Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
475/09.2TBALM-A.E.1
Relator: JOSÉ MANUEL GALO TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: PROVA
TÍTULO DE CRÉDITO
DOCUMENTO PARTICULAR
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: REVOGADA
Sumário:
I- A dedução intelectiva relativamente as factos não provados, por não terem sido objecto de prova, não demanda qualquer exame crítico da prova.
II- Nada impede que um título cambiário, que não possa valer como título executivo, possa ter validade como documento particular assinado pelo devedor e, como tal, possa ser considerado título executivo, nos termos do artigo 703º, nº1, al. c), do CPC.
III- Não valendo a letra como título cambiário e configurando a mesma apenas um documento particular, e nada constando neles quanto à causa, não pode funcionar a presunção do artigo 458º do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
AA interpôs recurso da sentença proferida nos embargos de executado deduzidos contra a execução proposta por “BB Ldª”.
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A embargante não se conformou com a referida decisão e apresentou as seguintes alegações:
1) Versa o presente recurso sobre a Decisão da matéria de Direito da sentença julgou improcedente por não provada a oposição à execução apresentada pela oponente/recorrente.

2) A inconformação da recorrente com a decisão que veio a ser proferida pelo Mmº Tribunal a quo decorre, desde logo, pelo facto deste não a ter fundamentado, de acordo com o escopo, do art. 607º, nº3 e nº4 do CPC.

3) Facto que limita, desde logo, as presentes alegações. Porquanto,

4) Quanto às respostas dadas à matéria de facto, a mesma não analisa as provas nem especifica os fundamentos que foram decisivos para a sua decisão, o que na verdade, impossibilita oponente/recorrente de exercer o seu Direito de Recurso de forma cabal.

5) O que se traduz numa nulidade sujeita ao regime do artº 199º, nº1, do CPC. Pois,

6) Relativamente à resposta dada pelo Mmº Tribunal a quo à matéria de facto,

7) A mesma carece de exame crítico das provas oferecida, nomeadamente, quanto à inobservância de requisitos de forma exigidos para a validade da letra bem como à invalidade do negócio cambiário, bem como não indicou no raciocínio lógico e condutor que levaram às respostas, isto de modo a que se passe de convencido a convincente.

8) Como bem anotou, a este propósito, o Professor Antunes Varela, e outros in Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 647:

"O Tribunal Colectivo tem de fundamentar a sua convicção quanto aos factos que considere provados (art. 607º, nº4, do CPC).

Além do mínimo traduzido na menção especificada (relativamente a cada facto provado), dos meios concretos de prova geradores da convicção do julgador, deve este ainda, para plena consecução do fim almejado pela lei, referir, na medida do possível, as razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esse meio de prova".

9) A mesma imposição se manteve com a reforma efectuada pelo Decreto-Lei nº329-A/95 de 12 de Dezembro ao art. 607º, nº2, do CPC,

10) E onde se passou a exigir-se outrossim, idêntica fundamentação para os factos não provados.

11) O que se manteve com a revisão operada pela Lei nº41/2013, de 26 de Junho.

12) Isto por imperativos constitucionais.

13) A propósito da nova redacção a este preceito adjectivo, importa ter presente a magistral lição do Professor Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, LEX, Lisboa 1997, pág. 348.

14) Isso mesmo está patente no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo nº4572/02, 2ª Secção, relatado pelo Venerando Juiz Desembargador André Santos.

15) Dúvidas inexistem, em face do exposto, que a sentença recorrida, quanto à matéria de facto, não satisfaz as exigências mínimas de fundamentação. Não obstante,

16) Impõe o nº4 do artº 607º do CPC, que o Tribunal "analise criticamente as provas".

17) É hoje pacífico que, "na apreciação da prova, o n.º 4 do artº 607.º do CPC apenas comete ao juiz o dever de fazer o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer, o que sucede apenas quanto às que têm valor probatório fixado na lei (documentos exornados de força probatória plena, factos admitidos por acordo ou confissão das partes) para considerar determinados factos como provados" (Ac. STJ, de 16/12/2004: Proc. 0483896. dgci. Net).

18) Ainda, "Na fundamentação da sentença, o juiz deve fazer o exame crítico das provas de que lhe cabe conhecer: artº 607º, nº4, do CPC II- Essas provas, cujo exame crítico o juiz deve fazer na fundamentação da sentença, não são as mesmas provas de que fala o art.s 607.º do CPC: a) quando decide a matéria de facto nos termos do artº 607.º, o juiz aprecia as provas de livre apreciação; b) quando fundamenta a sentença nos termos do artº 607º, nº4, o juiz examina as provas que lhe cabe conhecer nesse momento, e que são as provas resultantes de presunções legais ou com valor legal fixado, se ainda não utilizadas, os ónus probatórios e os factos admitidos por acordo na audiência de julgamento III - Por isso, se as provas produzidas foram todas provas de

livre apreciação, não há provas cujo exame crítico deva ser feito na sentença, visto que o juiz não pode reapreciar na sentença as provas de livre apreciação, cujo exame crítico foi já feito no momento do julgamento da matéria de facto" (Ac. STJ de 10/05/2005: Proc. 05ª963.dgsi.Net.)

19) E, portanto, como se pode verificar pela análise da sentença recorrida, isso simplesmente não aconteceu.

20) Desde logo, no lº Ponto dos factos não provados, em que o Mmº Tribunal a quo, não deu como provado que, "Que o título na al. A) da factualidade provada se tivesse destinado a assegurar o pagamento da execução e colocação em prédio sito no Largo, número 10, dos seguintes trabalhos:

- 6 cozinhas e chaminés, no valor global de €11.040,00;

- 20 caixas de estores, no valor de €500,00;

- 6 portas de patim amaciada, no valor de €3.326,52;

- 32 aduelas (Ariportas) em carvalho, no valor de €10.969,60;

- 2 aduelas (Ariportas Carvalho Lisa), no valor de €527,50;

- 1 porta corta-fogo, no valor de €687,40;

- 8 roupeiros em carvalho forrados, no valor de €5.600,00 (resposta negativa ao nºl da base instrutória).

21) Como se pode verificar, na análise crítica realizada pelo Tribunal a quo, este não apreciou em singelo os trabalhos supra referidos. Aliás, sobre eles nem uma palavra.

22) Ora, e tal análise e respectiva fundamentação impunha-se, nos termos supra expostos,

23) Além das nulidades supra arguidas, a fundamentação deste facto não provado era fundamental para o direito da recorrente. Isto porque,

24) A oposição apresentada pela executada coloca em crise a exequibilidade do título executivo (729º, al. a), do CPC), a incerteza, inexigibilidade ou liquidez da obrigação exequenda (729. al. e), do CPC), e factos que são susceptíveis de extinguir ou modificar a obrigação (729º, al. g), do CPC), e

25) Por se tratar de título executivo baseado noutro título que não sentença, a executada pode defender-se invocando fundamentos do processo declarativo.

26) E nesta sede o mesmo se aplica ao exequente.

27) E por isso é inadmissível a não fundamentação dos factos que justificam a própria acção executiva. A substância da obrigação subjacente ao título executivo.

28) Porém, a inconformação da recorrente com a Sentença que veio a ser proferida em 1ª instância decorre não apenas da falta de fundamentação do mesma, mas também e sobretudo do facto de – atenta a própria factualidade dada por provada no Mmº Tribunal a quo – ter como inadmissível, e mesmo jurídica e eticamente incomportável, a solução dada ao caso, que foi, a de indeferir a oposição à execução apresentada pela recorrente.

29) Com todo o respeito pelo Mmº Juiz de 1ª instância a quo, que é muito, não pode a recorrente deixar de se insurgir contra a Sentença que consigna afinal uma Clamorosa Injustiça, que urge corrigir.

30) Desde logo, ao dar como não provados os factos E), F), G) e H), só poderia resultar na procedência da oposição à execução apresentada pela executada.

31) Na análise crítica daquela matéria de facto dada como não provada, resulta incontroverso, que, conforme sempre alegou a recorrente, a sua assinatura na letra foi aposta,

32) Porque lhe foi assegurado que o fazia na qualidade de herdeira, por se encontrar aberta a habilitação de herdeiros de sua Mãe.

33) E, estando só em causa os bens a própria herança e não qualquer aval pessoal da recorrente, seria, por assim dizer, um aval da herança jacente.

34) Esta foi a razão pela qual a recorrente apôs a sua assinatura na letra.

35) A recorrente, não conheceu o pacto de preenchimento da letra, os prazos, o vencimento, os montantes, nem as transacções comerciais que lhe estão subjacentes.

36) Portanto, era desconhecedora dos seus elementos essenciais.

37) O que leva à invalidade do negócio cambiário, por não terem sido ajustadas entre as partes.

38) Isto porque, o aval é nada mais do que uma forma de garantir o pagamento de um título cambiário, configurando como que uma fiança, na medida em que o avalista garante a satisfação do direito de crédito do tomador ou beneficiário do título, ficando aquele pessoalmente obrigado perante o credor, embora de forma subsidiária ou acessória, mas solidária – artºs 30º, 32º, I, e 78º I, da LULL, e 627º, nº1 e 2, do C. Civ..

39) E, um título em que não foi indicada qualquer quantia para ser paga, a data desse pagamento, o local deste e nem sequer o nome da pessoa ou instituição à ordem de quem se impunha tal pagamento, está em clara violação com o disposto no artº75º da LULL.

40) Porém, tal título produzirá os efeitos de livrança, dado o disposto nos artºs 76º- I, 77º - II, e 10º, da LULL, desde que tenha sido completado em conformidade com algum acordo nesse sentido, isto quando estivermos no domínio das chamadas relação imediatas.

41) E por isso, a admissão de um aval como válido fora de tais circunstâncias seria admitir que pudesse ser garantido o pagamento de um qualquer crédito, totalmente imprevisto e sem qualquer controle por parte do avalista, em violação da doutrina do (vide Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº4/2001 do STJ).

42) Assim, sendo indeterminável a responsabilidade do avalista no momento em que coloca o seu aval num título cambiário, obrigando-se, por isso, ao pagamento futuro de uma dada obrigação, tal aval será nulo se não puder por ele ser determinado através de um acordo seu quanto ao preenchimento desse título, por forma a contribuir para essa dita determinabilidade, nos termos do artº 10º da LULL.

43) Por outro lado, o pacto de preenchimento não pode ser arbitrário, havendo de processar-se segundo a maneira costumada do tráfico e nas modalidades usuais e típicas, devendo ser feito segundo o direito que resulte do contracto fundamental.

44) Que o aval foi prestado em branco, é facto provado.

45) Que a embargante avalizou uma obrigação cuja extensão desconhecida e cujos elementos constitutivos da obrigação igualmente também não conhecia, resulta igualmente provado.

46) E, portanto, o aval prestado nessas condições é nulo e inapto para valer como tal.

47) Nestes termos, e nos demais de Direito do douto suprimento de Vossa Excelências, no qual desde já se louva a recorrente, deverá a douta sentença recorrida ser revogada, nos termos acima descritos, determinando-se que o Tribunal a quo, fundamente, nos termos acima expostos, a sentença recorrida, e substituindo-se por Decisão que declare procedente a oposição à execução apresentada pela aqui Recorrente, assim se fazendo a habitual e tão necessária Justiça!

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Não houve lugar a resposta.
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Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento universal que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº4 e 639º, nº1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº2, ex vi do artigo 663º, nº2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
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Apesar da sua exagerada extensão e da existência de enunciações valorativas repetidas[1], analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
a) existência de nulidade por falta de fundamentação.
b) vício na fundamentação da matéria de facto.
c) verificação de erro de julgamento na subsunção jurídica realizada, tendo em consideração os factos apurados.
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III – Factos com interesse para a decisão da causa:
Provou-se a seguinte factualidade:
A) Nos autos n° 475/09.2TBALR, aos quais os presentes correm por apenso, foi dada à execução o título designado por «letra» [al. A) da factualidade assente].
B) Em tal título, figura no campo «nome e morada ou carimbo do sacador», a designação da exequente [al. b) da factualidade assente].
C) No campo destinado a «aceite», figura o carimbo de «CC - Empreiteiro» e assinatura de CC [al. c) da factualidade assente].
D) No campo destinado a «importância», figura a seguinte inscrição «43.656,04» [al. d) da factualidade assente].
E) No campo destinado a «no seu vencimento pagará V. Exa. por esta única via de letra», consta o seguinte: «a nós ou à nossa ordem a quantia de quarenta e três mil, seiscentos e cinquenta e seis euros, quatrocentos» [al. e) da factualidade assente].
F) No verso do título, a executada escreveu o seguinte: «Dou o meu aval ao aceitante» e apôs a sua assinatura por baixo destes dizeres [al. f) da factualidade assente].
G) A exequente não apresentou este título a pagamento junto da instituição bancária [al. g) da factualidade assente].
H) A executada procedeu da forma descrita em F), quando os campos D) e E) ainda não se encontravam preenchidos, e também quando os campos referidos em B) e C) não se encontravam preenchidos [al. h) da factualidade assente].
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Não se provaram os seguintes factos:
A) que o título aludido na al. A) da factualidade provada se tivesse destinado a assegurar o pagamento da execução e colocação em prédio sito no Largo, número 10, dos seguintes trabalhos:
- 6 cozinhas e chaminés, no valor global de € 11.040,00;
- 20 caixas de estores, no valor de € 500,00;
- 6 portas de patim Amaciada, no valor de € 3.326,52;
- 32 aduelas (Ariportas) em carvalho, no valor de € 10.969,60;
- 2 aduelas (Ariportas Carvalho Lisa), no valor de € 527,50;
- 1 porta corta-fogo, no valor de € 687,40;
- 8 roupeiros em carvalho forrados, no valor de € 5.600,00 (resposta negativa ao n°1 da base instrutória);
B) que estes trabalhos tivessem custado o montante global de € 39.507,73 (resposta negativa ao n°2 da base instrutória);
C) que tivessem sido emitidas as seguintes facturas:
- factura nº24, emitida em 11/3/2008, no valor de € 25.544,33;
- Factura nº 27, emitida em 26/3/2008, no valor de € 13.963,40 (resposta negativa ao n°3 da base instrutória);
D) Que estes trabalhos tivessem sido executados no prédio aludido na al. A) da factualidade não provada, no mês de Janeiro de 2008 (resposta negativa ao n°4 da base instrutória).
E) Que, quando a executada/oponente, apôs o seu aval na letra, tivesse sido informada dos termos e condições em que essa letra seria preenchida (resposta negativa ao n°5 da base instrutória).
F) Que a executada/oponente tivesse dado o seu consentimento para a letra ser posteriormente preenchida, nos termos e condições que lhe foram explicados (resposta negativa ao n°6 da base instrutória).
G) Que a executada/oponente tivesse sido informada de que a letra iria ser preenchida (resposta negativa ao n°7 da base instrutória).
H) Que a letra tivesse sido preenchida com o consentimento e o conhecimento da executada/oponente (resposta negativa ao n°8 da base instrutória).
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IV – Fundamentação:
IV.1 – Da nulidade invocada:

As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas (artigo 154º, nº1, do Código de Processo Civil, como corolário da injunção constitucional precipitada no artigo 205º da Constituição da República Portuguesa).

É nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direitos que justificam a decisão (artigo 615º, nº1, al. b), do Código de Processo Civil).

Seguindo em absoluto a lição de Alberto dos Reis, «há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto»[2]. No mesmo sentido se posicionam Antunes Varela[3] e Lebre de Freitas[4].

A falta de fundamentação só é causa de nulidade quando for absoluta e «o dever de fundamentação da sentença final não se confunde com o dever de motivação previsto no artigo 653º, nº2, do Código de Processo Civil» (versão anterior do CPC)[5].

No caso em apreço, estão devidamente especificados os fundamentos de facto e de direitos que motivaram a decisão recorrida, inexistindo assim, sem cuidar da bondade e validade dos mesmos, uma situação de falta absoluta de fundamentação.

Em face do exposto, julga-se improcedente a invocada nulidade.

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IV.2 – A alteração da decisão de facto e falta de análise crítica das provas:

Em princípio, como decorre do quadro normativo aplicável, à Relação só compete modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas a partir da prova testemunhal extractada dos autos e dos demais elementos probatórios que sirvam de base à respectiva decisão desde que dos mesmos constem todos os elementos, necessários e suficientes, para efeito.

À luz dos critérios inscritos no artigo 662º do Código de Processo Civil, «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

O recorrente coloca em causa a factualidade não provada [ponto 1 dos factos não provados], mas sem especificar qualquer argumento e sem perfectibilizar o ónus imposto pelo artigo 640º do Código de Processo Civil, apoiando-se somente na falta de análise crítica das provas.
O princípio da livre apreciação das provas para a formação da convicção do julgador implica que, na fase de ponderação, decorra um processo lógico-racional que conduza a uma conclusão lógica, sensata e prudente. Só que esse processo, insondável e íntimo, não tem de ser transposto para a motivação, que se limita a elencar criticamente as provas consideradas credíveis[6] [7].
A prova há-de ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formação de juízos e raciocínios que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzam a determinadas convicções reflictas na decisão de pontos de facto sob avaliação. Deve, ela, ainda ser considerada globalmente, conjugando todos os elementos disponíveis e atendíveis[8].
Embora referindo-se à jurisdição penal, tem aqui aplicabilidade a afirmação que «o sistema de livre apreciação da prova deve definir-se pelo seu significado positivo que se traduz na valoração racional e crítica que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos e assegurar pelo seu conteúdo as garantias procedimentais concedidas pela lei fundamental. É de salientar que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade»[9].
Estamos confrontados com uma situação em que não houve produção de prova. A dedução intelectiva relativamente as factos não provados, por não terem sido objecto de prova, não demanda qualquer exame crítico da prova.
O Mmº Juiz a quo afirma «quanto aos factos que se encontravam em discussão, e que eram as constantes dos nº1 a 8 da base instrutória, não se fez prova de qualquer deles, por não ter sido produzido qualquer meio de prova sobre os mesmos».
Tal é suficiente e bastante. E «um homem médio suposto pela ordem jurídica exterior ao processo com a experiência razoável da vida e das coisas»[10] compreende claramente que, se não existe produção de prova em qualquer uma das suas modalidades admissíveis (testemunhal, documental ou outra), o resultado final só poderia julgar como não provada a matéria submetida a julgamento.
Quanto aos factos provados também é elucidativa e completa a justificação. A fundamentação apresentada foi a seguinte: «o teor da letra, cujo original consta de fls. 39 e v., com todos os seus dizeres, que havia sido determinante para a prova dos factos aludidos nas als. A) a G) da factualidade assente, aquando da selecção da matéria de facto, tendo sido igualmente determinante».
Carece assim de razão, ainda que mínima, o fundamento de recurso invocado.
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IV.3 – Verificação de erro de julgamento na subsunção jurídica realizada, tendo em consideração os factos apurados:
A letra de câmbio é um título de crédito, que consiste numa ordem de pagamento, designada por saque, dada em documento por uma determinada pessoa (o sacador), a outra (o sacado), a favor de alguém (o tomador, que tanto pode ser o sacador como um terceiro), ordem de pagamento essa de uma quantia determinada.
O principal obrigado em virtude da letra é o aceitante, que assume a obrigação de pagar a quantia nela mencionada ao portador legitimado por uma série ininterrupta e formalmente correcta de endossos, ao tempo do vencimento e no local devido. Mas não é só aceitante que se obriga em virtude da letra: todos os subscritores do título se obrigam a efectuar a prestação nele referida. E obrigam-se solidariamente, embora a obrigação dos demais subscritores (que não o aceitante) seja apenas de garantia[11].
O aval é o acto pelo qual uma qualquer pessoa garante o pagamento da obrigação cambiária por um dos subscritores.
A declaração de confiança pessoal do avalista, a favor do destinatário do valor patrimonial do direito cambiário, que se constitua ou se aceite com a operação avalizada, tem o sentido de que um terceiro, não autor dessa operação, reconhece e declara que o direito cambiário enquanto direito pessoal do autor da operação garantida – fundamentando o seu valor patrimonial na manifestação de confiança pessoal do sacador, ou de determinado endossante, ou confirmando-o no seu prévio reconhecimento pelo aceite do sacado – digno de crédito[12].
Quanto à situação passiva do aval, dispõe a Lei Uniforme que «o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada (artigo 32º, I). E o parágrafo II do mesmo preceito acrescenta que «a sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma”. Ou seja, o avalista é responsável nos termos da medida típica da operação avalizada, não considerada em concreto, mas, de acordo com a sua aparência formal[13].
Os títulos cambiários (cheque, letras e livranças), enquanto títulos de crédito, fazem prova da obrigação cartular por eles titulado, dados os princípios de literalidade e autonomia que subjazem aos títulos cambiários, mas não das relações fundamentais ou subjacentes que se tenham estabelecido entre os credores e devedores e estejam na base da constituição da relação creditícia ou com ela conexas.
Extractados os factos aplicáveis verifica-se que existe um vício de forma e que a letra em causa não é válida enquanto título de cambiário e apenas poderá ter valor como documento particular, quirógrafo, ao abrigo do disposto no artigo 46°, n°1, al. c), do Código de Processo Civil, na redacção vigente à data da propositura da execução e da oposição à execução, aplicável «ex vi» artigo 6°, n°3, da Lei nº41/2013, de 26/6.
Face ao regime legal então em vigor, nada impede que um título cambiário que não possa valer como título executivo, possa ter validade como documento particular assinado pelo devedor e, como tal, possa ser considerado título executivo, nos termos do artigo 46º, al. c), do CPC[14].
Também o novo Código de Processo Civil estipula no artigo 703º, nº1, al. c), estipula que podem servir de base à execução «os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo».
Figurando, pois, a letra como mero quirógrafo, a obrigação exigida não é, obviamente, a obrigação cambiária ou cartular – caracterizada pela literalidade e abstracção – mas sim a obrigação causal, subjacente fundamental.
Os títulos de crédito, desprovidos dos requisitos que permitiriam a aplicação do regime de abstracção substantiva previsto na respectiva LU, podem ser usados como quirógrafos da relação causal subjacente à respectiva emissão – beneficiando do regime de presunção de causa afirmado pelo artigo 458º do Código Civil quando, atenta a sua natureza material se consubstanciarem em actos de reconhecimento de um débito ou de promessa unilateral de prestação, sem indicação da respectiva causa. Porém, a parte que quer prevalecer-se do título – letra – invocado como quirógrafo da obrigação causal subjacente à sua emissão tem o ónus de alegar, na petição inicial ou no requerimento executivo, os factos essenciais constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título[15].
Efectivamente está exarado na sentença impugnada que: «no caso dos autos, e pelas razões expostas na contestação à oposição à execução (a letra de câmbio dos autos padece de um erro manifesto, que ocorreu aquando do seu preenchimento, uma vez que se encontra preenchida, de forma irregular, o que impediu e impede a exequente de accionar o título junto de qualquer instituição bancária), a exequente apresentou a letra de câmbio, enquanto título executivo, não enquanto título de crédito, mas como documento particular (…), segundo o qual são títulos executivos os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético».
Estamos perante um documento assinado pelo devedor que constitui quirógrafo de uma obrigação causal cujos elementos constitutivos essenciais têm de ser processualmente adquiridos, em complemento do título executivo, por iniciativa tempestiva e processualmente adequada do próprio exequente, sendo articulados no requerimento executivo sempre que não resultem do próprio título[16].
Na situação vertente, o exequente indicou no requerimento inicial executivo os factos de suporte da sua pretensão. Porém, não os provou.
Dispõe o nº1 do artigo 458º do Código Civil que «se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário».
Aquilo que releva é que seja assinado pelo devedor, importe a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias e o montante esteja determinado ou seja determinável por simples cálculo aritmético[17].
Concretizando, como defende a jurisprudência mais autorizada, «se o título couber no âmbito do referido 458º, o credor está dispensado da prova dos factos constitutivos que alegou, sendo antes o devedor que terá de provar que não está validamente vinculado à obrigação causal que deles resultaria; se, pelo contrário, o título invocado não for subsumível ao disposto no artigo 458º, é o credor que terá de provar, nos termos gerais, a factualidade constitutiva da relação subjacente que ele próprio invocou»[18].
Não estamos no domínio das relações directas entre devedor e credor e não existe uma situação enquadrável na esfera de protecção do artigo 458º do Código Civil. Só nesta hipótese é que poderia existir um reconhecimento directo de obrigações pecuniárias pelo devedor a favor do credor.
Não se aplicando, contudo, tal preceito a todos os negócios jurídicos unilaterais, mas apenas àqueles que correspondam a uma promessa unilateral de uma prestação e naquilo em que lhe correspondam[19] [20]
A jurisprudência convocada na sentença recorrida não tem aplicação na presente situação judicanda, porque, face ao desenho jurídico-normativo aplicável, o credor não está dispensado da prova dos factos constitutivos que alegou. Na realidade, o título em questão não consubstancia qualquer declaração unilateral susceptível de reconhecimento ou de constituição de alguma obrigação pecuniária[21], e muito menos isso sucede relativamente à avalista.
Face à falência da prova e não sendo aplicada a disciplina consagrada no artigo 458º do Código Civil, a mera alusão apenas no documento junto com o requerimento executivo – uma letra de câmbio – a “transacção comercial” é insuficiente[22] para se considerar que estão reunidas as condições necessárias para o documento quirógrafo valer como título executivo.
Em síntese, não valendo a letra como título cambiário e configurando a mesma apenas um documento particular, e nada constando neles quanto à causa, não pode funcionar a presunção do falado artigo 458º do Código de Processo de Civil[23]. Assim sendo, atenta a natureza jurídica do aval, incumbia ao exequente alegar a existência da relação subjacente que esteve na base da emissão e preenchimento do documento e demonstrar a relação jurídico-negocial correspondente.
Deste modo, ao ser oferecida uma letra de câmbio que não vale como título de crédito mas como mero quirógrafo, e se não se prova a relação jurídica subjacente, fonte da obrigação do pagamento pelo avalista da quantia peticionada, e a situação não é enquadrável no artigo 458º do Código Civil, os embargos têm de ser julgados procedentes[24].
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedente o recurso interposto, revogando a douta sentença recorrida e, consequentemente, extinta a execução contra Isabel Maria Cardoso Queirós.
Custas a cargo do vencido nos termos do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 6 de Outubro de 2016

José Manuel Galo Tomé de Carvalho

Mário Branco Coelho

Isabel de Matos Peixoto Imaginário
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[1] O recorrente deve terminar as suas alegações de recurso com conclusões sintéticas (onde indicará os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida), in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/06/2013, in www.dgsi.pt.
[2] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil (Anotado), Vol. V, Coimbra Editora, Coimbra 1984, pág. 140.
[3] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição – Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Coimbra 1985, pág. 687.
[4] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, pág. 670.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/05/2007, in www.dgsi.pt.
[6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/06/2010, in www.dgsi.pt.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/09/2010, in www.dgsi.pt com a seguinte conclusão «a fundamentação da sua convicção quanto aos factos, sujeita à regra da livre apreciação, o julgador deve limitar-se a indicar os elementos que permitam convencer da bondade da sua razão de ciência, não tendo de exaurir, e deixar expostos, todos os eventos processuais não anómalos, nem tecer considerações sobre a “impressão” que lhe causou o depoimento de uma testemunha contraditada».
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/07/2006, in www.dgsi.pt.
[9] José Manuel Tomé de Carvalho, Breves palavras sobre a fundamentação da matéria de facto no âmbito da decisão final penal no ordenamento jurídico português, Julgar 21, Setembro-Dezembro 2013, pág. 84.
[10] Obra citada, pág. 84.
[11] Miguel Pupo Correia, Direito Comercial – Direito da Empresa, 10ª edição revista e actualizada, Ediforum, Edições Jurídicas, Ldª, Lisboa 2007, pág. 455.
[12] Paulo Melero Sendim, Letra de Câmbio L. U. de Genebra – Obrigações e Garantias Cambiárias, vol. II, Livraria Almedina, Lisboa 1982, pág. 729.
[13] António Pereira de Almeida, Direito Comercial – Títulos de Crédito, vol. III, edição AAFDL, Lisboa 196/1987, pág. 222.
[14] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2014, in www.dgsi.pt.
[15] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/05/2014, in www.dgsi.pt.
[16] Idem.
[17] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/03/2012, in www.dgsi.pt.
[18] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/05/2014, in www.dgsi.pt.
[19] Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 339.
[20] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/07/2010, in www.dgsi.pt.
[21] Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/07/2007, in www.dgsi.pt.
[22] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/07/2007, in www.dgsi.pt.
[23] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/07/2010, in www.dgsi.pt.
[24] Em sentido próximo, pode consultar-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/10/2015, in www.dgsi.pt.