Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4604/15.9T9STB.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VIOLAÇÃO AGRAVADA
APRECIAÇÃO DA PROVA
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
PRESUNÇÕES
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 01/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - As regras de experiência comum autorizam a apreciar um comportamento determinado em função da cultura e comportamento social de um determinado povo, num tempo determinado. As presunções, ao invés, permitem partir de um facto conhecido para um facto desconhecido.

II - A presunção vive e gera factos. A regra de experiência comum é uma generalização, decorrente de observação empírica de factos anteriores, bastas vezes confundindo-se com pré-juízos, mesmo preconceitos, daí a necessária cautela no seu uso. Dar como provados, ou não, factos em função de regras de experiência comum – para mais com a largueza e o subjectivismo expostos, tal como feito pelo tribunal recorrido - não é admissível e atenta contra as balizas de racionalidade impostas pela ordem jurídica processual penal portuguesa.

III - A aceitação racionalmente acrítica e total do depoimento da menor, com a consequente exclusão de tudo o que o contradiga ou o ponha em dúvida, só pode partir de uma regra, a regra de que as vítimas de crimes sexuais e de violência doméstica nunca mentem. Algo que, fora do mundo jurídico, se propala, mas que aqui não pode ser aceite por ser a negação do processo justo e da própria natureza humana.

IV - Por outro lado, não se pode partir, para uma presunção simples, sem factos base e com uma regra tão geral como “este tipo de pessoa e neste tipo de crime fala verdade e quem a contraria mente”. É puro non sense. A base de partida tem que ser uma regra concretamente verificável e que seja comum à generalidade das pessoas.

V - E fazer operar uma presunção a partir de uma “regra” excessiva, não verificada, não resultante da experiência comum, não é permitido pela lógica, pela razão.

VI - Nas presunções de facto os factos não podem ser analisados em rede de malha larga. Exige-se uma fina filigrana de análise dos factos e da prova. Algo que faltou na motivação do tribunal recorrido. A função do tribunal recorrido era apreciar a prova e não aderir à prova.

VII - Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal conclui pela existência de factos assentes numa regra que não é de experiência comum e apenas corresponde a um convencimento subjectivo do juiz sem suporte objectivo e racional.

VIII - O sistema da livre convicção consagrado no ordenamento jurídico português não é um sistema irracionalista, subjectivo, de apreciação probatória, sim um sistema racionalista, assente na razão, nas regras de experiência social comprovada e em presunções probatórias racionalmente fundadas.

IX - Se o depoimento da menor sobre os crimes sexuais é pouco consistente e essa falta de consistência também é abalada por actos e condutas que a infirmam, não se pode erigir o seu depoimento como o parâmetro de decisão probatória.

X – Sendo o depoimento da menor o único elemento probatório dos factos imputados ao arguido - não corroborado por qualquer outro elemento de prova, mínimo que fosse – não é permitido concluir pela afirmação de que existe prova de que os factos ocorreram tal como descritos na acusação.
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


A - Relatório:
No Tribunal Judicial de Setúbal – Central Criminal J2 - correu termos o processo comum colectivo supra numerado no qual foi condenado o arguido AA, divorciado, nascido em 13/04/1961, natural de S. Sebastião, Setúbal, filho de …, residente na Rua…, Setúbal, imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de:

- Um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), 2, 4, 5 e 6 do Código Penal.

- Dois crimes de violação agravada, previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a), 177.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 7 do Código Penal.
*
A final - por acórdão lavrado a 09 de Abril de 2019 - veio a decidir o Tribunal recorrido condenar o arguido AA pela prática, como autor material e na forma consumada, e em concurso real, de:

- Um crime de violência doméstica, agravado, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1 al. b), n. 2 e n.º 4 do Código Penal, na pena de 2 anos 6 meses

- Um crime de violação agravada, p. e p. pelo art. 164º, º, al. a), e art. 177º, nº 7, do Código Penal, na pena de 6 anos;

- Um crime de violação agravada, p. e p. pelo art. 164º, º, aI. a), e art. 177º, nº 7, do Código Penal, na pena de 6 anos.

Em cúmulo jurídico foi o arguido AA condenado na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.
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O arguido, não se conformando com a decisão, interpôs recurso formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1. O presente Recurso tem por Objecto a Nulidade do Acórdão por Falta de Exame Critico da Prova, a Inconstitucionalidade da Norma constante do Artigo 127.º do Código de Processo Penal na dimensão normativa com que foi aplicada pelo Tribunal a quo no Acórdão Recorrido, a Matéria de Facto, a Matéria de Direito e a Dosimetria da Pena, Parcelares e Única, aplicada, pelo Tribunal a quo ao Recorrente, no Acórdão Recorrido e a Suspensão da sua Execução.

2. Em termos de Matéria de Facto impugna o Recorrente o teor do Acórdão Recorrido por manifesto Erro de Julgamento da Matéria de Facto submetida a apreciação do Tribunal a quo e pela Insuficiência da Prova produzida em Audiência de Julgamento, bem assim, como daquela que se encontra entranhada nos Autos para a Decisão da Matéria de Facto Provada.

3. Já no que respeita à Matéria de Direito impugna o Recorrente o teor do Acórdão Recorrido pela violação dos Princípios da Presunção da Inocência e In Dubio Pro Reo referente à sua Condenação pelos Crimes de Violência Doméstica Agravada e Violação Agravada.

Densificando,
4. O Acórdão Recorrido enferma de Nulidade por Falta de Exame Crítico da Prova visto que, não obstante referir nas páginas 10 a 17 dessa Decisão que para dar como provada essa factualidade socorreu-se das Declarações prestadas pelo Arguido, dos Depoimentos da alegada Vítima e das sete Testemunhas indicadas na Acusação e arroladas na Contestação e dos Relatórios de Exame Pericial e demais Documentos juntos aos Autos, as considerações tecidas, a esse propósito, pelo Tribunal a quo são manifestamente vagas e imprecisas e totalmente inexistentes no que respeita à Prova Pericial e Documental.

5. Com efeito, para esta finalidade, o Tribunal a quo não especificou, em termos minimamente aceitáveis, o motivo pelo qual entendeu que as Declarações do Arguido são desprovidas de credibilidade sejam por si sós, sejam por confronto com a restante Prova existente no Processo e produzida em Audiência de Julgamento, da mesma forma que não especificou ou sequer concretizou, de modo suficientemente claro e objectivo, o motivo pelo qual retirou credibilidade à restante Prova Testemunhal produzida em Audiência de Julgamento em face do que depôs a Testemunha FS.

6. A bem de ver, o Tribunal a quo, limitou-se a dar como provados determinados factos enunciando em seguida qual a Prova de que se terá socorrido para dar como demonstrados esses factos, e não se preocupou em especificar, nomeadamente, o motivo pelo qual, em termos lógicos essa prova difere, contraditando-a ou atestando-a, da restante.

7. Todavia, como V/Ex.ªs melhor sabem, o certo é que se impunha, em vista do exame crítico das Provas a que se refere a última parte do N.º 2 do Artigo 374.º do Código de Processo Penal, que se explicitasse de modo concreto e objectivo, designadamente, as razões que levaram o Tribunal a quo a descredibilizar, e porquê, as Declarações do Arguido, bem assim, como a considerar mais relevante o Depoimento de uma Testemunha do que todas as demais inquiridas no decurso do Processo e ouvidas em Audiência de Julgamento.

8. E assim sendo, tendo em conta o que se encontra articuladamente disposto no N.º 2 do Artigo 374.º e na alínea a) do N.º 1 do Artigo 379.º do Código de Processo Penal, está ferido de Nulidade que V/Ex.ªs sabiamente decretarão.

9. O Acórdão Recorrido padece de Erro de Julgamento da Matéria de Facto, porquanto, através do Julgamento da matéria que lhe foi dada a apreciar, deu por provados factos que se apresentam manifestamente inconciliáveis quer com a Prova produzida em Audiência de Julgamento, quer com a que se encontra junta aos Autos.

10. Em rigor, o que se teve como Provado está em manifesta desconformidade com o que realmente se provou e não provou em Audiência de Julgamento, desde logo, porque as conclusões vertidas no Acórdão Recorrido são claramente ilógicas e inaceitáveis.

11. A condenação do Recorrente, no âmbito da factualidade dada por provada, emerge de tudo o que se encontra vertido nos pontos 4 a 15 dos factos provados no Acórdão Recorrido, não obstante, a Prova produzida em Julgamento não permitir extrair estas ilações, ou, menos ainda, autoriza que se possam verter essas conjecturas na factualidade provada do Acórdão Recorrido.

12. A Prova produzida em Julgamento e incorporada nos Autos, na sua máxima avaliação, não permite considerar como praticados estes factos pelo Recorrente, é isto que resulta daquilo que se produziu em Julgamento, e dos próprios meios de Prova invocados pelo Tribunal a quo na sua motivação.

13. Sendo certo que a Prova que se produziu em Julgamento e toda aquela que se encontra junta aos Autos permite atestar que o Recorrente, nas circunstâncias de tempo, modo e espaço ali descritas, não agrediu, maltratou, ofendeu por que forma fosse ou violou a sua filha.

14. Acontece que a Prova que foi utilizada para fundamentar estas factualizações exige e impõe precisamente o seu contrário, isto é, a apreciação probatória de tudo o que se produziu em Julgamento, neste particular, exigia que o Tribunal a quo tivesse dado estes factos como Não Provados.

15. Dessas Declarações, Depoimentos e Documentação extrai-se que o Recorrente nada tem que ver com a prática dos Ilícitos que se descrevem ter ocorrido naquelas circunstâncias de tempo, modo e lugar, é isso que ressalta do Acervo Probatório constante dos Autos, melhor elencados na fundamentação do Acórdão Recorrido, e da demais Prova produzida em sede de Julgamento.

16. Escrutinados todos os Depoimentos prestados em Audiência de Julgamento constata-se que, com excepção do prestado por FS, nenhum facto com ressonância criminal, relacionado com os crimes de violência doméstica ou violação ou de qualquer outro, resulta demonstrado ter sido praticado pelo Recorrente, bem ao contrário disso, todas as Testemunhas foram peremptórias ao afirmar que o Recorrente sempre pautou a sua postura e comportamento como um pai preocupado, presente e dedicado com o salutar crescimento e desenvolvimento pessoal, académico e social da sua filha e que nunca percepcionaram ou lhes foi reportado por outrem qualquer agressão verbal ou física à FS.

17. Da Prova Testemunhal, isoladamente considerada ou em complemento com a demais Prova, advêm um conjunto de questões - cujas respostas foram totalmente descuradas pelo Tribunal a quo em sede de apreciação probatória - que assaltam não só o espirito do homem médio chamado a decidir como o do especialmente qualificado nesta matéria, da mesma forma que dos Relatórios de Exame Pericial e demais Documentação indicada no teor do Acórdão Recorrido, nada se retira que se possa afirmar que o Recorrente praticou qualquer um dos factos em que foi condenado.

18. O Tribunal a quo suportou a prática destes factos pelo Recorrente, única e exclusivamente, no que a FS depôs, isto mesmo, quando foram diversas as Testemunhas ouvidas em Julgamento, umas com mais outras com menos proximidade ao Recorrente, que afiançaram que a FS não tinha pudor em mentir fosse em que circunstância fosse e de que matéria se tratasse.

19. O Tribunal a quo, além do mais, deu sinais no teor do Acórdão Recorrido de ter efectuado uma apreciação probatória manifestamente tendenciosa e pró versão que pretendeu fazer vingar em sede de Decisão, o que para lá de ilegal é refractário da Prova produzida.

20. Para o atestar, bastará deitar os olhos na fundamentação do Acórdão Recorrido, em rigor no 3.º parágrafo da página 14 e no 2.º parágrafo da página 15, para se constatar que no entendimento do Tribunal a quo o Depoimento da Testemunha MG, num primeiro momento, não merece qualquer credibilidade, mas, num segundo momento, quando aproveitado para fundamentar a perspectiva que lhe interessa já tem todo o valor.

21. No caso concreto dos presentes Autos, contraria de forma flagrante não só as regras da experiência comum como a própria normalidade do acontecer que a alegada vitima dos factos (agressões verbais, físicas e violação), uma jovem à data de 12/13 anos de idade (de maturidade intelectual manifestamente superior à idade biológica), os venha reportar cerca de três anos depois deles terem ocorrido.

22. Sobretudo quando teve inúmeras possibilidades de o fazer às mais variadas pessoas, umas que lhes eram próximas, outras que lhe eram afastadas e nos mais diversos momentos.

23. E é por este conjunto de razões e motivos, e outros melhor explanados na motivação recursória, que se entende que o Depoimento prestado por FS não merece qualquer credibilidade e fiabilidade. Não o merece porque é todo ele falso. E não retractando a realidade do que aconteceu não podia ter sido levado em consideração pelo Tribunal a quo na condenação do Recorrente.

24. Por conseguinte, os segmentos probatórios mencionados no teor do Acórdão Recorrido, nomeadamente os Depoimentos das mencionadas Testemunhas e toda a referida Documentação, bem assim, como a demais Prova produzida em Julgamento, impunham que a matéria vazada nos referidos pontos da factualidade dada como provada seja ao invés, necessária e inevitavelmente, dada como Não Provada.

25. Do Acórdão Recorrido advém, também outro vício, a Insuficiência da Prova produzida em Julgamento para a Matéria de Facto que se vazou nos pontos 16, 17 e 20.

26. Isto porque, houve factualidades colhidas durante o Julgamento que não consentem, seja na sua objectividade, seja na sua subjectividade, dar os factos que foram vertidos nesses pontos do Acórdão Recorrido como provados.

27. Na verdade, em cada um destes pontos dos factos provados, está-se perante a formulação incorrecta de um juízo, em que a conclusão extravasou as suas premissas, isto é, a matéria de facto, efectivamente, provada é, manifestamente, insuficiente para fundamentar a solução de direito a que o Tribunal a quo logrou chegar neste particular, visto que, para além da versão dos factos trazida pela FS, indubitavelmente falsa por sinal, nenhuma Prova foi produzida em Audiência de Julgamento ou se encontra junta aos Autos que permita fundamentar estas factualizações.

28. A única Prova que o Tribunal a quo lançou mão para condenar o Recorrente foi a versão dos factos apresentada pela FS, mesmo quando contra essa narrativa militavam depoimentos da restante Prova Testemunhal, no caso sete testemunhas, e demais Prova existente nos Autos que colocam em causa as fundações dessa história.

29. O Tribunal a quo, de modo e forma não explicitada e justificada, atribuiu uma prevalência de credibilidade ao Depoimento de FS em detrimento de todos os outros, excepto quando deles pode retirar algo que lhe pareça substancial para reforçar a sua tese, contudo, quando surge o inverso, sem mais, o Tribunal a quo sonega-os com o manto da descredibilização por serem refractários daquilo que depôs FS.

30. Efectivamente o Tribunal a quo parte para o escrutino da Prova dando decerto que o depoimento da FS é totalmente verdadeiro e portanto credível, e em seguida submete os demais depoimentos e declarações do Recorrente a tudo o que se coadune com essa exposição: se algo se entrosar cristaliza-se imediatamente no reforço da credibilidade daquele depoimento; se ao contrário, por infelicidade da verdade, algo contender com essa crónica é expurgado e leva com o anátema da falsidade e, consequente, falta de credibilidade do depoimento e execração probatória de quem o proferiu.

31. Como V/Ex.ªs melhor sabem, o Princípio da Livre Apreciação da Prova previsto no Código de Processo Penal não permite contrariar a Prova produzida, muito menos decidir à revelia dos Princípios In dubio Pro Reo e da Presunção de Inocência, consagrados tanto na Constituição da República Portuguesa como na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, razão pela qual, em entendimento do Recorrente, estes factos, vertidos nos pontos 16, 17 e 20 da factualidade considerada provada, estão insuficientemente fundamentados.

32. O Acórdão Recorrido, além do já enunciado, violou os Princípios da Presunção da Inocência e In Dubio Pro Reo ao condenar o Recorrente pelos Crimes de Violência Doméstica Agravada e Violação Agravada.

33. Decorre do teor do Acórdão Recorrido que o Tribunal a quo condenou o Recorrente pela prática de Um Crime de Violência Doméstica Agravada e Dois Crimes de Violação Agravada por, no seu entendimento, estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos desses Tipos criminais.

34. Todavia, tal como decorre da impugnação da decisão sobre a matéria de facto efectuada pelo Recorrente nos pontos II.B, II.B.1 e II.C da Motivação deste Recurso, e para onde remete neste particular o Douto escrutínio de V/Ex.ªs, inexiste Prova suficiente, para além da dúvida razoável, de que o Recorrente praticou qualquer um desses factos.

35. Não resulta da Prova produzida em Julgamento, nem sequer da demais entranhada nos Autos, que o Recorrente, reiteradamente ou não, agrediu verbal e/ou fisicamente a sua filha, a ofendeu na sua honra e consideração, a atemorizou ou ameaçou com mal para a sua vida e integridade física ou a molestou sexualmente.

36. Por conseguinte, a condenação do Recorrente pela prática dos Crimes de Violência Doméstica Agravada e Violação Agravada, viola o Principio da Presunção da Inocência - acolhido no N.º 2 do Artigo 32.º da Constituição da Republica Portuguesa, N.º 2 do Artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e N.º 1 do Artigo 48.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - e o Principio do In Dubio Pro Reo.

37. Acresce que o Tribunal a quo fez uso da faculdade do Principio da Livre Apreciação da Prova, consagrado no Artigo 127.º do Código Processo Penal, numa perspectiva não conforme à Constituição da República Portuguesa.

38. O Acórdão Recorrido afirmando fixados, por presunção natural, factos que nem estão indiciados por quaisquer factos base, nem decorrem, por raciocínio lógico, da aplicação aos factos base de quaisquer regras de experiência, importa uma dimensão materialmente inconstitucional do Artigo 127.º do Código de Processo Penal, sobretudo, como nestes Autos, quando interpretado no sentido de que a Livre Convicção do Julgador é suficiente para - sem prova directa, sem indicação de factos base e sem indicação de regras de experiência ou de ciência - adquirir por dedução, ou presunção natural a prova de factos em julgamento, sem fazer apelo ao peso específico das presunções, que devem ser «graves, precisas e concordantes”.

39. Assim sendo, é inconstitucional a norma inserta no Artigo 127.º do Código de Processo Penal na dimensão normativa com que foi aplicada no Acórdão Recorrido pelo Tribunal a quo por afronta directa ao que se encontra Constitucionalmente consagrado no Texto e Princípios da Constituição da República Portuguesa.

40. Relativamente à Medida Concreta da Pena, reitera-se o que se aduziu na Motivação deste Recurso, isto é, ainda que a Prova produzida em julgamento não permita consubstanciar o juízo de condenação formulado pelo Tribunal a quo, ainda assim - por mera cautela de patrocínio de quem já viu demasiados inocentes injustamente condenados em penas privativas da liberdade - pronunciamo-nos por uma Pena mais reduzida a aplicar ao Recorrente.

41. Não o absolvendo dos Crimes de que injustamente se encontra condenado, para efeitos de determinação da medida da Pena que lhe virão a aplicar relevem V/Ex.ªs, Venerandos Desembargadores, que o Recorrente, conforme decorre da Prova junta aos Autos e da que foi produzida em Audiência de Julgamento:
- Tem 58 anos de idade;
- Não tem qualquer lastro criminal ou, sequer, contra-ordenacional;
- Não tem contra si quaisquer Processos pendentes;
- É uma pessoa conscienciosa e moralmente irrepreensível;
- É empreendedor e trabalhador;
- É urbano no trato e comportamento;
- É uma pessoa de imensos afectos e imbrincadas relações sociais e familiares com os seus amigos, família e comunidade;
- Tem a companheira, família, amigos e comunidade, a quem descreveu tudo o que vem sofrendo com este Processo, dispostos a acolhê-lo e a ajudá-lo em tudo o que vier a necessitar; e,

42. Deste modo, pese embora a Prova produzida em Julgamento não permita consubstanciar o juízo de condenação formulado pelo Tribunal a quo, ainda assim, atento o supra exposto na Motivação deste Recurso, pronunciamo-nos pela aplicação de uma Pena mais reduzida ao Recorrente por conta das factualidades que V/Ex.ªs eventualmente venham a considerar demonstradas ele ter praticado.

43. Razão pela qual o Recorrente - não sendo por V/Ex.ªs absolvido dos Crimes pelos quais foi iniquamente condenado no Tribunal a quo - discorda da dosimetria das Penas Parcelares dos Crimes de Violência Doméstica Agravada e Violação Agravada e da Pena Única que lhe foi aplicada, e pugna por outras mais adequadas aos critérios de Justiça que o caso em concreto reclama, nomeadamente uma Pena não muito afastada do limite mínimo de cada um desses Ilícitos e uma Pena Única abaixo dos Cinco anos de Prisão.

44. Derradeiramente, se o Recorrente tiver de ser injustamente condenado, que a Pena de Prisão que lhe vier a ser aplicada por V/Ex.ªs seja Suspensa na sua Execução, porque o cumprimento efectivo de uma pena de prisão, in casu, ao invés de contribuir para a Reintegração deste, terá graves efeitos dessocializantes.

45. A não ser absolvido como augura da Decisão de V/Ex.ªs, as finalidades da Punição, no caso concreto, serão melhor alcançadas mediante a aplicação, ao Recorrente, de Pena de Substituição Não Privativa da Liberdade, do que através do cumprimento de prisão efectiva, porque a censura do facto - no caso socialmente estigmatizante ainda com o apoio de toda a família e amigos - e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, e a suspensão da execução da pena de prisão revela-se eficaz na prossecução das exigências de Prevenção Geral e Especial.

Em suma, nos presentes Autos, não só ficou cabalmente provado que o Recorrente AA não praticou os Crimes de Violência Doméstica Agravada e Violação Agravada em que foi condenado, como foi criada uma clara e razoável dúvida quanto a esses factos por que vinha acusado e em relação à sua Culpa nos mesmos, pelo que deve ser absolvido daqueles.

Nestes termos, nos melhores e demais de Direito que os Venerandos Desembargadores da Relação de Évora suprirão, deve o presente Recurso do Recorrente AA obter Provimento e, em consequência, ser Alterada a Matéria de Facto indicada e Revista a Decisão de Direito que sobre a mesma recaiu, Absolvendo-se, em sequência, o Recorrente dos Crimes de Violência Doméstica Agravada e Violação Agravada pelos quais foi Julgado e Condenado pelo Tribunal a quo;

Ou, ainda que assim não seja, se considere por Alterada a Medida da Pena aplicada ao Recorrente, diminuindo-se os limites da mesma para perto dos mínimos legais para cada um dos Ilícitos e suspendendo-se a execução da Pena daí adveniente.

Mas sempre, conhecendo-se e declarando-se a Nulidade que invoca e arguiu, bem assim, como a Inconstitucionalidade que suscita.
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A Digna Procuradora junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso interposto, defendendo a improcedência do mesmo, concluindo:

1. O arguido, invocando erro de julgamento da matéria de facto, questionou os pontos dados como provados mencionados nos pontos 4. a 15., manifestando a sua discordância quanto à factualidade neles inserta, sem que cumprisse como devia o preceituado no artigo 412º, nº 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, já que acabou por remeter para praticamente toda a prova produzida nos autos (à excepção das declarações prestadas pela testemunha FS), nada referindo quanto a eventuais provas a ser renovadas.

2. Ora a função do recurso em matéria de facto não é a de permitir a realização de um novo julgamento, com a extensão e amplitude do julgamento efectuado em primeira instância mas sim, a propósito dos concretos pontos da matéria de facto suscitados detectar e corrigir, eventuais e excepcionais erros de julgamento, impondo-se assim a especificação das menções legalmente exigidas no artigo 412º, nº 3 (e nº 4), do Código de Processo Penal, já que não é expectável que o Tribunal de recurso proceda à audição ou exame de toda a prova produzida em audiência.

3. Não se mostrando adequadamente cumprido o ónus de especificação cremos, salvo sempre melhor entendimento, que a pretendida alteração da matéria de facto apenas poderá ter lugar através do mecanismo mais restritivo do artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.

4. A nulidade do acórdão por falta de fundamentação, pressupõe que se indique o facto relativamente ao qual se não perceberam as razões da convicção do julgador, o que o arguido não fez, já que se limitou a efectuar uma apreciação genérica sobre a convicção alcançada pelo Tribunal, manifestando a sua discordância pela credibilidade atribuída aos diversos meios de prova.

5. Ao invés do arguido, cremos que o Tribunal recorrido, em sede de fundamentação da decisão sobre matéria de facto, procedeu ao exame crítico de toda a prova produzida, motivando de forma esclarecedora, ainda que sucinta, a razão pela qual valorou os meios de prova produzidos, justificando os motivos pelos quais não atribuiu credibilidade a outros, designadamente a parte das declarações do arguido e da testemunha MG, em confronto com a demais prova produzida.

6. Com efeito, as declarações de FS, para além de merecerem credibilidade ao Tribunal pelas razões enunciadas no texto decisório (coerência e conformidade com as regras da lógica e da experiência comum, precisão e detalhe no modo como foram produzidas), resultaram credibilizadas desde logo pelo relatório de perícia psicológica de fls. 229 a 256, pelos esclarecimentos prestados pelo Perito Médico, Dr. MP, pelos escritos produzidos pela mesma e pela própria revolta ainda sentida por aquela, que a leva a ser acompanhada psicologicamente, consequência que reforça a convicção criada quanto à prática dos factos pelo arguido e de forma alguma justificada com uma crise de ciúmes por parte de FS.

Como se consigna no acórdão recorrido.
7. A descrição desfavorável e depreciativa da menor efectuada pelas testemunhas MG, AV e MF foi contraditada pela testemunha LP, directora de turma da menor em 2015, em moldes que também se encontram explicados no texto decisório; sendo que a ausência de credibilidade intrínseca das declarações prestadas pelas testemunhas AV e MF decorre do facto de serem contraditadas pelo próprio arguido, mormente quanto à audição de barulho proveniente da residência do arguido, como se explicitou também no acórdão recorrido.

8. Parece-nos que se mostra suficientemente cumprido o dever de fundamentação legalmente exigido, já que é perfeitamente possível acompanhar e entender todo o raciocínio lógico subjacente à decisão proferida bem como, as razões da convicção alcançada, que se torna deste modo perfeitamente compreensível, beneficiando o Tribunal a quo da imediação e da oralidade.

Não se verifica assim, a nosso ver, a nulidade invocada.

9. Considerando que o arguido teve alguma dificuldade em fundamentar o erro de julgamento invocado, já que nem sequer o conseguiu especificar, limitando-se a questionar a apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal, sempre se dirá que a apreciação da prova efectuada pelo Tribunal dever-se-á ater tão só à sua livre convicção (na qual intervém necessariamente uma forte componente subjectiva) e às regras da experiência, não se impondo que valore no sentido pretendido pelo arguido ou mesmo, por outro interveniente processual (aqui se incluindo o próprio Ministério Público), a prova produzida.

10. O facto de as diversas testemunhas inquiridas, amigas e vizinhas do arguido, considerarem que FS não tinha pudor em mentir fosse em que circunstância fosse e de que matéria se tratasse, é para o Tribunal irrelevante, inserindo-se afinal na estratégia de defesa do arguido que passa naturalmente por tentar colocar em crise o depoimento daquela, precisamente por se aperceber da sua relevância em termos probatórios.

11. É perfeitamente compreensível a insegurança por esta vivenciada quanto à possibilidade de as suas declarações não virem a merecer credibilidade (e que a terá levado a silenciar os factos durante alguns anos), considerando o percurso de vida vivenciado, sem qualquer apoio securizante, marcado por intensa conflitualidade entre ambos os progenitores, o que inevitavelmente se traduziu em marcada instabilidade na sua vida, de que o absentismo escolar referido pela testemunha LP, ou as constantes mudanças de residência são consequência.

12. Grande parte das questões colocadas pelo arguido, a fls. 41 e 42 da sua motivação baseia-se em factos que não foram dados como provados, resultando apenas das suas próprias declarações e das testemunhas por si arroladas e que, pelas razões que se plasmam no texto decisório, não mereceram credibilidade ao Tribunal.

O facto de FS se não recordar se tinha sangrado aquando dos abusos de que foi vítima por parte do arguido, também é perfeitamente compreensível, já que foi inquirida sobre tais factos largos anos após a sua ocorrência, necessariamente traumática, havendo a possibilidade de ter recalcado algumas memórias relacionadas com o facto, ou simplesmente, de não se recordar de tal pormenor.

13. As alegadas dúvidas que, em sede de inquérito, se suscitaram à Senhora Magistrada do Ministério Público e que levaram à prolação do despacho de fls. 218, foram suscitadas não pela tia materna a que FS foi confiada (PR), mas sim pela tia paterna, irmã do arguido, MG, o que faz toda a diferença, pois esta tinha natural interesse em descredibilizar as declarações prestadas por FS.

14. A perícia determinada veio contudo, credibilizar as aludidas declarações, como se constata da leitura dos pontos 9.2. a 9.16. do relatório elaborado (fls. 250 a 255 dos autos).

15. Já a alegação de que as lesões apresentadas por FS em Novembro de 2015 se teriam devido à mudança de móveis no quarto, quando foi viver para a casa da tia paterna, MG não merece qualquer credibilidade, por contrariar as regras da experiência, considerando a idade daquela (15 anos), o seu percurso de vida atribulado e o facto de, em regra, a alteração de móveis tão pesados como os referidos carecerem de ajuda de terceiros, não sendo crível que uma menor de 15 anos empreendesse tal tarefa sem dar conhecimento à proprietária da casa e sem que pedisse ajuda.

Inexiste deste modo qualquer erro na apreciação da prova.

16. A versão dos factos trazida por FS, credível para o Tribunal, foi corroborada por outros meios de prova, desde logo, pelo relatório de perícia psicológica de fls. 229 a 256, pelos esclarecimentos prestados pelo respectivo subscritor, Dr. MP e ainda, pelas próprias consequências que os actos levados a cabo pelo arguido sobre ela tiveram, aqui assumindo particular relevo, o depoimento da testemunha PR, quanto ao acompanhamento psicológico, mercê da revolta sentida por FS.

17. Mas, mesmo que o depoimento por aquela produzido não tivesse sido corroborado por outros meios de prova – o que nos crimes sexuais é frequente, já que muitas vezes é levado a cabo no maior secretismo, em privado, sem testemunhas – ainda assim, tal não impediria a condenação do arguido, já que conforme tem sido entendimento jurisprudencial, o depoimento das vítimas nesse tipo de crimes, assume papel preponderante, merecendo credibilidade acrescida, desde que credível.

18. São já bastantes os exemplos colhidos na nossa jurisprudência em que a condenação assenta na prova indirecta, “já que nem sempre se tem à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, como o esforço lógico-jurídico intelectual necessário antes que se gere impunidade”.

19. Cremos que a prova produzida em julgamento é suficiente para a matéria de facto dada como assente, existindo bastos elementos de prova objectivos a suportar a decisão de condenação proferida contra o arguido, a qual resultou da respectiva conjugação, mostrando-se os mesmos criticamente analisados e ponderados à luz das regras da experiência comum, de acordo com o preceituado nos artigos 127º e 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, não se prefigurando qualquer violação da lógica ou da experiência comum, pelo que também neste segmento deverá improceder a pretensão do arguido, sendo certo que a insuficiência invocada pelo arguido se reporta afinal aos elementos do tipo, os quais resultam comprovados pela materialidade dada como assente, como se consigna a fls. 17 do texto decisório.

20. Questionando ainda a sistematização plasmada no recurso interposto de, em sede de matéria de direito, aludir à violação do princípio da presunção da inocência e in dubio pro reo já que, tratando-se indubitavelmente de matéria de facto, dir-se-á ainda que que o princípio in dubio pro reo actua apenas e somente em caso de dúvida e não para os casos em que se pretende dar à prova diferente interpretação daquela que fez o Tribunal.

21. No caso em apreciação, afigura-se-nos não se estar perante uma situação de non liquet em matéria de prova, a ser resolvida a favor do arguido, já que da leitura da motivação de facto não resulta que o Tribunal tivesse ficado com dúvidas sobre a prática pelo mesmo dos factos que lhe eram imputados e que apesar disso, os tivesse dado por assentes, não se prefigurando deste modo, qualquer violação dos princípios invocados.

22. Perfilhamos na íntegra as considerações tecidas pelo Tribunal, pelo que naturalmente, nenhuma censura nos merecem quer as penas parcelares aplicadas, quer a pena única em que o arguido foi condenado, fixada em oito anos e seis meses de prisão, mais próxima do limite mínimo da moldura da pena única, não tendo a integração social, familiar e profissional de que o arguido dispõe, constituído factor de protecção contra a prática de tais condutas.

23. Precludida se mostra deste modo, a possibilidade de suspensão da execução da pena, por carência de um dos seus pressupostos, atento o preceituado no artigo 50º do Código Penal, sempre se dizendo que não vislumbramos fundamento para a mesma, já que do acervo dos factos dados como provados, não é possível formular um juízo de prognose favorável ao arguido, a aconselhar a mesma.

24. Com efeito, não obstante a ausência de antecedentes criminais por parte do arguido, a total ausência de interiorização do desvalor da conduta e de arrependimento nunca poderiam fundamentar a formulação de um juízo de prognose favorável, sendo certo que as elevadas exigências de prevenção geral sempre imporiam uma pena de prisão efectiva, sob pena de ficarem irremediavelmente comprometidas as finalidades de prevenção que a pena deve prosseguir.

Termos em que, também neste ponto, deverá improceder o recurso interposto, não se mostrando violados quaisquer preceitos legais, mormente os invocados.

Pelo exposto, deve o douto acórdão proferido ser integralmente mantido, negando-se provimento ao recurso, como acto de inteira e sã justiça.
*
O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer em 18.10.2.019 no sentido da rejeição do recurso por extemporâneo.

Notificado, o arguido respondeu à questão prévia suscitada pelo Distinto Representante do Ministério Público junto deste Tribunal, opondo-se.

O relator – com data de 13-11-2019 - lavrou despacho decidindo admitir o recurso.

Como o arguido requereu o julgamento em audiência para tanto invocando o disposto no artigo 411º, nº 5 do C.P.P., pretendendo debater os pontos II.B, II.B1 e II.C da motivação apresentada, o relator decidiu igualmente que tal era o requerer da prática de acto inútil pois que se pretendia “debater” aquilo que já consta por escrito dos autos, num regime de recursos que se caracteriza pelos actos escritos e não pela oralidade.

O Ministério Público reclamou para a Conferência desta última decisão que, por acórdão de 19-12-2019, desatendeu a reclamação.

O Ministério Público recorreu, sendo tal recurso rejeitado face à previsão da al. c) do nº 1 do artigo 400º do C.P.P. Reclamou o M.P. sendo a reclamação autuada por apenso e encontrando-se pendente.

Não se deu cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal na medida em que o Ministério Público, para tanto notificado, não emitiu parecer.
*
B - Fundamentação:
B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. O arguido AA foi casado com CR entre 1999 e 2014;

2. Desta relação resultou o nascimento, em 17/10/2000, de FS;

3. Porém, o arguido AA desde 2009 que se encontra separado de CR, altura em que esta saiu da casa morada de família, sita na Avenida…, em Setúbal, ficando o arguido AA a residir na mesma juntamente com a filha de ambos, FS;

4. Em datas não concretamente apuradas, após a saída de casa da progenitora, ou seja, a partir de 2009, o arguido AA começou, com regularidade não apurada, a desferir chapadas, empurrar contra a parede e a desferir pontapés na sua filha, FS, dirigindo-se a esta dizendo que "era como a puta e cabra, da mãe";

5. Tais comportamentos tinham lugar, em regra, na residência dos mesmos;

6. No mês de Outubro de 2012, em dia não concretamente apurado, o arguido AA, entrou no quarto da menor quando a mesma se preparava para dormir, tirou-lhe o resto da roupa, e recorrendo ao uso da força, até porquanto a menor tentava empurrar o arguido para que a largasse, o mesmo atirou-a para cima da cama, deixando-a na posição de decúbito dorsal, após o que agarrou-a pelos braços, prendeu-lhe as pernas com as suas próprias pernas;

7. De seguida, mantendo a filha, FS, agarrada e impedindo que a mesma se debatesse, o arguido AA, que na altura não envergava qualquer roupa, introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela e ali o friccionou em movimentos de vaivém.

8. Após, o arguido AA dirigiu-se à menor dizendo que a matava caso contasse a alguém o que se havia passado.

9. Quando AA atirou FS para cima da cama a menor bateu com a canela na mesma, o que lhe provocou, pelo menos, dores;

10. Na altura do Natal do mesmo ano de 2012, em data não concretamente apurada, o arguido AA, mais uma vez, quando a menor já se encontrava no seu quarto preparando-se para dormir, entrou no quarto de FS, tirou-lhe o resto da roupa, e recorrendo ao uso da força, até porquanto a menor tentava empurrar o arguido para que a largasse, o mesmo atirou-a para cima da cama, deixando-a na posição de decúbito dorsal, após o que agarrou-a pelos braços, prendeu-lhe as pernas com as suas próprias pernas;

11. Após, mantendo a menor agarrada e impedindo que a mesma se debatesse, o arguido AA, que na altura não envergava qualquer roupa, introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela e ali o friccionou em movimentos de vaivém.

12. Seguidamente o arguido AA voltou a dizer à menor que a matava caso contasse a alguém o que se havia passado.

13. Desde 2013 que a menor FS deixou de residir com o arguido AA;

14. Contudo, o arguido AA continuou a privar com a filha FS, sendo que, em número de vezes não concretamente apurados, desferiu chapadas e pontapés na menor, bem como a desferir-lhe empurrões;

15. Tal facto, ocorreu, nomeadamente no dia 10 de Novembro de 2015, em que o arguido AA desferiu, na sua filha FS, pontapés que lhe provocaram equimoses na face interna de ambos os membros inferiores;

16. O arguido AA agiu sempre de forma livre e consciente com o propósito conseguido de ofender corporalmente a sua filha FS, de ofender a sua honra e consideração e de lhe causar temor e ansiedade, ameaçando-a de morte e desgastando-a psicologicamente de forma reiterada enquanto esta permaneceu sob a sua alçada;

17. Ao agir da forma descrita supra, nos pontos 6 a 11, o arguido AA, procedeu, em ambas as ocasiões, de forma livre, deliberada e consciente, com o intuito de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que molestava sexualmente a sua filha, FS, contra a vontade daquela, fazendo uso da força física, e colocando a filha, na altura com 11/12 anos de idade, sem alternativa de fuga; para melhor atingir os seus intentos, o que quis e conseguiu;

20. Com as condutas descritas revelou ainda o arguido AA não possuir qualquer respeito para com a sua filha, FS, enquanto pessoa, violando os mais elementares princípios e deveres da vida em sociedade.

Dos antecedentes criminais do arguido:
21.O arguido não tem antecedentes criminais registados.

Quanto à situação pessoal e económica do arguido:
22. AA nasceu em Setúbal no seio de um agregado familiar composto pelos pais, assentando a subsistência do agregado familiar no trabalho do progenitor, para além de outras actividades sazonais relacionadas com a feira anual da cidade, em que os restantes elementos da família também participavam.

23. O desenvolvimento do arguido, ao longo da sua infância e adolescência, terá decorrido sem aparentes constrangimentos, pese embora a dinâmica familiar tivesse sido marcada pela doença da sua irmã (paralisia infantil), o que veio a implicar o acompanhamento desta pela mãe, permanecendo o progenitor como o principal cuidador de AA durante os períodos de internamento hospitalar da irmã.

24. O percurso escolar do arguido é caracterizado pelo seu bom aproveitamento, padrão que terá mantido até concluir o 9º ano de escolaridade, a par com o envolvimento em actividades de carácter comunitário/social, nomeadamente pela integração, ainda na adolescência, no corpo de bombeiros municipais, realçando AA a importância do reconhecimento social por pares e adultos, das suas competências de aprendizagem e trabalho.

25. Aos 18 anos de idade, AA entrou para os Serviços Municipalizados de Setúbal, junto do pai, (funcionário camarário - encarregado no departamento de águas), iniciando a sua vida laboral como servente e, em seguida, como tirocinante desenhador (desenho técnico), passando a ganhar alguma autonomia financeira, apesar de se manter integrado no agregado.

26. Relativamente à experiência das dinâmicas afectivas/relacionais entre os elementos da família, o arguido identifica apenas a existência de alguns atritos entre os progenitores, de forma pontual e sem agressão física, realçando, por outro lado, a artilha de actividades em comum entre todos os membros do agregado, ainda enquanto jovem adulto, em contexto laboral (trabalho sazonal na feira de Santiago), desportivo (prática de ténis de mesa) e de lazer (viagens, excursões, assistir a encontros de futebol), reforçando uma imagem de harmonia intrafamiliar.

27. Após o cumprimento do serviço militar, AA regressou ao seu posto laboral, vindo a autonomizar-se do seu agregado familiar por volta dos 23 anos de idade, quando passou a residir sozinho num apartamento na cidade de Setúbal, em cujo prédio habitavam outros amigos seus.

28. Até aos 38 anos de idade o percurso do arguido ter-se-à centrado no trabalho como via de manutenção da sua sustentabilidade, mas, sobretudo, do seu estilo de vida marcado por actividades de lazer em contexto de grupo de amigos, das quais sobressai o gosto por actividades náuticas, pela condução de motorizadas e pela participação em eventos motards.

29. No campo da afectividade e da sexualidade, durante esse mesmo período, AA nunca manteve uma relação de longo termo ou análoga à conjugal com as suas namoradas, tendo mantido relações de namoro com mulheres adultas e com relativa paridade em relação à sua própria faixa etária.

30. Cerca dos 30 anos de idade, AA passou a residir, ainda sozinho, na habitação de família sita da Av…, em Setúbal, altura em que lhe foi atribuído um período de licença sem vencimento, vindo a trabalhar para uma outra empresa até retomar funções nos Serviços Municipalizados, transitando em 1998 para a empresa “Águas do Sado", onde se mantém até ao presente.

31. Foi por intermédio da progenitora e de uma tia materna que, com cerca de 39 anos, AA veio a conhecer a ex-companheira, CR, com a qual iniciou uma curta relação de namoro, seguindo-se o casamento e o nascimento, a 17 de Outubro de 2000, da filha do casal, FS.

32. O arguido procura aqui enquadrar a sua passagem para um estilo de vida assente num projecto familiar pessoal, como uma tentativa de corresponder ao que julgava ser o desejo dos seus progenitores no plano da continuidade geracional da família.

33. Durante o ano de 2008 AA esteve afastado do agregado familiar, trabalhando em Angola na área do saneamento, tendo regressado a Portugal em 2009, em função do estado de saúde da sua mãe (doença de Alzheimer).

34. Em 2009 ocorreu a separação entre AA e CR, ficando FS entregue aos cuidados exclusivos do pai, tendo a mãe abandonado a habitação comum, e deixado de-manter contactos com a filha até ao ano de 2012, altura em que FS passou a residir, em períodos alternados, com ambos os progenitores.

35. Em 2013 na sequência de um pedido por parte da própria criança, FS passaria a residir junto com a mãe, não obstante viesse a manter contactos com o progenitor e a sua família, até ao ano de 2015;

36. Durante esse período AA terá reorganizado a sua vida afectiva, passando, em agosto de 2015, a viver em união de facto com a actual companheira, AC.

37. Ao momento o arguido permanece nas funções de assistente técnico, trabalhando para a empresa “Águas do Sado", orbitando a sua rotina diária, em tomo do trabalho e da vida familiar, acompanhando ao presente a situação de saúde do seu pai, o qual se encontra hospitalizado, tendo a mãe do arguido falecida há cerca de 5 anos.

38. O projecto familiar e parental surge, no discurso do arguido, como algo aparentemente desprovido de uma motivação intrínseca ab initio, respondendo, antes, aos desejos das suas próprias figuras parentais, o que poderá indiciar alguma imaturidade quer no processo de individuação/autonomização pessoal, quer na gestão das dinâmicas afectivas /relacionais com as principais figuras de referência no domínio do seu desenvolvimento psicoafectivo.

39. A relação de AA, com a mãe da sua filha aparenta ter sido motivada por uma dimensão de desejabilidade em relação aos seus próprios progenitores, sendo a mesma relação vivenciada como conflituosa, culminando na separação do casal e na permanência da criança aos cuidados do arguido.

40. Na relação estabelecida por AA com a filha aparenta prevalecer uma identificação de alegadas características comportamentais da criança com as próprias características da progenitora, sendo a primeira vista pelo arguido como permeável em relação à alegada influência negativa da mãe, denotando-se uma indiferenciação quanto às pessoas da filha e da ex-companheira, como objectos de relação sentidos corno persecutórios.
*
B.1.2 - E como não provados os seguintes factos:
a) Com interesse para a decisão da causa,ficaram por provar os seguintes
b) AA chegou a atirar a menor para o chão;
c) Os factos ocorridos em Outubro de 2012 foram praticados antes da menor FS perfazer 12 anos de idade;
d) Os factos ocorridos quer em Outubro, quer na altura de Natal de 2012, começaram na sequência de uma prévia discussão encetada pelo arguido com a filha, e isto entre as 21H00 e as 21H30;
e) O arguido AA, por diversas vezes, em dias distintos, dirigia-se à sua filha, FS, dizendo que a matava caso contasse a alguém o que se havia passado;
f) Antes dos factos descritos, e praticados pelo arguido AA, a menor FS nunca tinha mantido relações sexuais.
*
B.1.3 – O tribunal recorrido adiantou os seguintes considerandos na Motivação da decisão de facto:
«O Tribunal respondeu à matéria de facto da forma supra descrita tendo em consideração:
1- As declarações do arguido:
2- O depoimento de FS;
3- Depoimentos de
- MG, tia paterna da menor;
- PR, tia materna da menor, com quem a mesma se encontra a viver;
- LP, antiga directora de turma de FS;
- AF, as quais foram durante muitos anos (mais de 20) vizinhas do arguido;
- AC, amiga há cerca de 40 anos do arguido, vivendo em união de facto com o mesmo há cerca de 3 anos e meio;
- SS, amiga do arguido há cerca de 10, 11 anos; e
- Mário G., amigo do arguido desde 1992;
6- Os relatórios de exame pericial e demais documentos juntos aos autos, nomeadamente:
- Relatório de perícia psicológica de fls. 229 a 256, perícia esta complementada com os esclarecimentos prestados em sede de audiência de julgamento pelo Perito Médico, Dr. MP.;
- Comunicação da CPCJ de Setúbal de fls. 1 a 15;
- Fotocópia de manuscritos de FS de fls. 16 a 18 e 195;
- Fotocópia do relatório social de avaliação diagnóstica da Segurança Social de fls. 84 a 99;
- Assento de nascimento de FS de fls. 133 a 134, documento do qual resulta a sua data de nascimento e filiação;
- Assento de nascimento de CR de fls. 136 a 137 e Assento de nascimento de AA de fls. 139 a 140, sendo que dos mesmos documentos conta averbado o casamento de ambos a 20/11/1999, bem como o divórcio decretado por sentença de 15/05/2014, transitada a 30/06/2014;
- Relatório de episódio de urgência do Hospital S. Bernardo de fls. 164 a 165 v, documento do qual resultam comprovadas as lesões que a menor apresentava a 19/11/2015;
- Informação do serviço de psicologia da Escola Secundária D. João II de fls. 194 a 195;
- Print de email relativo a pedido de integração educativa de fls. 196;
prova esta analisada segundo as regras de lógica e experiência comum.

Vejamos:
O arguido, não colocando em causa a relação de parentesco com a menor, nem mesmo os factos que se relacionam com a circunstância da filha ter ficado a viver consigo após a saída da progenitora, nega todos os demais factos relacionados quer com agressões verbais e físicas, quer os factos de cariz sexual.

Na verdade, segundo o arguido a menor só fez tais acusações após ter conhecimento que o pai tinha uma nova companheira, o que a terá levado a ficar com ciúmes.

Mais, segundo o arguido a menor, desde 16/12/2012 na sequência de reatar os contactos com a mãe, alterou o seu comportamento, e no Natal de 2012 até foram com os avós paternos da menor passar esta época festiva ao Algarve, ou seja, não passaram o Natal em casa, ao contrário do que, no entender do arguido resulta da acusação - diz-se entender do arguido já que a acusação não precisa datas que sejam infirmadas pela aludida deslocação.

Admite que por vezes podia falar alto ou utilizar linguagem menos própria, no entanto nunca dirigiu as expressões constantes da acusação à filha.

Sempre cuidou da filha, ao contrário do que sucedia quando esta estava aos cuidados da mãe, onde supostamente a menor esteve 3 dias sem comer e sem tomar banho e de onde vinha com "mazelas".

Quanto às lesões que a menor apresentava em Novembro de 2015 refere que tal terá ocorrido quando a filha foi de novo para a casa da tia MG, tendo estado a mudar a mobília do quarto.

Ora, a corroborar as declarações do arguido no sentido de que sempre foi um bom pai, tendo procurado sempre o melhor para a filha, vieram, sobretudo, as testemunhas MG, AV, MF e SS.

Com efeito, AV e MF, enaltecendo o arguido como um excelente pai e vizinho, da casa do qual nunca se ouviu qualquer barulho (o que é desde logo estranho, já que o próprio arguido admitiu que por vezes falava alto ou utilizava linguagem menos própria), descreveram a menor como sendo uma criança conflituosa, antipática, com a mania da superioridade, que se vestia de forma desadequada fosse para a sua idade, fosse para a época do ano, capaz de inventar factos graves e que faltava às aulas.

Por sua vez, MG descreveu, igualmente, o irmão como um excelente pai, preocupado com a filha, que sendo rígido, nunca bateu à menor, apenas a aconselhando, e que no máximo este poderá ter chamado a filha de parva ou burra, mas isto por esta não estudar e faltar às aulas.

Já quanto à sobrinha, a testemunha descreve-a como uma menina que foi sempre muito difícil, que tinha muita informação para além daquela que devia ter para uma menina da sua idade, que a mesma tinha poucos valores, não era humilde, fazia jogo com os pais (quando se zangava com um ia para casa do outro), e que não se vestia de forma adequada para a sua idade.

Mais, confirmou a testemunha que FS quando foi para sua casa resolveu mudar os móveis todos do quarto (guarda-roupa, secretária, etc ... ) fazendo força com as pernas e que terá sido neste contexto que se magoou. Referiu, ainda, MG que foi depois do pai lhe apresentar a companheira que a menor veio com o discurso da "violação", sendo que FS sempre foi muito ciumenta em relação ao pai e à companheira.

Ora, sem pôr em causa que a menor revelou problemas comportamentais, até porquanto a própria os assumiu, o certo é que dúvidas não ficaram quanto aos factos dados como provados, tendo em consideração o depoimento de FS, depoimento este que, embora emotivo e demonstrando o trauma sofrido (note-se a título de exemplo, que quando se pediu para explicar, os factos sem ter problemas de vergonha com o tribunal, a mesma respondeu "não é o uma questão de ficar envergonhada é uma questão de não ser tão mau para mim"), não deixou de ser coerente e conforme às próprias regras de lógica e experiência comum. Aliás, do Relatório de perícia psicológica de fls. 229 a 256, e esclarecimentos prestados pelo Perito Médico, Dr. MP, resulta reforçada tal credibilidade.

Com efeito, a ainda então menor descreveu os factos dados como provados, ainda que sem se conseguir recordar de datas precisas, nomeadamente quanto aos factos ocorridos em Outubro de 2012 e na época de Natal de 2012, pelo que não se apurou se os primeiros factos ocorreram quando a menor ainda tinha 11 anos de idade ou já 12 anos de idade. Mais, quanto aos factos ocorridos na época de Natal a menor foi precisa a esclarecer que este normalmente era passado em casa do avô, mas que chegaram a deslocar-se a Portimão, isto sem pôr em causa o por si declarado.

Note-se que a menor referiu expressamente que nunca contou nada a ninguém, não só por medo do pai, como pelo facto de saber que ninguém iria acreditar em si, como aliás sente que isso acontece ("Tal como hoje pensei que ninguém ia acreditar"). Com efeito, refere a menor que quer a tia, quer o avô, chegaram a presenciar as situações de agressões físicas e verbais, que não conseguiam impedir, no entanto agora negam que tal tenha ocorrido e/ou que algumas vez o tenham presenciado.

Mais, enquanto que a justificação apresentada pelo arguido e por MG que levaram a menor a lhe imputar os factos não merecer qualquer credibilidade (não faz qualquer sentido que a menor por ciúmes injustificados inventasse tais factos, os mantivesse e até simulasse durante anos um trauma), já o depoimento de FS faz todo o sentido: o seu pedido de ajuda foi por ter decidido que não queria mais viver com o pai. Note-se que o facto do pai ter encontrado uma companheira, conforme referiu, até era benéfico para a própria, pois se o pai estava feliz, menos descarregava nela.

Igualmente, identificou a menor aquilo que estaria na base das agressões, nomeadamente verbais perpetradas pelo pai: o mesmo terá projectado nela a raiva que tinha da mãe.

Ora, efectivamente, face às declarações do arguido e depoimentos de MG, PR e MF dúvidas não ficaram quanto ao relacionamento do primeiro com a mãe da menor ser conflituoso, considerando o arguido a progenitora uma má influência para a filha, ao ponto de declarar que foi a presença daquela na vida da menor que levou à alteração comportamental da filha.

Aliás, quanto a esta alteração note-se o referido de modo depreciativo quanto à forma de vestir da menor (decotes, calções, mini-saia, roupa desadequada para a idade da mesma ... ), como se a mesma andasse vestida de forma provocante ... o que, de acordo com a menor, e merecendo mais uma vez credibilidade o seu depoimento, o arguido chegou a dizer-lhe que a tinha umas calças "à puta" como só a mãe usaria ...

Por último, cumpre referir que FS revelou ter perfeita consciência da gravidade dos factos em causa e das suas eventuais consequências, tendo sido manifesto que tudo aquilo que afirmou foi aquilo que se passou, não se tratando de nenhuma "crise de ciúmes" em relação ao pai.

Mais, apesar de a menor ter sido descrita por algumas das testemunhas como sendo uma menina sem valores, conflituosa, o certo é que LP, directora de turma da menor em 2015, descreve FS como uma aluna muito educada, extremamente correcta, com uma boa relação com a turma, ainda que andasse tensa sobretudo por razões familiares, sendo o problema da mesma as faltas.

Ora, se não soubéssemos, diríamos que estaríamos a falar de duas pessoas distintas ... a não ser, como aliás será perfeitamente compreensível, que a conduta da menor, após 2012, fosse essencialmente de cont1ito para com o pai, de revolta para com o pai, se não para com ambos os progenitores, por não ter sido protegida ... Pelo contrário, por ter sido quem a devia proteger quem mais a magoou, o que acabou por levá-la a adoptar a condutas menos normais, nomeadamente começar a fumar, refugiar-se na escrita e até Auto mutilar-se. Quanto à escrita, diga-se que os próprios escritos da mesma (note-se sobretudo o que escreveu quando estava em vias e regressar para junto do pai) também reforçam a credibilidade do seu depoimento.

Aliás, PR, tia materna da menor, não tendo conhecimento dos factos acaba por confirmar que a menor ainda, actualmente, se encontra muito revoltada, razão pela qual é acompanhada por psicólogo, o que mais uma vez reforça a convicção quanto aos factos que de modo algum são compatíveis com uma invenção de FS decorrentes de uma crise de ciúmes.

Diga-se, por último, que nenhuma das testemunhas presenciou os factos os factos ocorridos em Outubro e na época de Natal de 2012, e conforme resulta do depoimento da menor à frente dos outros (com excepção da tia e do avô) o arguido sempre se apresentou como bom pai, pelo que os depoimentos das testemunhas amigas do arguido neste sentido em nada alteram o referido quanto à credibilidade do depoimento de FS.

Mais, nem mesmo o testemunho de MF, psicóloga que acompanhou a menor, altera tal credibilidade, até porquanto, limitada pelo segredo profissional, a mesma não descreveu os factos referentes à sua intervenção inicial com a menor, aludindo que o arguido e a esposa voltaram a contactá-la, a pedir ajuda já em 2 de maio de 2014, que em causa estariam questões relacionadas com a filha, mas que a intervenção seria multidisciplinar parental (mãe, pai e filha) com vista a agilizar alguns conflitos, até porquanto os progenitores tinham entre si um conflito intenso, e que estes com a menor tinham um conflito intergeracional. Contudo, depois de 2014 como aqueles deixaram de aparecer na consulta, perdeu o contacto com os mesmos.

Mais, nada do depoimento desta testemunha permite retirar credibilidade ao depoimento da menor, até porquanto conforme decorre do seu depoimento o não ter consciência que a pessoa que pede ajuda seja um abusador, não afasta o facto do mesmo ser efectivamente um abusador.

No que concerne os factos integradores dos elementos psicológicos e volitivos, o mesmo infere-se não só de toda a prova produzida, incluindo declarações do próprio, como do facto de qualquer Homem Médio, ter consciência que as aludidas condutas são proibidas e punidas por lei, tendo o arguido, ainda assim, optado por adoptá-las, quando poderia e deveria ter actuado em conformidade com a lei.

No que concerne aos antecedentes criminais do arguido atendeu-se ao CRC junto aos autos.

Quanto à situação pessoal e económica do arguido teve-se em consideração, não apenas as declarações do mesmo, como ao relatório da DGRSP junto aos autos, sendo que não se atenderam aos factos constantes no mesmo referentes a declarações do arguido e de outras testemunhas quanto à matéria objecto do processo ou referentes à menor. Com efeito, conforme decorre do Com efeito, conforme decorre do próprio relatório o foco da avaliação na sequência do referido pelo arguido e demais pessoas inquiridas deixou de ser o mesmo arguido para passar a ser a menor FS e até a mãe desta, o que de forma alguma poderia ser valorado.

Os factos não provados resultaram da não produção de prova cabal nesse sentido - note-se que a menor não chegou a ser confrontada directamente com algumas questões como se já tinha tido relações sexuais anteriores.»
***
Cumpre conhecer.
É sabido que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso. Assim, as questões colocadas no recurso centram-se – prima facie - na insatisfação quanto aos seguintes pontos que o recorrente, aliás, sistematiza (transcrição):

a)- A Nulidade do Acórdão por Falta de Exame Critico da Prova.
b)- O Erro de Julgamento da Matéria de Facto submetida a apreciação do Tribunal a quo;
c)- A Insuficiência da Prova produzida em Audiência d Julgamento, bem assim, como daquela que se encontra entranhada nos Autos, para a Decisão da Matéria de Facto Provada vertida no Acórdão Recorrido.
d)- A violação dos Princípios da Presunção da Inocência e ln Dubio Pro Reo referente à Condenação do Recorrente pelos Crimes de Violência Doméstica Agravada e Violação Agravada.
e)- A Inconstitucionalidade da Norma constante do Artigo 127.° do Código de Processo Penal na dimensão normativa com que foi aplicada pelo Tribunal a quo no Acórdão Recorrido.
f)- E, ad cautelum, o exacerbado quantum da Medida da pena (Parcelares e Única) aplicada ao Recorrente e a Suspensão da sua Execução.

Resta acrescentar que no recurso sobre matéria de facto o alegado na al. b) se pode inserir na previsão do artigo 410º, nº 2, al. c) do C.P.P. ou ser encarado como um erro de julgamento, mas que o invocado em c) - a “insuficiência da prova produzida” – não se integra na previsão na alínea a) do mesmo preceito pois que nesta se prevê a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada que é coisa distinta da invocada pelo recorrente.

Esta, como se afirmava no acórdão do STJ de 11-11-1998 (Proc 98P1093 – Cons. Leonardo Dias) “é a que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão, ou seja, é aquela que resulta da circunstância de o tribunal julgador não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão. (II) Logo, o mencionado vício não tem nada a ver, nem com a insuficiência da prova produzida, nem com a insuficiência dos factos provados para a decisão de direito proferida”.

Parece-nos claro que o recorrente não incorre em erro e pretende, realmente, afirmar a insuficiência de prova para sustentar a acusação.

Outra realidade que imposta desde já esclarecer é que o recorrente, para além de invocar uma nulidade processual - nulidade de sentença - também invoca um vício de conhecimento oficioso e erro de julgamento, impugnando a matéria de facto de forma adequada em função do previsto nos ns. 3 e 4 do artigo 412º do C.P.P. e AUJ nº 3/2012.

De outra banda – ideia esta advinda e associada à invocação da violação do in dubio – parece-nos estar implícita no recurso um sentido de invocação de inexistência de standard condenatório.

Estabelecidas as bases essenciais de apreciação passemos à análise do objecto do recurso.
*
B.2.1 – A nulidade de fundamentação
O primeiro ponto de insatisfação do recorrente centra-se na fundamentação de facto aduzida pelo tribunal recorrido, afirmando-a nula por omissão de análise crítica da prova. Vamos, então, iniciar o nosso labor pela análise da fundamentação de facto do tribunal recorrido.

A 1ª parte dessa fundamentação consiste na indicação dos elementos de prova que serviram para a decisão de facto, quer na vertente da prova dos factos que integram tipos penais e na sua imputação ao arguido, quer na prova das suas condições económicas, sociais e antecedentes criminais e, por fim, na fundamentação dos factos dados como não provados.

Incidindo o recurso sobre a impugnação dos factos dados como provados de 4º a 15º na matéria de subsunção aos tipos penais e na sua imputação ao arguido, apenas sobre esses pontos nos debruçaremos neste ponto de análise.

Aí são indicados os seguintes elementos de prova: declarações do arguido (a bold); depoimento de FS (a bold); depoimentos de outras sete testemunhas (sem realce); os relatórios de exame pericial e demais documentos juntos aos autos, «nomeadamente (acrescentamos números romanos para melhor exposição):

i. - Relatório de perícia psicológica de fls. 229 a 256, perícia esta complementada com os esclarecimentos prestados em sede de audiência de julgamento pelo Perito Médico, Dr. MP;
ii. - Comunicação da CPCJ de Setúbal de fls. 1 a 15;
iii. - Fotocópia de manuscritos de FS de fls. 16 a 18 e 195;
iv. - Fotocópia do relatório social de avaliação diagnóstica da Segurança Social de fls. 84 a 99;
v. - Assento de nascimento de FS de fls. 133 a 134, documento do qual resulta a sua data de nascimento e filiação;
vi. - Assento de nascimento de CR de fls. 136 a 137 e Assento de nascimento de AA de fls. 139 a 140, sendo que dos mesmos documentos conta averbado o casamento de ambos a 20/11/1999, bem como o divórcio decretado por sentença de 15/05/2014, transitada a 30/06/2014;
vii. - Relatório de episódio de urgência do Hospital S. Bernardo de fls. 164 a 165 v, documento do qual resultam comprovadas as lesões que a menor apresentava a 19/11/2015;
viii. - Informação do serviço de psicologia da Escola Secundária D. João II de fls. 194 a 195;
ix. - Print de email relativo a pedido de integração educativa de fls. 196;
prova esta analisada segundo as regras de lógica e experiência comum.»

Os documentos referidos em v. e vi. nada acrescentam à eventual imputação dos factos ao arguido. O documento indicado em ix. limita-se a ser um pedido de integração da jovem FS no agrupamento escolar Álvaro Velho. O documento apontado em vii., relatório de episódio de urgência do Hospital S. Bernardo, como ali dito, apenas comprova as lesões que a menor apresentava a 19/11/2015, equimoses no interior de ambos os membros inferiores (sendo certo que a jovem ali refere dois episódios de abuso sexual vaginal em 2012 por parte do pai e agressão pelo mesmo em 10-11-2015).

O documento supradito em viii. (e que apenas consta de fls. 194 e não de fls. 195) refere-se a uma comunicação interna da escola posterior à apresentação do escrito da FS e seus relatos sobre o pai. Fls. 195 constitui sim um escrito da menor FS datado de 17-11-2015 onde é dito que o pai a agride;

Os documentos expostos em i., ii., e iv. são relatórios realizados com base na observação e/ou declarações da menor e não provam a imputação de factos ao arguido. Têm, como é claro, relevo probatório, mas não provam a prática dos factos nem são elementos de prova objectiva corroborantes dos crimes e sua imputação.

O único elemento de prova directa e concreta independente das declarações da FS são as lesões na face interna dos seus membros inferiores observados no Hospital.

A segunda parte da fundamentação factual pretende ser uma análise crítica da prova constante dos autos.

Esta parte inicia-se com a versão do tribunal do que foram as declarações do arguido. São 6 pequenos parágrafos que se iniciam no final de fls. 11 (418 dos autos) e finalizam antes do final de fls. 12 (419 dos autos). Delas nada se retira contra o arguido.

Mas a sua defesa é logo parcialmente inviabilizada quando se afirma que em 2012 passaram o Natal no Algarve e não em casa – uma clara referência ao facto de a acusação narrar que os crimes sexuais ocorreram sempre em casa do arguido (facto provado 5) – com a afirmação da autoria do tribunal recorrido de que “a acusação não precisa datas que sejam infirmadas pela aludida deslocação”.

E aqui surge um primeiro motivo de preocupação e perplexidade: então não caberia à acusação provar a ocorrência do facto na casa do arguido? Ou em qualquer outro local, com a devida adaptação (alteração) factual? E ao arguido, sem que tal prova seja feita, nem é permitido criar uma dúvida sobre a ocorrência do facto naquele local? É-lhe imposto que prove que o crime não pode ter ocorrido, antes de o Ministério Público ter provado que ocorreu?

Mas que também permite perceber da razão por que as acusações modernas deduzidas pelo Ministério Público são genéricas, abstractas, sem clara indicação do local, data e modo de cometimento de crimes. O arguido nunca as pode impugnar de forma eficaz pois que fica sempre a ideia de que a acusação se mantém por não ter sido negada por beneficiar da ausência de concretização. Eu não concretizo, tu não te podes defender! O caso dos autos neste ponto é bem elucidativo. Uma acusação pós-moderna tem esta função! É uma narrativa difusa, diluída, não cumpre os requisitos mínimos do fair trial.

No todo – o essencial - das declarações do arguido nada resulta que o incrimine.

De seguida a fundamentação factual analisa a defesa apresentada pelo arguido – prova testemunhal indicada a partir do penúltimo parágrafo de fls 12 (419 dos autos) ao penúltimo parágrafo de fls. 13 (420 dos autos). É uma narrativa resumida do depoimento de uma testemunha, MG, apesar de inicialmente indicadas quatro testemunhas. De uma delas, SS, nada se diz, apesar de referida. Não há, nos locais indicados, um pronunciamento directo do tribunal sobre o valor de tais depoimentos, mas serão descartados adiante em bloco porquanto os seus depoimentos não encaixam e contradizem o depoimento da menor FS.

A fundamentação prossegue com a análise do essencial motivador do tribunal recorrido, que são as declarações de FS, o que se inicia no último parágrafo de fls. 13 (420 dos autos), onde o tribunal afirma claramente que a sua convicção assenta exclusivamente no depoimento da menor FS, como segue:

Ora, sem pôr em causa que a menor revelou problemas comportamentais, até porquanto a própria os assumiu, o certo é que dúvidas não ficaram quanto aos factos dados como provados, tendo em consideração o depoimento de FS, depoimento este que, embora emotivo e demonstrando o trauma sofrido (note-se a título de exemplo, que quando se pediu para explicar, os factos sem ter problemas de vergonha com o tribunal, a mesma respondeu "não é o uma questão de ficar envergonhada é uma questão de não ser tão mau para mim"), não deixou de ser coerente e conforme às próprias regras de lógica e experiência comum. Aliás, do Relatório de perícia psicológica de fls. 229 a 256, e esclarecimentos prestados pelo Perito Médico, Dr. MP, resulta reforçada tal credibilidade.
(…)

É a partir deste convencimento de que tudo o que a menor diz é verdadeiro e tudo o que contrarie o seu depoimento é falso que são analisadas as restantes provas, declarações e todos os outros depoimentos. Há uma clara e arrogada criação de uma tunnel vision, que não deixa que se realize uma análise racional da prova, apesar de se invocar muito a “lógica e as regras de experiência comum”, mas sem que se identifique uma lógica e se esclareça quais sejam as regras de experiência comum.

Ocorre até uma perversão do pensamento expressa no citado parágrafo que é patente numa análise mais calma e que se expressa no seguinte silogismo, que nada deve a Aristóteles, pois que dispensa uma premissa:
- o depoimento da menor é “coerente e de acordo com as regras de experiência comum”;
- todos os outros depoimentos que o contrariem não são coerentes e de acordo com as regras de experiência comum.

Há, pois, que corrigir a ausência de um alicerce lógico, transformando a conclusão na premissa menor e acrescentar-lhe a devida conclusão. E é preciso rememorar que estamos face a um silogismo demonstrativo ou apodíctico em que a conclusão se segue necessariamente às premissas. Assim, a lógica do tribunal recorrido é esta:

- Se o depoimento da menor é “coerente e de acordo com as regras de experiência comum”;
- Se todos os outros depoimentos que o contrariem não são coerentes e de acordo com as regras de experiência comum;
- logo, todos os factos afirmados pela menor são verdadeiros.

Desta forma fica completa a “lógica” de que o tribunal recorrido invoca ter usado.

E relativamente às regras de experiência comum, aquelas que são identificadas como tais – e que também se reproduzirão – não são regras de experiência comum mas um simples acervo de lugares comuns muito dubitativos e facilmente contraditados.

E estão sempre em circuito fechado dentro do depoimento da menor! E esse é o ponto!

O depoimento da menor é sempre usado como parâmetro de apreciação da prova e note-se que ele – depoimento - é sempre apresentado como fundamento único do juízo de prova e também como parâmetro único de credibilidade já que são as razões que a própria menor dá que delimitam a credibilidade dos restantes meios de prova. Cria-se desta forma um círculo vicioso que parte desse depoimento sobre os factos para a ele regressar para justificar a sua própria credibilidade e também a não aceitação valorativa dos restantes meios de prova. Nem parte substancial dos relatórios elaborados – incluindo a perícia à personalidade - escapa a este círculo vicioso.

Não há, em momento algum, a mínima referência ao mínimo detalhe probatório exterior ao depoimento da menor. Atente-se em excertos da fundamentação onde se nota de forma clara que todos os depoimentos são afastados se não confirmarem o depoimento da menor:
(…)

Diga-se, por último, que nenhuma das testemunhas presenciou os factos ocorridos em Outubro e na época de Natal de 2012, e conforme resulta do depoimento da menor à frente dos outros (com excepção da tia e do avô) o arguido sempre se apresentou como bom pai, pelo que os depoimentos das testemunhas amigas do arguido neste sentido em nada alteram o referido quanto à credibilidade do depoimento de FS.
(…)
Mais, nada do depoimento desta testemunha permite retirar credibilidade ao depoimento da menor, até porquanto conforme decorre do seu depoimento o não ter consciência que a pessoa que pede ajuda seja um abusador, não afasta o facto do mesmo ser efectivamente um abusador. (???)
(…)
Por último, cumpre referir que FS revelou ter perfeita consciência da gravidade dos factos em causa e das suas eventuais consequências, tendo sido manifesto (porquê ???) que tudo aquilo que afirmou foi aquilo que se passou, não se tratando de nenhuma "crise de ciúmes" em relação ao pai.

A aparência de análise crítica limita-se a dar conta da adesão do tribunal recorrido ao depoimento da menor sem que as razões objectivas e lógicas para que ela mereça credibilidade existam, sejam racionais e compreensíveis. As razões invocadas como “regras de experiência comum” não o são! Não passam de adesões subjectivas à posição da menor com a aparência de racionalidade.

Noutra vertente, os pareceres emitidos em sede de ciências psi são contingentes e, apesar de o perito ter concluído que a menor não deve ter imaginado a história, daí não decorre com certeza absoluta que o não tenha feito. E, por tudo, uma opinião pericial sobre a personalidade não substitui a prova dos factos nem ultrapassa por si só a presunção de inocência.
*
B.2.2 – Das regras de experiência comum.
Neste ponto vamos, de novo, repetir o já por nós anteriormente elaborado a propósito do conceito de “regras de experiência comum”, noção que é muito referida, mas não é habitualmente “pensada” na praxis judicial portuguesa de apreciação da prova. No entanto já há um número razoável de decisões do STJ sobre o mesmo nos últimos anos, o que se referirá infra. Importa, pois, tentar preencher esse “conceito indeterminado”.

Mas antes disso vamos saber de que falamos, o que deve passar por indicar as “regras de experiência comum” usadas em concreto pelo tribunal recorrido. Essas foram:

Mais, enquanto que a justificação apresentada pelo arguido e por MG que levaram a menor a lhe imputar os factos não merecer qualquer credibilidade (não faz qualquer sentido que a menor por ciúmes injustificados inventasse tais factos, os mantivesse e até simulasse durante anos um trauma), já o depoimento de FS faz todo o sentido: o seu pedido de ajuda foi por ter decidido que não queria mais viver com o pai. Note-se que o facto do pai ter encontrado uma companheira, conforme referiu, até era benéfico para a própria, pois se o pai estava feliz, menos descarregava nela. (…)

Igualmente, identificou a menor aquilo que estaria na base das agressões, nomeadamente verbais perpetradas pelo pai: o mesmo terá projectado nela a raiva que tinha da mãe. (…)

Ora, se não soubéssemos, diríamos que estaríamos a falar de duas pessoas distintas ... a não ser, como aliás será perfeitamente compreensível, que a conduta da menor, após 2012, fosse essencialmente de conflito para com o pai, de revolta para com o pai, se não para com ambos os progenitores, por não ter sido protegida ... Pelo contrário, por ter sido quem a devia proteger quem mais a magoou, o que acabou por levá-la a adoptar a condutas menos normais, nomeadamente começar a fumar, refugiar-se na escrita e até Auto mutilar-se. Quanto à escrita, diga-se que os próprios escritos da mesma (note-se sobretudo o que escreveu quando estava em vias e regressar para junto do pai) também reforçam a credibilidade do seu depoimento.
(…)
O tribunal recorrido refere-as em sede de fundamentação factual em termos de deduzir e presumir factos a partir de juízos muito focalizados na menor e no pai e naquilo que entende explicar e justificar comportamentos de ambos, daí partindo para a presunção de que os factos ocorreram assim como a menor relatou. Tal e qual e sem excepções. E aqui repete-se o círculo vicioso: o depoimento da menor é confirmado pelo depoimento da menor; os escritos da menor confirmam o seu próprio depoimento.

Daqui parte-se, naturalmente - pois que esse é o passo lógico necessariamente subsequente, é uma obrigação justificativa compreensível – para a justificação de toda a matéria de facto em função do dito pela menor, razão por que aquilo que identifica como regras de experiência comum se destinem a justificar o depoimento da menor e a afastar a restante prova.

Mas essas poderão ser regras de convencimento, pessoalmente legítimo, do tribunal recorrido, mas não são de experiência, nem comuns, ao menos para este tribunal e para a generalidade das pessoas. Poderão ser, o que se aceita, regras ou convencimentos do tribunal recorrido. Mas isso não as torna comuns à generalidade das pessoas.

Mas mais. Apelidando-as de regras de experiência comum o tribunal deduz factos dessas “regras”. Presume factos de “regras” que vai criando ao sabor das suas crenças pessoais.

Desta forma a fundamentação factual revela uma patente confusão na definição do que seja uma regra de experiência comum e confunde em concreto “regras de experiência comum” e presunções simples ou factuais. Mas parece não se aperceber de nenhuma delas. Nem se apercebe que não usa regras de experiência comum, nem entende estar a presumir factos, sem factos base de onde possa presumir outros factos. Pelo menos não expõe essas presunções.

Convém, portanto, tornar claro que as regras de experiência comum autorizam a apreciar um comportamento determinado em função da cultura e comportamento social de um determinado povo, num tempo determinado. As presunções, ao invés, permitem partir de um facto conhecido para um facto desconhecido.

A presunção vive e gera factos. A regra de experiência comum é uma generalização, decorrente de observação empírica de factos anteriores, bastas vezes confundindo-se com pré-juízos, mesmo preconceitos, daí a necessária cautela no seu uso. Dar como provados, ou não, factos em função de regras de experiência comum – para mais com a largueza e o subjectivismo expostos, tal como feito pelo tribunal recorrido - não é admissível e atenta contra as balizas de racionalidade impostas pela ordem jurídica processual penal portuguesa.

Ao fim e ao cabo – pedindo perdão pelo espanholismo e informalismo – a aceitação racionalmente acrítica e total do depoimento da menor, com a consequente exclusão de tudo o que o contradiga ou o ponha em dúvida (e muitos pontos de dúvida se suscitam sem que se procurasse esclarecê-los) – só pode partir de uma regra, a regra de que as vítimas de crimes sexuais e de violência doméstica nunca mentem. Algo que, fora do mundo jurídico, se propala, mas que aqui não pode ser aceite por ser a negação do processo justo e da própria natureza humana.

Essa não é uma regra de experiência comum! É um preconceito pós moderno, relativista. E é arriscar ser desmentido com facilidade pela realidade. Mentir ou não mentir não está associado, exclusivamente, à natureza do crime. Essa “regra” serve de nada no processo justo. É uma mera abstração ideológica. As regras propostas são, pela sua amplitude e preconceito, não convertíveis em regras judicialmente úteis. E isto acarreta, necessariamente, a sua imprestabilidade como regra de experiência comum. Não serve para incriminar nem para exculpar.

Por outro lado, não se pode partir, para uma presunção simples, sem factos base e com uma regra tão geral como “este tipo de pessoa e neste tipo de crime fala verdade e quem a contraria mente”. É puro non sense. A base de partida tem que ser uma regra concretamente verificável e que seja comum à generalidade das pessoas.

E fazer operar uma presunção a partir de uma “regra” excessiva, não verificada, não resultante da experiência comum, não é permitido pela lógica, pela razão.

Nas presunções de facto os factos não podem ser analisados, como faz o tribunal recorrido, em rede de malha larga. Exige-se uma fina filigrana de análise dos factos e da prova. Algo que faltou na motivação do tribunal recorrido. A função do tribunal recorrido era apreciar a prova e não aderir à prova.

Uma afirmação se impõe então: só é possível presumir factos com ancoragem no caso concreto e não a partir de uma duvidosa generalização. Já o afirmámos no acórdão da Relação de Évora de 25-06-2013 (proc. 35/09.0TAOLH.E1):

I. Tomada isoladamente uma “regra de experiência comum” é inoperante em qualquer processo. Isto é, uma regra de experiência comum não pode isoladamente fazer prova num processo, a não ser que haja uma aproximação ao acontecido, o que se opera por via de uma presunção hominis».

Idêntica ideia fora afirmada no acórdão da Relação de Coimbra de 22-05-2013 (proc. 40/11.4TASRE.C1, rel. Jorge Jacob):

I - Na apreciação e valoração da prova produzida em julgamento, a lógica resultante da experiência comum não pode valer só por si. Efectivamente, a realidade do quotidiano desmente muitas vezes os padrões de normalidade, que não constituem regras absolutas.

II - De outro modo, seríamos conduzidos, a coberto de uma suposta “normalidade”, resultante da “experiência comum”, para um sistema de convenções apriorísticas, equivalente a uma espécie de prova tarifada, resultado que o legislador não quis e que a própria razão jurídica rejeita, pois equivaleria à definitiva condenação do princípio da livre apreciação da prova.

Assim há que afirmar que as regras de experiência comum (ou técnicas e científicas de conhecimento generalizado), ou máximas da experiência, são juízos ou normas de comportamento social de natureza geral e abstracta, sem ligação a factos concretos sobre que há que decidir, mas concretamente observáveis pela experiência anterior de casos semelhantes. E não são resultantes de uma ciência pessoal, mas de um conhecimento que é partilhado (comum) pela generalidade das pessoas de um país, de uma região, de uma classe de pessoas e concretizam-se na ideia de que certos factos geralmente ocorrem associados a outros. De forma mais sucinta, se os factos costumam ocorrer de certa forma, isso permite um raciocínio indutivo que conclua que, em iguais circunstâncias, voltarão a ocorrer dessa forma. Assim, é aceite que uma “regra de experiência comum” ou máxima da experiência não passa de uma lei social constatada de forma empírica por observação de factos anteriores.

No dizer do acórdão do STJ de 06-07-2001 «As regras da experiência são “ou o resultado da experiência da vida ou de um especial conhecimento no campo científico ou artístico, técnico ou económico e são adquiridas, por isso, em parte mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, em parte mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria”[1], que permitem fundar as presunções naturais, não abdicando da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extracção de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil”[2] – Proc. 3612/07.6TBLRA.C2.S1, rel. o Cons. Helder Roque, citando [1] Castanheira Neves (Sumários de Processo Criminal, 1967/68, 48) e [2] Vaz Serra (citando Nikisch, in “Provas, Direito Probatório Material”, BMJ nº 110, 97).

Na valoração da prova e sua fundamentação o seu papel essencial é o de fornecerem a premissa maior de um silogismo, sendo a premissa menor o facto conhecido (o comummente chamado indício) e a conclusão o resultado da presunção, o facto obtido.

A laboração sobre o tema já teve no STJ, pelo menos, as seguintes contribuições:

- Acórdão de 01-07-1998 (rel. Cons. Augusto Alves, Processo 98P548)

I - As regras da experiência são juízos hipotéticos do conteúdo genérico assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, mas para lá dos quais têm validade.

- Acórdão de 09-02-2005 (rel. Cons. Henriques Gaspar, Processo 04P4721)
(Também o Acórdão de 06-10-2010, processo 936/08.JAPRT)

7.As presunções naturais são o produto das regras de experiência que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido, quando um facto é a consequência típica de outro. (…)

9. O afastamento das regras das presunções naturais integra o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n° 2, alínea c), do CPP.

- Acórdão de 27-05-2010 (rel. Cons. Santos Cabral, 58/08.4JAGRD.C1.S1)
(Também os Acórdãos de 23-02-2011, proc. 241/08.2GAMTR.P1.S2 e de 07-04-2011, proc. 936/08.0JAPRT.S1)

VI - A actividade probatória é constituída pelo complexo de actos que tendem a formar a convicção da entidade decidente sobre a existência ou inexistência de uma determinada situação factual. Na formação da convicção judicial intervêm provas e presunções, sendo certo que as primeiras são instrumentos de verificação directa dos factos ocorridos, e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que temos por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir.

VII - Dentro das regras da experiência que vigoram na nossa sociedade podem identificar-se dois grandes grupos: por um lado, as leis científicas e, por outro, todas aquelas ilações que não são mais que regras de experiência quotidiana. As primeiras formam-se a partir dos resultados obtidos pelas investigações das ciências, a que se atribui o carácter de empíricas, enquanto as outras assentam na denominada experiência quotidiana que surge através da observação, ainda que não exclusivamente científica, de determinados fenómenos ou práticas e a respeito das quais se pode estabelecer consenso.

VIII - A máxima da experiência é uma regra que exprime aquilo que sucede na maior parte dos casos, mais precisamente é uma regra extraída de casos semelhantes. A experiência permite formular um juízo de relação entre os factos, ou seja, é uma inferência que permite a afirmação que uma determinada categoria de casos é normalmente acompanhada de uma outra categoria de factos.

- Acórdão de 27-05-2010 (rel. Cons. Soares Ramos, 86/08.0GBPRD.P1.S1)
II - Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “… as provas que não foram proibidas pela lei” (cf. art. 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art. 349.º do CC).

III -As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indirecta, mediante o qual o julgador adquire a percepção de um facto diverso daquele que é objecto directo imediato de prova, sendo exactamente através deste que, uma vez determinado, usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objecto de prova).

- Acórdão de 06-07-2011 (rel. Cons. Hélder Roque, 3612/07.6TBLRA.C2.S1)
III - As regras da experiência não são meios de prova, mas antes raciocínios, juízos hipotéticos de conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além do caso a que respeitem, adquiridas, em parte, mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, e, noutra parte, mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria, permitindo fundar as presunções naturais, mas sem abdicar da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extracção de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil.

De onde decorre a aceitação – devidamente ponderada - das regras de experiência comum ou máximas da experiência pela jurisprudência. E aquilo que estes arestos não permitem é dar um tratamento indiferenciado entre regras de experiência comum e “presunções” tout court. Não há identidade nos conceitos.

Em resumo, a regra de experiência comum não é uma prova, sim um “juízo hipotético de conteúdo genérico, assente na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam,” (Acórdão de 06-07-2011). A presunção é uma “prova” reconhecida pelo ordenamento jurídico português, enquanto ilação que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido – artigos 349º e 351º do Código Civil, incluídos na Secção II do Capítulo II (Provas), do Sub-título IV, do Livro I do Código Civil.

Também é jurisprudência assente que o não-uso de regras de experiência comum e presunções simples quando elas se impõem gera o vício de erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, - Acórdão de 06-10-2010.

Mas, afirmamos nós, o contrário também é verdade, há erro notório na apreciação da prova se o tribunal conclui pela existência de factos assentes numa regra que não é de experiência comum e apenas corresponde a um convencimento subjectivo do juiz sem suporte objectivo e racional.

Concluindo, nenhuma das regras usadas no caso sub judicio para apreciar a prova é uma regra de experiência comum aceitável e nenhuma presunção simples foi justificadamente utilizada pelo tribunal recorrido na apreciação probatória. Ocorre, portanto, erro notório na apreciação da prova.
*
B.2.3 – Valoração da prova e sistema processual
Destarte, lida a fundamentação de facto do acórdão recorrido a alegada omissão de análise crítica da prova só ocorrerá se tivermos em conta que essa análise deve ser objectiva e racional e o tribunal recorrido tinha falhado por erro, lapso, distracção ou insuficiente fundamentação racional. E, se assim fosse, o recorrente teria razão e restava-nos declarar tal nulidade e a prejudicialidade dos restantes pontos objecto de recurso e ordenar a baixa do processo para o acrescento motivador.

Dentro de poucos meses seríamos confrontados com nova decisão, novo recurso e o mesmíssimo problema pois o que aqui está em causa é outra coisa.

Aquilo que está em causa é o assumir muito frontal pelo tribunal recorrido que a fundamentação da matéria de facto é uma tarefa subjectiva. É o “eu acredito”, “eu fiquei convencido/a”, “a/o ofendida/o prestou declarações de forma convincente e credível” e outras fórmulas mágicas equivalentes. Sendo assim não há ausência de análise critica da prova, há análise subjectiva da prova e ausência de análise objectiva e racional da prova de forma frontal, clara, arrogada.

E, assim sendo, essa “nulidade” processual não pode ser suprida pelo tribunal colectivo que se bastou com o seu subjectivismo para decidir. Onde ir agora buscar elementos de prova objectivos que suportem uma análise racional se os que estão nos autos – e já estavam desde a acusação – de nada serviram? Declarar uma nulidade processual por inexistência de uma fundamentação objectiva não será uma inutilidade – até “violenta” – para quem subjectivamente se bastou e basta?

Aliás, até seria admissível que nenhuma fundamentação factual existisse. Já assim era na vigência do C.P.P. de 1929 (ausência de fundamentação devidamente disfarçada com um parágrafo ilusório e meramente formal), na maior parte dos julgamentos com intervenção de júri no mundo anglo-saxão, ou no sistema processual francês ainda no início desta década quer pelo preenchimento de uma folha A4 com “cruzinhas” fundamentadoras por alíneas divididas por documentos, testemunhas, etc. (prática observada pelo relator em estágio ali realizado em Tribunal de Grande Instance), quer a ausência de fundamentação factual nas Cours D´Assisses em França, que era legal e corrente até 2012.

O artigo 353º do Code de Procedure Penal, neste preceito alterado pelo artigo 12º da Loi n° 2011-939 du 10 août 2011, estabelecia sugestivamente:

Avant que la cour d'assises se retire, le président donne lecture de l'instruction suivante, qui est, en outre, affichée en gros caractères, dans le lieu le plus apparent de la chambre des délibérations:

La loi ne demande pas compte aux juges des moyens par lesquels ils se sont convaincus, elle ne leur prescrit pas de règles desquelles ils doivent faire particulièrement dépendre la plénitude et la suffisance d'une preuve; elle leur prescrit de s'interroger eux-mêmes dans le silence et le recueillement et de chercher, dans la sincérité de leur conscience, quelle impression ont faite, sur leur raison, les preuves rapportées contre l'accusé, et les moyens de sa défense. La loi ne leur fait que cette seule question, qui renferme toute la mesure de leurs devoirs: "Avez-vous une intime conviction?".

E aquele artigo 12º alterou o preceito, na parte interessante, acrescentando-lhe no início a expressão "Sous réserve de l'exigence de motivation de la décision”. [1]

E este subjectivismo exacerbado – hoje temperado - era e é igualmente patente noutros preceitos, designadamente no artigo 304º do mesmo diploma, com um juramento repleto de promessas: "Vous jurez et promettez d'examiner avec l'attention la plus scrupuleuse les charges qui seront portées contre X..., de ne trahir ni les intérêts de l'accusé, ni ceux de la société qui l'accuse, ni ceux de la victime; (…) de n'écouter ni la haine ou la méchanceté, ni la crainte ou l'affection; de vous rappeler que l'accusé est présumé innocent et que le doute doit lui profiter; de vous décider d'après les charges et les moyens de défense, suivant votre conscience et votre intime conviction, avec l'impartialité et la fermeté qui conviennent à un homme probe et libre, (…).

Face a isto nós temos dois problemas: desde logo o não termos nas nossas chambre des délibérations (aliás, nem as chambres temos) um cartaz com os dizeres “Avez-vous une intime conviction?" com tudo o que de estimulante isso acarreta, nem o jurarmos processo a processo a religiosidade na apreciação da prova.

Independentemente do que resulta do processo penal francês, hoje temperado com o convívio com outros sistemas assentes numa prevalência do acusatório e da racionalização da prova, com alterações legais e de práticas posteriores ao labor do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, certo é que existe e existiu um conjunto de ordens jurídicas assentes numa concepção de apreciação da prova de cariz pessoal centrado na figura do juiz e do jurado.

E este é o nosso segundo problema. Estes são sistemas processuais penais que Jordi Ferrer Beltrán designa por “concepção persuasiva”. Trata-se de uma concepção processual subjectiva coerente que apela à íntima convicção do juiz como único critério de apreciação probatória, forte pendor da imediação e do papel do juiz de 1ª instância na apreciação da prova, débeis exigências de motivação e um sistema de recursos que dificulta o recurso em matéria de facto. [2]

Corresponderá a nossa previsão legal contida nos artigos 127º e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, quando afirmam que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção e que a sentença deve conter, sob pena de nulidade, “... uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, ao convencimento subjectivo do juiz através de uma íntima convicção? A resposta é obviamente negativa e sempre o foi na vigência do actual código.

Apenas práticas recentes e para certos tipos de crime da neo criminalização se vem tentando alterar o paradigma processual penal e impor uma apreciação probatória insindicável.

O objectivo do processo penal é claro. Pretende-se temperar o princípio da livre apreciação da prova com uma obrigação de motivação com alteridade e objectividade. Como afirma Germano Marques da Silva, “A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite a sindicância da validade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autocontrolo”.[3]

Face a isto impõe-se recordar que o comando contido no artigo 127º do Código de Processo Penal determina que o juiz deve apreciar a prova “segundo as regras da experiência e a livre convicção” e isso não corresponde a uma livre discricionariedade na apreciação da prova. Não se trata aqui de ressuscitar o modelo de arbítrio judicial pós revolucionário da íntime conviction.

Convém evocar que a livre convicção do julgador pôs fim ao processo assente na prova legal ou tarifada.

É certo que o sistema da “livre convicção” deu origem a dois sistemas de convicção, surgindo o sistema da íntima convicção (intime conviction) na sequência da Revolução Francesa associada à livre convicção, no qual o juiz estava “desligado não só das regras de prova legal, mas também de qualquer critério racional de valoração”. [4]

Este sistema, de irracionalidade motivadora, de cariz marcadamente subjectivo, abre a porta à arbitrariedade na apreciação probatória, com base numa imperscrutável actividade individual do juiz e constitui – em si – uma negação do recurso em matéria de facto. É, aliás, paradigma de arbítrio judicial.

Porque - não se diz mas assim é - o arguido, qualquer arguido, mesmo os acusados da prática de crimes de violência doméstica e de cariz sexual, têm direito a uma análise racional da prova. Não têm o dever de suportar subjectivismos e crenças pessoais não legitimados pela lei.

Assim o princípio da livre convicção deve ser associado a uma discricionariedade do juiz na apreciação probatória, mas apenas no sentido de o não vincular – como regra geral – a uma valoração probatória pré-definida, porque apenas nisso é livre. Por isso que se afirme que o modelo de livre apreciação da prova é, antes de mais, um modelo metodológico negativo. [5]

Desta forma, o modelo de “livre convicção” permite ao juiz desligar-se de valorações pré-constituídas e procurar a verdade nos factos. Mas não exime o juiz da busca da verdade através dos métodos epistemológicos aceites. E o método epistemológico, por excelência, aceite na busca da verdade dos factos é a razão.

Ou seja, a livre convicção é, hoje, uma concepção racional de livre convicção na busca da verdade factual, com dois corolários:

1 – Regra geral o juiz aprecia livremente – não sujeito a valoração tabelada – toda a prova produzida;

2 – Através do uso da razão para demonstrar a verdade dos factos segundo um modelo assente na probabilidade.

Deste modo haverá que afirmar, de forma absoluta, que a motivação não é o seguimento do “iter lógico-psicológico que o juiz seguiu para chegar à formulação final da sua decisão”, sendo irrelevantes “as sinapses que se produziram nos neurónios do juiz, os seus humores, os seus sentimentos e qualquer outra coisa que tenha sucedido in interiore homine”. [6] Isto é, o sistema da livre convicção consagrado no ordenamento jurídico português não é um sistema irracionalista, subjectivo, de apreciação probatória, sim um sistema racionalista, assente na razão, nas regras de experiência social comprovada e em presunções probatórias racionalmente fundadas. [7]

Estas constatações fazem ressaltar que o subjectivismo do tribunal recorrido impera onde deveria imperar a razão e, logo, um sopesar ponderado do teor dos depoimentos, a aplicação prudente das regras de experiência comum e das presunções naturais.

Tal não ocorrendo não é possível aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que subjaz à motivação pela via do recurso, já que se não explicitou, de forma lógica e racional, por referência ao teor dos depoimentos, às suas circunstâncias e às regras de experiência comum, as razões que fundaram a convicção do tribunal recorrido.

De forma simples, como se impugna e recorre de um convencimento subjectivo?

Do exposto resultaria a existência de nulidade de sentença, por ausência de fundamentação quanto aos factos provados e factos não provados, sendo certo que a clara opção voluntária do tribunal recorrido por uma motivação assumidamente subjectiva retira a questão da sede da nulidade e a coloca em sede de interpretação normativa dos artigos 127º e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal e, como tal, como claramente contrária à constituição.

Concluindo, caberá a este tribunal apurar se é justificável o reenvio dos autos para novo julgamento, que esse sempre o seria na totalidade face à configuração da prova e sua fundamentação e ao disposto no artigo 426º, nº 1 do diploma.

Mas aqui somos confrontados com uma realidade inultrapassável. Os factos terão ocorrido em 2012, toda a prova existente foi produzida nos autos, nenhuma outra prova favorável à acusação resta por realizar e a prova complementar a realizar em termos de possibilidades reais de ainda ser obtida só beneficiaria o arguido pois que se situaria sempre em sede de confirmação da sua versão dos factos, o que foi desprezado nos autos desde o inquérito. É que nem as decisões de regulação do poder parental da FS foram sequer referidas e documentadas de forma consistente.

Já a matéria da acusação esgotou os meios probatórios que podia apresentar.
*
B.3 – Apreciação da prova e standard probatório
E, agora, cometemos pecado fatal – a crer em opiniões alheias – mas de que nos penitenciamos desde já tendo em mente a economicista razão de poupança na argumentação (e na leitura) e citamos o sumário do acórdão desta Relação de 08/03/2018 (de nosso relato no processo nº 360/14.IT9STB.E1, em http://www.dgsi.pt com data na forma 03-08-2018) de forma a tornar claro o nosso pensamento e as linhas de análise do presente acórdão:

1 - O princípio in dubio pro reo é habitualmente usado para nele integrar três realidades distintas, gerando alguma indeterminação de conceitos. As regras de apreciação de concretos meios de prova no âmbito do artigo 127º do C.P.P. e o standard probatório necessário à condenação são conceitos que se não confundem com aquele princípio. São três conceitos distintos.

2 - Quando se aprecia a prova no âmbito do artigo 127º do C.P.P. usa-se a razão, os conhecimentos empíricos, os conhecimentos técnicos e científicos, as regras sociais e de experiência comum. Aqui não há metodo dubitativo, há métodos racionais de dedução e indução. (…)

4 - Quando se formula um juízo de convicção tem-se presente a existência de uma presunção de inocência e, por isso, não vale um mero juízo de maior probabilidade de que os factos terão ocorrido de determinada forma, exigindo-se um forte juízo de certeza de que os factos terão ocorrido de deteminada forma, não de outra.

5 - Isto é, o juiz pode ver-se confrontado, a final quando constrói a sua convicção, com três situações:

- ou tem dúvidas sobre como ocorreram os factos e usa o princípio in dubio pro reo e dá-os como não provados;
- ou constrói um juízo de mera probabilidade de que os factos ocorreram de determinada forma e deve dar os factos incriminatórios como não provados;
- finalmente, tem uma certeza judicial de que os factos ocorreram de determinada forma e dá os factos como provados.

Quando o inquérito chegou ao fim nos presentes autos a Polícia Judiciária concluiu de forma original o seu relatório final afirmando que (há lapso no relatório quando afirma que os factos ocorreram em 10-11-2016, quando se queria referir a 10-11-2015):

«PROVA DOCUMENTAL
No relatório completo de episódio de urgência do Hospital São Bernardo, em Setúbal, consta que em 19.11.2015, a menor foi ali conduzida por duas técnicas da EMAT devido a alegadas agressões físicas por parte do pai, ocorridas a 10.11.2016. E portanto, tendo recebido assistência médica, verificou-se exibir apenas lesões traumáticas na face interna de ambos membros.

Sendo que na mesma altura, não foi sujeita a qualquer observação ginecológica naquele hospital, em virtude de ter reportado os dois abusos sexuais vaginais de que disse ter sido vítima, ao ano de 2012.

CONCLUSÃO
Compulsados os autos e salvo melhor opinião, parecem assim existirem alguns indícios que apontam para a prática de dois crimes de abuso sexual de crianças agravado, cometidos sobre FS, atualmente com 15 anos de idade, por parte de AA, seu pai, cf. previsto e punido no art. 171º n. 2 e nos termos do que estatui o art. 177, n. 1 alínea a), todos do C.P., porquanto, o progenitor da menor teve efetivamente oportunidade de manter tal conduta ilícita, contanto que tinha a tutela e residia com a menor à data dos factos.

Mas pese embora a investigação não ter considerado como pertinente a realização na atualidade de exame pericial de natureza sexual à menor, considerando que em sede de inquirição a própria admitiu já ter mantido relações sexuais consentidas com um namorado, no decurso da adolescência, talvez não seja de todo despropositado se na situação em apreço, a menor FS possa agora ser sujeita a realização de perícia forense de natureza psicológica, com vista a avaliar a sua cognição ao nível global (maturidade), e em particular perceber se a mesma se encontra em sofrimento psicológico especifico, bem como a sua suscetibilidade para fantasiar e/ou inventar factos de natureza sexual, por forma a aferir, de um modo mais balizado, da ocorrência ou não dos abusos sexuais a que se reportam os autos.

Quando necessariamente se terá de levar em linha de conta, o relacionamento familiar mantido entre a menor e ambos os progenitores ao longo dos anos, considerando que sempre se caracterizou como sendo emocionalmente desafiante, instável e até conflituoso, bem patente nos relatórios sociais contantes nos autos, e até na existência de uma queixa prévia, entretanto arquivada, também por agressão física (violência doméstica) em relação à própria mãe, cf. fls.128 a 130.

Assim, não se vislumbrando a realização por parte desta Polícia de qualquer outra diligência que possa vir a produzir algum efeito útil, salvo melhor opinião, submete-se os autos à apreciação de V. Exa. para que possa determinar o que tiver por conveniente ...»

E original porquanto a indiciação se fica pela oportunidade. Ao que parece já basta para a imputação de um crime!

Mas neste relatório assume relevo o outro elemento probatório existente nos autos para além do depoimento da menor FS, as lesões na face interna dos seus membros inferiores, que o relatório qualifica como “apenas” (verificou-se exibir apenas lesões traumáticas na face interna de ambos membros). E trata-se de elemento de relevo porquanto material, objectivo, que poderia confirmar o depoimento da FS ou infirmá-lo.

Qual foi o relevo que lhe deu a P.J? Nenhum! A conclusão do relatório apontava para a indiciação oportunística (de oportunidade) de um crime de abuso sexual p. e p. pelos artigos 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a), o que significa a subsunção ao tipo penal de abuso sexual de menores dependentes, agravado por a vítima menor dependente ser descendente do agente. Ou seja, descartou a prática do crime de violência doméstica.
E a menor tinha ido ao Hospital em 19-11-2015 por factos (agressões) supostamente cometidos por seu pai em 10-11-2015 e revelou-se a existência de equimoses na parte interior dos membros inferiores.

Os factos dados como provados pertinentes ao crime imputado de violência doméstica são os seguintes:

14. Contudo, o arguido AA continuou a privar com a filha FS, sendo que, em número de vezes não concretamente apurados, desferiu chapadas e pontapés na menor, bem como a desferir-lhe empurrões;

15. Tal facto, ocorreu, nomeadamente no dia 10 de Novembro de 2015, em que o arguido AA desferiu, na sua filha FS, pontapés que lhe provocaram equimoses na face interna de ambos os membros inferiores;

Sorte a do arguido não lhe ter sido imputada, em 10-11-2015, um crime de abuso sexual pois que as lesões nas faces internas dos membros inferiores muito mais compatíveis seriam com um crime desse género do que com umas ofensas corporais simples usando os pés como arma de agressão. De facto, o facto provado em 14 – uma abusiva generalização juridicamente irrelevante, mas processualmente reprovável – só serviu para retirar a imputação do crime das ofensas corporais para transformar o crime imputado numa violência doméstica, um dos abusos processuais correntes.

E sempre seria difícil que pontapés desferidos contra a menor só provocassem equimoses nas partes interiores dos membros inferiores! Três à esquerda e três à direita (fls. 164 vº). Ninguém terá percebido que para isso ocorrer a menor teria que estar estática no chão e de pernas abertas enquanto eram desferidos seis pontapés?

Não será isto um desconchavo, em português lhano? É que basta pensar um pouco para perceber que muito mais verosímil é a versão da tia da menor que afirmou que tais lesões advieram do empurrar pela menor dos móveis com o corpo na arrumação do seu quarto.

Não se trata, portanto, quanto à violência doméstica, de fazer operar o princípio in dubio pro reo! Os factos 14 e 15 e todos os deles dependentes serão dados como não provados, o primeiro por abusiva generalização, o segundo por óbvio despautério.

Mais sério, pelas consequências possíveis na vida de duas pessoas – a FS e seu pai, ora arguido – é a matéria de facto relativa aos crimes sexuais imputados.

Para sustentar esta acusação – que à data da acusação e tendo presente que a própria PJ apenas apontou o “indício” da oportunidade por o arguido ser pai e sua filha viver com ele (coisa raramente vista) – só existia um elemento probatório incriminador, o depoimento da menor.

É a partir dele que se obtêm relatórios, designadamente o relatório do IML, solicitado para despistar uma personalidade imaginativa da menor. A conclusão é negativa, o sr. perito acha que a menor não tem uma personalidade imaginativa que a levasse a incriminar o pai.

Agora surge outra corruptela do pensamento: se a menor não tem uma personalidade imaginativa ela disse a verdade, logo o que ela diz é verdadeiro e não contraditável. E parte-se para uma análise que seria comparativa entre as versões da menor e a do arguido, com supostas regras de experiência comum, sempre aceites as da menor, nunca aceites as do arguido.

É claro que solicitar relatórios psicológicos quando não há indícios – nem se discute se são suficientes ou não, simplesmente não havia indícios – é uma inversão do pensamento processual correcto. É a pretensão de que um relatório psicológico, por si, pode fazer prova de factos incriminatórios de tal gravidade e imputá-los a pessoa certa e determinada. Mas exonera o pedinte (no sentido de mendigo de indícios), seja a PJ seja o Ministério Público, de ser “apontado” por ir contra a corrente do modernamente exigível.

Ora, é sabido, quando nos defrontamos com casos destes, que quem se fia em declarações contraditórias e se fica exclusivamente no âmbito interno dessas declarações é enganado. É a velha teoria – mal conhecida no mundo judiciário, infelizmente – da coerência narrativa interna e externa.

Se não há elementos que façam prevalecer qualquer uma das narrativas dos factos, a da FS e a do pai, por poderem ser, ambas, narrativas internas mais ou menos coerentes (narrativas que não apresentam contradições ou lacunas graves), haverá que ir buscar ajuda às narrativas externas para apurar da sua coerência global. Isto é, saber qual das “estórias” corresponde às práticas e às posturas de ambos os narradores noutras situações relevantes, condutas expressas noutros actos que mostrem atitudes pessoais que se revelem coerentes ou inconsistentes com a sua narrativa interna.

Ou seja, temos que indagar e procurar juntar à discussão elementos circunstanciais exteriores às declarações que as infirmem ou confirmem.

E o tribunal recorrido fez isso, numa parte muito sugestiva das suas motivações, como segue:.

Mais, apesar de a menor ter sido descrita por algumas das testemunhas como sendo uma menina sem valores, conflituosa, o certo é que LP, directora de turma da menor em 2015, descreve FS como uma aluna muito educada, extremamente correcta, com uma boa relação com a turma, ainda que andasse tensa sobretudo por razões familiares, sendo o problema da mesma as faltas.

Ora, se não soubéssemos, diríamos que estaríamos a falar de duas pessoas distintas ... a não ser, como aliás será perfeitamente compreensível, que a conduta da menor, após 2012, fosse essencialmente de conflito para com o pai, de revolta para com o pai, se não para com ambos os progenitores, por não ter sido protegida ... Pelo contrário, por ter sido quem a devia proteger quem mais a magoou, o que acabou por levá-la a adoptar condutas menos normais, nomeadamente começar a fumar, refugiar-se na escrita e até Auto mutilar-se. Quanto à escrita, diga-se que os próprios escritos da mesma (note-se sobretudo o que escreveu quando estava em vias e regressar para junto do pai) também reforçam a credibilidade do seu depoimento.

Isto em 2015, quando os factos imputados são de 2012. E o comportamento escolar da menor já era “problemático” antes de 2012.

A versão do arguido, de que era bom pai, de que sempre levou e foi buscar, diariamente, a FS à escola, que a colocou num colégio privado (onde teve bom aproveitamento escolar e não podia saltar a rede da escola) depois de a menor revelar fraquíssimo aproveitamento e faltar na escola pública quando vivia com a mãe, nem foi corroborada à data da apresentação da contestação por prova de fácil obtenção nos vários estabelecimentos escolares frequentados pela menor – incluindo as duas retenções de ano - nem em julgamento alguém se preocupou em fazer uso do artigo 340º do C.P.P. para a obter, nem para confirmar a versão do arguido, o que era de simples realização.

Mas nos autos já havia elemento probatório de relevo que foi desprezado de forma incompreensível, o despacho da Digna magistrada do Ministério Público do tribunal de Setúbal, lavrado no processo nº ---/14.8TASTB em que a mãe da menor era arguida. Note-se:

«Serviços do Ministério Público de Setúbal 1ª Secção
Proc. n° ---/14.8TASTB 13462879
CONCLUSÃO - 10-03-2014.
Tiveram os presentes autos início com a Participação lavrada pela CPCJ de Setúbal onde se comunicam fatos suscetíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica, p e p no art. 152°, n. 1, al. d) e n. 2, do C. Penal, de que foi vítima FS …., nascida em 17.10.2000.
A autoria do ilícito é imputada à mãe da menor, CR …...
De acordo com a Participação a jovem declarou que tinha sido vítima de maus tratos físicos por parte da mãe.
A partir de Maio de 2013 a jovem passou a residir na companhia da mãe.
Já nesta altura revelava comportamento escolar inapropriado, com falta de aproveitamento.
A mãe confirmou ter sido agressiva com a filha ao ponto de lhe ter batido e que o tinha feito para a corrigir e para ela "se endireitar".
A 16.1.2014 o pai informou que a filha passará a residir novamente consigo uma vez que a mãe a maltrata.
Mostram-se realizadas as pertinentes diligências de investigação.
Foi junta cópia do Processo de Promoção e Proteção onde se encontram os registos escolares da menor.
Realizei a inquirição da FS que esclareceu:
No ano letivo transato deu várias faltas injustificadas.
No ano letivo que se iniciou em Setembro de 2013 teve também faltas disciplinares logo no primeiro período e recebeu testes negativos que escondeu da mãe.
Em dia que não sabe concretizar, do mês de Novembro de 2013, por volta das 19h, no interior da sua residência, a mãe descobriu os recados dos professores e as notas dos testes que tinha recebido. Descontrolou-se, desferiu-lhe chapadas no rosto e agarrou-a pelos braços.
Em consequência destes fatos sofreu apenas uma pequena nódoa negra no braço esquerdo.
Não recebeu tratamento hospitalar.
Depois desta data existiram outras discussões porque a mãe acabou por se dirigir à escola para se inteirar do que se passava.
Nestas discussões pode-lhe ter dado uma chapada ou outra mas nada de importante. Antes e depois do episódio ocorrido em Novembro não existiram outros fatos ou atuações semelhantes.
Em Janeiro de 2014 o seu pai levou-a novamente para junto de si e inscreveu-a no Externato Nuno Álvares. A vigilância exercida no externato é muito grande. Não voltou a ter faltas disciplinares.
Está tudo calmo em relação à sua mãe e no seu entender o processo deveria ser arquivado uma vez que se tratou de uma situação pontual e já foi ultrapassada.
Solicitados os registos clínicos da menor ao CHS, foi junta a informação de que o último episódio de urgência remonta a 11.1.2013.
Ponderando o teor das declarações prestadas pela FS, entende-se que não se justifica a realização de outras diligências.
Esta, descreveu um episódio de agressão física em consequência do qual sofreu um pequeno hematoma.
Esta agressão, ultrapassa o exercício do dever de correção do progenitor, integrando a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p e p no art. 143°, n. 1, do C. Penal.
Ultrapassando as competências parentais próprias de tal dever de correção não tem a virtualidade de integrar o crime de violência doméstica que exige uma atuação maltratante, ofensiva da dignidade da vítima.
O crime de ofensa à integridade física simples tem natureza semipúblico.
Sendo vítima um menor, o M. Público dá início ao procedimento criminal sempre que o interesse da vítima o aconselhar (art. 113°, n. 5, al. a), do C. Penal).
O direito de queixa não foi exercido por AA que tinha a guarda da sua filha FS.
A FS tem 13 anos de idade. Está novamente, a viver com o pai mantendo um relacionamento estável com a mãe.
Conforme declarou, atualmente está tudo ultrapassado pelo que no seu entender os autos deveriam ser arquivados.
Este quadro fático faz-nos concluir que a proteção do interesse da FS não passa pelo prosseguimento da presente ação penal.
Em face do exposto e ao abrigo do art. 277°, n. 1 do CPP, determino o arquivamento dos autos.
Notifique os dois progenitores da menor.
Set., d.s. »

E aqui é muito simples, confirma-se que a versão do arguido tinha alguma consistência e a sua afirmação de que os problemas com a FS surgiram porquanto tentou impor-lhe regras de conduta quer em casa, quer na escola tinha razão de ser já que, fechado o colégio privado onde a tinha colocado, a FS voltou a ter comportamento problemático na nova escola pública.

E, por isso, o depoimento de LP, directora de turma em 2015, usado para afastar os restantes depoimentos sobre a FS reduz-se àquilo que parece ser: uma visão parcial da menor em 2015 que não pode, sem mais, afastar os depoimentos de quem – familiares – sempre conheceu a menor.

Acresce outra estranheza resultante desta adesão ao depoimento da menor: esta afirma ter sofrido de auto-mutilações. Naturalmente estas auto-mutilações podem ter várias explicações e uma delas poderiam ser as relacionadas com os factos imputados. Mas percorridos os episódios hospitalares (fls. 164 a 165 vº) não só não se constata a existência de rastos dessas mutilações, como inclusivé ali se afirma não serem visíveis “outras lesões traumáticas aparentes” (fls. 164 vº). Ora, como a menor fala em automutilações por cortes seria de supor a existência de cicatrizes, que sempre seriam “lesões traumáticas aparentes”. Mas não houve qualquer preocupação em confirmar tal circunstância.

Estamos apenas a constatar que as narrativas externas sempre parecem pesar mais a favor da confirmação da narrativa interna do arguido.

E assim, em conclusão, se o depoimento da menor sobre os crimes sexuais é pouco consistente e essa falta de consistência também é abalada por actos e condutas que a infirmam, não se pode erigir o seu depoimento como o parâmetro de decisão probatória.

O depoimento da menor foi ouvido integralmente por este tribunal, assim como as declarações do arguido. No depoimento da menor evita-se sempre que a ela seja confrontada com o real na sua própria versão dos factos.

Ouvidas as declarações do arguido e o depoimento da FS constata-se que ambos poderiam ter sido mais livres e directos e, assim, mais esclarecedores, e que a menor não descreve de forma minimamente pormenorizada os factos da acusação, nem as agressões, muito menos os episódios de cariz sexual.

O que é de sua lavra – pouco - é elucidativo numa menor por revelar formas de dizer que não podem ser de sua autoria natural. Nenhum menor, face a uma questão sobre o que fez o agressor, responde que “praticou o coito” e “ocorreu penetração vaginal”. Face a tais respostas as cautelas impor-se-iam, concretizando-se tal precaução numa busca ainda mais cuidada de pormenores que deveriam necessariamente, obrigatoriamente, ser relatados pela menor, mas isso não foi feito.

Essa busca de pormenores impor-se-ia ainda hoje? Já não! O já feito inviabilizou a prestabilidade futura de novo depoimento, para além de se saber do óbvio e cruel martelar de pormenores que, além de íntimos, sempre teriam na base uma dúvida bárbara, exposta em público, quanto à veracidade do depoimento.

Acresce – e que é o essencial - que o seu singelo depoimento com ausência de corroboração probatória não significaria alteração decisória.

Certo é que, em conclusão factual, o depoimento da menor – único elemento probatório não corroborado por qualquer outro elemento de prova, mínimo que fosse - não permite concluir pela afirmação de que existe prova de que os factos ocorreram tal como descritos na acusação.
Nem se trata de haver dúvida e fazer operar o princípio in dubio pro reo. Simplesmente não há prova dos factos. Sequer para se poder concluir por um juízo de maior probabilidade de que os factos ocorreram como acusados. Muito menos para se poder afirmar que a dita prova ultrapassa a barreira da presunção de inocência, alcançando o estádio de certeza judicial/proof beyond a reasonable doubt exigível para uma condenação penal.

Por tudo é o recurso procedente, ficando prejudicada a única questão não tratada, o quantum da medida da pena aplicada ao recorrente e a suspensão da sua execução.

Para tanto é mister que se declarem não provados – por clara ausência de prova – os factos 4º a 15º tal como peticionado no recurso e, por coerência lógica, subsequentemente, os factos 16º, 17º e 20º (não há factos 18º e 19º).
*
C - Dispositivo
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder total provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente:

1 - declaram não provados – por clara ausência de prova – os factos 4º a 15º, 16º, 17º e 20º (não há factos 18º e 19º);

2 - absolvem o arguido da prática de:
a) - um crime de violência doméstica, agravado, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1 al. b), n. 2 e n.º 4 do Código Penal, na pena de 2 anos 6 meses

b) - um crime de violação agravada, p. e p. pelo art. 164º, º, al. a), e art. 177º, nº 7, do Código Penal, na pena de 6 anos;

c) - um crime de violação agravada, p. e p. pelo art. 164º, º, aI. a), e art. 177º, nº 7, do Código Penal, na pena de 6 anos.

Sem tributação.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 21 de Janeiro de 2020

João Gomes de Sousa
Nuno Garcia
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[1] - Texto do artigo: “I. ― Au début de la première phrase du second alinéa de l'article 353 du même code, les mots: «La loi ne demande pas compte aux juges» sont remplacés par les mots: «Sous réserve de l'exigence de motivation de la décision, la loi ne demande pas compte à chacun des juges et jurés composant la cour d'assises». (…)”. Isto é, acrescentou-se a motivação da decisão para deixar intocada a intime conviction.

[2] - V. g Jordi Ferrer Beltrán, in “La valoracion racional de la prueba”, Filosofía y Derecho, Marcial Pons, 2007, pag. 62.

[3] - In “Curso de Processo Penal”, Verbo, 1994, III, 290.

[4] - “Simplesmente la Verdad – El juez y la constuccion de los hechos” – Michele Taruffo, Filosofía y Derecho, Marcial Pons, 2010, pags. 179-180.

[5] - “Los hechos en el Derecho – Bases argumentales de la prueba”, Marina Gastón Abellan, Filosofía y Derecho, Marcial Pons, 2010, pags. 142-144.

[6] - “Simplemente la Verdad, pag. 267.

[7] - Ou “concepção cognoscitivista”, que se apresenta coerente com o método de corroboração e refutação de hipóteses como forma de valoração da prova, versão limitada do princípio da imediação, forte exigência de motivação factual e recurso amplo em matéria de facto. V.g. Jordi Ferrer Beltrán, in “La valoracion racional de la prueba”, Filosofía y Derecho, Marcial Pons, 2007, pag. 64 e nota 6.