Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
951/17.3T8TMR.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO TRABALHO
CONTRATO DE TRABALHO
ACORDO EXTRAJUDICIAL
Data do Acordão: 02/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: REVOGADA
Sumário: Compete materialmente à jurisdição laboral julgar o mérito de uma ação, cuja causa de pedir e o pedido apresentados pelo autor na petição inicial, se fundamentam no alegado incumprimento parcial de um acordo extrajudicial celebrado entre os outorgantes do contrato de trabalho, por via do qual a empregadora se obrigou a pagar ao trabalhador uma determinada quantia pela cessação do contrato de trabalho e demais créditos laborais devidos.
(Sumário da relatora)
Decisão Texto Integral: P.951/17.3T8TMR.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

1. Relatório
BB (A.) propôs ação declarativa emergente de contrato individual de trabalho contra CC, S.A. (R.), pedindo que a R. seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 20.630,78, que falta para completar o montante de € 35.000,00 a cujo pagamento se obrigou, acrescida dos juros de mora vencidos, no montante de € 95,67 e dos vincendos até integral pagamento.
Em síntese e no que interessa para o caso, alega que manteve um contrato de trabalho com a R. entre 16/10/2006 e 1/10/2015.Na sequência de ação com processo comum por si intentada no Tribunal do Trabalho, foi a R. condenada a pagar-lhe:
a) A quantia de € 27.696,26 referente a diferenças de pagamentos do acréscimo de retribuição que lhe era processado sob a designação de abono de “Grande Deslocação/Ajudas de Custo”;
b) A quantia que se vier a liquidar correspondente à diferença entre o acréscimo de 25% dos salários que lhe foram pagos e o que efetivamente recebeu a título de abono por trabalho aos sábados, e que lhe era anteriormente processado sob a designação de “subsídio de deslocação”; e
c) Os respetivos juros vincendos até integral pagamento à taxa legal que estiverem vigor.
Tendo o A. deduzido incidente de liquidação para apuramento do valor referido em b), as partes processuais celebraram, entre si, um acordo extrajudicial que apresentaram no procedimento incidental. No âmbito do acordo a R. obrigou-se a pagar ao A. a quantia de € 35.000,00, a título de compensação pecuniária de natureza global pela cessação do contrato de trabalho e demais créditos laborais devidos ao trabalhador. O tribunal não conheceu do mérito do acordo por o mesmo extravasar o objeto do incidente de liquidação, mas julgou extinta a instância incidental de liquidação por inutilidade superveniente da lide, em virtude do acordo extrajudicial das partes.
Refere o A. que a R., porém, apenas colocou à sua disposição o valor de € 14.369,22, visando o A., com a presente ação, que a R. seja condenada a pagar o diferencial em dívida no valor correspondente ao peticionado, acrescido dos respetivos juros moratórios.
Realizada a apreciação liminar da petição inicial, o tribunal de 1.ª instância proferiu despacho com o seguinte teor:
«Entende-se que a petição inicia evidencia vicissitude que importa o seu indeferimento liminar, conforme o disposto no artigo 54.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho.
Na verdade, a causa de pedir da presente ação é uma transação extrajudicial celebrada pelo A. e pela R., através dos seus advogados, como resulta do despacho exarado a 21/3/2017.
Ora, a transação é um negócio civil pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões, conforme ao regime dos artigos 1248.º e 1250.º, do Código Civil. É verdade que subjacente a tal transação estaria o litígio emergente do contrato de trabalho. No entanto, para conhecer do mérito do pedido concretamente formulado pelo autor não releva a causa subjacente à transação. Tanto pode ser um litígio emergente de uma questão laboral, mercantil, de locação, de responsabilidade civil, etc.. O tribunal nunca poderá – em face da forma como o autor configurou a causa de pedir – conhecer do acerto das partes em acordarem o montante de € 35.000 a título de compensação pecuniária de natureza global, se a ré se comprometeu a pagar mais do que era devido, se a o autor aceitou um valor inferior ao que teria direito, etc.. A única questão que se pode colocar é se a transação é válida e quais os seus efeitos, independentemente das razões ou da bondade da posição aí assumida pelas partes.
A competência deste tribunal está circunscrita pelo artigo 126.º, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, particularmente às questões emergentes de contratos de trabalho. Uma vez que a questão trazida pelo autor emerge de um contrato civil (transação extrajudicial), este tribunal não é o materialmente competente para a conhecer, visto que a competência está supletivamente atribuída às secções cíveis.
A questão terá que ser decidida no foro civil e, em último caso, caso se conclua pela invalidade do negócio, deverá ser renovada a instância no processo em causa (incidente de liquidação) com base em eventual facto superveniente.
A infração das regras da competência em razão da matéria determinam a incompetência absoluta do tribunal, deve ser oficiosamente suscitada pelo tribunal e determina o indeferimento liminar – cfr. artigos 96.º, n.º 1, 97.º e 99.º, do Código de Processo Civil, e artigo 54.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho.
Pelo exposto, julgo este juízo do trabalho absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido apresentado pelo autor e, em consequência, indefiro a petição liminarmente.
Custas pelo autor.
Notifique.»

Não se conformando com esta decisão, veio o A. interpor recurso da mesma, sintetizando as suas alegações, com as conclusões que seguidamente se transcrevem:
«1ª- A competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a ação é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respetivos fundamentos, atendendo-se aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.
2ª- No caso sub judice, tratando-se de um litígio emergente de uma relação de trabalho subordinado e tendo em conta as especificidades do contrato de trabalho em face dos contratos civis, a lei atribui a competência aos tribunais de trabalho e não aos tribunais comuns (art. 126.º, n.º 1, al. b) da Lei 62/2013, de 26 de agosto).
3ª- A causa de pedir é constituída pela relação de trabalho subjacente que vigorou entre A. e R. sendo a transação apenas o instrumento, o invólucro, em que foi vazado o acordo das partes na autocomposição que fizeram da relação jurídica, que não deixa por isso de ser uma relação de natureza laboral.
4ª- Atribuindo a Lei aos tribunais do trabalho a competência para o conhecimento das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho e sendo a relação jurídica em causa uma questão emergente de relação de trabalho subordinado, a competência para a julgar está atribuída aos tribunais de trabalho, contrariamente ao decidido no Despacho recorrido.
5ª- A obrigação a que respeita a transação é uma obrigação de trabalho.
6ª- Efetivamente as questões da validade dos pactos respeitantes a direitos laborais; à disponibilidade de tais direitos pelas partes; ao título a que podem ser feitos os pagamentos de tais créditos, designadamente de “compensação pecuniária de natureza global” reclamam a aplicação de regulamentação que atua valorações materiais próprias, específicas do direito do trabalho, não comuns a outros ramos do direito.
7ª- Foi assim violado o disposto no artigo 126º nº 1 al. b) da lei 62/2013.
8ª- Impondo-se por isso a revogação da decisão recorrida e que seja determinado o prosseguimento da presente instância.»
Após a admissão do recurso, deu-se cumprimento ao preceituado no artigo 641.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.
Devidamente citada para os termos da ação e do recurso, a R. nada veio dizer.
Tendo os autos subido ao Tribunal da Relação, foi observado o estipulado no n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, propugnando pela improcedência do recurso.
O apelante respondeu ao parecer emitido, manifestando a sua discordância com o mesmo e reiterando que o incumprimento do acordo celebrado apenas pode ser apreciado e conhecido nos tribunais do trabalho, como seria a execução de mesmo, caso este tivesse virtualidade executória.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil aplicáveis por remição do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, a questão que importa dilucidar e resolver é a de saber se o Juízo do Trabalho é materialmente competente para decidir sobre o litígio.
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III. Matéria de Facto
A matéria de facto a atender é a que consta do relatório supra, para a qual remetemos, sem necessidade da sua repetição.
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IV. Direito
Como referimos anteriormente, importa apreciar e decidir se o Juízo do Trabalho de Tomar é materialmente competente para decidir sobre o litígio.
Analisemos a questão.
A competência do tribunal constitui um dos mais importantes pressupostos processuais, isto é, uma das condições essenciais de que depende o exercício da função jurisdicional (cfr. “Direito Processual Civil Declaratório”, vol II, págs. 7 e segs, Anselmo de Castro, Almedina Coimbra, 1982).
Para que um tribunal possa conhecer e decidir sobre o mérito de uma determinada ação, o mesmo tem de ser competente ou idóneo, à luz da legislação vigente, designadamente das regras que distribuem o poder de julgar entre os diferentes tribunais – (cfr. “Manual de Processo Civil”, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 195).
Entre estas regras, encontram-se as que repartem, na ordem interna, as matérias das causas entre tribunais da mesma categoria e hierarquia. Trata-se, no fundo, de uma organização judiciária horizontal.
De salientar, ainda, que a competência para o julgamento de uma causa, afere-se a partir da relação jurídica que se discute na ação, tal como é configurada pelo autor (cfr. Acórdão STJ, de 3/5/2000, CJ,STJ, II, p.39).
Assim sendo, importa apreciar que litígio é apresentado pelo A./apelante, em termos de materialidade, pois só tal análise nos permitirá concluir se o mérito da causa se insere ou não na competência atribuída aos juízos do trabalho pela Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, com as sucessivas alterações).
E da análise da petição inicial, infere-se que entre as partes processuais existiu uma relação de trabalho subordinado que cessou em 1/10/2015. Correu termos uma ação judicial que apreciou e decidiu matéria respeitante ao incumprimento de prestações contratuais pela empregadora, tendo sido proferida sentença condenatória. Porque não foi possível liquidar de imediato â totalidade do âmbito da condenação, remeteu-se para incidente de liquidação, parte dessa condenação, designadamente a quantificação da diferença entre o acréscimo de 25% dos salários que foram pagos ao A., o agora apelante, e o que efetivamente recebeu a título de abono por trabalho aos sábados, e que lhe era anteriormente processado sob a designação de “subsídio de deslocação”.
Deduzido o incidente de liquidação, para os efeitos assinalados, as partes vieram juntar ao mesmo um acordo extrajudicial, por via do qual, a agora apelada se obrigou a pagar ao agora apelante a quantia de € 35.000,00, a título de compensação pecuniária de natureza global pela cessação do contrato de trabalho e demais créditos laborais devidos ao trabalhador. A validade e o mérito do acordo não foram judicialmente apreciados, tendo o tribunal de 1.ª instância considerado que o único efeito processual consequente à celebração do acordo era tornar supervenientemente inútil a lide incidental, assim o tendo declarado.
Na presente ação, vem o apelante alegar, na petição inicial, que o acordo celebrado não foi integralmente cumprido, pretendendo que o tribunal condene a demandada em função desse incumprimento.
Ora, atendendo aos termos apresentados pelo demandante, afigura-se-nos que o alegado acordo celebrado emerge manifestamente do contrato de trabalho que vigorou entre as partes processuais, pois através do mesmo a apelada obrigou-se a pagar uma compensação pecuniária de natureza global pela cessação do contrato de trabalho e demais créditos laborais devidos ao trabalhador.
Em causa na ação está uma questão respeitante à alegada prestação obrigacional a que a empregadora, nessa qualidade, se obrigou perante o agora apelante, na qualidade de trabalhador.
A substância ou materialidade da causa apresentada ao tribunal, emerge inequivocamente da extinção ou cessação da relação de trabalho subordinado que vinculou as partes processuais, estando em causa uma alegada divida que surge motivada pelo contrato de trabalho.
E, assim sendo, para conhecer da matéria da causa, é competente o tribunal recorrido, nos termos previstos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 126.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário que estipula que compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de relações de trabalho subordinado.
Face a todo o exposto, há que julgar o recurso procedente, e, em consequência, impõe-se a revogação da decisão recorrida.
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V. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, e, em consequência, revogam a decisão recorrida que é substituída pelo presente acórdão em que se decide julgar o Juízo do Trabalho de Tomar materialmente competente para conhecer da presente ação.
Custas pela parte vencida a final.
Notifique.

Évora, 1 de fevereiro de 2018
Paula do Paço (relatora)
Moisés Pereira da Silva
João Luís Nunes
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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: Moisés Silva; 2.ª Adjunto: João Luís Nunes