Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2048/15.1T8STB-C.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: RESOLUÇÃO DE CONTRATO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
REQUISITOS
Data do Acordão: 07/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Afigura-se desrazoável considerar uma doação como configurando um «donativo conforme aos usos sociais» por não ser conforme a qualquer uso social conhecido a doação de bens de significativa valia por meras razões afectivas e que têm o efeito objectivo claro de frustrar o cumprimento de dívidas do doador, prejudicando os seus credores.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2048/15.1T8STB-C.E1-2ª (2017)
Apelação-1ª (2013 – NCPC)
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)

ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

No âmbito do processo de insolvência, que corre termos na Secção de Comércio da Instância Central de Setúbal da Comarca de Setúbal, em que foi declarada insolvente (…), foi exercida pelo administrador da insolvência (AI), contra (…), filha da insolvente, por carta registada com aviso de recepção (AR) datada de 10/7/2015, a resolução em benefício da massa insolvente de doação, efectuada pela insolvente a favor da sua indicada filha, do quinhão hereditário, correspondente a ¼ (um quarto), que lhe pertencia na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do pai da insolvente, (…), falecido em 21/8/2012 (doação essa realizada por escritura pública celebrada em 20/2/2015), com base no artº 121º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3, invocando constituir essa doação «acto prejudicial para a massa insolvente» e ser tal acto enquadrável na alínea b) do nº 1 dessa disposição legal, por se tratar de «acto celebrado pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência».

Pela mencionada donatária foi deduzida impugnação da resolução, ao abrigo do artº 125º do CIRE, tramitada em processo autónomo, que corre por apenso ao processo de insolvência. Na respectiva petição inicial sustenta a impugnante, no essencial, que a doação em causa foi efectuada num quadro familiar de benefício da A. fundado no carinho especial que o pai da insolvente nutria pela neta (ora A.), pelo que se enquadraria nos «usos sociais» a que alude o artº 121º, nº 1, al. b), do CIRE, e que a carta de resolução padece de nulidade, por se apresentar sem a devida fundamentação, designadamente quanto à identificação do real prejuízo do acto para a massa insolvente e quanto à identificação das concretas verbas que integram a herança do lado activo e do lado passivo – e, nessa base, requer a impugnante a declaração de ineficácia da resolução.
Na contestação da R. Massa Insolvente (e após aperfeiçoamento, nos termos do artº 590º, nº 2, al. b), e nº 4, do NCPC), sustentou-se a plena validade da carta resolutiva, quer por a carta conter todos os elementos legalmente exigidos, quer porque a doação se presume prejudicial à massa insolvente, como decorre do regime do artº 121º do CIRE (que se refere a situações de resolução incondicional), sendo ainda certo que o quinhão hereditário em causa se referia a cinco prédios urbanos e que o seu valor ascendia a 16.809,34 €.

Na sequência da normal tramitação processual, o tribunal de 1ª instância entendeu, no momento do despacho saneador, dispor já de elementos bastantes para conhecer do pedido, pelo que prolatou decisão final a julgar improcedente a impugnação da resolução em benefício da massa insolvente e válida tal resolução. Na fundamentação da sua decisão, a M.ma Juiz a quo considerou, essencialmente, o seguinte: o regime do artº 121º do CIRE dispensa a prova do prejuízo para a massa, da má fé do adquirente e o conhecimento da situação de insolvência ou da sua iminência; provou-se a prática de acto gratuito dentro dos dois anos anteriores à declaração de insolvência (aliás, quase 3 anos depois da sucessão por morte do pai da insolvente e avô da adquirente, e apenas 18 dias antes da apresentação da insolvente à insolvência), sendo que o artº 121º consagra uma presunção inilidível de prejudicialidade para a massa, pelo que tanto basta para considerar preenchida a norma da al. b) respectiva; a carta resolutiva identifica claramente o negócio prejudicial à massa, não sendo os lapsos de escrita verificados nessa carta bastantes para prejudicar o teor da comunicação e a sua compreensão pela destinatária, ora impugnante; a doação em apreço não integra o conceito de «usos sociais», quer pelo valor (cerca de 16.000,00 €), quer pelos bens integrantes (imóveis), sendo ainda certo que, se houvesse qualquer intenção de ser cumprida uma última vontade do de cujus, certamente este poderia ter disposto da sua quota disponível em benefício da neta, assim como poderia a insolvente ter, logo após a morte de seu pai, outorgado escritura de repúdio da herança, em vez de efectuar a doação apenas na iminência da sua declaração de insolvência.

É desta decisão proferida no despacho saneador, de carácter sentencial na medida em que decidiu do mérito da causa (sob a forma do denominado “saneador-sentença”), que vem interposto pela A. impugnante o presente recurso de apelação, cujas alegações culminam com as seguintes conclusões:

«I. A carta resolutiva, além de confusa, é nula, porquanto é omissa quanto aos bens da herança que supostamente ali estariam referidos, mas que não realidade não o foram – Ponto 1 da Matéria de Facto: “deve o quinhão que V. Exa. tem nos imóveis e móveis da herança, acima identificados, ser restituído à massa insolvente”, não tendo o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência identificado o activo.

II. Também é nula porquanto a carta resolutiva é omissa quanto ao passivo da referida herança, facto que também nem a esta altura se mostra provado, o que impede a apreciação do pretenso benefício para a massa insolvente.

III. A total carência de factos concretos na carta resolutiva, com meras por formulações conclusivas, torna-a nula.

IV. Sendo certo que tem sido esse o entendimento dos nossos Tribunais Superiores, designadamente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04/06/2013 (processo 354/12.6TBFND.K.C1, in dgsi.pt), com muito interesse para os autos.

V. Entendimento esse retomado no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16/01/2014 (processo 833/12.5T2STC-K.E1, in dgsi.pt), que bem resume a pacífica jurisprudência.

VI. Sendo certo que também é propugnado nesses Acórdãos que nem a circunstância de se poder eventualmente tratar de uma resolução incondicional ilibaria o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência do ónus de indicar especificamente que a operação resolvida tinha, por um lado, qualquer racionalidade económica com interesse para a massa, e, por outro, de fundamentar a resolução operada de modo a permitir o conhecimento pela ora Recorrente de todos fundamentos que contra si são invocados.

VII. Também não colhe o argumento que parece ser propugnado pelo Tribunal “a quo”, que após a sua instância vislumbrou e especificou quais eram os bens constantes do activo da herança, dando como provados os factos constantes dos pontos 7, 8 e 9, contudo, tais elementos não decorrem da carta resolutiva do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência, nem sequer da Contestação por ele apresentada, o que só vem confirmar a nulidade da carta resolutiva.

VIII. Ainda assim, tais factos continuam sem demonstrar e pesar qual é o suposto benefício da herança, continuando a desconhecer-se o passivo desta, o que é um elemento fundamental para aferir da prejudicialidade ou não para a massa insolvente.

IX. Aliás, mesmo que tal identificação e apreciação dos benefícios que a resolução traria para a massa insolvente fosse efectuada em sede de Contestação, a mesma não obviaria à nulidade da carta resolutiva, como bem tem decidido o nosso Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no seu Acórdão de 25/02/2014 (processo n.º 251/09.2TYVNG-H.P1.S1, in dgsi.pt).

X. Constatando-se que a Sentença do Tribunal “a quo” violou o disposto nos artigos 123.º e 121.º do CIRE, porquanto conferiu força resolutiva à comunicação endereçada pelo Exmo. Senhor Administrador de Insolvência quando esta foi completamente omissa quanto aos bens concretos integrantes da herança, quanto ao passivo da herança, não apreciando qual o seu impacto na massa insolvente e não demonstrando quais seriam as eventuais vantagens da resolução perante um passivo da herança que ainda hoje se desconhece, padecendo, pois, a carta resolutiva de nulidade – que se impunha determinar.»


A R. Massa Insolvente contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações da apelante resulta que a matéria a decidir se resume a apurar se, como entendeu o tribunal recorrido, deverá improceder o pedido de declaração de ineficácia da resolução em benefício da massa insolvente da doação em causa nos autos – ou, dito de outro modo, saber se a comunicação de resolução desse contrato, formulada pelo administrador de insolvência e dirigida à adquirente (impugnante da resolução e ora recorrente), satisfazia os requisitos formais necessários para que a mesma tivesse validade e eficácia resolutiva.

Cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, não sujeitos a impugnação, que aqui se aceitam (cfr. artº 663º, nº 6, do NCPC) e que, para melhor análise, se passam a reproduzir:

«1. Por carta registada datada de 10-07-2015 foi comunicada pelo Sr. A.I. (…), a (…), sob o assunto: “Resolução de doação da herança aberta por óbito de (…)”, com referência: “Processo n.º 2048/15.1T8STB Comarca de Setúbal – Setúbal – instância Central – Secção de Comércio J2; Insolvência: … (NIF …), o seguinte:

“Exma Senhora,

Nos termos do disposto nos artigos 120º, 121º e 123º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), comunico a V. Exa. o seguinte:

1.º Por sentença proferida nos autos de processo n.º 2048/15.1T8STB, a correr termos no tribunal de Comarca de Setúbal – Setúbal – instância Central – Secção de Comércio J2, datada de 12 de Março de 2015, foi V. Exa declarada insolvente.

2.º Fui nomeado Administrador de Insolvência naquela sentença, incumbindo-me o Tribunal, entre outras funções, de proceder à apreensão para a massa insolvente dos bens que à data da insolvência se mantinham na sua titularidade, bem como daqueles que nela se manteriam, caso não houvesse sido praticado por V. Exa actos prejudiciais para a massa.

3.º Nessa medida, e havendo actos prejudiciais, cumpre-me em representação da massa insolvente, proceder à resolução desses actos.

4.º Ora, na Assembleia de Credores, realizada em 25 de Maio de 2015, tomei conhecimento de que a insolvente era herdeira de um património.

5.º Tendo procedido a buscas nesse âmbito, verifiquei que V. Exa, por escritura lavrada em 20 de Fevereiro de 2015, exarada a fls. 104 do livro de notas para escrituras diversas número (…) procedeu à doação da herança que lhe cabia por óbito de seu pai, (…), natural da Freguesia de (…), falecido em 21 de Agosto de 2012, no estado de casado com (…), sob o regime da comunhão de adquiridos, residente que foi na Quinta (…), lote (…) Quinta do (…), Palmela.

6.º Ora, tendo a insolvente direito a um quinhão na referida herança aberta por óbito de (…), com NIF (…), verifica-se que a doação do mesmo se trata de um acto prejudicial para a massa insolvente.

7.º Essa doação cabe na previsão da alínea b) do art. 121º do CIRE, na parte que determina que são resolúveis em benefício da massa insolvente, sem dependência de quaisquer outros requisitos, os actos “celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência.”

8.º Assim, através da presente comunicação, resolvo incondicionalmente o negócio jurídico unilateral não receptício pela qual a doação à sucessão por óbito de (…), devendo V. Exa. continuar a figurar no mapa dos sucessíveis e considerado como herdeira.

9.º Independentemente de prazo, consideram-se sempre prejudiciais à massa os actos celebrados a título gratuito pelo devedor e que não sejam conforme com os usos sociais – vide n.º 3 do artigo 120º do CIRE, conjugado com a alínea b) do n.º 1 do artigo 121º do mesmo diploma legal;

10.º Na realidade, por meio do referido negócio jurídico, o património de V. Exa. ficou diminuído em relação ao quinhão a que tinha direito, tendo aumentado o património de terceiros.

11º Além disso, o negócio em causa foi celebrado de má-fé, atendendo a que em 20 de Fevereiro V. Exa já era conhecedora da existência de situações devedoras para com alguns dos credores reclamantes no processo de insolvência.

12.º Finalmente, informo que me encontro em tempo para a presente resolução nos termos do n.º 1, do artigo 121º, do CIRE.

Face ao exposto

Declaro incondicionalmente resolvido e ineficaz a doação à herança, outorgada em 20 de Fevereiro de 2015, a fls. … do livro de notas para escrituras diversas n.º …, do Cartório Notarial da Quinta do (…), através da qual V. Exa doou à sucessão por óbito de (…), sendo que, nos termos do n.º 1, do artigo 126º do CIRE, deve o quinhão que V. Exa tem nos imóveis e móveis da herança, acima identificados, ser restituído à massa insolvente, no prazo de 15 (quinze) dias.”

2. No dia vinte de Fevereiro de dois mil e quinze no Cartório Notarial sito na Praceta Abel Salazar, lote 41, Loja B, Urbanização Cova dos Vidros, Quinta do Conde, foi outorgada escritura pública de doação, nos seguintes termos:

“Compareceu com outorgante:

(…), divorciada, natural da freguesia de São Sebastião da Pedreira, Concelho de Lisboa, residente no Beco do Areeiro, Pátio das (…), Vivenda D, (…), Sesimbra, NIF (…).

(…)

DISSE A OUTORGANTE:

Que pela presente escritura e pelo valor de dezasseis mil euros, doa, por conta da quota disponível de seus bens, a sua filha:

(…), solteira, menor, nascida em vinte e sete de Maio de mil novecentos e noventa e sete, e consigo residente,

O QUINHÃO HEREDITÁRIO, correspondente a um quarto, que lhe pertence na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai:

(…), natural que foi da freguesia de (…), Concelho de Ribeira de Pena, falecido em vinte e um de Agosto de dois mil e doze, na freguesia de Setúbal (São Sebastião), concelho de Setúbal, com a sua última residência habitual na Quinta da (…), lote 108-109, Quinta do (…), Palmela, no estado de casado com o regime de comunhão de adquiridos com (…), em primeiras e únicas núpcias de ambos.

Mais declara que o quinhão hereditário que lhe cabe na herança aberta por óbito de (…) compreende bens móveis e imóveis a que atribui ao respectivo quinhão hereditário o valor de dezasseis mil euros.

ASSIM O DISSE E OUTORGOU.

VERIFIQUEI:

Que a outorgante se encontra habilitada como herdeira de (…), por escritura de habilitação de herdeiros outorgada neste Cartório Notarial em vinte e oito de Novembro de dois mil e doze, iniciada a fls. (…) do livro de notas para escrituras diversas número (…).

(…)”

3. Por sentença proferida em 26-03-2015 foi (…) declarada insolvente;

4. A insolvente apresentou-se à insolvência em 10-03-2015;

5. (…), nascida em 27 de Maio de 1997, é filha de (…) e (…), ora insolvente;

6. (…) reside com a insolvente na Rua do (…), Beco das (…), vivenda D. (…), 2970-318 Sesimbra;

7. O valor patrimonial dos bens que integram a herança ascende a € 134.474,72;

8. A herança de (…) é composta por metade dos seguintes prédios:

a. Prédio Urbano sito na Quinta da (…), II, 1.ª fase, lote (…), (…), freguesia da Quinta do Anjo, Concelho de Palmela, constituído por terreno para construção com a área total de 350 m2, inscrito na matriz urbana sob o artigo (…) e descrito na conservatória do registo predial de Palmela sob o nº (…), a que foi atribuído o valor patrimonial de 38.947,36 €;

b. Prédio urbano sito na Quinta da (…) II, 1ª fase, lote 109, (…), freguesia da Quinta do Anjo, Concelho de Palmela, constituído por terreno para construção, com a área total de 350m2, inscrito na matriz urbana sob o artigo (…) e descrito na conservatória do registo predial de Palmela sob o nº (…), a que foi atribuído o valor patrimonial de 38.947,36 €;

c. Prédio urbano sito na Rua 3, Vivenda (…), Belas, União de freguesias de Queluz e Belas, Concelho de Sintra, inscrito na matriz urbana sob o artigo (…) e omisso na conservatória do registo predial, a que foi atribuído o valor patrimonial de 17.940,00 €;

d. Prédio urbano sito na Rua 3, anexo 2, vivenda (…), Serra da (…), Belas, União de freguesias de Queluz e Belas, Concelho de Sintra, inscrito na matriz urbana sob o artigo (…) e omisso na conservatória do registo predial, a que foi atribuído o valor patrimonial de 20.170,00 €;

e. Prédio urbano sito na Rua 3, anexo 1, Vivenda (…), Serra da (…), Belas, União de freguesias de Queluz e Belas, Concelho de Sintra, inscrito na matriz urbana sob o artigo (…) e omisso na conservatória do registo predial, a que foi atribuído o valor patrimonial de 18.470,00 €.

9. O quinhão hereditário da insolvente ascenderia a ¼ da herança, correspondente ao valor patrimonial de € 16.809,34;

10. O passivo da insolvente encontra-se fixado em € 136.657,22 na sentença proferida no apenso A – reclamação de créditos;

11. A insolvente é mãe de (…) nascida em 28-04-2003; (…) nascido em 9-01-2006; (…) nascido em 2 de Abril de 2013.»


B) DE DIREITO:

1. Comece-se por sublinhar que, atentas as conclusões das alegações de recurso supra transcritas, se pode afirmar que a A. recorrente vem formular, perante este tribunal de recurso, argumentos que nada trazem de substancialmente novo face à fundamentação apresentada pelo tribunal recorrido, que contraria o essencial dessa argumentação. E, nesse contexto, cumpre, desde já, consignar que se nos afigura ser inquestionável o acerto da decisão recorrida, a qual sobre os tópicos suscitados pela A. se pronunciou proficientemente, em termos que merecem a nossa plena adesão. Em todo o caso, passaremos a uma análise sucinta das questões enunciadas nas alegações de recurso.

Está em causa nos presentes autos a aplicação do artº 121º do CIRE, o qual se subordina a alguns princípios estabelecidos no precedente artº 120º. Dispõe o nº 1 deste artº 120º que, em determinadas condições, «podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa», esclarecendo o nº 2 que «consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência», para de seguida determinar o nº 3 que «presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, os actos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte», ou seja, no artº 121º do CIRE. Esta disposição legal, sob a epígrafe «resolução incondicional», e depois de consagrar a regra de que «são resolúveis em benefício da massa insolvente os actos seguidamente indicados, sem dependência de quaisquer outros requisitos», inclui entre tais actos de resolução incondicional, e conforme dispõe a alínea b) do nº 1, os «actos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio de herança ou legado, com excepção dos donativos conformes aos usos sociais».

Não oferece dúvida que uma doação integra o conceito de «acto celebrado pelo devedor a título gratuito». No caso concreto, também não merece contestação que o acto em apreço foi praticado dentro do quadro temporal de 2 anos definido na norma respectiva: a escritura de doação é datada de 20/2/2015 (facto sob o nº 2 supra) e o início do processo de insolvência ocorreu em 10/3/2015 (facto sob o nº 4 supra). Estamos claramente perante acto que integra a citada alínea b) do nº 1 do artº 121º do CIRE. E resulta da combinação entre o nº 3 do artº 120º e o proémio do nº 1 do artº 121º que aos actos elencados neste nº 1 corresponde uma presunção inilidível de prejudicialidade para a massa insolvente. Trata-se de entendimento, aliás, pacificamente aceite na doutrina: assim o sustentam, v.g., CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, ao afirmar que «consigna o CIRE uma presunção inilidível de prejudicialidade de todos os actos referidos no artº 121º», o que se extrai das expressões «sem admissão de prova em contrário», do nº 3 do artº 120º, e «sem dependência de quaisquer outros requisitos», do proémio do nº 1 do artº 121º, sendo que a referência a estes «outros requisitos» significa «a desnecessidade de mais requisitos além dos que constam em cada uma das suas alíneas» (in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2013, pp. 526 e 530).

Esta consequência da incondicionalidade estabelecida no artº 121º retira, pois, qualquer viabilidade ao argumento da apelante de que seria necessário averiguar, em concreto, se haveria um efectivo prejuízo para a massa (o que, supostamente, imporia uma indagação sobre um eventual passivo associado ao quinhão hereditário objecto do acto de doação). Esse prejuízo presume-se, de forma inilidível, dispensando a indagação sobre um tal passivo – o qual, aliás, nem sequer se procurou alegar (concretizando-o) e provar. Apurou-se até que esse quinhão é composto, pelo menos, por parte de 5 prédios urbanos, e que o seu valor ascende a cerca de 16.000,00 € (cfr. factos sob os nos 7 a 9): se ainda houvesse que se demonstrar um efectivo (que não inilidivelmente presumido) prejuízo para a massa insolvente, e na falta de prova em contrário, tanto bastaria para fundamentar a existência de um óbvio prejuízo para a massa decorrente da doação em apreço.

Quanto ao argumento de que tal doação configuraria um «donativo conforme aos usos sociais» (sustentado pela apelante na acção, mas não retomado em sede de recurso), também se nos afigura desrazoável, quer porque não existe prova da pretensa última vontade do de cujus de beneficiar a neta, aqui A. e apelante, quer porque (ainda que existisse tal prova) não ser conforme a qualquer uso social conhecido a doação de bens de significativa valia por meras razões afectivas e que têm o efeito objectivo claro de frustrar o cumprimento de dívidas do doador, prejudicando os seus credores.

Resta, assim, considerar a argumentação respeitante a uma pretensa nulidade da comunicação da resolução, efectuada pelo AI à beneficiária do acto de doação, aqui A. e apelante. O teor da carta de resolução (que cumpriu os requisitos de forma previstos no artº 123º do CIRE – e sem que tal tenha sido contestado pela apelante) encontra-se reproduzido supra (cfr. facto sob o nº 1) e dele resulta, sem margem para dúvida, uma cabal identificação do objecto da resolução: a concreta e específica escritura pública de doação celebrada pela insolvente em benefício da sua filha, aqui A. e apelante, respeitante à parte daquela na herança por óbito do seu pai, lavrada em cartório notarial no dia 20/2/2015 (tudo mediante a indicação dos elementos identificativos inscritos no ponto 5º dessa carta). Não obstante alguma imprecisão terminológica usada nessa carta (v.g., «doação à sucessão» ou «doação à herança»), afigura-se inequívoco o significado dessa carta, o seu destinatário (a A. apelante, enquanto beneficiária da doação) e a compreensão do seu sentido pelo destinatário (que percebeu do modo pleno o seu alcance, como o próprio acto de impugnação, e os seus termos vertidos na petição inicial da presente acção apensa, manifestamente evidenciam).

Apenas subsistirá uma questão: a de saber se essa comunicação de resolução teria de ser mais completa, designadamente identificando o activo integrante do quinhão hereditário (e também o passivo, como sustenta a apelante). Quanto ao passivo, a incondicionalidade da resolução em presença – tal como supra se demonstrou – sempre determinaria a exclusão da necessidade de uma tal identificação. Já quanto ao activo, poderia pretender-se que seria de exigir uma especificação dos bens integrantes da herança. Porém, não se crê que tal seja necessário: o quinhão hereditário foi identificado e a resolução abrange, inelutavelmente, todos os bens que o compõem, sendo despicienda uma pormenorização que nada acrescenta à percepção pelo destinatário da resolução do objecto da mesma.

A este propósito, podemos, aliás, convocar a discussão que sobre esta questão do âmbito da identificação do objecto da resolução se tem desenvolvido na doutrina e na jurisprudência – para o que passarão a transcrever, na parte relevante, excertos do Ac. RE de 29/1/2015, por nós subscrito e proferido no Proc. nº 157/13.0TBCUB-F.E1 (in www.dgsi.pt):

«(…) Para a utilização do mecanismo da resolução em benefício da massa insolvente, o CIRE basta-se, como resulta do disposto no nº 1 do artº 123º, com o simples envio pelo administrador da insolvência de uma carta registada com aviso de recepção. Como declaram CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, a lei satisfaz-se com uma «exigência de formalidades mínimas, na declaração, o que se compreende dada a natureza da situação» (ob. cit., p. 536). Ora, esta menor exigência de solenidade da declaração afigura-se-nos um indicador seguro de que a declaração não tem de ser particularmente exaustiva, nem tem de conter uma descrição factual muito minuciosa: se não se impôs o exercício da resolução por via judicial, então não tem a respectiva declaração de se apresentar como se de uma petição inicial de acção de resolução se tratasse, com uma rigorosa e completa enunciação dos factos que fundamentam a resolução.
Será bastante uma sumária indicação dos elementos que permitam ao destinatário compreender em que circunstâncias se funda a pretensão de resolução. (…). E tanto essa comunicação foi suficientemente percebida na sua dimensão fáctica, que o destinatário da mesma pôde amplamente opor-se à resolução através da presente acção de impugnação, expondo um vasto argumentário factual e jurídico com que pretende contrariar a ocorrência dos requisitos da resolução.
Alguma divergência jurisprudencial parece existir sobre este ponto – e disso dá cabal notícia (…) ANA PRATA, JORGE MORAIS CARVALHO e RUI SIMÕES, ob. cit. [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, Coimbra, 2013], pp. 359-360 –, podendo identificar-se um núcleo de opiniões mais exigentes quanto ao conteúdo da declaração de resolução, que teria de conter uma descrição completa e exaustiva dos fundamentos da resolução (neste sentido, v., por todos, Ac. RG de 12/4/2011, Proc. 1264/09.0TBVCT-P.G1, in www.dgsi.pt, citado também pelos referidos autores), por oposição a outros entendimentos, que consideram que «as cartas resolutivas apenas carecem de indicação genérica e sintética dos pressupostos que fundamentam a resolução» (assim, Ac. RP de 29/9/2009, Proc. 252/06.2TBMDB-K.P1, idem). Pelas razões já acima expostas, aproximamo-nos deste último entendimento, sem prejuízo de aceitar, como alguma jurisprudência vem afirmando, que aquela declaração de resolução não pode ser também tão escassa que necessite ser depois suprida na contestação da acção de impugnação. Mas, reafirmando o que ficou dito, e em aplicação de tal critério (mesmo nessa mencionada versão mitigada), não se nos oferece dúvidas de que a comunicação em causa nos autos cumpriu suficientemente as exigências legais estabelecidas para a comunicação de resolução, pelo que é de excluir a ocorrência da sua pretensa nulidade.»

Tal como nesse outro caso decidido por este colectivo, e por idênticas razões, também aqui se nos afigura ser a carta de resolução, enviada pelo AI à aqui A. e apelante, enquanto beneficiária da doação em apreço, plenamente válida e eficaz, cumprindo as exigências legais impostas a tal comunicação – assim sendo de rejeitar a arguição da sua nulidade, de que decorre a validade da resolução e a improcedência da impugnação deduzida pela A. na presente acção.

Acolhem-se, assim, os fundamentos da decisão recorrida e não se vislumbra, pois, qualquer razão para alterar o que foi decidido na 1ª instância. E assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

2. Em suma: concorda-se com a decisão, formulada pelo tribunal a quo no despacho saneador, de improcedência da impugnação da resolução em benefício da massa insolvente e de validade da comunicação de resolução (com a consequente improcedência do pedido de declaração da nulidade desta), pelo que não merece provimento o presente recurso.


III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a presente apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela A. apelante, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe tenha sido eventualmente concedido (na sequência do seu pedido documentado a fls. 10-12).

Évora, 13 / 07 / 2013
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)