Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1151/13.7TBBJA.E1
Relator: ACÁCIO NEVES
Descritores: SECTOR EMPRESARIAL DO ESTADO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: É da competência dos Tribunais Administrativos a apreciação das vicissitudes de um contrato em que um imóvel foi dado de arrendamento em 1974 ao Director de Saúde do Distrito de Beja, em nome do Estado Português, com destino à instalação e funcionamento de serviços do Estado.
Decisão Texto Integral: Procº. Nº 1151/13.7TBBJA.E1 (2ª Secção Cível)
Acordam nesta Secção Cível os Juízes do Tribunal da Relação de Évora.

(…) intentou, em 15.10.2013 acção de despejo, sob a forma de processo comum de declaração, contra a Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, EPE, pedindo que a ré fosse condenada a entregar-lhes determinado imóvel, do qual são proprietários e que, em 25.03.1974, havia sido dado de arrendamento por (…) ao Director de Saúde do Distrito de Beja, em nome do Estado Português, com destino à instalação e funcionamento de serviços do Estado.

Alegou, para tanto e em resumo, que no locado funcionou durante muitos anos um laboratório de análises clínicas pertencente ao Centro de Saúde de Beja, integrado na ARS de Beja, que mais tarde o locado passou a servir de arquivo e apoio de reprografia e que recentemente vieram a constatar que o mesmo passou a ser utilizado como bar, com fim diverso daquele a que se destinava, tendo havido uma cessão total e permanente do gozo do imóvel a favor de terceiro, sem autorização.

Citada, contestou a ré, a qual alegando ser, por força de sucessivas alterações e transmissões ocorridas desde a data da celebração do contrato de arrendamento, a sucessora de todos os direitos e obrigações da Administração Distrital de Saúde de Beja, se defendeu por impugnação, pugnando pela improcedência da acção.

Findos os articulados, na sequência da notificação das partes, com base em despacho nesse sentido, para se pronunciarem sobre a competência do tribunal em razão da matéria, vieram os autores tomar posição no sentido de não poder ser a jurisdição administrativa mas sim a jurisdição cível a apreciar o presente litígio.

Seguidamente, foi proferido despacho, nos termos do qual se julgou o Tribunal (Judicial da Comarca de Beja, onde foi intentada a acção) absolutamente incompetente, em razão da matéria e, em consequência, absolveu a ré da instância.

Inconformados, interpuseram os autores o presente recurso de apelação, em cujas alegações, pedindo que a decisão recorrida seja anulada, devendo a acção prosseguir os seus termos no Tribunal Judicial de Beja uma vez que o mesmo é, como se comprovou, o Tribunal competente em razão da matéria, apresentaram as seguintes conclusões:

1ª - A Ré (Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo EPE) é uma entidade pública empresarial (EPE) cuja criação se encontra prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 183/2008, de 04/09; 2ª - As ULS (Unidades Locais de Saúde), como decorre do nº 2 do artigo 4º do mesmo diploma, regem-se pelo regime jurídico aplicável às entidades públicas empresariais;
3ª - O regime jurídico do sector empresarial do Estado foi sucessivamente regulamentado pelos Decretos-Lei nº 558/99, de 17/12, nº 300/2007, de 23/08 e nº 133/2013, de 03/10;
4ª - Já o Decreto-Lei nº 558/99, de 17/12, que veio instituir o regime do sector empresarial do Estado, deixava claro pela conjugação dos seus artigos 3º, nº 2, 23º, nº 1 (in fine), 24º, nº 2 e 7º, nº 1, que as entidades públicas empresariais, criadas por Decreto-Lei e com a denominação de EPE, se regem pelo direito privado;
5ª - Pese embora a actualização que este Decreto-Lei veio a ser objecto, com o Decreto-Lei nº 300/2007, de 23/08, e mais tarde com a “reestruturação do quadro normativo aplicável às empresas públicas” constante do Decreto-Lei nº 133/2013, de 03/10, mantiveram-se as normas referenciadas no ponto anterior relativas ao regime jurídico aplicável às EPE, ou seja, as EPE regem-se pelo direito privado (artigo 14º deste último Decreto-Lei); 6ª - Tendo sido esta a fundamentação dos AA quando chamados a pronunciarem-se sobre a competência do Tribunal Judicial de Beja em razão da matéria;
7ª - Sobre a qual o Tribunal teria que se pronunciar, mais a mais porque o Acórdão invocado para consubstanciar a sentença não reveste de todo uma situação idêntica (como é referido) ao caso sub judice, na medida em que neste a Ré é uma Entidade Pública Empresarial (EPE) e no caso do Acórdão a Ré é o Estado (Secretaria Geral de um Ministério);
8ª - Pelo que é lícito afirmar que estamos perante uma situação de omissão de pronúncia quanto às questões invocadas pelo AA, referentes à qualificação jurídica da Ré (EPE), o que faz toda a diferença na decisão quanto à competência do Tribunal; 9ª - E, à luz do que dispõe a alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC, a falta de pronúncia sobre questões que o Tribunal devesse apreciar, é razão para a sentença ser considerada nula; 10ª - Atente-se que o vício processual de omissão de pronúncia resulta da ausência de emissão de um juízo apreciativo sobre uma questão processual ou de direito que tenha sido suscitada perante o Tribunal, e que este estava obrigado a conhecer; 11ª - O que não aconteceu; 12ª - Face ao exposto é lícito concluir que o contrato de arrendamento que os AA celebraram com a Ré (uma entidade pública empresarial), não está nem pode estar subordinado a um regime jurídico de direito administrativo, está sim subordinado, pelo facto da Ré ser uma EPE, a um regime jurídico de direito privado como resulta dos vários diplomas invocados; 13ª - O que está em causa, recorde-se, é um litígio (acção de despejo) baseado no incumprimento de normas estatuídas por um regime jurídico substantivo de natureza privada (arrendamento urbano), relativo a um contrato em que as partes outorgaram em paridade de direitos; 14ª - Ora, não estando o contrato de arrendamento sub judice subordinado a um regime jurídico de Direito Administrativo, não poderá ser a jurisdição administrativa a apreciar o presente litígio, mas sim e apenas a jurisdição cível.
Não foram apresentadas contra-alegações.

No despacho de recebimento do recurso, o tribunal “a quo” tomou posição no sentido de a decisão recorrida não padecer da invocada nulidade.

Dispensados os vistos, cumpre decidir:

Em face do conteúdo das conclusões das alegações dos apelantes, enquanto delimitadoras do objecto do recurso, são as seguintes as questões de que cumpre conhecer:

- nulidade da decisão;

- competência em razão da matéria.

Quanto à nulidade:

Começam os apelantes por invocar a nulidade da decisão recorrida, a que alude a al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC, com base na omissão de pronúncia.

E isto porquanto, ainda segundo os mesmos, tendo eles (quando convidados a tomar posição sobre a questão da competência em razão da matéria) invocado, para justificar a competência do Tribunal Judicial de Beja, que a ré (enquanto unidade local de saúde) se rege pelo regime jurídico das entidades pública empresariais e que, nos termos do art. 14º do DL 133/2013 de 03.10 estas entidades se regem pelo direito privado, o tribunal não se pronunciou sobre esta questão.

Todavia, a nosso ver sem razão. A questão, que havia sido suscitada oficiosamente pelo tribunal “a quo”, consistia em saber qual das jurisdições, comum ou administrativa, é que era a competente para conhecer do litígio dos presentes autos.

E foi sobre essa questão que o tribunal “a quo” se pronunciou, com remissão para o entendimento seguido no acórdão da Relação de Lisboa, de 20.10.2011 (disponível in www.dgsi.pt), que citou e transcreveu, ou seja, seguindo a interpretação ali seguida do disposto no art. 4º, nº 1, al. f), do ETAF. Ora, como é sabido, este tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações e conclusões do recurso, mas apenas e tão só as questões suscitadas, pelas partes ou oficiosamente (vide ac. STJ de 5/4/89, in BMJ, 386/446 e Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, pág. 247).

Desta forma, haveremos de concluir no sentido da falta de verificação da invocada nulidade. Ademais, in casu, a verificação ou não de tal nulidade até acabaria por ser de todo irrelevante, na medida em que, ainda que considerássemos a mesma verificada, sempre haveríamos que conhecer do objecto da apelação (ou seja da questão da competência em razão da matéria – de que a seguir conheceremos), nos termos do disposto no nº 1 do art. 665º do CPC.

Quanto à competência em razão da matéria:

Conforme tem sido entendido na jurisprudência, a competência do tribunal é determinada, à data da propositura da acção, em função do pedido formulado e dos fundamentos invocados pelo autor (vide, entre vários outros, os acórdãos do STJ de 14-04-2008, em que é relator Salvador da Costa, e de 06.05.2010, em que é relator Santos Bernardino, ambos in www.dgsi.pt).

O nº 1 do art. 211º da Constituição da República Portuguesa (“os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”) estabelece o princípio da competência residual dos tribunais judiciais, princípio esse acolhido no art. 64º do CPC (“são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”).

Por sua vez, o nº 3 do art. 212º da CRP, estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, estabelecendo-se por sua vez no nº 1 do art. 1º do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19.02) que “os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.

Desta forma importa verificar se existe alguma disposição específica que, relativamente ao caso dos autos, atribua a competência aos tribunais administrativos (estando fora de causa a atribuição da competência aos tribunais administrativos), sendo certo que, em caso negativo, a competência terá que ser atribuída aos tribunais judicias (in casu, ao tribunal “a quo”).

Com interesse específico para o caso, a al. f) do nº 1 do art. 4º do ETAF estabelece actualmente (com a alteração introduzida pela Lei nº 107-D/2003, de 31.12) que “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: … f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.”

Desta forma, conforme se salienta no acórdão do Tribunal de Conflitos de 26.06.2014 (em que é relator Raul Borges, in www.dgsi.pt) “o actual ETAF eliminou o critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido.

O critério material de distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público - cfr. Vieira de Andrade, A justiça administrativa, 9.ª edição, 103 e Margarida Cortez, Responsabilidade Extracontratual do Estado, Trabalhos Preparatórios da Reforma, 258 (apud acórdão de 4 de Junho de 2013, conflito n.º 7/13).”

E assim, conforme bem se salienta no acórdão de 20.10.2011 da Relação de Lisboa, citado e transcrito na decisão recorrida, do preceituado na referida al. f) do nº 1 do art. 4º do TAF “resulta que incumbe à jurisdição administrativa o julgamento de acções que tenham por objecto todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário atribua expressamente a outra jurisdição”.

Ora no caso dos autos, e segundo a alegação dos autores, o imóvel em causa foi dado de arrendamento em 1974 ao Director de Saúde do Distrito de Beja, em nome do Estado Português, com destino à instalação e funcionamento de serviços do Estado – o que significa que, e na tese dos próprios autores, foi com o Estado Português (como arrendatário) que o contrato de arrendamento foi celebrado e se o mesmo teve por objecto a instalação e funcionamento de Serviços do Estado (naturalmente relacionados com os serviços de saúde do distrito de Beja) ou seja com vista à realização de tarefas do interesse público. E, naturalmente, não é pelo facto de ter sido a ré Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, EPE assumir a posição de arrendatário, por força da sua criação através do DL 183/2008, de 04.09 (abrangendo os centros de saúde do distrito de Beja, com excepção do centro de saúde de Odemira, nos termos do art. 1º deste diploma), que o interesse público deixou de estar subjacente ao escopo do arrendamento. De resto, no art. 4º deste diploma ficou estabelecido que a ré (e demais entidades igualmente ali criadas) se regia “pelo regime jurídico aplicável às entidades públicas empresariais” mas com as especialidades previstas no presente decreto-lei, regulamento interno e nas normas em vigor para o Serviço Nacional de Saúde que não contrariem as normas aqui previstas” sendo certo que, nos termos do nº 1 do art. 7º do mesmo diploma as ULS (Unidades Locais de Saúde) “organizam-se de acordo com as normas e critérios genéricos definidos pela tutela em função das suas atribuições e áreas de actuação específicas, devendo os respectivos regulamentos internos prever a estrutura orgânica com base em serviços agregados em departamentos e englobando unidades funcionais” – o que apenas se justifica pela natureza pública das funções da ré. Nestes termos, sendo manifesto que o arrendamento foi celebrado pelo Estado Português (sendo actualmente arrendatária a ré, que sucedeu àquele) com vista à prossecução de fins de interesse público, havermos de concluir no sentido da existência de uma relação administrativa – a qual pressupõe que uma das partes seja entidade pública, ou particular no exercício de um poder público, e atue com vista à realização de um interesse público legalmente definido (vide neste sentido, ver Vieira de Andrade “in” “A Justiça Administrativa”, Lições, 2000, página 79).

Neste contexto, irrelevante se mostra o facto de o art. 14º do DL nº 133/2013 de 3 de outubro, invocado pelos apelantes, estabelecer que “Sem prejuízo do disposto na legislação aplicável às empresas públicas regionais e locais, as empresas públicas regem-se pelo direito privado, com as especificidades decorrentes do presente decreto-lei, dos diplomas que procedam à sua criação ou constituição e dos respetivos estatutos”.

De resto, tal diploma até entrou em vigor, em Dezembro de 2013 (60 dias após a data da sua publicação, nos termos do seu art. 75º) já depois de ter sido instaurada a presente acção (em 15.10.2013), não sendo como tal aplicável à situação dos presentes autos.

Nestes termos, e em consonância com o entendimento do tribunal “a quo”, haveremos de concluir no sentido da competência dos tribunais administrativos para dirimir o presente litígio, razão pela qual não merece censura a decisão recorrida.

Termos em que se acorda em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Évora, 12 de Março de 2015

Acácio Luís Jesus das Neves

José Manuel Bernardo Domingos

João Miguel Ferreira da Silva Rato