de 2019, com dolo directo (Artigo 14º, nº 1, do Código penal), como autor material (Artigo 26º, 1ª parte, do Código Penal), na forma consumada, de dois crimes de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo Artigo 171º, nº 1, do Código Penal, nas penas de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão (penas principais) por cada um, ao abrigo do disposto nos Artigos 70º, 40º e 71º, do Código Penal. * O arguido, não se conformando com a decisão, interpôs recurso formulando as seguintes (transcritas) conclusões: 1.º O presente recurso tem como objeto: toda a matéria de facto e de direito da r. sentença proferida nos presentes autos. * O Digno Procurador da República respondeu ao recurso interposto, defendendo a improcedência do mesmo, com as seguintes conclusões: 1. A decisão recorrida não padece de qualquer vício, não é merecedora de qualquer reparo ou crítica, é justa e acha-se em absoluta conformidade com a lei. * Respondeu a ofendida BBB com as seguintes conclusões: Deste modo, não restam quaisquer duvidas que a actuação do arguido AAA, tal como foi descrita nos autos, se subsume à prática de dois crimes de abuso sexual de criança . * O Exmª Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso. Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal. * B - Fundamentação: B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos: 1.1.1. Relativos à culpabilidade 2.A ofendida, costuma passar férias e fins-de-semana com os pais e o irmão no Parque de Campismo (…), sito em (…), desde o ano de 2016, onde têm um espaço reservado para a sua caravana. 3.Nas proximidades da caravana desta família, existiam outras caravanas, pertencentes a familiares e amigos chegados, incluindo o arguido e a sua mulher GGG. 4.A mulher do arguido, GGG, efectua (…). 5.Como ambas as famílias se davam bem, era costume, a menor ofendida, juntamente com os seus pais e irmão, irem almoçar e/ou jantar a casa (caravana) do arguido e família, e estes, também iam almoçar e/ou jantar na caravana dos pais da ofendida. 8.Entre os dias 19 e 22 de Abril de 2019, a ofendida e a família encontravam-se no aludido parque de campismo. 6.O arguido decidiu aproveitar-se da presença da menor na sua caravana e na caravana dos pais da criança, para satisfazer a sua líbido. 7.Para o efeito, muito contribuiu o facto de a menor gostar de brincar com o arguido. 9.Na noite de 20 de Abril de 2019 (Sábado), a ofendida e a família jantaram com o arguido e a sua mulher, GGG, na caravana destes, sendo que a dado momento, o arguido levou a ofendida para outra divisão, para assistirem a programas televisivos de desenhos animados, onde ficaram sozinhos cerca de meia hora. 10.Nesse momento, o arguido colocou a sua mão por dentro das cuecas que a menor envergava, tocando-lhe na vagina, e depois disse-lhe que era um segredo só deles, e que não podia contar a ninguém o que acontecera, tendo-lhe oferecido um peluche. 11.Perante tal atitude, com que não contava e que, à data, não percebeu, a ofendida BBB, sorriu, e levou o peluche. 12.Na manhã do dia seguinte, Domingo de Páscoa, quando a progenitora da criança tratava da higiene íntima da menina, esta queixou-se com dores na vagina. 13.A mãe da criança perguntou-lhe, “mas estás assada, tens areia no pipi?”, tendo a BBB respondido “não mãe, foi o AAA, mexeu no meu pipi, mas não contes a ninguém, é um segredo só nosso.” 14.Apreensiva e preocupada, a progenitora disse à filha para gritar se alguém tentasse tocar no seu pipi. 15.Nesse mesmo dia (Domingo de Páscoa) à tarde, depois do almoço, no avançado da caravana da família da criança, o arguido e a BBB estavam sozinhos, sentados no sofá, momento em que a criança começou a saltar sobre o sofá. 16.Então, o arguido pegou na criança, deitou-a no sofá de barriga para cima, subiu a saia que a mesma envergava, afastou-lhe as pernas, abrindo-as, e pôs a sua boca sobre as cuecas na zona da vagina da menor. 17.A criança gritou e chorou, pelo que os pais acudiram logo, tendo a criança dito aos pais, na presença do arguido “O AAA pôs a boca dele no meu pipi”. 18.A progenitora retirou as cuecas à menina, tendo constatado que estavam molhadas na parte exterior. 19.No dia 27 de Abril de 2019, quando a progenitora da criança se encontrava no avançado da caravana, constatou que o sofá estava partido, tendo comentado com a filha BBB “Gostava de saber como é que este sofá se partiu”, tendo a menina de imediato respondido “Eu sei, foi o AAA que partiu o sofá. Pegou em mim, deitou-me no sofá, abriu as minhas perninhas e fez uma coisa que eu não sei ao meu pipi”. 20.Ato contínuo, a criança subiu para o sofá, e demonstrou à mãe, o que acabara de descrever. 24.O arguido sabia que a BBB tinha, à data, 4 anos de idade. 23.O arguido actuou com o propósito de praticar com a menor BBB actos de cariz sexual para satisfazer a sua líbido. 28.O arguido actuou de modo deliberado, livre e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. 26.Devido a estes actos sexuais praticados pelo arguido, a ofendida demonstrou dificuldades em adormecer, voltou a urinar na cama à noite, e mudou os seus comportamentos, mostrando-se medrosa, receosa, não querendo dormir sozinha. 1.1.2. Relativos ao pedido cível 49º A BBB passou a querer dormir acompanhada pela sua mãe, situação que já não acontecia há pelo menos ano e meio, acordando muitas vezes durante a noite, em sobressalto e a chorar.50º Voltou a urinar na cama, o que já não acontecia. 51º Transformou-se numa criança receosa, confusa e amedrontada, por causa dos acontecimentos praticados pelo arguido, acima narrados. 53º O que determinou a necessidade de apoio psicológico. 1.1.3. Relativos à personalidade do arguido AAA, de … anos, casado, (…), encontra-se reformado há cerca de (…) anos, por se tratar de uma profissão de desgaste rápido, recebendo €900 de pensão mensal.Oriundo de uma família de pescadores, com uma fratria de cinco e de condição económica precária, concluiu o 4 º ano de escolaridade e com 12 anos começou a trabalhar 8…), aos 13 anos obteve (…). Cumpriu o serviço militar na Marinha Portuguesa e ingressou na Escola Profissional de Pesca de Lisboa concluindo o Curso de Marinheiro Pescador. Aos 21 anos foi trabalhar na pesca de arrasto internacional, acabou por não resistir às baixas temperaturas, adoeceu em alto mar e foi diagnosticado com epilepsia e, por isso, considerado inapto para a actividade de pesca de arrasto, tendo regressado à actividade na pesca da sardinha na Figueira da Foz. No ano 2000 foi trabalhar para a Somália, contratado por uma empresa de pesca italiana, onde permaneceu até à sua aposentação, aos (…) anos. Casado há (…) anos com GGG, o casal tem (…) filhos, já autónomos, e (…) netos. O casal tem uma moradia T3, com boas condições de habitabilidade, sita na morada indicada nos autos. A relação do arguido com o agregado familiar é harmoniosa e de grande união e apoio mútuo, mantendo grande proximidade com os seus irmãos. Razão pela qual desde há muitos anos, no período de férias, o seu agregado familiar se deslocava para o Parque de Campismo (…), onde se reunia com os seus irmãos e respectivos agregados familiares. Quando AAA se aposentou, em (…), o casal decidiu comprar uma caravana, juntando-se em iguais circunstâncias aos seus irmãos no Parque de Campismo (…). Em 2017, a esposa do arguido começou a trabalhar (…), razão pela qual o casal permanece longos períodos de tempo a residir na caravana, local onde o casal está bem conotado. Relativamente à situação judicial em que se encontra, o arguido conta com o suporte da esposa, filhos e restantes familiares para ultrapassar este momento difícil. O arguido não teve problemas judiciais anteriores e demonstrou disponibilidade para aceitar as medidas que lhe forem propostas, a fim de ultrapassar esta situação. O arguido é conhecido no seu meio social por ser uma pessoa afável, que não está conotado com condutas problemáticas ou comportamentos como os descritos nos autos deste processo. Não tem antecedentes criminais. * B.1.2 - Factos não provados: 9. O jantar ocorreu no dia 19 de Abril. * B.1.3 - E apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes considerandos: «Foram tidos em conta os seguintes meios de prova: *** B.2 - Cumpre conhecer. O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95. O recorrente centra a sua inconformidade inicial no uso que o tribunal recorrido fez do princípio da livre apreciação da prova. Daqui retira o tribunal que o recorrente invoca violação do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal. Trata-se, portanto, de insatisfação centrada inicialmente na apreciação factual. Depois, nas suas conclusões 2ª e 3ª o recorrente explicitamente centra a sua insatisfação nos seguintes pontos: a) manifesto erro de julgamento da matéria de fato submetida a apreciação do Tribunal; * B.2.1 – Vamos, neste ponto inicial, reproduzir o já dito em anteriores relatos, o que se impõe por necessidade de expor a base de partida da argumentação deste acórdão. O recurso sobre matéria de facto apresenta duas vias de invocação: como já estabelecido, (1) a invocação dos vícios da revista alargada (410º, nº 2 do Código de Processo Penal) por simples referência ao texto da decisão recorrida; (2) e a alegação de erros de julgamento por invocação de prova produzida e erroneamente apreciada pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Se no primeiro caso ao recorrente se pede, apenas, a sua alegação, aliás, não essencial, já que de conhecimento oficioso (pois que são os vícios extremos, em absoluto não tolerados pela ordem jurídica), já no segundo caso se impõe ao recorrente o cumprimento do ónus de impugnação especificada contido nos números 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal. Ou seja, no actual regime de recursos em processo penal é necessário ter sempre presente que o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. Trata-se de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico. Como se afirma no acórdão do STJ de 10-01-2007 (Rel. Henriques Gaspar no Proc. 06P3518): “I - O recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP – ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer”. Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”. Impõe-se-lhe que “imponha” uma outra convicção. É imperativo que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais. Não apenas o relativo do “possível”, sim o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção. Se o recorrente pretende invocar vícios de facto para além da simples narrativa judicial e fazer apelo a outros elementos de prova, terá que cumprir o seu ónus de impugnação especificada. Em concreto o recorrente não demonstra a existência de qualquer vício de facto nem há válida e eficaz impugnação factual. Está estabilizada jurisprudência quanto à necessidade de estrita observância desse ónus. O STJ por acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/2012 veio a consagrar a seguinte jurisprudência: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às provadas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». Podemos concluir que as exigências se apresentam agora com uma configuração alternativa quanto a um dos requisitos e ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais: a) - A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal); Cumpridos estes ónus de carácter processual estará garantido o amplo recurso em matéria de facto? Sim, mas com uma precisão. O legislador não exige, apenas, que o recorrente indique as provas que permitam uma diversa apreciação da matéria de facto. O legislador exige que o recorrente indique as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto. E o recorrente não cumpriu os requisitos do seu ónus de impugnação. Isto quer nas motivações, quer nas conclusões. Pode entender-se que o recorrente, nas suas conclusões 8ª e 44ª se insurge com a prova dos factos dados como provados em 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 24, 23, 28 e 26. Apesar de aí os indicar como “sem suporte de prova”, sempre se poderia entender que esse seria o seu objecto de impugnação (o recorrente claramente refere esses factos como “por clara ausência de prova”). No entanto as razões que estão na base dessa sua insatisfação são essencialmente razões de direito e não a impugnação ponto a ponto desses factos com a indicação clara dos meios de prova que demonstram (“impõem”) que outra convicção se impunha. Assim, apesar de se poder facilmente extrapolar quais são os «concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados», é certo que o recorrente não indica a prova em que funda essa sua inconformidade. Mesmo nas partes em que o recorrente remete para concretas “passagens” de depoimentos (das inspectoras da PJ) não invoca questões de facto, sim questões de direito, designadamente regras de produção de prova. * B.2.2 - Resulta do disposto no art. 431º, b), do Código de Processo Penal, que havendo documentação da prova, como no caso se verifica, a decisão do Tribunal de 1ª instância só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada, nos termos do art. 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o que não ocorre no caso em apreço. Neste sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 259/2002, de 18/6/2002 (publicado no D.R. II Série, de 13/12/2002), «quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do n.º 3 do art. 4l2º, do CPP, reside tanto na motivação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.» A haver despacho de aperfeiçoamento, quando o vício seja da própria motivação, isso equivaleria à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso. Não havia, desta forma, que pensar em despacho de aperfeiçoamento nos termos do decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 140/2004, de 10/3/2004 e está – por esta razão - esta Relação impossibilitada de modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto com base na existência de um erro de julgamento demonstrado por via de impugnação factual. Mas se assim é, nada impede – até se impõe – que se apreciem as razões de desacordo do recorrente. * B.3.1 – Invoca o recorrente estas razões essenciais como cerne do seu desacordo quanto à apreciação da prova: - o depoimento da menor – Declarações para memória futura; Como se constata, as razões de desacordo centram-se na violação de regras de produção de prova seguidas pelo tribunal recorrido e que redundarão, no entender do recorrente, em proibições de prova. Impõe-se, pois, saber se as bases de apreciação probatória do tribunal recorrido é constituída – e em que termos – por prova proibida fazendo uma análise ao texto da decisão recorrida. No dizer do tribunal recorrido a prova que serviu de base à sua convicção probatória e consequente condenação do recorrente foram Os meios de prova pré-constituídos: Iniciemos esta análise pelos meios de prova pré-constituídos e tal como isso resulta do texto da decisão. Destas razões podemos já inferir que bem andou o tribunal recorrido ao não considerar para a sua convicção nem os depoimentos das duas inspectoras da PJ nem, naturalmente, o que a menor lhes disse em inquérito. Se assim fosse a figura processual das declarações para memória futura seria a consagração de uma inutilidade. As efectivas “declarações para memória futura”, cujos CD, DVD e transcrição estão juntos aos autos, levantam sérias dúvidas face à simples leitura da decisão e ao teor da sua fundamentação de facto, como segue: O referido relatório do exame médico-legal de psicologia realizado à BBB permite, pelas razões expostas no parágrafo anterior, enquadrar e compreender que a criança não tenha querido falar sobre o sucedido nas declarações para memória futura que foi posteriormente (em 26/11/2019) chamada a prestar perante o JIC (depois de já ter prestado declarações na PJ em 3/5/2019 e de ter voltado a abordar o tema nas entrevistas com a perita médica em 20/8 e 4/9/2019). Essa recusa foi justificada pela criança por já ter contado à mãe (para além de posteriormente ter contado à PJ e à perita do INML) - cfr. a pág. 20 da transcrição das DMF, na parte em que a criança responde ao JIC “eu disse” (referindo-se a ter contado aos pais) e que perguntado a quem mais a criança disse, esta ter respondido: “à mãe”. Só a partir desse momento é que a criança respondeu não se lembrar e não querer contar (págs. 21 e 22 da transcrição). Isto parece-nos a afirmação de que a menor se recusou a prestar declarações. Isto obrigou-nos, naturalmente, a rever as transcrições e o DVD das ditas declarações para memória futura e a constatar o óbvio: a menor nada disse nas ditas declarações! Afirmou duas coisas: “já disse aos pais”; “não me lembro”! Ora, de que forma estas duas declarações são incriminatórias? Segundo o tribunal recorrido, através de um juízo de causalidade que temos alguma dificuldade em perceber: «… a criança acabou por confirmar ao JIC que contou (aos pais, à mãe) o sucedido. O que, de forma implícita, acaba por confirmar ser verdade o que contara aos seus pais. Ter contado aos pais implica ser verdade o que contou? A lógica da asserção não é sequencial! Parece-nos que a única verdade que daqui se retira é que foi verdade que contou aos pais e nada contou ao JIC! Donde se retiram as únicas verdades do episódio: houve uma sessão tentada (melhor se diria “frustrada”) de “declarações para memória futura” perante o JIC e nela nada foi dito que incriminasse o arguido. E o acórdão desta Relação de 05-07-2016 (Processo: 80/15.4JAPTM.E1) não é a panaceia que possa socorrer o tribunal recorrido pois que ao afirmar-se ali que «se a criança narrou, ou não, depois, os factos perante o juiz, é já um problema de valoração de provas, de maior ou menor consistência da prova, e não de legalidade de prova» é uma asserção simples e clara que impõe a análise da prova (assente a sua admissibilidade legal), sem que lhe seja permitido o recurso a um subterfúgio formal do tipo “a criança esteve presente pelo que tudo aquilo que dizem que ela acabou por não dizer é verdadeiro”. As declarações para memória futura são uma forma legal de obter em fase processualmente antecipada e fazer entrar em audiência de julgamento umas declarações (ou depoimento) por receio de que os mesmos não cheguem à audiência. Por isso que se afirme no nº 1 do artigo 271º do C.P.P. que «… o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”. A ideia é básica: tem que haver um depoimento, umas declarações! Um depoimento ou umas declarações que se limitem a afirmar “já disse aos pais” e “não me lembro” é um nada!! Podem inferir-se outras asserções: - a criança foi levada a demasiados locais antes da formalização das declarações para memória futura; - nem sempre é possível criar um ambiente favorável à criança! Mas nada de incriminatório! De outra banda a asserção de que «a possibilidade de valoração das declarações da mãe do menor, da psicóloga e da médica, na parte em que relatam o que ouviram ao menor» tem que atender a algo de essencial, o saber se essas pessoas foram ouvidas como testemunhas. Se não foram ouvidas como testemunhas mas sim como a “psicóloga” e a “médica” que ouviram a menor como peritas autoras de um relatório e transformaram tais audições em “factos” base dos respectivos relatórios, isso apenas pode ser atendido enquanto isso mesmo: factos que baseiam o juízo pericial. E não como depoimentos! E muito menos como factos provados, sem contraditório! Valem os relatórios, na medida em que sejam técnica ou cientificamente atendíveis, não como factos ou depoimentos enviesados. Por alguma razão o artigo 133.º, nº 1 al. d) do C.P.P. afirma que “Estão impedidos de depor como testemunhas … os peritos, em relação às perícias que tiverem realizado”. Considerar outra coisa é atribuir um duplo valor probatório – como perícia e como “depoimento encapotado” – a um só facto, uma perícia, tenha ou não maior ou menor valor técnico ou científico. Por isso que fazem todo o sentido as asserções II e III do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-06-2008 (e não 2018 como invoca o recorrente), no processo nº 0745662, sendo relator o actual Cons. António Gama, quando garante: II - Não constitui prova pericial um tal relatório na parte em que se limita a veicular as conclusões e juízos de valor emitidos pelo seu subscritor acerca das declarações que lhe fez uma menor alegadamente vítima de abuso sexual. Tal relatório tem valor enquanto assevera que a menor não tem uma personalidade que facilite uma confabulação, mas não garante a validade da prova das suas declarações! Nem é garante de que tudo o que a menor diga é verdadeiro e deva ser aceite pelo tribunal sem um juízo crítico sobre as suas declarações. Logo, há aqui dois vectores que não podem ser confundidos: capacidade física e mental da testemunha para prestar depoimento; e a credibilidade (aceitabilidade probatória) das suas declarações em sede de regras de apreciação probatória. Daí que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-10-2008 (proc. 08P2869, sendo relator o Cons. Simas Santos), afiance: 7 – A perícia da personalidade a que alude o n.º 3 do (actual) art. 131.º do CPP, visa verificar a aptidão física e mental do menor de 18 para depor em crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, designadamente quando deles foi vítima, para avaliar da sua credibilidade (n.º 2 desse artigo), (…) Nestes autos, assente a capacidade física e mental da menor para prestar declarações por ausência de uma personalidade efabuladora, resta analisar as suas declarações e apreciá-las em confronto com a restante prova produzida! Naturalmente que concordamos com parte da asserção feita pelo Mmº Juiz recorrido quando afirma (com excepção da última expressão, “torna extremamente improvável que tal tenha sucedido”): O relatório do exame médico-legal de psicologia realizado pelo INML à BBB (com base em entrevistas realizadas em 20/8 e 4/9/2019) sobre as características gerais das declarações por si prestadas, designadamente quanto aos factos imputados ao arguido, serve essencialmente para tornar improvável que a criança os tenha declarado por invenção ou confabulação sua, ou por qualquer outro motivo que não o da percepção de que tais factos efectivamente ocorreram. Em suma, não permite eliminar a possibilidade de a criança ter inventado as acusações contra o arguido, mas torna extremamente improvável que tal tenha sucedido. Isto porque por si só o exame psicológico (que é apenas isso, com todas as dúvidas metodológicas sobre a sua cientificidade em todos os seus campos) não sirva para ultrapassar a presunção de inocência, para alcançar uma certeza para além de toda a dúvida razoável. Se é aceitável afirmar que é “extremamente improvável que tal tenha sucedido (que a menor tenha inventado a história) isso não corresponde a afirmar que se ultrapassou toda a dúvida razoável sobre a imputação dos factos ao arguido. São coisas distintas! Mas, máxime, onde estão as suas declarações, onde está o depoimento que seja válido processualmente, prestado em audiência ou via “declarações para memória futura”? Não existe! E tem que existir! Pelo que se não percebe por que razão a menor não foi ouvida em audiência de julgamento, já que se constata que substancialmente não houve “declarações para memória futura”: Logo, apesar de ser penoso e - admite-se - nada recomendável, sujeitar a menor a mais uma exposição da sua pessoa, para mais num ambiente pouco acolhedor, mesmo frio, impessoal, a possível condenação do arguido, também está rodeada de cautelas porque ele se presume inocente. Constituição dixit. Assim impõe-se que o tribunal recorrido ouça a menor, criando para tal um ambiente que lhe seja favorável, mesmo que essa “parte da audiência” decorra noutro local mais infantil e com apoio técnico psicológico, de forma a termos ao menos uma última possibilidade de a ouvir. E a valoração das declarações da mãe da menor não tem apenas uma natureza indirecta! Naturalmente que a terá na parte em que o tribunal recorrido fundamenta com a expressão «Os pais da criança contaram o que esta lhes contou, nos moldes que constam da própria acusação», Mas tem também uma natureza de depoimento directo quando se afirma o que consta deste trecho de fundamentação: Sucede que, tendo a criança sido instruída para gritar se alguém tentasse tocar no seu pipi, tal sucedeu no dia seguinte, no circunstancialismo referido na acusação. Não tendo o episódio sido presenciado por ninguém, o certo é que a BBB gritou e logo de imediato chegaram ao local os seus pais (primeiro a mãe e logo em seguida o pai - que estavam ali ao lado, a escassos 3 ou 4 metros de distância, mas sem visibilidade para o local onde estavam o arguido e a filha - e onde era suposto estar também o outro filho, mais velho que a BBB). Os pais percepcionaram quer a reacção da criança, quer a reacção do arguido, que descreveram. A reacção deste foi tímida, totalmente desadequada para alguém que efectivamente estivesse inocente, como resulta da sua falta de assertividade a negar a imputação (quando a BBB disse - na presença do arguido - que “o AAA pôs a boca dele no meu pipi”) e do facto de, quando o pai da criança perguntou ao arguido (muito provavelmente em tom acusatório) “outra vez???”, o arguido se ter limitado a responder: “é pá, DDD...”. Em função do que se expôs deverá o tribunal recorrido ouvir a BBB em audiência em moldes a definir por si como os mais adequados à sua idade e concatenar tais declarações com os restantes meios de prova, atender apenas às conclusões do relatório psicológico e esclarecimentos sobre ele prestados (e não aos factos “apurados” de forma não judicial – não contraditória - pela sua autora). Desta forma, as razões de inconformidade invocadas pelo arguido têm razão de ser, designadamente não podem ser atendidos: - o relatório psicológico para além das suas conclusões; O depoimento dos pais da menor na parte em que constituem depoimento indirecto estará dependente das declarações da menor. Em função do que se determina que o tribunal recorrido reabra a audiência de julgamento para inquirição da menor e sequentemente lavre sentença em conformidade com o apurado. *** C - Dispositivo Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Subsecção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em dar provimento ao recurso interposto e, em consequência, determinam: a) - deverá o tribunal recorrido ouvir a BBB em audiência em moldes a definir por si como os mais adequados à sua idade e concatenar tais declarações com os restantes meios de prova nos termos supraditos; b) – designadamente não podendo ser atendidos o relatório psicológico para além das suas conclusões e os depoimentos das agentes da PJ que ouviram a menor em inquérito; c) – o depoimento dos pais da menor na parte em que constituem depoimento indirecto estará dependente das declarações da menor. Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) U.C. (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado) Évora, 07 de Junho de 2022 (processado e revisto pelo relator). João Gomes de Sousa (Relator) Carlos Campos Lobo (Adjunto) Gilberto Cunha (Presidente da Secção) |