Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
357/18.7T8STB.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: UNIDADE MÍNIMA DE CULTURA
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 12/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A proibição do fracionamento da propriedade rústica em área inferior à unidade de cultura não obsta à aquisição da mesma por usucapião, porque a proteção da propriedade privada prevalece sobre o interesse público à proibição de desemparcelamento.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc.º 357/18.7T8STB.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


Recorrente:
MINISTÉRIO PÚBLICO

Recorridos:
(…), (…), (…), (…), (…)

*
No Tribunal da Comarca de Setúbal, Juízo Local Cível - Juiz 1 o A., ora recorrente, propôs ação de processo comum contra os RR., ora recorridos, pedindo que seja declarada a anulabilidade das três escrituras de justificação que tiveram lugar no dia (…), no Cartório Notarial de Sandra Morais Teles Bolhão, exaradas de fls. 27 a 31 verso, 32 a 35 verso e 36 a 40 do Livro de escrituras diversas n.º (…), em que figuram como outorgantes os Réus supra identificados.
Para tanto, alega que os Réus individualmente outorgaram três escrituras de justificação notarial, em que:
- O R. (…), com o consentimento da R. (…) declarou ser dono e legítimo possuidor do prédio rústico com a área total de 14.028 m2 (catorze mil e vinte e oito metros quadrados), composto por vinha e árvores de fruto, terras de semeadura, sito em (…), freguesia e concelho de Palmela, a confrontar a Norte com (…), a Poente com (…), a Sul com (…) e a Nascente com Estrada Principal de (…);
- O R. (…) declarou ser dono e legítimo possuidor de um prédio rústico, com a área total de 9.322,00 m2 (nove mil trezentos e vinte e dois metros quadrados), composto por cultura arvense, sito em (…), freguesia e concelho de Palmela, a confrontar a Norte com (…), a Poente com (…), a Sul com (…) e a Nascente com Estrada Principal de (…);
- O R. (…) e a R. (…), sua mulher, declararam ser donos e legítimos possuidores do prédio rústico com a área total de 6.610,00 m2 (seis mil seiscentos e dez metros quadrados), composto por vinha e árvores de fruto, sito em (…), freguesia e concelho de Palmela, a confrontar a Norte com (…), a Poente com (…), a Sul com (…) e a Nascente com Estrada Principal de (…).
Na data da escritura, todos os RR. desanexaram as respectiva parcelas de terrenos do prédio rústico com a área total de 29.900 m2 (vinte e nove mil e novecentos metros quadrados), composto por vinha e árvores de fruto, a confrontar a Norte e Poente com (…), a Sul com (…) e a Nascente com Estrada, sito em (…), freguesia e concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o nº (…), da freguesia de Palmela, a desanexar do artigo (…), da secção o da matriz predial rústica da freguesia de Palmela, sendo classificado como cultura em regime de sequeiro, e não na data que indicam na escritura, sendo tal fracionamento proibido pelo art. 1376.º, n.º 1, do CC e Portaria n.º 202/70, de 21.04, pelo que são negócios anuláveis.
Mais alegou que os RR. já eram comproprietários do primitivo prédio.
*
Em sede de contestação, os RR. alegaram que os factos declarados na escritura em questão são verdadeiros, pois trataram de justificar a posse daqueles terrenos que já estão na sua posse desde 1968, através dos seus familiares, data em foi efetuada a doação verbal das três parcelas de terreno, que foi dividido por três filhos, e dividiram fisicamente o terreno em três, o que fazem de boa fé.
Conclui que deve a ação ser julgada improcedente, mantendo-se os prédios como distintos e autónomos, conforme resulta da escritura.
*
Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que, julgando a ação improcedente por não provada, decidiu absolver os Réus do pedido.
*

Não se conformando com o decidido, o A. recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da análise de questões de apreciação oficiosa:

A – O Ministério Público veio pedir a juízo a anulabilidade dos atos declarativos titulados nas escrituras outorgadas pelos Réus, individual e separadamente, no dia (…), no Cartório Notarial de Sandra Morais Teles Bolhão, em que justificaram a posse dos prédios rústicos sitos em (…), freguesia e concelho de Palmela, com as áreas de 14.028 m2, 9.322,00 m2 e 6.610,00 m2, compostos por vinha e árvores de fruto, terras de semeadura; cultura arvense; vinha e árvores de fruto, respetivamente, todos a desanexar do prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), Secção (…), com a área total de 28.500 m2.

B - O julgador concluiu pela validade das escrituras de justificação notariais, entendendo que os fracionamentos não ocorreram com a celebração das escrituras, mas no momento do início da posse, data em que inexistia portaria a fixar a unidade mínima de cultura para o distrito de Setúbal, pese embora vigorasse a Lei nº 2116, de 14.08.1962, que mandava fixar a unidade mínima de cultura.

C - Na hipótese de aplicação da Portaria 202/70, o tribunal recorrido concluiu pela prevalência da usucapião sobre as regras relativas ao fracionamento dos prédios rústicos aptos para a cultura.

D - O Autor discorda de tais posições, porquanto, e desde logo, os fracionamentos ocorreram com as escrituras notariais de justificação, e não antes, pelo que é aplicável o regime da Portaria nº 202/70, de 21 de Abril.

E - A matéria descrita nos Factos não provados é irrelevante, porque conclusiva ou de direito.

F - É no momento em que é outorgada a escritura de justificação que a usucapião se torna conhecida e, por isso, só a partir dessa data é que eventuais prejudicados com o ato de fracionamento violador das regras existentes, e o próprio Estado, podem reagir do mesmo, por terem, a partir de então, acesso a um documento que titula a ilegalidade.

G – Não se divisa a que outro ato, para além do ato da escritura, se refere o artº. 1379º, nº 3, do Código Civil.

H - Antes da escritura não temos um ato celebrado, mas uma divisão material.

I - O prédio (…), Secção (…), da freguesia de Palmela, tem, na matriz, a área de 28.500 m2 e é composto, na sua parcela rústica, por vinha de primeira classe, com a área de 2.7000 ha, com 5 oliveiras de quinta classe, 1 pessegueiro de classe única, 10 figueiras de segunda classe, 4 laranjeiras de segunda classe e 48 macieiras de classe única.

J – A cultura ali desenvolvida era de vinha praticada em regime de sequeiro, pelo que o prédio primitivo é, em termos cadastrais, classificado como sendo de culturas em regime de sequeiro.

L – Os prédios justificados têm igual classificação.

M – As áreas dos prédios destacados são inferiores à área de cultura mínima, conforme o artº. 1376º, nº 1, do Código Civil e Portaria nº 202/70, de 21 de Abril, que é para este tipo de terrenos de 7,5 ha.

N – A prolatada sentença reconheceu que o fracionamento / destacamento é proibida nos termos do citado artigo. No entanto, remetendo para a jurisprudência, concluiu pela prevalência da usucapião sobre as regras atinentes ao fracionamento de prédios aptos para a cultura.

O – Não acompanhamos tal entendimento, desde logo, porque a proibição da divisão de terrenos aptos para a cultura em unidades cuja área seja inferior à unidade de cultura mínima, imposta pelo artº. 1376º do Código Civil, assenta em interesses de natureza pública, na defesa do aproveitamento e viabilidade económica das explorações agrícolas, que afetam toda uma comunidade.

P - No confronto entre interesses, seja a estabilidade e certeza nas relações jurídicas, que subjaz à usucapião, seja o interesse no aproveitamento e viabilidade das explorações agrícolas, deve prevalecer este último, por ser de grau superior, conforme resulta do disposto no artº. 335º, nº 2, do Código Civil, pois envolve e afeta toda a comunidade nacional e não apenas os próprios interessados.

Q – O novo regime, resultante da nova redação do artº. 1379º do Código Civil, cominando com a nulidade os atos de fracionamento que não respeitem a unidade mínima de cultura, reflete a visão do legislador no sentido de reforçar a imperatividade da referida norma, na defesa do interesse público.

R – Proibindo a lei um resultado, necessariamente serão proibidos os meios para o atingir.

S - Não faz sentido cominar com a invalidade os atos de fracionamento, mas permitir o seu fracionamento físico, material e jurídico em consequência da sua aquisição por usucapião, pois que, dessa forma, estaria encontrada a forma de contornar, e até afastar, a proibição legal, funcionando como válvula de escape para adquirir um direito que, de outro modo, seria insuscetível de aquisição.

T – O artº. 1287º do Código Civil consagra exceções ao instituto da usucapião ao prever expressamente “(…) salvo disposição em contrário”, ali se incluindo as normas jurídicas referentes ao ordenamento e aproveitamento dos terrenos agrícolas, proibindo o fracionamento de terrenos que não respeitem a unidade mínima de cultura.

U - Significa que a usucapião apenas pode ocorrer caso não exista disposição legal que a ela obste.

V – Os atos de posse baseados num facto proibido pelo Direito não podem permitir uma aquisição por usucapião.

X – Este instituto jurídico não prevalece sobre as normas que proíbem o fracionamento de prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima.

Z – Acresce que, e no caso vertente, estava ao alcance dos Réus, enquanto comproprietários do prédio primitivo, na defesa da estabilidade da sua situação jurídica, a ação de divisão de coisa comum ou a escritura de divisão de prédio rústico, desde que respeitada a unidade de cultura mínima, não podendo as escrituras de justificação funcionar como válvula de escape à proibição legal.

AA – A sentença recorrida violou o disposto nos artºs. 294º, 335º, nº 2, 1287º, 1376º, 1379º do Código Civil e Portaria nº 202/70, de 21 de Abril.

Ponderando o exposto, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, declarando-se a anulabilidade dos atos jurídicos titulados pelas escrituras de justificação, comunicando-se o facto ao Cartório Notarial respetivo, nos termos do disposto no artº. 131º, nº 1, alínea d) e 202º, alínea c), do Código do Notariado, ao Registo Predial de Palmela e ao Serviço de Finanças de Palmela.


*

Os recorridos não contra-alegaram.

*

Foram colhidos os vistos por via eletrónica.

*
A questão a decidir é a de saber se os RR. adquiriram as parcelas em causa nos autos por usucapião e, em caso afirmativo, se esta aquisição deve ceder perante a proibição legal de desemparcelamento.

***
Matéria de Facto Provada:

1. O Réu (…) outorgou escritura de justificação no Cartório Notarial de Sandra Bolhão, em Setúbal, exarada de fls. 27 a 31 do Livro de escrituras diversas n.º (…), no dia (…).
2. A R. (…), enquanto terceira outorgante desta escritura, casada com o R. (…), desde meados de 1995, no regime de comunhão de adquiridos, deu o seu consentimento para a validade do ato.
3. Na escritura id. em 1., o Réu (…) declarou que:
3.1. Com exclusão de outrem, é dono e legítimo possuidor, de um prédio rústico, com a área total de catorze mil e vinte e oito metros quadrados, composto por vinha e árvores de fruto, terras de semeadura, sito em (…), freguesia e concelho de Palmela, a confrontar a Norte com (…), a Poente com (…), a Sul com (…) e a Nascente com Estrada Principal de (…), ao qual atribuem o valor de € 200,00, a destacar do prédio rústico com a área de vinte e nove mil e novecentos metros quadrados, composto por vinhas e árvores de fruto, a confrontar a Norte e Poente com (…), a Sul com (…) e a Nascente com Estrada, sito em (…), freguesia e concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número (…), da freguesia de Palmela, a desanexar do artigo (…), da secção (…) da matriz predial rústica da freguesia de Palmela, com o valor total de € 991,30.
3.2. Que o prédio ora justificado faz parte do acima descrito na citada Conservatória do Registo Predial, tendo pertencido a (…) e sua mulher (…) (presentemente falecidos). Que desse casamento tiveram quatro filhos, (…), (…), (…) e (…) (presentemente falecida).
3.3. Que, no decurso do ano de mil novecentos e sessenta e oito, os referidos (…) e (…) dividiram o mencionado prédio rústico em três outros autónomos e distintos, sendo um deles o ora justificado. Nesse mesmo ano doaram verbalmente a três dos seus quatro filhos, os mencionados prédios, tendo doado à sua filha (…), à data casada no regime de comunhão geral de bens com (…), o prédio ora justificado, tendo entrado de imediato na posse do mesmo.
3.4. Que, por volta do ano de mil, novecentos e setenta e cinco, os referidos (…) e (…) divorciaram-se, tendo acordado doar ao único filho de ambos o prédio que lhes havia sido doado, assim que o mesmo atingisse a maioridade. Assim, no ano de mil, novecentos e oitenta e três, já ambos no estado de divorciados, doaram verbalmente ao único filho de ambos, o ora justificante, ainda no estado de solteiro, maior, o prédio acima identificado e ora usucapido, tendo este imediatamente entrado na posse do mesmo.
3.5. Que o justificante veio a casar em meados do ano de mil, novecentos e noventa e cinco, no regime de comunhão de adquiridos com a terceira outorgante. 3.6. Porém, numa tentativa de formalizarem a aquisição que cada filho do primitivo falecido casal foi beneficiário, outorgaram a treze de Novembro de dois mil e um, Escritura de Partilha, por óbito dos acima identificados falecidos, lavrada a folhas (…) e seguintes do Livro de Notas para Escrituras Diversas número (…), do extinto Cartório Notarial da Baixa da Banheira, tendo adjudicado o mencionado imóvel na proporção dos referidos beneficiários, de modo a refletir o direito que cada um já tinha, individual, independente e distintamente sobre os prédios doados.
3.7. E, também na tentativa de formalizar a doação ao único filho, entretanto ocorrida, foi outorgada Escritura de Doação, onde o justificante foi o beneficiário, que se encontra registada pela apresentação (…) de vinte de Março de dois mil e dois, tendo sido, erroneamente, objeto da mesma o direito na proporção sobre a globalidade do prédio.
3.8. Porém, ambas as Escrituras nunca refletiram a realidade física do prédio e a aquisição operada por via da posse entretanto exercida.
3.9. Que a partir da data mencionada, e portanto, há mais de vinte anos que (…), tem possuído o supra identificado prédio em nome próprio, sem interrupção desde o seu início, respeitando as suas extremas e divisórias, com total exclusividade e independência, sempre praticando sobre o mesmo todos os atos de posse de que este era suscetível, tudo na convicção de exercer um direito próprio, sem qualquer interrupção, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, sendo por isso um posse pública, pacífica, contínua e de boa-fé, não logrando deter qualquer título que justifique a transmissão sequencial ocorrida, por não titulada e não conduzida a registo.
3.10. Que atendendo a que a duração da sua posse, há mais de vinte anos, se tem mantido continuadamente e de forma ininterrupta, já adquiriram os referidos prédios, por usucapião, invocando, por isso, esta forma originária de aquisição, para todos os efeitos legais.
4. O Réu (…) outorgou escritura de justificação no Cartório Notarial de Sandra Bolhão, em Setúbal, exarada de fls. 32 a 35 verso do Livro de escrituras diversas n.º (…), no dia (…).
5. Na escritura id. em 4., o Réu (…) declarou que:
5.1. Com exclusão de outrem, é dono e legítimo possuidor, de um prédio rústico, com a área total de nove mil trezentos e vinte e dois metros quadrados, composto por cultura arvense, sito em (…), freguesia e concelho de Palmela, a confrontar a Norte com (…), a poente com (…), a Sul com (…) e a Nascente com Estrada Principal de (…), ao qual atribuem o valor de € 150,00, a destacar do prédio rústico com a área de vinte e nove mil e novecentos metros quadrados, composto por vinhas e árvores de fruto, a confrontar a Norte e Poente com (…), a sul com (…) e a Nascente com Estrada, sito em (…), freguesia e concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número (…), da freguesia de Palmela, a desanexar do artigo (…), da secção (…) da matriz predial rústica da freguesia de Palmela, com o valor total de € 991,30.
5.2. Que o prédio ora justificado faz parte do acima descrito na citada Conservatória do Registo Predial, tendo pertencido a (…) e sua mulher (…) (presentemente falecidos). Que desse casamento tiveram quatro filhos, (…), (…), (…) e (…) (presentemente falecida).
5.3. Que, no decurso do ano de mil novecentos e sessenta e oito, os referidos (…) e (…) dividiram o mencionado prédio rústico em três outros autónomos e distintos, sendo um deles o ora justificado. Nesse mesmo ano doaram verbalmente a três dos seus quatro filhos, os mencionados prédios, tendo doado a seu filho (…) e mulher (…), à data já casados no regime de comunhão geral de bens, o prédio ora justificado, tendo entrado de imediato na posse do mesmo.
5.4. Que, com o nascimento do seu primeiro neto, o ora justificante, no ano de mil, novecentos e oitenta e nove, foi o mesmo beneficiário de uma doação verbal pelos seus avós, os referidos (…) e mulher (…). Com a referida doação os pais do justificante entraram imediatamente na posse do mesmo, tendo a posse do menor sido exercida através dos seus representantes legais, até este atingir a maioridade, no ano de dois mil e sete.
5.5. Que o referido (…) veio a falecer a vinte e cinco de Outubro de dois mil e dez sem nunca ter retificado os títulos erroneamente formalizados.
5.6. Porém, numa tentativa de formalizarem a aquisição que cada filho foi beneficiário, outorgaram a treze de Novembro de dois mil e um, Escritura de Partilha, por óbito dos acima identificados falecidos, lavrada a folhas (…) e seguintes do Livro de Notas para Escrituras Diversas número (…), do extinto Cartório Notarial da Baixa da Banheira, tendo adjudicado o mencionado imóvel na proporção dos referidos beneficiários, de modo a refletir o direito que cada um já tinha, individual, independente e distintamente sobre os prédios doados.
5.7. Porém, a referida Escritura nunca refletiu a realidade física do prédio e a aquisição operada por via da posse entretanto exercida.
5.8. Que a partir da data mencionada, e portanto, há mais de vinte anos que (…), tem possuído o supra identificado prédio em nome próprio, sem interrupção desde o seu início, respeitando as suas extremas e divisórias, com total exclusividade e independência, sempre praticando sobre o mesmo todos os atos de posse de que este era suscetível, tudo na convicção de exercer um direito próprio, sem qualquer interrupção, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, sendo por isso um posse pública, pacífica, contínua e de boa-fé, não logrando deter qualquer título que justifique a transmissão sequencial ocorrida, por não titulada e não conduzida a registo.
5.9. Que atendendo a que a duração da sua posse, há mais de vinte anos, se tem mantido continuadamente e de forma ininterrupta, já adquiriram os referidos prédios, por usucapião, invocando, por isso, esta forma originária de aquisição, para todos os efeitos legais.
6. Os Réus (…) e (…), casados sob o regime de comunhão geral de bens, outorgaram escritura de justificação no Cartório Notarial de Sandra Bolhão, em Setúbal, exarada de fls. 36 a 40 do Livro de escrituras diversas n.º (…), no dia (…).
7. Na escritura id. em 6., os Réus (…) e (…) declararam que:
7.1. Com exclusão de outrem, são donos e legítimos possuidores, de um prédio rústico, com a área total de seis mil e seiscentos e dez metros quadrados, composto por vinha e árvores de fruto, sito em (…), freguesia e concelho de Palmela, a confrontar a Norte com (…), a Poente com (…), a Sul com (…) e a Nascente com Estrada Principal de (…), ao qual atribuem o valor de € 100,00, a destacar do prédio rústico com a área de vinte e nove mil e novecentos metros quadrados, composto por vinhas e árvores de fruto, a confrontar a Norte e Poente com (…), a Sul com (…) e a Nascente com Estrada, sito em (…), freguesia e concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número (…), da freguesia de Palmela, a desanexar do artigo (…), da secção (…) da matriz predial rústica da freguesia de Palmela, com o valor total de € 991,30.
7.2. Que o prédio ora justificado faz parte do acima descrito na citada Conservatória do Registo Predial, tendo pertencido a (…) e sua mulher (…) (presentemente falecidos). Que desse casamento tiveram quatro filhos, (…), (…), (…) e (…) (presentemente falecida).
7.3. Que, no decurso do ano de mil novecentos e sessenta e oito, os referidos (…) e (…) dividiram o mencionado prédio rústico em três outros autónomos e distintos, sendo um deles o ora justificado. Nesse mesmo ano doaram verbalmente a três dos seus quatro filhos, os mencionados prédios, tendo doado à sua filha (…) (presentemente falecida), à data solteira, maior, posteriormente casada no regime da comunhão geral de bens com (…), o prédio ora justificado, tendo entrado de imediato na posse do mesmo.
7.4. Que o referido (…) viria a falecer a trinta e um de Março de mil, novecentos e oitenta, a referida (…) viria a falecer a treze de Março de mil, novecentos e noventa e um e a filha de ambos, (…) viria a falecer a três de Janeiro de mil, novecentos e noventa e seis.
7.5. Que, antes do falecimento da mencionada (…), mais concretamente no decurso do ano de mil novecentos e noventa e dois, esta e o seu marido (…) doaram verbalmente ao filho de ambos e sua mulher, os ora justificantes, o prédio acima identificado e ora usucapido.
7.6. Porém, numa tentativa de formalizarem a aquisição que cada filho do primitivo falecido casal foi beneficiário, outorgaram a treze de Novembro de dois mil e um, Escritura de Partilha, por óbito dos acima identificados falecidos, lavrada a folhas (…) e seguintes do Livro de Notas para Escrituras Diversas número (…), do extinto Cartório Notarial da Baixa da Banheira, tendo adjudicado o mencionado imóvel na proporção dos referidos beneficiários, de modo a refletir o direito que cada um já tinha, individual, independente e distintamente sobre os prédios doados.
7.7. E, atendendo a que, essa mesma proporção, adjudicada em partilha não era proporcional à área dos prédios sobre os quais os filhos beneficiários exerciam posse, ainda foi a quinze de Fevereiro de dois mil e dois, outorgada naquele mesmo Cartório Notarial da Baixa da Banheira, Escritura de Doação, onde um dos partilhantes (…) e mulher (…) doaram aos justificantes o direito a três barra duzentos e noventa e nove avos indivisos, de modo a retificarem a área do prédio de que os justificantes eram titulares e ora justificam.
7.8. Daí se encontrar registada no prédio “mãe” a aquisição a favor dos justificantes, na proporção de sessenta e três barra duzentos e noventa e nove avos indivisos, por adjudicação em partilha pela apresentação quarenta de dezanove de Dezembro de dois mil e um, e a aquisição de três barra duzentos e noventa e nove avos indivisos a favor dos ora justificantes pela apresentação cinco de vinte de Março de dois mil, por doação. Porém, ambas as Escrituras nunca refletiram a realidade física do prédio e a aquisição operada por via da posse entretanto exercida.
7.9. Que a partir da data mencionada, e portanto, há mais de vinte anos que (…) e (…), tem possuído o supra identificado prédio em nome próprio, sem interrupção desde o seu início, respeitando as suas extremas e divisórias, com total exclusividade e independência, sempre praticando sobre o mesmo todos os atos de posse de que este era suscetível, tudo na convicção de exercer um direito próprio, sem qualquer interrupção, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, sendo por isso um posse pública, pacífica, contínua e de boa fé, não logrando deter qualquer título que justifique a transmissão sequencial ocorrida, por não titulada e não conduzida a registo.
7.10. Que atendendo a que a duração da sua posse, há mais de vinte anos, se tem mantido continuadamente e de forma ininterrupta, já adquiriram os referidos prédios, por usucapião, invocando, por isso, esta forma originária de aquisição, para todos os efeitos legais.
8. Nas escrituras id. em 1., 5. e 7. (…), (…) e (…) declararam que por serem verdadeiras, confirmam as declarações que antecedem.
9. As áreas dos prédios destacados são de 14.028 m2, 9322 m2 e 6610 m2.
10. Está indicado na matriz que o prédio mãe tem a área de 28.500 m2.
11. O primitivo prédio n.º (…) da secção (…), ao tempo das escrituras de justificação era constituído por duas parcelas:
a) Urbana com a área de 0.1500 ha;
b) Vinha de primeira classe, com a área de 2.7000 ha, com 5 oliveiras de quinta classe, 1 pessegueiro de classe única, 10 figueiras de segunda classe, 4 laranjeiras de segunda classe, e 48 macieiras de classe única.
12. Nesta última parcela, a cultura desenvolvida era de vinha praticada em regime de sequeiro.
13. Os Réus registaram na Conservatória do Registo Predial de Palmela, cujos prédios resultantes foram inscritos respetivamente sob os n°s …/20150827, …/20150827 e …/20150827, todos da freguesia de Palmela.
14. Os Réus apresentaram em conjunto, em 24.08.2015, no Serviço de Finanças de Palmela, a instauração de processo de cadastro para constituição de prédio rústico distinto, dando origem ao processo de cadastro n.º 160/2015.
15. Este processo teve parecer desfavorável da Direcção-Geral do Território.
16. As declarações reproduzidas em 3.1, 3.2, 3.3, 3.4, 3.5, 3.6, 3.7, 3.8, 3.9 e 3.9, correspondem à realidade.
17. As declarações reproduzidas em 5.1, 5.2, 5.3, 5.4, 5.5, 5.6, 5.7, 5.8 e 5.9, correspondem à realidade.
18. As declarações reproduzidas em 7.1, 7.2, 7.3, 7.4, 7.5, 7.6, 7.7, 7.8, 7.9 e 7.10, correspondem à realidade.
*
B – Factos não provados
Com interesse para a causa, não se provou:
1) Que os RR. tenham procedido à desanexação do prédio na data da escritura.
***
O Direito

Relembrando que a questão a decidir é a de saber se os RR. adquiriram as parcelas em causa nos autos por usucapião e, em caso afirmativo, se esta aquisição deve ceder perante a proibição legal de desemparcelamento, importa fazer um excurso acerca do instituto da usucapião e da proibição de desemparcelamento em parcela inferior à unidade de cultura.

A usucapião.

A usucapião é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo (1278º e 1316º do C. C.), que surge ex novo na esfera jurídica do seu titular, sendo irrelevantes, por isso, quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, o que vale por dizer que serve para legalizar situações de facto ilegais, mantidas durante longos períodos de tempo, inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa.

A usucapião tem como fundamento a posse, definindo-se esta no artº 1251º do C.C., como o poder de facto – corpus – que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – animus – mantido, de forma pacífica, pública e ininterrupta, (arts. 1261º e 1262º, do C. C.), durante um certo período de tempo, que varia em função da natureza do bem – móvel ou imóvel – sobre que incide e também de acordo com os caracteres da mesma posse titulada ou não titulada e de boa-fé ou de má-fé – artºs 1259º, 1260º e 1294º, do mesmo diploma.

Os efeitos da usucapião retroagem à data do início da posse (art. 1288º do C. C.), tendo-se o direito de propriedade por adquirido no momento em que se iniciou a posse (art. 1317º, al. c), do C. C.).

A jurisprudência é unânime quanto a esta questão, citando-se a título de exemplo o Ac STJ de 06-04-2017, Revista n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1 - 7.ª Secção:

I - A usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo (arts. 1287.º e 1316.º do CC) que depende apenas da verificação de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem (móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse. Quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art. 1288.º do CC), adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse (art. 1317.º, al. c), do CC).

II - A usucapião serve, além do mais, para “legalizar” situações de facto “ilegais”, mantidas durante longos períodos de tempo, inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa.

III - A eventual nulidade decorrente de ilegal fraccionamento de um prédio não constitui, por si só, fundamento para recusar a usucapião, porquanto nenhum dos diversos e sucessivos diplomas legais sobre a matéria do loteamento urbano, veio impedir a possibilidade de invocação da usucapião sobre os lotes de terreno resultantes do loteamento ilegal.

IV - Os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são, em regra, nulos (art. 294.º do CC), podendo a nulidade ser, em princípio, invocada a todo o tempo por qualquer interessado e até ser declarada oficiosamente pelo tribunal (art. 286.º do CC); porém, a não fixação de um prazo para a sua arguição não afecta os direitos que hajam sido adquiridos por usucapião.

V - Entender que a posse, baseada em acto ou facto proibido por normas imperativas do loteamento urbano (ou do destaque), é insusceptível de conduzir à aquisição da propriedade por usucapião abstrai da realidade económica e social do nosso país, onde especialmente no interior norte e centro, uma boa parte das partilhas entre maiores, nomeadamente de imóveis constitutivos dos acervos das heranças, ainda é ou era feita “de boca” e posteriormente “legalizada” com suporte na usucapião.


*

A proibição de desemparcelamento em parcela inferior à unidade de cultura.

O fracionamento de terrenos aptos para culturas - que antes da recente entrada em vigor da Lei nº 111/2015, de 27 de Agosto, era regulado pelos artigos 1376º a 1379º do C. Civil e pelo disposto no art. 19º e seguintes do Decreto-Lei nº 384/88, de 25 de Outubro e que é, agora, regulado pelos mesmos artigos 1376º a 1381º do C. Civil e pelo artº 48º e seguintes da dita Lei 111/2015 – estava, e continua a estar, em regra, proibido relativamente a parcelas de área inferior à denominada “unidade de cultura” fixada, no caso – atentos o tipo de cultura e a situação do prédio a sul do Tejo – em 7,5 hectares (artº 1376º e Portaria nº 202/70, de 21 de Abril).

As áreas das parcelas a desanexar têm apenas 14.028 m2, 9.322 m2 e 6.610 m2, pelo que são inferiores à unidade de cultura.


*

Com algumas exceções minoritárias, a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que a proibição do fracionamento da propriedade rústica em áreas inferiores à unidade de cultura não obsta à aquisição das mesmas por usucapião, uma vez que, decorrendo das regras deste instituto que o direito correspondente à posse exercida é adquirido ex novo, originariamente, está imune aos vícios que lhe pudessem ser anteriormente apontados.

Neste sentido, Ac. STJ de 04-05-2018, Procº 7859/15.5T8STB.E1:

“A usucapião, como forma originária de adquirir, pode incidir sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura, contrariando o regime previsto no art. 1379.º, n.º 1, do CC, na versão anterior à alteração legal introduzida pela Lei n.º 111/2015, de 27-08.”

Ac. STJ de 01-03-2018 Procº 1011/16.0T8STB.E1.S2:

“II. A expressão «disposição em contrário» ressalvada pelo art. 1287º do C. Civil, não abarca a situação prevista no art. 1376º do mesmo código, na medida em que inexiste qualquer norma excecional que estabeleça, taxativamente, que a posse mantida sobre parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura não conduz à usucapião.

V. A usucapião é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, que surge ex novo na esfera jurídica do sujeito, irrelevando, por isso, quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam vícios de natureza formal ou substancial.

VI. Operada a divisão material de um prédio rústico em duas parcelas de terreno com área inferir à unidade de cultura fixada na Portaria n.º 202/70, de 21/04 e verificados os requisitos da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre cada uma destas parcelas, esta aquisição prevalece sobre a proibição contida no artigo 1376º, nº 1, do Código Civil, não operando a anulabilidade do ato de fracionamento previsto no nº 1 do artigo 1379º do C. Civil (na redação anterior à introduzida pela Lei nº 111/2015, de 27.08).

VII. A usucapião visa satisfazer o interesse público de assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer a proteção do valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse.” – Sublinhado nosso.

Ainda Ac TRE de 07-06-2018, Procº 145/16.5T8CCH.E1:

“Nada prevê a lei no sentido de não ser possível ao possuidor de parcela inferior à unidade de cultura que tenha resultado de divisão material exercer o direito potestativo de aquisição por usucapião, atenta a fórmula constante do art.º 1287.º do CC.”

No mesmo sentido, ainda Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, III vol., 2ª Ed., p. 269; Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 207 e Acórdãos do STJ, de 4.02.2014, Procº 314/2000.P1.S1 e de 3.04.2015, Procº 10495/08.9TMSNT.L1.S1).

No caso dos autos está demonstrada a usucapião das três parcelas, uma vez que a inversão do título da posse não ocorreu com a celebração das escrituras de justificação judicial, como alega o recorrente, mas as partir do momento em que os possuidores iniciaram o uso das parcelas como se proprietários fossem.

Assim sendo, está apenas controvertido o também defendido pela recorrente, em suma, que deve prevalecer o interesse público na proibição do fracionamento da propriedade, escopo visado pelo regime legal que proíbe o desemparcelamento.

Este entendimento teve acolhimento no Ac. TRE de 25-05-2017, Procº 1214/16.7T8STB.E1:

“1. As normas jurídicas previstas no direito administrativo relativas ao ordenamento do território, por defenderem o interesse público, proíbem fracionamentos e destaques ilegais enquanto resultado, pelo que também proíbem necessariamente todos os meios adequados para o atingir.

2. Se dúvidas houvesse quanto à prevalência do regime previsto no art.º 1376.º e 1379.º do C. Civil sobre o fracionamento e aquisição, por usucapião, verificados os respetivos pressupostos, de parcela de terreno de área inferior a superfície correspondente à unidade de cultura, deixaram de subsistir perante a atual redação do n.º 1 do art.º 1379.º do C. Civil, na versão dada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, ao sancionar expressamente com a nulidade todos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artºs 1376.º e 1378.º.”

Com o devido respeito pela opinião contrária, entendemos que o interesse público não pode prevalecer sobre o interesse privado na aquisição da propriedade pela via da usucapião, desde que se mostrem reunidos os seus requisitos substanciais e formais – tal como defendido nos arestos e doutrina acima referidos.

A grundnorm Kelseniana, ou seja, a norma de onde todas as outras derivam, consubstanciada na Constituição da República estipula, sobre esta questão na Parte I, Título III, artº 62º/1 que “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição”.

Não se integrando no capítulo dos direitos liberdades e garantias, o direito de propriedade reveste-se de natureza análoga à daqueles, como dispõe o artº 17º da CRP – (J.J. Gomes Canotilho e V. Moreira, CRP Anotada, Almedina, 4ª Ed., 2007, fls. 374), sendo, por isso, diretamente aplicável e só podendo ser restringido para proteger outros de igual natureza (artº 18º/1 e 2 da CRP.

Não goza do mesmo grau de proteção o comando constitucional ínsito no artº 95º na Parte II, Título III, da Lei Fundamental que prevê medidas de emparcelamento começando, desde logo, por as submeter ao respeito prévio pelo direito de propriedade: “Sem prejuízo do direito de propriedade, o Estado promoverá, nos termos da lei, o redimensionamento das unidades de exploração agrícola com dimensão inferior à adequada do ponto de vista dos objectivos da política agrícola, nomeadamente através de incentivos jurídicos, fiscais e creditícios à sua integração estrutural ou meramente económica, designadamente cooperativa, ou por recurso a medidas de emparcelamento.”

É deste comando constitucional que o legislador retira a obrigatoriedade de impedir, através de lei ordinária, o desemparcelamento (J.J. Gomes Canotilho e V. Moreira, ob. cit. fls. 1060), uma vez que se pretende proteger o minifúndio como unidade de produção agrícola, preceito que encontra concretização explícita no artº 165º/1, n) quanto à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.

Ora, estando adquirido nos autos que estão reunidos os requisitos da aquisição da propriedade por usucapião, forma originária ou ex novo da aquisição deste direito constitucional, protegido na mesma medida e com a mesma força que os direitos, liberdades e garantias, não pode uma lei ordinária sobrepor-se a tal aquisição, ainda que em execução de comando constitucional programático, mas sempre lei ordinária, o que lhe confere categoria inferior (na conceção da pirâmide Kelseniana).

Neste caso, o interesse privado prevalece claramente sobre o interesse público, por obrigação de defesa do constitucional e reforçadamente protegido direito de propriedade, que impede o legislador ordinário de reduzir o seu núcleo essencial, aniquilando-o.

Tem sido este o sentido da doutrina e jurisprudência maioritária, e não vemos razão substancial para que seja de outro modo.

Do que vem sendo exposto, será de questionar futuramente a constitucionalidade da atual redação do art.º 1379º/1 do C. C., na versão dada pela Lei 111/2015, de 27-08, ao sancionar expressamente com a nulidade, todos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artºs 1376º e 1378º, uma vez que pode equivaler à derrogação do instituto da usucapião e, reflexamente atingir o núcleo do reforçadamente protegido direito constitucional da propriedade privada, porque a usucapião é uma das formas da sua aquisição.

Mas esta questão não nos ocupa porque o regime aplicável ao caso dos autos é o anteriormente previsto e, aqui, a sanção é a anulabilidade.

Com efeito, à data em que ocorreu o ato de fracionamento do prédio rústico em violação do artº 1376º/1 do C.C. ainda se não encontrava em vigor a referida Lei nº 111/2015, de 27 de Agosto, nem a Portaria nº 219/2016, de 9 de Agosto.

Também não é de atender o argumento da recorrente de que não tem, geralmente, conhecimento do momento em que se inicia a posse que está na origem da usucapião; esta é uma questão de natureza adjetiva, prática, processual e de prova que se não prende com a substância do conflito de direitos que está em causa, cabendo ao Estado munir-se dos instrumentos processuais que obstem a tal circunstância.

Por tudo o que vem exposto, improcedem as conclusões da recorrente, devendo manter-se a decisão recorrida.


***

Sumário:

I – A proibição do fracionamento da propriedade rústica em área inferior à unidade de cultura não obsta à aquisição da mesma por usucapião, porque a proteção da propriedade privada prevalece sobre o interesse público à proibição de desemparcelamento.

II – Estando adquirido nos autos que se mostram reunidos os requisitos da aquisição da propriedade por usucapião, forma originária de aquisição deste direito constitucional, protegido na mesma medida e com a mesma força que os direitos, liberdades e garantias, não pode uma lei ordinária sobrepor-se a tal aquisição da propriedade, por se tratar de lei de inferior categoria na conceção da pirâmide Kelseniana.


***
DECISÃO.

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga improcedente a apelação e confirma a sentença recorrida.

Sem custas por delas estar isento o recorrente.
Notifique.

***
Évora, 20-12-2018

José Manuel Barata (relator)

Conceição Ferreira

Rui Machado e Moura