Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
43364/19.7YIPRT.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: ÁGUAS
CONTRATO DE FORNECIMENTO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Em face do artigo 4.º do ETAF, na redação vigente à data da propositura da ação mas com a interpretação que lhe foi dada pela Lei n.º 114/2019, de 12.09.2019, o tribunal competente para dirimir o litígio em causa nos presentes autos relacionado com o incumprimento, por mora, de um contrato que tem por objeto o fornecimento de água para consumo doméstico, é o tribunal judicial, in casu, o juízo de competência genérica de Lagos, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 43364/19.7YIPRT.E1
(1.ª Secção)

Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
Águas da Região de Aveiro, SA, autora na ação especial de cumprimento de obrigação pecuniária que moveu contra (…) interpôs recurso da sentença do Juízo de Competência Genérica de Lagos, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o qual, julgando verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, declarou-se incompetente em razão da matéria para apreciar o mérito da ação e competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.

Na ação, a autora pediu a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global de € 290,95, sendo € 166,32 por serviços de fornecimento de água que não foram pagos, € 3,908 por juros de mora, € 51,80 relativo a outras quantias que não discrimina e € 66,85 a título de taxa de justiça que pagou.
Para fundamentar o pedido, a autora alegou, em síntese, que no âmbito da sua atividade de fornecimento de serviços de fornecimento de águas emitiu várias faturas no valor supra referido em nome da ré e relativas ao período de 6 de novembro de 2018 a 30 de abril de 2019 e melhor identificadas na petição inicial.
A ré deduziu oposição, admitindo ter celebrado o contrato em causa, em 11 de julho de 2018, relativo a um estabelecimento comercial onde exercia a atividade de restauração e que na sequência da cessação da sua atividade, em 23 de novembro de 2018, cessou o contrato que mantinha com a autora, tendo nessa data subscrito um documento de confissão de dívida e celebrado um acordo de pagamento com a autora ao abrigo do qual pagou três das prestações acordadas.
A autora apresentou resposta à exceção de pagamento parcial (cfr. fls. 27-29 dos autos).
Após ter concedido às partes prazo para o exercício do contraditório relativamente à exceção de falta de competência material do tribunal para conhecer do mérito da causa, o tribunal recorrido proferiu a decisão objeto do presente recurso.

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1. Conforme resulta do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), o âmbito da jurisdição administrativa em matéria contratual não depende do carácter jurídico-administrativo do contrato.
2. Não se aplica o artigo 4.º, n.º 1, alínea d), do ETAF, dado não estarem perante a fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes públicos;
3. A alínea f), do n.º 1 do artigo 4.º, apenas atribui competência à jurisdição administrativa para apreciar litígios de responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4;
4. A relação material em litígio é de natureza manifestamente privada e contratual, pois é pedido a condenação do cliente/consumidor final no pagamento de determinado montante referente aos serviços prestados de água e saneamento, sendo a causa de pedir a violação da relação sinalagmática pelo não pagamento do preço acordado e não do foro administrativo, não se alicerçando no disposto no art.º 4, n.º 1, alíneas d) e f), do ETAF, estando excluída a sua aplicação;
5. O contrato dos autos (contrato de fornecimento de água), para efeitos de critério de justiciabilidade administrativa, é um contrato de consumo, regulado no âmbito do direito privado, de uma relação de consumo, que não se celebra em substituição de qualquer ato administrativo;
6. Apesar de ser objeto de uma regulação específica, está longe de se poder considerar uma regulação baseada em normas de direito público, antes tal regulação é, pelo menos nos anos mais recentes, claramente, a proteção do consumidor no contexto de uma relação de consumo de um serviço público essencial.
7. Sempre se dirá que o contrato de fornecimento de água seria qualificado como contrato de direito privado ainda que o fornecimento de água fosse efetuado por uma entidade pública.
8. O contrato dos autos não foi expressamente submetido pelas partes a um regime substantivo de direito público;
9. A competência dos tribunais administrativos em matéria de contratos da Administração (em sentido lato) não depende (apenas) da administratividade, mas antes de outros critérios que inspiram as alíneas do artigo 4.º do ETAF, sobre o âmbito da jurisdição administrativa relativa a contratos;
10. Os contratos de fornecimento de água por empresas como a da Recorrente não entram em nenhum dos preceitos constantes do ETAF, antes ordenam-se no âmbito do direito privado: são contratos de direito privado;
11. Da interpretação do ETAF resulta que, só a ordenação dos mesmos como contratos administrativos seria suscetível de os reconduzir à jurisdição dos tribunais administrativos.
12. Os contratos de fornecimento de água não são administrativos pela simples razão de que não são objeto de uma regulação baseada em normas de direito administrativo; trata-se de contratos de consumo, em parte regulados por normas que protegem precisamente os direitos dos consumidores/utentes - Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, Lei dos Serviços Públicos Essenciais;
13. Estamos perante uma simples cobrança de dívida civil, por uma empresa privada, regulada pelas regras do direito privado.
14. A Recorrente é uma empresa privada, que não atua munida de poder soberano na sua relação com o consumidor, antes atua, perante este, em situação de paridade.
15. Não está aqui em discussão nem consubstancia o pedido ou a causa de pedir tal qual foi apresentada pela ora recorrente, a relação entre a Recorrente e os entes públicos indicados no Contrato de Parceria,
16. Muito menos a correta ou incorreta determinação do preço ou das taxas devidas pela prestação do serviços e/ou pela utilização do domínio público, está em apreço nos autos,
17. Ou sequer a validade das clausulas contratuais subjacentes à prestação do serviço não pago.
18. Estamos perante uma ação tem por objeto o pagamento de valores constantes de faturas, mais juros à taxa legal para juros cíveis e ou comerciais, nos termos da fruição do uso do contador e da água consumida, pela qual foram emitidas faturas que não se mostram pagas.
19. Uma ação que tem por base uma relação jurídica de direito privado, e consubstancia uma situação de incumprimento das obrigações contratuais assumidas,
20. Obrigações que tendo natureza civil, regem-se, pelas normas dos contratos civis, estando em causa a apreciação de pressupostos da responsabilidade e do incumprimento e mora contratuais nos termos da lei civil – arts. 762 e segs., 792 e segs. art. 806, todos do CC.
21. A sujeição à jurisdição civil em face do incumprimento contratual é similar à que resulta da falta de pagamento de uma fatura de eletricidade ou de uma fatura emitida por operadora de telemóveis ou de comunicações eletrónicas – Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, Lei dos Serviços Públicos Essenciais;
22. Aqui o interesse que se satisfaz, com o fornecimento do serviço é o interesse particular do consumidor, ainda que no âmbito da prestação de serviços públicos essenciais;
23. Ficando toda a entidade pública ou privada que o preste independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão, sujeita a um regime substantivo de direito privado que regula essa mesma prestação;
24. Num caso e noutro não se podem enquadrar as relações contratuais estabelecidas entre a empresa prestadora do serviço e o consumidor em realidade materialmente sujeita a jurisdição administrativa;
25. Não se confunda, a questão da determinação da qualificação da relação jurídica com a prestação de serviços essenciais, transversal aos serviços de fornecimento de água, eletricidade e comunicações telefónicas, entre outros;
26. Não se confunda, ainda, a prerrogativa de contratar ou não contratar e/ou negociar ou não negociar o preço do serviço com a aplicação de normas de direito público versus normas de direito privado;
27. Porquanto essa mesma questão, no âmbito dos contratos de adesão e do “monopólio” que certas empresas tem na distribuição de certos serviços (o caso da EDP, durante tanto tempo, entre outras) é questão distinta que em nada condiciona a atribuição da competência de um tribunal em razão da matéria;
28. Determinada e qualificada, que está, a relação jurídica tal qual foi configurada pelo Autor no processo;
29. Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram pelo que só será competente o tribunal judicial (comum) se a causa não estiver inserida por lei na competência dos tribunais administrativos;
30. Assim, é perante os termos em que é estruturada a petição inicial que se afere se, atentos os contornos objetivos (pedido e seus fundamentos) e subjetivos (identidade das partes) da ação, a sua apreciação se enquadra na competência dos Tribunais Administrativos ou na competência dos tribunais judiciais comuns;
31. Os atos de gestão privada são, de modo geral, aqueles que, embora praticados por órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares, são atos em que o Estado ou pessoa coletiva pública intervém como um simples particular, despido do seu poder de soberania ou do seu “jus imperium”;
32. O presente diferendo insere-se estritamente nas relações entre a ora Recorrente e os consumidores/utilizadores, pedindo aquela o pagamento das quantias devidas pelo fornecimento de água a que estava obrigada por força do contrato de fornecimento, centrando-se o diferendo no volume e pagamento do preço da água;
33. Baseando-se num contrato que se ordena no âmbito do direito privado;
34. Na data de 12.09.2019, foi publicada a Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, que procedeu à décima segunda alteração ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, tendo procedido à alteração de vários artigos, entre os quais os artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro;
35. As alterações introduzidas pelo legislador, tiveram como propósito e, de forma expressiva, dirimir a questão relativamente à competência material quando estamos perante a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva, como é a situação dos presentes autos, pois conforme dispõe o artigo 4.º, n.º 4, alínea c), do ETAF, com as mais recentes alterações, que “Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal” “A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.”, assim podemos concluir que são os tribunais judicias materialmente competentes para o fazerem.
36. Em suma: impõem-se agora, sem margem para polémica, a competência residual do tribunal comum.
Pelo que deve ser dirimido nos Tribunais Judiciais, tendo Tribunal da Comarca de Faro – Juízo de Competência Genérica de Lagos, competência material.
Foram violados os artigos 64º e 65.º, 96º, 97º, n.º 2, 99º, n.º 1, 278º, n.º 1, al. a), 576º, n.º 2, 1.º parte, 577º, 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil, bem como o artigo 1.º, n.º 1, do ETAF, e ainda, os artigos 211º, 1 e 212, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
Não deveria ter tido aplicação o disposto no artigo 4.º do ETAF.
Assim, revogando V.ªs Ex.ªs a decisão recorrida, julgando materialmente competente o Tribunal da Comarca de Faro – Juízo de Competência Genérica de Lagos, estarão a fazer a acostumada e merecida JUSTIÇA.»

I.3.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no art. 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (art. 608.º, n.º 2 e art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (arts. 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
No caso, a única questão que cumpre apreciar é a de saber qual o tribunal materialmente competente para conhecer e decidir do presente litígio relacionado com a cobrança coerciva de serviços de fornecimento de água para consumo prestados pela autora à ré.
II.3.
Na sentença recorrida não foram discriminados quaisquer factos provados.
Extrai-se, todavia, dos autos a seguinte factualidade:
1 – A Autora e a ré celebraram, em 11.07.2018, um contrato denominado de fornecimento de águas e/ou saneamento de águas residuais, mediante o qual a primeira se obrigou a prestar à segunda na morada Rua Doutor (…), n.º 88, r/c poente, em (…), serviços de abastecimento de águas e/ou saneamento de águas residuais.
2 – No âmbito do referido contrato, a autora emitiu as faturas melhor identificadas no requerimento inicial, relativas ao período compreendido entre 05.12.2018 e 30.04.2019.
3 - A autora é uma sociedade anónima, com o n.º de pessoa coletiva n.º (…), integrada no setor empresarial do Estado, com capital exclusivamente público.
4 – Por contrato de parceria pública celebrado em 29.07.2009 entre o Estado Português e o conjunto dos Municípios de Águeda, Albergaria-a-Velha, Aveiro, Estarreja, Ílhavo, Murtosa, Oliveira do Bairro, Sever do Vouga, Vagos e, também, por adenda ao referido contrato, datada de 30.06.2010, também Ovar, os referidos Municípios decidiram agregar os respetivos sistemas municipais de abastecimento de água para consumo público e de saneamento de águas residuais urbanas, num sistema territorialmente integrado denominado SARA (Sistema de Águas da Região de Aveiro).
5 – Nos termos do supra referido contrato, os referidos Municípios acordaram em delegar no Estado as respetivas competências municipais relativas à gestão e exploração dos serviços públicos de abastecimento de água para consumo público e saneamento de águas residuais urbanas aos utilizadores finais.
6 – Mediante contrato de gestão, outorgado em 23.09.2009, entre o Estado, os Municípios acima mencionados e a AdRA-Águas da Região de Aveiro, SA, a esta foi atribuído, na qualidade de “Entidade Gestora da Parceria”, e em regime exclusivo, a exploração e gestão dos serviços públicos de abastecimento de água para consumo público e saneamento de águas residuais urbanas.
7 – Para efeitos da Parceria acima mencionada, os Municípios afetaram ao Contrato de Gestão as infraestruturas, os equipamentos e os contratos indispensáveis à gestão do Sistema de Águas da Região de Aveiro (SARA).

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
Está em causa no presente recurso decidir quais os tribunais que são materialmente competentes para decidir litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços de abastecimento de água e saneamento, designadamente, relacionados com o incumprimento, por mora, de contrato que tem por objeto o fornecimento de água para consumo doméstico, como sucede, in casu.
O tribunal recorrido decidiu que são os tribunais da jurisdição administrativa e tributária ao passo que a recorrente entende que os tribunais materialmente competentes para dirimir o litígio em causa nos autos são os tribunais judiciais.
Apreciando.
Resulta da conjugação do disposto no art. 64.º do Código de Processo Civil e do art. 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário que os tribunais judiciais têm uma competência residual, isto é, têm competência para decidir as causas que não sejam atribuídas a outros tribunais.
Já os tribunais administrativos e tributários têm a sua competência limitada às causas que lhes são especialmente atribuídas.
Como ponto prévio dir-se-á ser pacífico que a competência em razão da matéria se deve aferir em face da relação jurídica tal como configurada pelo autor no seu requerimento inicial, isto é, de acordo com os termos da pretensão do/a autor/a, compreendendo os respetivos fundamentos.
No caso sub judice, a ação, tal como foi configurada pela autora, funda-se no incumprimento contratual da ré, por mora, de um contrato de prestação de serviços de abastecimento de água e saneamento outorgado entre a primeira e a segunda.
Os serviços em causa, a saber, abastecimento público de água e saneamento de águas residuais urbanas - estão compreendidos na exploração e gestão de um serviço de utilidade pública, tal como resulta do D/L n.º 194/2009, de 20.08 (diploma que estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos) e aos quais a autora/recorrente se obrigou no âmbito do contrato de gestão que outorgou com o Estado e um conjunto de Municípios, entre os quais o de Ovar, contrato que, por sua vez, surgiu na sequência do contrato de parceria pública outorgado entre o Estado e os Municípios de Águeda, Albergaria-a-Velha, Aveiro, Estarreja, Ílhavo, Murtosa, Oliveira do Bairro, Sever do Vouga, Vagos e Ovar (este último por adenda ao referido contrato, datada de 30.06.2010), celebrado ao abrigo do D/L n.º 90/2009, de 09.04 (diploma que veio estabelecer o regime das parcerias entre o Estado e as autarquias locais para a exploração e gestão de sistemas municipais de abastecimento público de água, saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos).
Os contratos de parceria pública e de gestão acima referidos são manifestamente contratos que visam prosseguir um interesse público, estando sujeitos a normas de direito público e a obrigações específicas de interesse público (cfr., por exemplo, arts. 5.º e 6.º, n.º 2 do supra referido D/L n.º 90/2009). Já o contrato cujo incumprimento está em causa nos autos é, tipicamente, um contrato de prestação de serviços de abastecimento de água e saneamento que tem por objeto o fornecimento de água para consumo e a correspondente contraprestação de pagamento do preço respetivo, sendo regulado por normas de direito civil. Assim se entendeu, por exemplo, e entre outros, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.05.2018, processo n.º 63246/17.4YIPRT[1], num caso semelhante ao dos autos, e em cujo sumário se escreveu: «I- O contrato de prestação de serviços de abastecimento de água e saneamento, tendo por objeto o fornecimento de água para consumo doméstico e a correspondente contraprestação de pagamento do preço respetivo, é um contrato estruturalmente civil. II- Aliás, atualmente, o próprio regime substantivo deste tipo de contratos tendo por objeto Serviços Públicos Essenciais obriga à sua caracterização como contrato de direito privado, por estarem regulados por regimes especificamente dirigidos à proteção dos consumidores, tais como a Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96, de 26/07) e a Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31/07).»
Não sendo a relação jurídica em causa regulada por normas de direito administrativo não se poderá afirmar que estamos perante uma relação jurídico-administrativa, pedra de toque para aferir se determinado conflito deve ser dirimido pelos tribunais administrativos, atento o disposto no art. 212.º, n.º 3, da Constituição da República e os arts. 1.º e 4.º da Lei n.º 13/2002, de 19.10, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, doravante designado por ETAF.
Contudo, antes da Lei n.º 114/2019, de 12.09.2019, que veio introduzir alterações no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei n.º 13/202, de 19.10, doravante designado por ETAF (tendo entrado em vigor em 12.11.2019, cfr. art. 6.º) a questão da competência dos tribunais judiciais ou administrativos para decidir os litígios em torno do cumprimento dos aludidos contratos era controvertida. Controvérsia que foi sanada em face da Lei n.º 114/2019 que introduziu uma alínea e) no n.º 4 do art. 4.º da ETAF com o seguinte teor: «Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva».
Resolvida de forma inequívoca pela norma da alínea e) no n.º 4 do art. 4.º da ETAF a questão sub judice sobre a competência dos tribunais administrativos ou judiciais, suscita-se o problema da aplicação no tempo dessa norma.
Pelo que importa aferir se a norma tem natureza interpretativa, na medida em que o efeito mais relevante da atribuição de «natureza interpretativa» a uma norma é a respetiva eficácia retroativa, nos termos estabelecidos pelo artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil: «A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza». Consequentemente, a retroatividade associada a uma norma interpretativa traduz-se na retroação dos seus efeitos à data da entrada em vigor da norma interpretada, apenas com a natural ressalva dos casos julgados, bem como das demais situações contempladas na norma do art. 13.º, n.º 1, do Código Civil.
Sendo certo que, em abstrato, é possível interpretação autêntica de uma norma anterior por via da edição de norma interpretativa posterior, para se qualificar uma norma como «interpretativa» devem ser preenchidas determinadas condições autónomas da respetiva qualificação legal expressa.
A ratio legis da alínea e) no n.º 4 do art. 4.º da ETAF é indissociável da controvérsia existente antes da sua entrada em vigor sobre a questão objeto da respetiva estatuição, como aliás, se revela pelo processo legislativo que culminou na respetiva aprovação. Com efeito, o diploma teve origem na Proposta de Lei n.º 167/XII, referindo-se no ponto III da respetiva exposição de motivos: «Cumpre realçar também as alterações propostas para o âmbito da jurisdição e da competência dos tribunais administrativos e fiscais. A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da lei dos Serviços Públicos/Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo» (itálicos nossos).
Embora o legislador não tenha dito no texto do diploma que a referida alínea e), do n.º 4 do art. 4.º do ETAF introduzida pelas Lei n.º 114/2019 seja uma lei interpretativa, resulta da interpretação histórico-teleológica que assim é.
A este propósito ensinava João Baptista Machado[2]: «São dois os pontos a esclarecer a propósito do art. 13.º: a questão da distinção entre lei interpretativa e lei inovadora e a questão do alcance ou dos limites da chamada retroatividade das leis interpretativas. O legislador pode declarar interpretativa certa disposição da LN, mesmo quando essa disposição é de facto inovadora. E por vezes, fá-lo. […] Na grande maioria dos casos, porém, o legislador não se preocupa com a classificação como interpretativas de normas que edita, que são efetivamente interpretativas e estão sujeitas, como tais, ao disposto no art. 13.º» Prosseguindo o autor sobre o critério de distinção entre lei interpretativa e lei inovadora: «ora, a razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar uma das interpretações possíveis da LA com que os interessados podiam e deviam contar, não é suscetível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas. Poderemos consequentemente dizer que são de sua natureza interpretativa aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu sentido controvertido, vem consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adotado. Não é preciso que a lei venha a consagrar uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior. Tanto mais que a lei interpretativa surge muitas vezes antes que tais correntes jurisprudenciais se cheguem a formar. Mas, se é este o caso, e se, entretanto, se formou uma corrente jurisprudencial uniforme que tornou praticamente certo o sentido da norma antiga, então a LN que venha consagrar uma interpretação diferente da mesma norma já não pode ser considerada interpretativa, mas inovadora.»
Avançando, Baptista Machado, para uma síntese conclusiva: «Para que uma LN possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar a solução que a LN vem consagrar, então esta é decididamente inovadora».
Sendo clara a qualificação da norma objeto de análise à luz da conceção de Baptista Machado, a mesma ainda se apresenta mais inequívoca à luz da doutrina que, ao invés daquele autor, defende que há verdadeira retroatividade na lei interpretativa, como Oliveira Ascensão que conclui: «Se a lei nova vem regular o passado, então é necessariamente retroativa»[3] .
Retornando ao nosso tema específico, como se refere na decisão recorrida foram proferidos acórdãos pelo Tribunal dos Conflitos que permitiam identificar a existência de duas correntes jurisprudenciais, uma no sentido de que a jurisdição competente para conhecer do litígio referente à cobrança do(s) valor(es) devido(s) pela prestação de serviços públicos essenciais é a administrativa e outra que defendia que tal competência está atribuída aos tribunais comuns. E na exposição de motivos assinala-se a existência de controvérsias jurisprudenciais quanto à competência jurisdicional em matéria de “litígios relacionados com contratos prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais” e de conflitos negativos de competência bem como a necessidade de pôr um fim aos mesmos a bem da celeridade processual. Ou seja, parece não restar dúvidas que a norma contida no art. 4.º, n.º 4, al. e) do ETAF é uma lei interpretativa.
Nos termos do art. 13.º, n.º 1, do Código Civil «a lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença, passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de natureza análoga.»
Ou seja, a lei interpretativa aplicar-se-á a factos passados, excetuando nas situações previstas na 2.ª parte do art. 13.º, n.º 1 do CC.
Resulta, assim, do exposto que em face do art. 4.º do ETAF, na redação vigente à data da propositura da ação mas com a interpretação que lhe foi dada pela Lei n.º 114/2019, de 12.09.2019, o tribunal competente para dirimir o litígio em causa nos presentes autos é o tribunal comum, in casu, o juízo de competência genérica de Lagos, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro.
Procede, assim, a presente apelação.

Sumário:
(…)

III.
DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar procedente o recurso e, consequentemente, revogar a decisão da primeira instância, declarando o tribunal recorrido materialmente competente para a ação, determinando, em conformidade, o prosseguimento dos autos.
Sem custas na presente instância porquanto a recorrente já procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida e não há lugar ao pagamento de custas de parte.
Notifique.
Évora, 5 de Novembro de 2020
Cristina Dá Mesquita
José António Moita
Silva Rato

_________________________________________________
[1] Consultável em www.dgs.pt.
[2] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 25.ª Reimpressão, Almedina, p. 247.
[3] O Direito-Introdução e Teoria Geral, 13.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 561-565.