Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
22/19.8MAPTM.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: No caso dos autos, o muito substancial passado criminal do arguido inculca razões fortíssimas de prevenção especial impeditivas da ponderação de pena não efectivamente reclusiva.
Também é de referir a atitude de essencial insensibilidade do ora recorrente face à notória progressividade das penas em que foi sendo condenado [começando – em 2001 - por penas de multa (3x), passando por uma pena de prisão suspensa, novamente por uma pena de multa (por crime homótropo), por pena de prisão suspensa com regime de prova, por nova pena de multa, por nova pena de prisão suspensa com sujeição a deveres e, finalmente, por nova pena suspensa, por factos já de 2018.

É também de sublinhar já uma acentuada tendência para a prática de crimes de ofensa à integridade física (por vezes qualificados), demonstrando uma agressividade que importa reprimir eficazmente, sob pena de se manter um acentuado perigo para os bens jurídicos que aqueles crimes tutelam, bem como para a própria vida dos cidadãos que contactarem com o arguido.

Resulta, de forma especialmente impressiva, que a prática de todos estes crimes e das condenações atinentes, onde lhe foram dadas várias oportunidades, não tiveram qualquer efeito dissuasor da prática ulterior de mais um crime.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo Local Criminal de Portimão (J1) do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, corre termos o processo comum singular n.º 22/19.8MAPTM, no qual veio o arguido AA, filho de C e de M, natural de …, nascido a …, divorciado, residente na Rua …, em …, …, a ser condenado, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão efectiva.

Inconformado, o arguido interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“I. O Tribunal a quo condenou o aqui recorrente, pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo nº 1 do artigo 143.º do Código Penal, numa pena de um ano e seis meses de prisão efectiva.

II. O Tribunal a quo considerou – no nosso modesto entendimento, erradamente - não ser possível formular um juízo de prognose favorável relativamente ao Recorrente, tendo, essencialmente, como fundamentos:

a) O registo criminal;

b) A situação de alcoolismo;

c) As suas condições pessoais instáveis.

III. Concluiu o Tribunal a quo que «só a sua reclusão resultará da adequada contenção da sua atividade criminosa, sendo previsível, ante as referidas características desvaliosas da sua personalidade, aliadas ao seu passado criminal e às suas circunstâncias pessoais actuais, que o mesmo voltará a delinquir, em termos semelhantes ao que aqui ficou assente, pelo que se mostra necessário prevenir o cometimento de futuros crimes».

IV. Considerando ainda, o Tribunal a quo, que «a execução da pena em regime de permanência na habitação não se mostra adequada nem suficiente em ordem à execução da pena (por um lado, o arguido não tem qualquer suporte de retaguarda para assegurar as suas necessidades básicas no domicilio, carecendo de autorizações de saída, autorizações essas que, por não serem supervisionadas, franqueariam ao arguido a possibilidade de acesso a bebidas alcoólicas, factor potenciador de agressividade, o que constitui um importante factor de risco de repetição de factos similares aos presentes, sendo que, por outro, o mesmo não tem um domicilio que reúna condições para a execução da pena naquele regime, nem meios de o vir a adquirir), deverá o mesmo expiar a pena aqui aplicada de modo efectivo, em meio prisional.»

V. Parece-nos, salvo o devido respeito, que o entendimento do Tribunal a quo, desconsidera – ou pelo menos, subavalia – as circunstâncias de:

a. Ter já decorrido um período superior a dois anos e três meses desde a prática dos factos - sem comportamentos agressivos por parte do recorrente;

b. Ter o recorrente abandonado voluntariamente o consumo de álcool;

c. Ter presentemente a sua habitação no …, …;

VI. O recorrente entende, pois, muito humildemente, que apesar dos factos dados como provados corresponderem à verdade, os mesmos não são impeditivos de ser possível, ainda, fazer um juízo de prognose favorável acerca da sua pessoa, uma vez que:

a. Abandonou voluntariamente o consumo de álcool;

b. Encontra-se a frequentar um curso de formação profissional;

c. Tem a perspetiva real de começar a trabalhar ainda neste mês de Dezembro na sua arte;

d. Habita no …, …, onde está a ser acompanhado.

e. Tudo de livre e espontânea vontade.

VII. Não obstante as condenações existentes, a conduta global e actual do recorrente não é caracterizada pela compulsão geral para práticas criminosas, o que denota a existência de factores fortes de integração social que a prisão, em vez de reforçar, colocará certamente em crise.

VIII. O cumprimento da pena de prisão de modo efectivo, em contexto prisional, constituirá, in casu, um claro retrocesso do seu actual esforço de ressocialização.

IX. A aplicação ao recorrente de uma pena de prisão suspensa na sua execução é suficiente e adequada para realizar as finalidades de prevenção geral e especial da punição.

X. Impõe-se, pois, a substituição da pena de prisão aplicada ao recorrente pela suspensão da execução da pena de prisão, ainda que sujeitando o recorrente a regime de prova ou deveres e regras de conduta.

XI. Ou se assim não se entender, por assegurar as exigências de prevendia, sempre devia ser a pena cumprida em regime de permanência na habitação, com autorização para continuar o seu percurso formativo e/ou profissional.

XII. A sentença recorrida violou assim o disposto nos artigos 50º, 51º e 52º, 43º e 70.º do Código Penal, devendo, pois, ser substituída.”

Pugnando, sinteticamente, pelo seguinte resultado:

“Termos em que deverá concedido provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e determinando-se a suspensão da execução da pena de prisão com regime de prova, pelo período que for considerado adequado, ou, subsidiariamente, determinando-se a substituição da pena de prisão por regime de permanência na habitação.””

O recurso foi admitido.

O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, com as seguintes conclusões (transcrição):

“A) Vem o presente recurso interposto pelo arguido AA da douta sentença proferida nos autos à margem referenciados, e que, em suma, o condenou, pela prática, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão.

B) O Recorrente fundamenta a sua discordância, única e exclusivamente, na determinação, pelo Tribunal “a quo” da medida concreta da pena única de prisão efectiva de 8 (oito) de 1 ano e 6 meses a que foi condenado.

C) Analisada a matéria de facto provada, os bens jurídicos violados, a gravidade do ilícito, o dolo que é intenso, e em particular, os antecedentes criminais que o arguido regista - 5 condenações anteriores por crime da mesma natureza -, consideramos ser manifestamente justa, adequada e equilibrada a pena de prisão fixada pelo Tribunal a quo.

D) Para suspender a execução da pena de prisão o Tribunal teria de formular um juízo de prognose favorável ao arguido no momento da decisão.

E) Ponderadas as condições de vida do arguido e a sua conduta anterior e posterior ao facto, não nos merece qualquer reparo a decisão do Tribunal a quo de não suspender a execução da pena de prisão.

F) Não enfermando a douta sentença de qualquer vício, mas ao invés, tendo ponderado os critérios de escolha da pena, bem como os factores de determinação da medida concreta conforme o legalmente estatuído.

G) Motivo pelo qual, a douta sentença deve ser mantida na íntegra, negando-se assim provimento ao recurso.”

A Exm.ª PGA neste Tribunal da Relação deu parecer no sentido de que não assiste qualquer razão ao recorrente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP (1), sem resposta.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“FACTOS PROVADOS:

1 - No dia 3 de Junho de 2019, pelas 20h30m, no armazém n.º 3 da … de -…, o arguido, que trabalhava para o assistente BB, dirigiu-se àquele, para lhe pedir dinheiro emprestado, o que o mesmo recusou, gerando-se, entre ambos, uma discussão.

2 - Nessa sequência, de modo súbito, o arguido, munido de uma escova de madeira, desferiu, com o respectivo cabo, uma pancada na região da boca do assistente, provocando ainda a sua queda ao chão.

3 - Acto contínuo, estando o assistente caído no chão, o arguido voltou a atingi-lo, na cara, com a referida escova, pelo menos, por mais três vezes, até que o assistente conseguiu retirar-lhe a escova das mãos, altura em que o arguido se aproximou mais do assistente e lhe mordeu a cara, junto à orelha direita.

4 - Por causa disso, o assistente BB teve que receber assistência médica no Centro Hospitalar … - Unidade de ….

5 - Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB sofreu:

- No crânio: na metade esquerda da região occipital, tumefacção mole, depressível e dolorosa à palpação, medindo 2 cm de diâmetro;

- Na face: na metade esquerda da região, junto à inserção do couro cabeludo, escoriação com 2 cm de diâmetro; na pálpebra inferior esquerda, equimose arroxeada, com 2cm x 1cm; na hemiface esquerda, escoriação com 4cm x 1cm; na região dos ossos próprios do nariz, equimose ligeiramente arroxeada, medindo 2 cm de diâmetro, sobre a qual assenta escoriação linear com 5 mm de comprimento; na hemiface direita, junto à articulação temporo-mandibular, equimose avermelhada com 4 cm de diâmetro, na periferia da qual assentam várias escoriações lineares curvilíneas, medindo 5 mm de comprimento cada uma (lesão figurada compatível com mordedura), as quais apresentam sinais inflamatórios; na face mucosa do lábio inferior, ferimento inciso-contuso com arrancamento de tecidos moles, cujas dimensões não se conseguem precisar, devido ao facto de se prolongar para a mucosa gengival dos 4 dentes incisivos inferiores e mucosa do quadrante inferior direito;

- Membro superior direito: na face posterior do cotovelo, várias escoriações, medindo a maior 1 cm de comprimento e a menor 5 mm de diâmetro; mobilidades dolorosas do cotovelo;

- Membro superior esquerdo: na face posterior do cotovelo, duas escoriações, medindo a maior 2cm x 1cm e a menor 1cm de diâmetro; na face dorsal da mão, a nível da segunda falange do 4.º dedo, dois ferimentos contusivos (um no bordo externo e outro no bordo interno), medindo cada um 5 mm de diâmetro, os quais apresentam sinais inflamatórios;

- Membro inferior esquerdo: na face externa do joelho, duas escoriações lineares, medindo a maior 2cm e a menor 1cm de comprimento.

6 - Tais lesões determinaram um período de 45 (quarenta e cinco) dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional.

7 - Do sucedido resultou como sequela, para BB, a ausência do dente canino do maxilar superior direito, o qual necessitou de ser extraído.

8 - O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o intuito de causar lesões corporais a BB, o que conseguiu, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

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9 - No dia 03.06.2019, a Unidade Hospitalar de … do Centro Hospitalar …, EPE, no exercício da sua actividade, prestou cuidados de saúde a BB, os quais consistiram em um episódio de urgência, no valor total de 85,91 euros, devido às lesões pelo mesmo sofridas.

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10 - O arguido é oriundo de uma zona piscatória, inserindo-se num agregado numeroso e de condição socioeconómica humilde, constituído pelos seus progenitores e os seus irmãos, com relacionamento conflitual.

11 - A família subsistia com a venda de peixe nos mercados locais, abandonando mais tarde essa actividade, para dar início a um percurso laboral na área da construção civil.

12 - O progenitor faleceu prematuramente, o que levou, o arguido e os irmãos, a uma autonomia precoce, no seio do agregado de origem, sendo a mãe doméstica.

13 - O arguido concluiu apenas o 6.º ano de escolaridade.

14 - Desde há muitos anos ligado à "…", obteve formação profissional e, posteriormente, emprego como marítimo, na cozinha de barcos pesqueiros, acumulando com o cargo de contramestre.

15 - Tendo-se iniciado muito cedo nesta profissão, passa, por vezes sazonalmente, por situações de desemprego, nesta área laboral, dedicando-se, em alternativa, à pesca artesanal de bivalves na ria.

16 - Viveu um relacionamento conjugal de cerca de 4 anos, com perturbações e conflitos que culminaram na separação, tendo, desta união, nascido um filho, actualmente, com … anos de idade.

17 - A mãe do arguido reside em …, …, visitando-a, o arguido, de forma irregular.

18 - O arguido é conhecido na comunidade pelo comportamento aditivo (consumos excessivos de álcool), de que padece, situação que se estende desde há vários anos e que o mesmo minimiza.

19 - São igualmente referidos pelos elementos da comunidade alguns comportamentos desviantes, associados a confrontos físicos, que o têm levado a ligações com o sistema de justiça penal, situações que tende a justificar com a problemática aditiva ou com o intuito de se defender.

20 - O arguido tem vindo a residir, sozinho, numa habitação quase em ruínas, arrendada e que se encontra em processo de despejo, que não conta com o fornecimento de energia eléctrica, nem água da rede pública, com condições precárias de habitabilidade, num contexto piscatório e carenciado.

21 - Na área profissional, o arguido apresenta gratificação, empenho e dedicação, sendo cozinheiro e contramestre de barco, considerando-se motivado pela sua arte, tendo sido, recentemente, contratado para embarcar de novo.

22 - O arguido subiste com proventos económicos apenas suficientes para a sua sobrevivência, tendo permanecido algumas semanas de baixa médica, altura em que recebeu cerca de 350 euros mensais.

23 - O arguido, quando não se encontra embarcado, recai, com regularidade, nos consumos de bebidas alcoólicas.

24 - O arguido revela possuir baixos recursos cognitivos e ser facilmente influenciável, envolvendo-se em conflitos, nomeadamente ao nível local, junto da vizinhança, não reflectindo previamente sobre as consequências dos seus actos.

25 - Revela fragilidades quanto à interiorização do desvalor das suas condutas e abuso de substâncias etílicas.

26 - O arguido está alojado, desde 16.09.2021, no …

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27 - O arguido já foi condenado:

- por sentença proferida em 09.05.2001, pela prática de um crime de injúria, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 1.200$00 (por factos praticados em 04.12.1999), pena, essa, declarada extinta pelo cumprimento;

- por sentença proferida em 16.02.2004, pela prática de um crime de burla, na pena de 20 dias multa, à taxa diária de 6 euros (por factos praticados em 22.03.2003), pena, essa, declarada extinta, pelo cumprimento;

- por sentença proferida em 24.04.2008, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 3,50 euros (por factos praticados em 04.05.2006); pena, essa, declarada extinta, pelo cumprimento;

- por sentença proferida em 20.07.2010, pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário e dois crimes de ofensa à integridade física grave qualificada, na pena única de 1 ano e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de 1 ano e 8 meses, sujeita a condição pecuniária (por factos praticados em 11.06.2007 e 11.07.2007); pena, essa, declarada extinta, pelo cumprimento;

- por sentença proferida em 15.07.2011, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 230 dias de multa, à taxa diária de 5 euros (por factos praticados em 21.06.2011); pena, essa, declarada extinta pelo cumprimento;

- por sentença proferida em 12.11.2015, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 12 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 12 meses, acompanhada de regime de prova (por factos praticados em 02.11.2014); pena, essa, declarada extinta pelo cumprimento;

- por sentença proferida em 14.04.2016, pela prática de um crime de falsidade de testemunho, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 5,50 euros (por factos praticados em 14.05.2015); pena, essa, declarada extinta pelo cumprimento;

- por sentença proferida em 23.06.2016, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, com sujeição a deveres (por factos praticados em 08.09.2015); pena, essa, declarada extinta pelo cumprimento;

- por sentença proferida em 12.10.2020, pela prática de um crime de detenção de arma proibida e quatro crimes de dano, na pena única de 1 ano e 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos (por factos praticados em 06.03.2018).

FACTOS NÃO PROVADOS:

Não existem.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

A questão a decidir no presente recurso é:

Questão (única) - Deve (ou não) a pena de prisão efectiva aplicada na decisão recorrida ser suspensa na sua execução ou ser determinada a respectiva substituição por regime de permanência na habitação.

*

B. Decidindo.

Questão (única) - Deve (ou não) a pena de prisão efectiva aplicada na decisão recorrida ser suspensa na sua execução ou ser determinada a respectiva substituição por regime de permanência na habitação.

Desde logo, importa referir que o recorrente apenas pretende a aplicação de uma pena de substituição (suspensão de execução) ou uma forma (meio) de execução da pena (2) fora do meio prisional (regime de permanência na habitação), não se colocando, consequentemente, a questão da aplicação (escolha) da pena de multa prevista alternativamente no art.º 143.º, n.º 1 do CP.

No entanto, importa ainda assim valorar o critério se encontra previsto no art.º 70.º do CP, que determina que, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição: “Trata-se (…) de um poder-dever para o tribunal, com a consequência de também dever fundamentar a não aplicação da pena não privativa da liberdade (fundamentação negativa), quando dê preferência à pena privativa da liberdade.” (3)

No caso dos autos, relativamente à pena de prisão efectiva aplicada, o tribunal a quo fundamentou tal aplicação (e, concomitantemente, a não aplicação de pena não privativa da liberdade) nos termos que se expõem:

“Ora, no caso dos presentes autos, verifica-se que o arguido regista já um rol considerável de condenações, por variados tipos de crime (injúria, burla, resistência e coacção, falsidade de testemunho, detenção de arma proibida, dano e ofensas à integridade física). Por outro lado, quanto ao tipo de crime pelo qual vai agora condenado, cometeu já, anteriormente aos presentes factos, seis crimes de ofensa à integridade física, desde a forma simples, à forma grave qualificada. E se é certo que as penas que foi sofrendo, desde a de multa à de prisão suspensa na sua execução, foram sendo cumpridas, não deixa de ser assinalável que as penas aplicadas não foram adequadas a influenciar a sua conduta de modo normativo, pois que, entre 1999 e 2019, não só não deixou de incorrer na prática de crimes, como reiterou, e de modo impressivo, no crime de ofensa à integridade física. A tal facto não será alheio o seu caráter impulsivo e belicoso, agravado pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas, factos estes que o arguido desvaloriza (sinal da fraca interiorização do sentido das condenações sofridas e da debilidade da sua motivação à normatividade). Por outro lado, o arguido não tem suporte familiar ou social contentor (viveu um curto relacionamento conjugal, conflituoso, que terminou com a sua separação; não há notícia de manter um relacionamento próximo com o seu filho ou mesmo com a sua mãe; tem vivido sozinho numa casa sem condições de habitabilidade, uma habitação em ruínas, sem água nem luz, de onde terá sido despejado, pois que agora encontra-se acolhido pela …; mantém actividade apenas sazonal, sendo que nos períodos em que não trabalha excede-se no consumo de bebidas alcoólicas, não reconhecendo sofrer de qualquer dependência; e nem mesmo mantém relações de vizinhança pacíficas).

Vale tudo por dizer que os períodos em que o mesmo se encontra a trabalhar, altura em que revela motivação e gratificação e não se desregrará no consumo de álcool, não assumem peso bastante para considerar o arguido suficientemente inserido na sociedade.

Como assim, se são medianas as exigências de prevenção geral, atento o número de crimes desta natureza praticados na comunidade, nomeadamente na da área deste Juízo local, são elevadas as exigências de prevenção especial, ante o que acima se referiu, evidenciando o arguido uma falta de preparação e de aquisição de recursos internos para orientar a sua conduta pelo respeito das mais elementares regras de sã convivência social.

Por isso que a pena de multa, no caso, seja, claramente, de afastar, afigurando-se que só a aplicação de uma pena de prisão se mostra suficiente e adequada em ordem à realização das finalidades punitivas que o caso convoca, optando-se, em consequência, por esta pena.”

Desde já adiantamos que concordamos com a fundamentação exposta, que nos parece mencionar as razões nucleares da opção tomada de forma normativamente escorada no quadro legal aplicável.

Desde logo, há que valorar, como se faz na decisão recorrida, o passado criminal vastíssimo do ora recorrente, em parte substancial até de natureza homótropa.

Quanto à solicitada suspensão de execução da pena, devemos atender à norma que define os respectivos pressupostos:

Artigo 50.º (4)

Pressupostos e duração

1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

A operatividade do instituto depende, pois, da verificação de pressupostos formais e materiais (5).

Considerando que a pena fixada foi de 1 ano e 6 meses de prisão, mostra-se preenchido o respectivo pressuposto formal.

Por seu turno, importa sublinhar que “o pressuposto material da suspensão da execução da pena é o da adequação da mera censura do facto e da ameaça da prisão às necessidades preventivas do caso, sejam elas de prevenção geral, sejam de prevenção especial” (6).

No caso dos autos, o muito substancial passado criminal do arguido, já acima caracterizado, inculca razões fortíssimas de prevenção especial impeditivas da ponderação de pena não efectivamente reclusiva.

Também é de referir a atitude de essencial insensibilidade do ora recorrente face à notória progressividade das penas em que foi sendo condenado [começando – em 2001 - por penas de multa (3x), passando por uma pena de prisão suspensa, novamente por uma pena de multa (por crime homótropo), por pena de prisão suspensa com regime de prova, por nova pena de multa, por nova pena de prisão suspensa com sujeição a deveres e, finalmente, por nova pena suspensa, por factos já de 2018.

É também de sublinhar já uma acentuada tendência para a prática de crimes ofensa à integridade física (por vezes qualificados), demonstrando uma agressividade que importa reprimir eficazmente, sob pena de se manter um acentuado perigo para os bens jurídicos que aqueles crimes tutelam, bem como para a própria vida dos cidadãos que contactarem com o arguido.

Resulta, de forma especialmente impressiva, que a prática de todos estes crimes e das condenações atinentes, onde lhe foram dadas várias oportunidades, não tiveram qualquer efeito dissuasor da prática ulterior de mais um crime.

As razões adiantadas pelo recorrente para fundamentar a sua pretensão (i. ter já decorrido um período superior a dois anos e três meses desde a prática dos factos sem comportamentos agressivos por parte do recorrente, ii. ter o recorrente abandonado voluntariamente o consumo de álcool e iii. ter presentemente a sua habitação no …) são de uma fragilidade evidente, sendo que, quanto à primeira, até intervalos temporais maiores não impediram que o arguido voltasse a praticas crimes homótropos graves, quanto à segunda, mesma a ser verdadeiro tal “abandono”, careceria o mesmo de uma ponderada sedimentação, claramente ainda insuficiente, sendo certo que não está demonstrado que a etiologia dos crimes do arguido seja sempre e necessariamente geneticamente ligada ao consumo de álcool e, finalmente, quanto à terceira, é notório que o acolhimento na referida instituição é essencialmente precário, não impedindo o arguido de praticar quaisquer crimes.

Do exposto flui que, neste momento, a prevenção especial demanda a adopção de um propósito neutralizador, “por via do afastamento do delinquente para que fique impedido fisicamente de cometer mais crimes, pelo menos durante certo tempo”(7), ou seja, o tempo de cumprimento da pena decretada.

Por último, entendemos que também fortíssimas razões de prevenção geral positiva exigem a escolha da pena de prisão efectiva: in casu, só esta permitirá (após as condenações anteriores progressivas, como assinalámos) estabilizar contrafaticamente as expectativas da comunidade na validade e eficácia da norma violada (mais uma vez), pois o desprezo a que o ora recorrente votou os valores prosseguidos pela norma (a integridade física dos cidadãos que com ele interagiram) em detrimento dos seus impulsos pessoais, traduz uma “infracção normativa e, por isso, uma desautorização da norma. Esta desautorização dá lugar a um conflito social na medida em que põe em questão a norma como modelo de orientação.” (8)

*

Segundo o art.º 43.º do CP, epigrafado regime de permanência na habitação, sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância: (a) a pena de prisão efetiva não superior a dois anos.

“O pressuposto material de aplicação deste regime [realização, de forma adequada e suficiente das finalidades da execução da pena de prisão] é o da sua adequação às finalidades da execução da pena de prisão. A escolha deste regime é determinada exclusivamente por considerações de natureza preventiva especial, isto é, a "reintegração social do recluso" (artigo 42.º), ainda que a decisão de não substituir a pena de prisão por uma pena alternativa não detentiva tenha sido determinada por necessidades de prevenção geral ou especial negativa” (9)

É de sublinhar de novo a total insensibilidade do ora recorrente face à notória progressividade das penas em que foi sendo condenado, que não tiveram qualquer efeito dissuasor relativamente à prática ulterior de mais crimes, valendo aqui, intactas, as considerações atinentes à prevenção especial que tecemos supra. Importa, a propósito, referir aqui Acórdão deste TRE, com algumas similitudes com o presente (10): “Pode assim concluir-se que as condenações que lhes foram impostas não serviram de suficiente advertência para inibir a arguida da prática de novos crimes. Com efeito, tais condenações não deixam de revelar uma personalidade da arguida indiferente ao ordenamento jurídico e ao sistema de justiça penal, acrescendo não se vislumbrar que nenhuma das condenações já impostas tenha sido idónea à cabal interiorização por parte da arguida da necessidade de se inserirem socialmente e passarem a pautar a sua conduta em conformidade com o direito. (…) Cremos, pois, configurar o caso "sub judice" um caso em que a defesa da ordem jurídica, na afetação séria da fidelidade ao direito por parte da comunidade, levaria a entender-se o deferimento do pretendido cumprimento em regime de permanência na habitação com controlo eletrónico como uma injustificada cedência perante a criminalidade e ao abalo da confiança da comunidade na inviolabilidade do direito. Assim sendo, entendemos que o pretendido cumprimento em regime de permanência na habitação com controlo eletrónico afetaria valores que a comunidade tem, fundadamente, como essenciais, pelo que a levaria a um afastamento da confiança nas instituições judiciais.”

Como é sabido, quanto a qualquer pena de prisão até cinco anos deve o julgador sempre justificar de forma especialmente robusta a necessidade de aplicação de uma pena de prisão efectiva, mas aqui essa necessidade impõe-se com clareza, pois qualquer outra pena não garantiria as finalidades da punição, o que se mostra adequadamente vertido na decisão recorrida.

Importa, pois, dar resposta negativa à questão colocada.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 07 de Junho de 2022

Edgar Valente

Laura Goulart Maurício

Gilberto da Cunha

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1 Diploma a que pertencerão as menções normativas ulteriores, sem indicação diversa.

2 Neste sentido, Maria João Antunes in Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2.ª edição, 2022, página 41.

3 Maria João Antunes in Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, página 71.

4 Do Código Penal.

5 A terminologia é de Jorge de Figueiredo Dias, Novas e Velhas Questões Sobre a Pena de Suspensão de Execução da Prisão, RLJ, Ano 124, página 67.

6 Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, 2021, página 332.

7 José Adriano Souto de Moura, “Visitar Durkheim a Propósito dos Fins das Penas”, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2019, II, página 48.

8 Günter Jakobs in Derecho Penal, Parte General, Marcial Pons, Madrid, 1995, página 13.

9 Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, Lisboa, 2021, página 311.

10 Acórdão deste TRE de 18.02.2020 proferido no processo 240/17.3GHSTC.A.E1 (Relatora Laura Maurício) disponível em www.dgsi.pt.