Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1457/15.0T8STB.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: ALTERADA
Sumário: 1. As declarações de parte, nos termos do art.º 446.º/3 do C. P. Civil, constituem princípio de prova e serão apreciadas livremente pelo tribunal, salvo se as mesmas constituírem confissão, devendo ser valoradas com especial cuidado.
2. Na ausência de culpa, no que respeita a acidentes de viação, há que lançar mão do disposto no art.º 506.º do C. Civil, isto é, se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos.
Decisão Texto Integral:
I- Relatório:
AA intentou a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra a Companhia de Seguros BB, S.A., pedindo a condenação desta no pagamento de € 5.192,44 a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, sofridos em consequência de um acidente de viação, ocorrido em 30.11.2013, pelas 09h30, no cruzamento entre duas ruas, imputando a responsabilidade pela produção do mesmo ao condutor do veículo de matrícula 00-BU-00, segurado na Ré.
Citada a Ré, deduziu contestação, impugnando a versão do acidente e concluindo pela improcedência da ação.
Saneado o processo e realizado o julgamento, foi proferida a competente sentença que julgou a ação totalmente improcedente e absolveu a Ré do pedido.
Desta sentença veio o Autor interpor o presente recurso, alegando e concluindo nos termos seguintes:
1. Foi incorretamente julgada a matéria dada como não provada nos pontos primeiro e segundo dos factos não provados:
“ - O condutor do BU ao pretender entrar na Rua de São cortou a curva e entrou na faixa esquerda de rodagem, atento o sentido Nascente/ poente".
" - Na rua onde circulava anteriormente, o condutor do BU já circulava na faixa de rodagem da esquerda."
2. Impõem decisão diferente da recorrida, ou seja, serem dados como provados os pontos 1 e 2 da matéria dada como não provada, os seguintes meios de prova:
Depoimento de parte, AA, sessão de julgamento de 19 de Setembro de 2015, às 15:22:16, de 00:01:05 a 00:02:37 e de O :08:43 a 00:09:00;
3. A culpa do acidente pertenceu ao condutor da viatura ligeira, BU, que, ao mudar de direção, virando à esquerda, invadiu a faixa de rodagem onde circulava o recorrente;
4. Que não cedeu a passagem ao recorrente, apesar da via onde circulava (Rua da Ilha) ser secundaríssima relativamente à Rua de São (pois apenas serve as garagens de dois prédios);
5. O condutor do veículo BU violou os artigos 11.º/2, 13.º/1, 14.º/2, 19.º e 29.º do Código da Estrada;
6. Não se entendendo assim, deve repartir-se a responsabilidade por ambos os condutores ao abrigo do Código Civil;
7. Na verdade, resulta do dispositivo da sentença que da prova produzida não se conseguiu apurar qual dos condutores teve culpa na produção do acidente;
8. Existe uma desproporção da volumetria e peso dos veículos que deve ser tida em conta da repartição do risco de cada uma das viaturas na produção do acidente.
9. Optando-se pelo risco não deve ser imputado ao recorrente percentagem superior a 30% na produção do acidente.
10. Foram violados por erro de interpretação os artigos 11.º/2, 13.º/1, 14.º/2, 19.º e 29.º do Código da Estrada e os artigos 499°, 503° e 506.º Código Civil;
Termina pedindo a revogação da sentença e condenação da Ré como peticionado e, se assim não se entender, a condenação em 70% dos danos e juros de mora ao abrigo da responsabilidade pelo risco.
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A Ré contra-alegou, defendendo a bondade e manutenção da decisão.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pelo recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil -, constata-se que as questões essenciais decidendas são as seguintes:
a) Reapreciação da matéria de facto e sua eventual alteração.
b) Responsabilidade na produção do acidente e respetivas consequências jurídicas.
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III – Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Reapreciação da matéria de facto.
O recorrente entende que houve erro de julgamento quanto aos seguintes factos:
a) O condutor do BU ao pretender entrar na Rua de São cortou a curva e entrou na faixa esquerda de rodagem, atento o sentido Nascente/ poente.
b) Na rua onde circulava anteriormente, o condutor do BU já circulava na faixa de rodagem da esquerda.
Considera o recorrente que esta factologia devia ter sido dada como provada com base no depoimento de parte do Autor, cujas passagens relevantes transcreveu, e documento n.º1 junto com a p. i. e que consubstancia a participação amigável do acidente, elaborada e subscrita pelos seus intervenientes.
No que respeita à fundamentação da matéria de facto, lê-se na decisão recorrida:
“Quanto à matéria considerada como não provada, a análise crítica assentou essencialmente nas declarações do autor e no depoimento da testemunha CC, conjugado com declaração amigável subscrita por ambos, que constitui o documento n.º 1, junto com a petição.
De referir que a análise crítica e ponderada levou-nos a conclui pela falta rigor na narração dos factos, não tendo as declarações dos condutores logrado criar no Tribunal o convencimento necessário e adequado às exigências práticas da vida.
Na verdade, resultou assente que na via onde a testemunha CC circulava não existia qualquer sinal de cedência de prioridade e que o a testemunha tinha acabado de sair da garagem, ou seja de iniciar a marcha, pelo que com toda a certeza não circulava a 40 km/h.
Por outro lado, evidencia a prova que o autor circulava convencido de que qualquer condutor que surgisse da Rua da Ilha lhe tinha que ceder passagem, pelo que seguia sem acautelou a possibilidade de ter de parar no entroncamento.
De resto, não foi possível apurar com a certeza necessária qual o local do embate, pois a declaração amigável junta ao processo não apresenta qualquer rigor na configuração do acidente. Com efeito, a representação elaborada pelos intervenientes não permitiu apurar a quantos metros do entroncamento e a que distância do passeio ocorreu o embate.
Por outro lado, as declarações dos condutores são contraditórias entre si, e nenhuma das versões mereceu mais credibilidade que a outra.
De mencionar, por fim, que nenhuma das demais testemunha inquiridas presenciou a dinâmica do acidente, tendo apenas a esposa do autor comparecido no local já depois de o autor a contactar”.
Ora, como é sabido, não obstante se garantir no sistema processual civil um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, não podemos ignorar que continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme decorre do art.º 607.º/5, do C. P. Civil, ao estatuir que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…)”.
Para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova [1].
Como ensina Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final(…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal(…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
E é o caso das declarações prestadas pelo Autor, como flui do art.º 466.º/3 do C. P. C., que prescreve que “O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”.
Este novo meio de prova vem sucintamente anunciado na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, e que deu origem à Lei n.º 41/2013 de 26/6, nos termos seguintes: “Prevê-se a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão.”
Nos termos do art.º 352.º do C. Civil, confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
Decorre expressamente do preceito legal que a confissão só pode ter por objeto o reconhecimento de um facto, alegado pela parte contrária, e desfavorável ao declarante e favorável à parte contrária.
Por isso que a confissão judicial escrita tenha força probatória plena contra o confitente, vinculando o juiz a considerar na sentença tal facto como verdadeiro – art.º 358.º/1 do C. Civil e art.º 607.º/4 do C. P. Civil.
Para o Professor Lebre de Freitas, in “A Ação Declarativa Comum”, 3.ª Edição, pág. 278, “A apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas.”
Relativamente a este meio de prova, escreveu-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/11/2014 (Pedro Martins): “Mas a apreciação desta prova faz-se segundo as regras normais da formação da convicção do juiz. Ora, em relação a factos que são favoráveis à procedência da ação, o juiz não pode ficar convencido apenas com um depoimento desse mesmo depoente, interessado na procedência da ação, deponha ele como “testemunha” ou preste declarações como parte, se não houver um mínimo de corroboração de outras provas” ( Nosso sublinhado).
E isto porque estas declarações são, por definição, favoráveis à parte que as vai prestar.
O princípio de prova é o grau de prova mais débil, significando que a prova em causa não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer juízo de certeza final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova.
Neste sentido, ensina o Professor Lebre de Freitas, ob. cit. pág., 222: “Por princípio de prova entende-se um resultado insuficiente para a prova do facto, mas suscetível de, combinado com o de outros meios de prova que sejam produzidos no processo, a ela conduzir; trata-se de um contributo para o resultado probatório final, sem força probatória autónoma, mas concretamente relevante quando os meios de prova com que se combine não sejam, por si só, suficientes para gerar no julgador a convicção de que o facto probando se verificou”.
Para o Professor Teixeira de Sousa, “ As Partes, o Objeto e a Prova na Ação Declarativa”, Lex - Edições Jurídicas, 1995, p. 203, “o princípio (ou começo) da prova é o menor grau de prova: ele vale apenas como fator corroborante da prova de um facto. Isto é, o princípio da prova não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer prova, mas pode coadjuvar, em conjugação com outros elementos, a prova de um facto”
No caso dos autos estamos perante declarações do autor (declarações de parte) a apreciar livremente.
Inexistem testemunhas presenciais do acidente, para além de CC, condutor do outro veículo.
O Autor reproduziu o que afirmou na sua petição inicial no que respeita à versão do acidente, o que não foi corroborado pela testemunha CC, sendo contraditórios os seus depoimentos.
Com efeito, o Autor declarou que circulava na sua faixa de rodagem e “um carro entra na minha faixa de rodagem vindo dessa perpendicular e dá-se a colisão” e que não teve hipótese de travar o motociclo ou de se desviar, e que o condutor do veículo automóvel vinha em contramão, ou seja, que o condutor do BU já circulava na faixa de rodagem da esquerda antes de entrar no entroncamento.
Todavia, o condutor do “BU” disse que tinha acabado de sair da garagem e que parou no entroncamento, como faz sempre, para ver se vem algum carro, pois na Rua São estão carros estacionados em frente ao passeio, do lado direito da faixa de rodagem, e “quando consegue ver algum carro a aproximar-se, só mesmo no cimo da estrada e já no meio. Quando vou a arrancar foi quando veio o Sr. AA me embateu. Eu ia no carro a arrancar quando fui embatido”.
Assim, segundo a versão deste condutor, foi o Autor que lhe embateu quando ele iniciava a manobra de mudança de direção à esquerda.
Acresce que do teor da declaração amigável junta nos autos não decorre essa factualidade.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/6/2014 (António José Ramos), “As declarações de parte (artigo 466.º do novo CPC) - que divergem do depoimento de parte – devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado. As mesmas, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação. Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.”
Seguindo idêntica orientação, e na ausência de qualquer outro meio probatório, é duvidosa a versão apresentada pelo Autor, relativamente a essa factualidade, contrariada pelo depoimento do outro condutor, razão pela qual será de observar o disposto no art.º 414.º do C. P. Civil, o qual prescreve: “ A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”.
Resumindo, verificamos não ter havido erro de julgamento quanto a essa matéria de facto, sendo essa igualmente a nossa convicção, por ausência de prova suficiente e convincente, o que conduz à manutenção da matéria de facto quanto à dinâmica do acidente, o que se decide, ou seja, improcede a pretendida alteração.
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2. Matéria de facto.
A matéria de facto fixada na 1.ª instância, que se mantém, é a seguinte:
1) No dia 30 de novembro de 2013, pelas 09h30, ocorreu uma colisão entre o veículo ligeiro de passageiros, de marca Toyota, com matrícula 00-BU-00, e o motociclo de marca Kawasaki, de matrícula 00-HS-00.
2) A colisão ocorreu na Rua de São onde vai entroncar a Rua da Ilha.
3) No local do acidente, a via tem cerca de 8 metros de largura.
4) O veículo de matrícula BU era conduzido por CC, na Rua da Ilha, no sentido sul/norte.
5) O motociclo, era conduzido pelo autor, na Rua São no sentido poente/nascente.
6) O autor seguia na sua mão de trânsito, na Rua São, junto à berma, circulando a cerca de 40/50 km/h.
7) O condutor do BU, pretendia mudar de direção e entrar na Rua São no sentido nascente/ponte, no sentido inverso àquele que o autor circulava.
8) A visibilidade do condutor do BU para a Rua São é reduzida, uma vez que de onde provém não avista a faixa de rodagem em toda a sua largura, numa extensão de 50 metros, devido ao facto de existirem veículos estacionados sobre o passeio e caixotes de recolha de lixo.
9) A Rua da Ilha apenas serve dois prédios.
10) A ré à data dos factos havia assumido a responsabilidade civil inerente à circulação do veículo BU, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 0002338000.
11) Em consequência da colisão o autor caiu e decorrente da queda o autor sofreu lesões no braço e perna esquerdos, que lhe provocaram dores e que perduraram por mais de uma semana.
12) O autor, em consequência do acidente e das dores sofridas, sentiu-se desanimado e abatido.
13) O motociclo ficou danificado na suspensão, na grelha, nos pedais, nos estribos e peseiras, na ótica e na pintura.
14) A reparação dos danos verificados no motociclo importa um custo de € 3.391,07.
15) Em consequência da queda do motociclo também o top case e a sua base ficaram danificados.
16) O autor ficou com as luvas e o blusão em pele que trazia vestidos, inutilizados porque rasgados, importando a sua substituição o dispêndio do valor de € 596,37.
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3. O direito.
3.1. Responsabilidade pela produção do acidente e respetivas consequências jurídicas.
Sustenta o recorrente que os factos provados, acrescidos dos impugnados, permitem imputar a culpa ao condutor do veículo segurado na Ré, uma vez que não praticou qualquer infração às regras impostas no Código da Estrada, imputando essa responsabilidade ao condutor do veículo “BU”, por violação das regras estradais previstas nos art.ºs 11.º/2, 13.º/1, 14.º/2, 19.º e 29.º do Código da Estrada.
Vejamos se tem razão.
3.1.1. Como decorre da P. I., o Autor fundamentou o respetivo pedido de indemnização ao abrigo do art.º 483.º do C. Civil, ou seja, com base na culpa exclusiva do condutor do veículo “BU” na produção do acidente de viação, em consequência da violação das regras ao Cód. da Estrada acima mencionadas.
Ora, como flui do nº 1 do art.º 487.º C. Civil, em matéria de responsabilidade civil extracontratual é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, exceto se houver presunção legal de culpa.
Em princípio a culpa não se presume. Recai, em regra, sobre o lesado o ónus de a provar. É que, sendo a culpa do lesante um elemento constitutivo do direito à indemnização, ao lesado incumbe fazer a sua prova, de acordo com a repartição do ónus da prova previsto no nº 1 do art. 342.º C. Civil.
3.1.2. Da factualidade provada decorre linearmente que o acidente ocorreu do seguinte modo:
- o motociclo conduzido pelo Autor circulava pela Rua São, no sentido poente/nascente, na sua mão de trânsito e junto à berma, e o veículo de matrícula BU, conduzido por CC, circulava na Rua da Ilha, no sentido sul/norte, a qual entronca com aquela, pretendo mudar de direção à sua esquerda e entrar na Rua São, no sentido nascente/ponte, ou seja, no sentido inverso àquele que o autor circulava, dando-se a colisão na Rua de São, sendo que no local do acidente a via tem cerca de 8 metros de largura. A visibilidade do condutor do BU para a Rua São é reduzida, uma vez que de onde provém não avista a faixa de rodagem em toda a sua largura, numa extensão de 50 metros, devido ao facto de existirem veículos estacionados sobre o passeio e caixotes de recolha de lixo.
Perante os elementos de facto recolhidos, ignora-se qual o concreto comportamento de cada um dos condutores que imediatamente precedeu o acidente, nomeadamente se o veículo “BU” seguia ou não à velocidade adequada ao local, com a devida atenção ao trânsito, se podia ou não evitar o embate, se iniciou ou não a manobra de mudança de direção à esquerda nesse entroncamento com as devidas cautelas e se o podia fazer com segurança, se reduziu a velocidade antes de entrar no entroncamento, bem como se a faixa de rodagem por onde pretendia seguir se encontrava livre, se conduzia dentro da sua faixa de rodagem, se seguia ou não a velocidade moderada ao aproximar-se do entroncamento, etc. - art.ºs 24.º/1 e 25.º/1, al. f), do Cód. Da Estrada.
Do mesmo modo que se ignora o comportamento do Autor, nomeadamente se abrandou a marcha quando se aproximou do entroncamento e se certificou que o veículo BU se encontrava no entroncamento a iniciar a sua manobra de mudança de direção, se conduzia atento ao trânsito que aí circulava, se podia ter evitado o embate etc., podendo apenas afirmar-se, com segurança, que o veículo “BU” se apresentava no citado entroncamento à sua direita e que, na ausência de outra sinalização vertical em sentido contrário, nessa data, não cedeu a passagem ao “BU”, violando o direito de prioridade, face ao que prevê o n.º 1, do art.º 30.º do Código da Estrada: “Nos cruzamentos e entroncamentos o condutor deve ceder a passagem aos veículos que se lhe apresentem pela direita”.
Mas a verdade é que o direito de prioridade não é absoluto, pois quem dele beneficia deve também agir com a devida prudência e cuidado, face às concretas circunstâncias de tráfego, nomeadamente sinalizar atempadamente a sua manobra, através do respetivo sinal intermitente luminoso, não a deve iniciar sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir com veículo que transite na outra via ou em sentido contrário, não continuar a marcha se a distância que o separa do veículo sem prioridade não permite que este reduza a sua velocidade ou imobilize o veículo em segurança, a fim de lhe ceder a passagem.
Isso mesmo decorre do citado art.º 29.º/2 ao impor que o condutor com prioridade de passagem deve observar as cautelas necessárias à segurança do trânsito, nomeadamente não deve iniciar essa manobra de direção se o outro veículo já circula muito próximo da zona de interseção dessas duas vias que formam o entroncamento, tornando praticamente difícil ou impossível a esse condutor reduzir a velocidade ou imobilizar o veículo, para ceder a passagem, sem por em causa a sua própria segurança bem como a dos restantes veículos que circulam no local.
Decorrentemente, e à míngua de outros factos, as circunstâncias apuradas do acidente não permitem imputar a responsabilidade na produção do acidente a qualquer um dos condutores desses veículos, sendo certo que improcedeu a pretendida alteração da matéria de facto.
Donde, o recorrente não logrou demonstrar a culpa na produção do acidente do condutor do “BU”, pois que os factos provados não permitem efetuar um juízo de censura ético-jurídica relativamente ao condutor deste veículo, tendo em conta as apuradas circunstâncias em que ocorreu o acidente de viação, assim como a Ré também não logrou provar a culpa exclusiva do Autor.
Nesse sentido acompanhamos a conclusão da 1.ª instância.
Mas já não se acompanha quanto à decisão.
Na verdade, na ausência de culpa, no que respeita a acidente de viação, há que lançar mão do disposto no art.º 506.º do C. Civil, isto é, de regras de responsabilidade civil objetiva, o qual prescreve:
Se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar – n.º1.
Em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores” – n.º2.
Decorrentemente, tem razão o recorrente ao afirmar que o tribunal de 1.ª instância deveria ter lançado mão deste instituto, na medida em que se reconhece na decisão recorrida que “ não ficou demostrada qualquer conduta ilícita e culposa do condutor do BU. Nesta conformidade e porque ficou por demonstrar o primeiro dos pressuposto da responsabilidade civil, impõe-se julgar a ação improcedente e absolver a ré, que responde na medida da culpa do seu segurado”.
Na realidade, excluída a culpa de qualquer um dos condutores, importava convocar a responsabilidade pelo risco, nos termos citados.
Nesse sentido, e atentas as características de cada um dos veículos, é de fixar em 40% para o veículo do Autor e 60% para o veículo automóvel “BU”, respetivamente, a medida a contribuição de cada um deles para os danos.
3.1.3. Constitui princípio geral de que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação" – art.º 483.º do C. Civil.
E quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, e verificado o respetivo nexo de causalidade entre o dano e o facto danoso – art.º 562.º e 563.º do C. Civil.
Com é sabido e consabido, só quando a reparação natural não for possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor é que a indemnização é fixada em dinheiro, devendo refletir a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que existiria nessa data, se não fossem os danos (artº 566.º/1 e 2 do C. Civil). Se não puder ser averiguado o valor exato dos mesmos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados – seu n.º3.
Provado ficou que o Autor sofreu os danos patrimoniais, em consequência do acidente, no valor total de € 3 987,44, assim discriminados:
- reparação dos danos causados no motociclo no valor de € 3.391,07.
- substituição das luvas e o blusão em pele que trazia vestidos, que ficaram inutilizados, no valor de € 596,37.
E sofreu danos morais, traduzidos na seguinte factologia: “Em consequência da colisão o autor caiu e decorrente da queda o autor sofreu lesões no braço e perna esquerdos, que lhe provocaram dores e que perduraram por mais de uma semana; O autor, em consequência do acidente e das dores sofridas, sentiu-se desanimado e abatido” ( factos 11 e 12).
No que respeita aos danos morais ou não patrimoniais, a obrigação de indemnização decorre do disposto no art.º 496º, nº 1, do C. Civil, ao prescrever que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito ”. E acrescenta-se no seu n.º4 que “o montante da indemnização será fixado equitativamente, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º ”.
Daí entender-se que a indemnização por danos não patrimoniais deva ser fixada de forma equilibrada e ponderada, segundo critérios de equidade, atendendo em qualquer caso (quer haja dolo ou mera culpa do lesante) ao grau de culpabilidade do ofensor, à situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso, como por exemplo, o valor atual da moeda.
O Autor reclamou a quantia de €1 000,00 a esse título, montante que se considera adequado, face aos critérios citados.
Assim, os danos sofridos pelo Autor devem ser computados em € 4 987,44, devendo a Ré ser condenada no pagamento de € 2 992,46, correspondente a 60% desse montante.
Procede, pois, parcialmente a apelação.
Vencidos parcialmente no recurso suportarão apelante e apelada, na devida proporção, as custas – art.º 527.º/1 e 2 do C. P. Civil

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IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.
1. As declarações de parte, nos termos do art.º 446.º/3 do C. P. Civil, constituem princípio de prova e serão apreciadas livremente pelo tribunal, salvo se as mesmas constituírem confissão, devendo ser valoradas com especial cuidado.
2. Na ausência de culpa, no que respeita a acidentes de viação, há que lançar mão do disposto no art.º 506.º do C. Civil, isto é, se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos.
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V. Decisão.
Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, condenando a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 2 992,46 (dois mil novecentos e noventa e dois euros e quarenta e seis cêntimos), a título de indemnização, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral e efetivo pagamento, absolvendo-a do restante peticionado.
Custas na 1.ª instância e na apelação pelo Autor e Ré, na proporção de 40% e 60%, respetivamente.

Évora, 2016/10/06

Tomé Ramião

José Tomé de Carvalho


Mário Coelho
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[1] ) Como defende Remédio Marques, Ação Declarativa, à Luz do Código Revisto, 3.ª Edição, pág. 638 -641, criticando a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto.