Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
95/16.5PBSTR-B.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
FACTOS NOVOS
Data do Acordão: 02/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - A revogação da suspensão da execução da pena de prisão só deve ter lugar como ultima ratio, irremediável consequência, no que aqui releva, sobretudo, da infração grosseira ou repetida de deveres ou regras de condutas, cuja avaliação já não permita qualquer juízo de prognose favorável e comprometa decisivamente as finalidades que estiveram na base dessa suspensão.

II - Necessário é, pois, que essa infração seja atribuída à vontade própria do condenado e que se conclua que outras medidas, senão a revogação, já não são viáveis.

III – Surgindo nos autos novos elementos trazidos pelo recorrente, quanto ao seu quadro mental e à medicação prescrita, que podem ser suscetíveis de bulir com a capacidade de tomada de consciência que lhe era exigível e era expectável pelo Tribunal em termos da colaboração daquele, a solução que melhor salvaguarda a justiça no caso concreto, dentro da filosofia que subjaz às finalidades da punição, passa pela realização das diligências indispensáveis a esclarecer as condições que nortearam a conduta omissiva daquele, para aquilatar, com a devida segurança, se a suspensão se deve, ou não, manter.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos em referência, do Juízo Central Criminal de Santarém do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, proferiu-se despacho que decidiu revogar a suspensão da execução da pena de 4 (quatro) anos de prisão aplicada ao arguido/condenado NN, nos seguintes termos:

«1. Relatório

Por acórdão, transitado em julgado em 21 de Junho de 2017, NN pela prática, em concurso efectivo e como co-autor material, de um crime de roubo, previsto e punido pelos artigos 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal, por referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea f), do mesmo diploma legal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão; e, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, a qual foi suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova, assente em plano social de recuperação a elaborar pelo Instituto de Reinserção Social.
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Para além da aludida condenação, compulsado o certificado de registo criminal de NN verifica-se que o mesmo tem os seguintes antecedentes criminais:

1.1) Por sentença, proferida em no âmbito do processo com o n.º 756/17.1PBSTR e transitada em julgado em 22 de Novembro de 2017, NN foi condenado pela prática, em 3 de Setembro de 2017, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros).
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Compulsados os autos, verificou-se que, não obstante as diligências realizadas pela DGRSP, o arguido nunca compareceu nas suas instalações, nem respondeu às notificações do Tribunal ou se interessou, por qualquer modo, pela execução da pena aplicada ao mesmo, o que inviabilizou a elaboração do plano de reinserção social.

Tomaram-se declarações ao arguido que compareceu coercivamente em Tribunal e não manifestou qualquer investimento num projecto de vida normativo. Aliás, como bem refere o Ministério na promoção que antecede, no decurso das suas declarações “NN não logrou justificar as razões do desacatamento, revelando, ademais, mediante o seu discurso anódino, enorme falta de juízo de auto censura”.

Cumpre apreciar e decidir.

2. Fundamentação
Em conformidade com o disposto no artigo 56.º, n.º 1 do Código Penal que “a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social; ou b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.”

No entanto, salienta Maia Gonçalves que “a condenação por crime doloso cometido durante o período de suspensão deixou de provocar automaticamente a revogação da suspensão, contrariamente à solução tradicional, tanto na vigência do CP de 1986 como na da versão originária do Código de 1982. Tudo depende agora tão só do condicionamento estabelecido no nº 1, o qual se aplica a todas as modalidades da suspensão da execução da pena de prisão” (cfr. Código Penal Português, Anotado e Comentado, 15ª edição, pág. 212).

A este propósito, "importa não olvidar que a suspensão da pena de prisão insere-se numa filosofia jurídico-penal assente num princípio de subsidiariedade da pena privativa de liberdade e que pressupõe que, no momento da decisão, o julgador possa fazer um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido, juízo este não necessariamente assente numa certeza, bastando, pois uma expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades de punição e, consequentemente, a ressocialização do arguido – em liberdade!” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Julho de 1998, in CJ, tomo II, pág. 253).

A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é, pois, clara e determinante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer "correcção”, “melhora” ou – ainda menos – “metanoia” das concepções daquele sobre a vida e o mundo. Decisivo é aqui o “conteúdo mínimo” da ideia de socialização, traduzida na “prevenção da reincidência(cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 519).

Pressuposto formal da sua aplicação é que a medida da pena de prisão aplicada (em concreto) não seja superior, actualmente, a cinco anos. Pressuposto material é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido: a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o delinquente da criminalidade e para satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime. Aliás, nunca será de mais lembrar que a suspensão de uma pena não prejudica os fins da prevenção criminal, sendo a ameaça da sua execução um factor que pode ser altamente dissuasor de novas violações criminais (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Março de 1993, in BMJ n.º 425, pág. 331 e ss).

Assim, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração, devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a sua extensão possível evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia de protecção dos bens jurídicos. A função de socialização constitui actualmente o vector mais relevante da prevenção especial. A medida das necessidades de socialização do agente é, pois, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito de medida da pena (neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Maio de 1995, in CJ, tomo II , pág. 210 e ss).

Assim, a condenação pela prática de um crime no decurso do período de suspensão da execução da pena só implicará a revogação da suspensão se a prática desse crime infirmar definitivamente o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão, quer dizer, a esperança fundada de que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 357), pois que então não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão daquela suspensão.

No caso sub judice, verifica-se, desde logo, que o arguido foi condenado pela prática de um crime no decurso do período da suspensão, mas estava em causa crime de natureza diversa pelo qual foi aplicada ao mesmo uma pena não privativa da liberdade.

Sucede que, compulsados os autos, verifica-se que, não obstante tenha sido condenado em pena de prisão, o arguido não tomou consciência de que tinha que aproveitar o período de suspensão da execução da mesma para transformar a sua vida, iniciando, com êxito um processo de reintegração social, procurando ajuda para colmatar os seus problemas aditivos e para controlar a sua impulsividade de molde a que o seu comportamento desviante não se renovasse, nem interferisse com a sua inserção no contexto sócio-profissional.

Aliás, o arguido não desenvolveu, nem apresentou quaisquer projectos de inserção social, para além de reiteradamente se furtar à intervenção dos técnicos de reinserção social que acompanham a execução da pena.

Ora, os factores enunciados e o absoluto desinteresse do arguido pelo mencionado processo de ressocialização lograram, fortemente (não o podemos deixar de expressar), criar a convicção no Tribunal de que estaremos perante um verdadeiro caso de insucesso das finalidades de punição.

Assim, não obstante o lapso temporal já decorrido desde a prática dos factos em causa nos nossos autos e a data da condenação e respectivo trânsito, entendemos que apenas a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido será apta a desencadear um processo onde o sistema prisional, no cumprimento da finalidade última da punição penal, pode vir a ser bem sucedido.

Ademais, a natureza do crime praticado pelo arguido e a personalidade revelada pelo mesmo justificam a opção pela pena privativa da liberdade, afigurando-se que a manutenção da suspensão da execução da pena de prisão poria em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 333).

Neste contexto, é nosso entendimento que o arguido deve cumprir a pena de prisão em que foi condenado na medida em que o prognóstico que foi feito quanto ao seu percurso existencial se encontra, no momento, marcado por um fortíssimo insucesso e que o arguido, após a condenação sofrida nestes autos, não revelou o mínimo interesse pelo ajustamento do seu comportamento ao dever ser e ao respeito pelos bens jurídicos relevantes.

A ponderação de todos estes elementos, permite-nos concluir que o juízo de prognose favorável está definitivamente infirmado e, por conseguinte, deverá ser revogada a suspensão da execução da pena de prisão a que o arguido foi condenado.

3. Dispositivo

Face ao exposto, o Tribunal decide revogar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao condenado NN nos presentes autos e, em consequência, determinar o cumprimento pelo mesmo da pena de prisão fixada na sentença condenatória.».

Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs recurso, formulando as conclusões:

A) O Arguido vem recorrer do douto despacho proferido em 12-06-2018 que determinou a revogação da suspensão da execução da pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por 4 (quatro) anos;

B) O único “antecedente” criminal que o Arguido, actualmente com 18 anos de idade, apresenta é um crime de condução sem habilitação cuja condenação transitou em julgado já depois (22-11-2017) da Sentença nos presentes autos ter sido proferida (21-06-2017).

C) Uma pena suspensa se mostrará, salvo o devido respeito, adequada e proporcional mas a sua efectiva execução se mostrará mais lesiva na vida do Arguido do que benéfica na salvaguarda dos bens jurídicos que as normas penais em causa pretendem proteger.

D) Não se contesta que o Arguido não compareceu às entrevistas para que terá sido convocado para os dias 30 de Janeiro e 1 de Fevereiro pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, que faltou à audição judicial de Arguido para exercício do contraditório agendada para 3-4-2017, aparentando ser real o desinteresse demonstrado pelo Arguido, a falta de “investimento num projecto de vida normativo”, bem como que “não logrou justificar as razões do desacatamento, revelando, ademais, mediante o seu discurso anódino, enorme falta de juízo de auto censura”.

E) Menos se contesta que as suas faltas inviabilizaram a elaboração do plano de reinserção social, ou que o Arguido “não tomou consciência de que tinha que aproveitar o período de suspensão da execução da mesma para transformar a sua vida, iniciando, com êxito um processo de reintegração social, procurando ajuda para colmatar os seus problemas aditivos”.

F) Contudo, não se concorda que será pelo cumprimento da pena de prisão em que foi condenado que a finalidade última da punição penal poderá vir a ser bem sucedida, considerando os efeitos negativos da privação da liberdade e reclusão prisional, a estigmatização social, mormente em idade tão precoce, prejudicando de forma porventura indelével as possibilidades de real reinserção social do Arguido no futuro.

G) O Arguido apresenta “défice cognitivo ou intelectual, diagnosticado pela pedopsiquiatria do Hospital de Santarém e alterações de comportamento associado com desvios graves de conduta”, encontrando-se sob medicação com Risperidona (antipsicótico) e Setralina (para tratar depressão e perturbações de ansiedade), conforme o Hospital Distrital de Santarém, ou a médica Dra. SQ poderão atestar.

H) O Arguido, claramente não compreendeu a gravidade da condenação de que foi alvo nem as obrigações que sobre si impendiam, o que demonstrou na Audição Judicial, respondendo com honestidade e franqueza sendo que o que foi interpretado como desinteresse, desacatamento ou falta de juízo de auto censura melhor deveria ter sido interpretado como défice cognitivo ou falta de competências comunicacionais e sociais.

I) Depois de responder em Tribunal, o Arguido encontrar-se-ia muito mais consciente e sensibilizado para o que dele era esperado em termos de manter a suspensão da pena de prisão, pelo que o Tribunal deveria ter voltado a solicitar Relatório Social à DGRSP, para com base no mesmo ter atendido às condições de vida (sociais, profissionais e familiares) do arguido, bem como à sua situação clínica.

J) O Tribunal não deveria, sem dar nova oportunidade ao Arguido para responder à DGRSP, declarar a revogação da suspensão da execução da pena.

K) Pelo que deverá o Despacho em causa ser declarado nulo sendo substituído por outro que solicite à DGRSP a elaboração de Relatório Social, sendo ouvido igualmente o Hospital Distrital de Santarém, para a construção de um projecto alternativo de intervenção e mudança de vida do Arguido permitindo-lhe, em liberdade, mas sob a cominação da prisão efectiva que, entretanto já vivenciou, alcançando-se melhor as finalidades da punição.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:

1ª Do ponto de vista objetivo e em face dos elementos constantes dos autos até à sua prolação o despacho revogatório da suspensão de execução da pena aplicada ao recorrente NN não viola o disposto no art. 56º do CP.

2ª Porém, tendo chegado aos autos novos elementos, posteriores à prolação desse despacho revogatório, atinentes ao quadro/perfil mental do recorrente, referindo-se que o mesmo apresenta défice cognitivo ou intelectual, diagnosticado pelo Hospital de Santarém e alterações de comportamento associado a desvios graves de conduta, verifica-se que tais realidades são suscetíveis de bulir com a capacidade de tomada de consciência que era exigível ao arguido e era expectável pelo Tribunal em termos de colaborar (e mesmo para ele, por si próprio, apresentar projetos de inserção social) com a DGRSP para efeitos de modificar a sua vida, para padrões normativos e de reintegração, em sede de Plano de Reinserção Social.

3ª Com efeito, aquilo que nos autos até agora poderia corresponder a uma fuga intencional por parte do arguido para se eximir à ação da Justiça poderá ter outro enquadramento para o próprio Tribunal ao nível da capacidade de entendimento e de funcionamento daquele que radique no seu quadro mental.

4ª Afigura-se, pois ao Ministério Público que o cabal esclarecimento do verdadeiro quadro/perfil mental do arguido constitui, agora, questão relevante e prévia à revogação da suspensão da execução da pena aplicada ao mesmo, questão essa que é decisiva para se concluir pelo “absoluto desinteresse” ou pelas específicas condições mentais do arguido, eventualmente atendíveis e a demandarem abordagem e intervenção ajustada por parte da DGRSP em conformidade, atento esse quadro e a sua idade, bem como, o seu percurso anterior de permanência em LIJ.

5ª O apuramento e esclarecimento desses novos elementos assume particular significado para se aquilatar da verdadeira postura do arguido em face das exigências da suspensão da execução da pena, e, por via do mesmo, para se alcançar o grau de exigência e as necessidades de ajustamento que possam vir a revelar-se como específicas ao caso do recorrente e em última análise, às verdadeiras finalidades da punição, ante todas as considerações que estiveram subjacentes à não aplicação ao mesmo de uma pena efetiva.

6ª Afigura-se ao Ministério Público que se deve suster o despacho revogatório recorrido para prévio apuramento e esclarecimento do quadro e perfil mental do arguido com vista à extração das necessárias consequências em termos da sua postura, deliberada ou não, de “desinteresse” e de “falta de colaboração” com a DGRSP e com o Tribunal no âmbito do que lhe é ou pode ser exigível em termos de suspensão de execução da respetiva pena.

Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, fundamentado, no sentido que o recurso deve ser julgado procedente.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), o arguido veio manifestar concordância com aquele parecer.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP (Simas Santos/Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, pág. 48, e Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, págs. 320 e seg.).

Assim, reside em analisar se o tribunal recorrido não deveria ter revogado a suspensão da execução da prisão.

Apreciando:

Os autos reflectem, como resulta do vertido na resposta do Ministério Público (MP), que:

Posteriormente à condenação dos autos o arguido foi condenado em sede do Processo nº ---/17.1PBSTR, por sentença transitada em julgado, em 22.11.17, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3º do DL nº 2/98, de 03.01, por reporte a factos praticados em 03.09.17, tendo-lhe sido aplicada a pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €.

Da matéria de facto dada como provada, referente às condições económicas e sociais do arguido NN, fixada no acórdão condenatório proferido nos autos consta que:

- o mesmo foi alvo de uma medida de acolhimento num Lar de Infância e Juventude sito em Fátima, mas revelou comportamento de fuga;

- não dispunha de quaisquer bens ou rendimentos e

- não era conhecido o, então, seu paradeiro, o qual se furtou às tentativas de contacto pela DGRSP com vista a apurar com rigor a sua situação económica e social.

Foram emitidos Mandados de Detenção sobre a pessoa do recorrente, os quais não se logrou cumprir por desconhecimento do respetivo paradeiro, tendo o julgamento realizado no âmbito dos autos decorrido na sua ausência, uma vez que o mesmo foi notificado para a morada constante do respetivo TIR, conforme decorre de fls. 1199 dos autos.

O acórdão condenatório proferido nos autos, em 15.12.16, foi notificado ao arguido recorrente em 02.10.17, tal como consta a fls. 1785 dos autos (certidão de notificação realizada neste Juízo), tendo o acórdão transitado em 02.11.17, em relação ao mesmo.

A fls. 1803 a DGRSP informou que o arguido não compareceu às entrevistas de 30.01 e de 01.02 de 2018, tendo as convocatórias sido enviadas por via postal, não tendo sido possível elaborar o Plano de Reinserção Social pretendido.

Foi determinada a tomada de declarações ao arguido, com convocatória para a nova morada por si indicada aquando da respetiva notificação do acórdão condenatório proferido nos autos, tendo, porém, o mesmo faltado à primeira marcação e apenas comparecido, na segunda data agendada para o efeito, mas com Mandados de Detenção.

E além do mais, decorre da decisão recorrida que:
Tomaram-se declarações ao arguido que compareceu coercivamente em Tribunal e não manifestou qualquer investimento num projecto de vida normativo… não tomou consciência de que tinha que aproveitar o período de suspensão da execução da mesma para transformar a sua vida, iniciando, com êxito um processo de reintegração social, procurando ajuda para colmatar os seus problemas aditivos e para controlar a sua impulsividade de molde a que o seu comportamento desviante não se renovasse, nem interferisse com a sua inserção no contexto sócio-profissional.

Aliás, o arguido não desenvolveu, nem apresentou quaisquer projectos de inserção social, para além de reiteradamente se furtar à intervenção dos técnicos de reinserção social que acompanham a execução da pena.

Ora, os factores enunciados e o absoluto desinteresse do arguido pelo mencionado processo de ressocialização lograram, fortemente (não o podemos deixar de expressar), criar a convicção no Tribunal de que estaremos perante um verdadeiro caso de insucesso das finalidades de punição.

A decisão enveredou, então, no essencial, pela revogação da suspensão da execução da prisão, ao abrigo do disposto no art. 56.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal (CP) ou seja, o aqui recorrente, no decurso do período da suspensão, ter infringido grosseiramente os deveres e regras de conduta impostos, porque, como dela consta, “não logrou justificar as razões do desacatamento, revelando, ademais, mediante o seu discurso anódino, enorme falta de juízo de auto censura, concluindo que o prognóstico que foi feito quanto ao seu percurso existencial se encontra, no momento, marcado por um fortíssimo insucesso e que o arguido, após a condenação sofrida nestes autos, não revelou o mínimo interesse pelo ajustamento do seu comportamento ao dever ser e ao respeito pelos bens jurídicos relevantes”.

Deste modo, explicitou os motivos da revogação, sobretudo à luz dos critérios definidos naquele preceito legal, sendo que, relativamente à prática de crime durante o período da suspensão (alínea b) do n.º 1 daquele rt. 56.º), não lhe atribuiu especial relevo, referindo que “estava em causa crime de natureza diversa pelo qual foi aplicada ao mesmo uma pena não privativa da liberdade”.

Vejamos.

A suspensão da execução da pena de prisão é, no actual regime penal, uma verdadeira pena, de carácter autónomo e não institucional, traduzindo medida de índole reeducativa e pedagógica, por um lado, fundada num juízo de prognose positiva quanto ao comportamento futuro do agente e, por outro, para evitar os danos associados ao cumprimento de uma pena de prisão, desde que fiquem devidamente salvaguardadas as finalidades da punição.

Estas têm, como núcleo de incidência, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, conforme art. 40.º, n.º 1, do CP.

Segundo Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, em Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, AAFDL, 1998, págs. 25/51, e in “Casos e Materiais de Direito Penal”, Almedina, 2000, Almedina, págs. 32/33, «a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral».

O recorrente, sem pôr em causa o aparente desinteresse demonstrado, em razão das suas faltas que inviabilizaram a elaboração do plano de reinserção social, insurge-se, porém, contra a circunstância de que o cumprimento da prisão seja finalidade adequada da punição, não só pelos efeitos negativos da privação da liberdade, como também pela existência de apenas mais um único antecedente criminal, actualmente com 18 anos de idade e apresentando “défice cognitivo ou intelectual, diagnosticado pela pedopsiquiatria do Hospital de Santarém e alterações de comportamento associado com desvios graves de conduta”, conforme o Hospital Distrital de Santarém, ou a médica Dra. SQ poderão atestar.

Mais refere que o Defensor Oficioso só tomou conhecimento desta situação a posteriori com a intervenção da irmã do Arguido, uma vez que o mesmo aparentava, no discurso, efectivamente uma atitude displicente e pouco interessada e o Arguido, desde o julgamento, não voltou a contactar o Defensor Oficioso.

Neste sentido, acaba por apelar a elementos que, pelo menos expressamente, não teriam sido conhecidos na decisão recorrida, suscitando, assim, a questão colocada, e bem, pela Digna Procuradora Geral Adjunta de que, como refere no seu parecer, É jurisprudência uniforme dos nossos Tribunais Superiores que os recursos visam modificar decisões, e não criar decisões sobre matéria nova, citando dois arestos do STJ de 13-12-2007, no Procº nº 07P4283, e de 04-12-2008, no Procº nº 08P2507, acessíveis in www.dgsi.pt, resultando deste último que I - Os recursos ordinários visam o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu. II - Sendo os recursos meios de impugnação e de correcção de decisões judiciais, e não meio de obter decisões novas, não pode o tribunal de recurso ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas ao tribunal recorrido.

Não obstante, estando-se em presença de decisão que, em consequência da revogação da suspensão da execução da prisão, determinou o cumprimento dessa prisão e, como tal, com a intrínseca importância de atentar contra a liberdade do ora recorrente, a qual, a confirmar-se nesta Relação, redundaria como insusceptível de ulterior apreciação, a problemática desse não conhecimento de questões, no contexto em que a mesma se debruçou, não deve prevalecer, sob pena de intolerável excesso.

Tanto mais que a decisão sob censura, pelo menos indirectamente, não afasta que o recorrente não tivesse tido adequada percepção acerca de que tinha que aproveitar devidamente a concedida suspensão da execução e, apesar das suas faltas às entrevistas na DGRSP, bem como ainda do seu discurso quando ouvido, não se descura que fora julgado na ausência, tratando-se, no caso, do seu primeiro contacto com o sistema judicial e, admite-se, como refere, porque lamentavelmente não é anormal, sem posterior contacto com o seu defensor.

Ao ponto, pois, como sublinha o MP, de que os novos elementos trazidos pelo recorrente, quanto ao seu quadro mental e à sua medicação, podem ser suscetíveis de bulir com a capacidade de tomada de consciência que era exigível ao arguido e era expectável pelo Tribunal em termos da colaboração daquele (e mesmo para ele, por si próprio, apresentar projetos de inserção social) com a DGRSP para efeitos de modificar a sua vida, para padrões normativos e de reintegração, em sede de Plano de Reinserção Social, ante todas as considerações que estiveram subjacentes à não aplicação ao mesmo de uma pena efetiva. Ou seja, aquilo que nos autos até agora poderia corresponder a uma fuga intencional por parte do arguido para se eximir à ação da Justiça poderá ter outro enquadramento ao nível da capacidade de entendimento e de funcionamento daquele que radique no seu concreto quadro mental.

Ora, como sustentam Leal-Henriques/Simas Santos, in “Código Penal Anotado”, 3.ª edição, 1.º volume, pág. 711, as causas da revogação da suspensão da execução da prisão devem ser entendidas como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período da suspensão. O arguido deve ter demonstrado com o seu comportamento que não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão da suspensão.

E é certo que a violação grosseira dos deveres ou regras de conduta impostos, de que se fala na alínea a) do nº 1 do artº 56º do CP, há-de constituir uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada e Só a inconciliabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena é que deve conduzir à respectiva revogação (acórdão da Relação de Lisboa de 19.02.1997, in CJ ano XXII, tomo I, pág. 166).

O critério material para decidir sobre a revogação da suspensão é exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma ou estão irremediavelmente prejudicadas em virtude de comportamento posterior do condenado (Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, pág. 202).

Assim, a revogação da suspensão só deve ter lugar como ultima ratio, irremediável consequência, no que aqui releva, sobretudo, da infracção grosseira ou repetida de deveres ou regras de condutas, cuja avaliação já não permita qualquer juízo de prognose favorável e comprometa decisivamente as finalidades que estiveram na base dessa suspensão.

Necessário é, pois, que essa infracção seja atribuída à vontade própria do condenado e que se conclua que outras medidas, senão a revogação, já não são viáveis.

Ponderadas, em concreto, as exigências de prevenção e as finalidades da punição, afigura-se que será de todo conveniente esclarecer as condições que nortearam a conduta omissiva do recorrente, para aquilatar, com a devida segurança, da bondade da revogação, não obstante, saliente-se, a decisão se apresente tendencialmente consentânea com os elementos que avaliou, mas, ainda assim, aconselhando eventual actualização com os contributos pertinentes que, ao nível do seu referido quadro/perfil mental, bem como das restantes condições pessoais, se tornem relevantes.

Para o efeito, o tribunal procederá às diligências que interessem, designadamente, a obtenção e avaliação dos elementos a que o recorrente se refere (junto do Hospital Distrital de Santarém), sem prejuízo da devida colaboração deste e da intervenção dos técnicos da DGRSP, no sentido de se patentearem, de modo inequívoco, os fundamentos que vierem a presidir a que a suspensão se deva, ou não, manter.

Crê-se, atenta a ausência de cabal conhecimento das razões por que o recorrente se conduziu, o que transparece da decisão recorrida, que a solução é que a melhor salvaguarda a justiça no caso concreto, dentro da filosofia que subjaz às finalidades da punição.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência,

- revogar a decisão recorrida, determinando que se proceda às diligências nos termos sobreditos, no sentido de se patentearem, de modo inequívoco, os fundamentos que vierem a presidir a que a suspensão se deva, ou não, manter.

Sem custas (art. 513.º, n.º 1, do CPP, a contrario sensu).

Processado e revisto pelo relator.

Évora, 5 de Fevereiro de 2019

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(Carlos Jorge Berguete)

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(João Gomes de Sousa)