Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1402/11.2TBEVR-L.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
DESTITUIÇÃO DO ADMINISTRADOR
JUSTA CAUSA
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Quando não resulte de incapacidade do Administrador para o exercício das respectivas funções, a justa causa pressupõe a violação grave dos deveres no exercício das respectivas funções.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 1402/11.2TBEVR-L.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Évora – Instância Local – Juízo de Competência Cível – J1
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
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I – Relatório:
(…), administrador de Insolvência, veio apresentar recurso da decisão que considerou existir justa causa para a sua destituição.
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Por decisão datada de 14/02/2017, foi determinada a destituição do Senhor Administrador de Insolvência, fundado na não interposição de acção cível para concretizar o ressarcimento do prejuízo alegadamente causado à massa insolvente e na ausência de justificação da omissão.
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Inconformado com tal decisão, o recorrente apresentou recurso de apelação e formulou as seguintes conclusões:
A. O Apelante não foi ouvido previamente quanto aos fundamentos, razões e motivos da destituição, constantes do Despacho Ref.ª 26428425.
B. Nos termos do artigo 56º do CIRE, a audição prévia do administrador da insolvência constitui uma formalidade obrigatória, que pode influir na decisão sobre a destituição. C. A existência de um Despacho prévio com a ameaça de destituição, não substitui o dever de audição prévia, uma vez que não enumera os fundamentos que preenchem a “justa causa” para a destituição.
D. O conhecimento da “ameaça” da aplicação de uma eventual sanção, não é sinónimo do conhecimento dos fundamentos subjacentes a tal “destituição”, nem mesmo constitui admissibilidade do conhecimento de tais fundamentos.
E. Nos termos, do artigo 195º, nº 1, do CPC, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, (só) produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
F. Em face das consequências que derivam para o Administrador da Insolvência da sua destituição, a sua não audição viola o princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20º, da Constituição, na vertente da “proibição da indefesa”.
G. A omissão da audição prévia do Apelante obstou a que este tivesse a possibilidade de se pronunciar e contestar a decisão e que, consequentemente, o AI pudesse exercer os direitos que a lei lhe confere (v.g. artigo 56°, nº 1, do CIRE).
H. Pelo que o Despacho ref.ª 26428425 é nulo por preterição de formalidade essencial, nos termos do artigo 195º do CPC.
I. No âmbito da liquidação, em 26 de Março de 2016, o Apelante, no âmbito da liquidação, foi confrontado com a insolvência de um devedor, sobre o qual a Massa Insolvente dispunha de uma Hipoteca sobre diversos imóveis, e na qual o crédito não havia sido reconhecido, a despeito da garantia real.
J. De imediato deu conhecimento aos autos do sucedido, informando das diligências que se propunha efectuar. Tendo o Tribunal a quo imposto a junção aos autos do comprovativo da interposição da acção.
K. Do mesmo modo que comunicou que não sendo advogado iria recorrer aos serviços de Advogado para patrocinar a acção de responsabilização da Administradora da Insolvência da devedora, pelos danos sofridos pela Massa Insolvente.
L. Por motivos estranhos à sua vontade, o Apelante viu-se confrontado a substituir por duas vezes o mandatário designado, e destes factos sempre deu conhecimento aos autos.
M. Atendendo ao valor da dívida daquela devedora, nos termos do artigo 58º do CPC é a obrigatório a constituição de Advogado naqueles.
N. Salvo o devido respeito, é impossível ao Apelante cumprir com a junção aos autos do comprovativo da interposição de uma acção judicial quando, não pode subscrever qualquer petição inicial, nem pode senão substituir aqueles que com ele incumprem.
O. Pelo que o ora Apelante é destituído, não por qualquer facto que pratique, que ponha em causa a relação de confiança com o Tribunal e demais elementos do processo. Mas pela omissão de um acto que apesar de estar sob a sua esfera de responsabilidade, não o pode praticar, apenas um advogado.
P. Igualmente, o Apelante respondeu aos despachos que foi objecto, tanto assim que nunca foi sancionado com qualquer multa processual por falta de colaboração com o Tribunal a quo.
Q. “o conceito de ‘justa causa’ legitimadora da destituição do Administrador Judicial num processo de insolvência se preenche e concretiza: i) com a conduta do administrador reveladora de inaptidão ou de incompetência para o exercício do cargo.
ii) ou com a conduta traduzida na “inobservância culposa” dos seus deveres, “apreciada de acordo com a diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado” (artigo 59/1 CIRE).
iii) exigindo-se cumulativamente a qualquer dos requisitos anteriores, que tal conduta, pela sua gravidade justifique a quebra de confiança, inviabilizando, em termos de razoabilidade, a manutenção nas funções para que foi nomeado (Acórdão da Relação do Porto de 03/02/2014, processo 1111/11.2TJPRT-E.P1, in www.dgsi.pt).
R. No despacho de destituição não é invocada qualquer inaptidão do Apelante para o exercício da actividade de Administrador da Insolvência.
S. Mas sim são imputados factos (que se repete que não teve oportunidade de contraditar) que poderiam configurar a violação culposa dos seus deveres.
T. Dos factos constantes dos autos, não existiu qualquer falha funcional grave que comprometa o desempenho das funções de Administrador da Insolvência pelo Apelante, antes o Apelante demonstrou ser diligente, informando o tribunal do sucedido, substituindo os mandatários à medida que verificava o incumprimento dos deveres por parte daqueles.
U. O Despacho ora recorrido não enumera ou enuncia de que forma se considera “quebrado” a relação de confiança entre o Apelante e os demais intervenientes processuais que impeça a prossecução das suas funções.
V. O Administrador da Insolvência, não sendo advogado, não pode ser destituído pelo incumprimento do prazo fixado para a junção do comprovativo da interposição de uma acção, quando este está dependente da actuação de terceiros.
W. Do mesmo modo que, o cumprimento tardio de pedidos de informação não constitui uma situação suficientemente grave que implique a “quebra” de confiança estabelecida.
X. Pelo que, inexiste a “justa causa” para a destituição do ora Apelante das funções de Administrador da Insolvência, pelo que, para além da nulidade já invocada, o mesmo viola o disposto no artigo 56º do CIRE.
Termos em que, nos melhores de Direito e com o sempre Mui Douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida que determinou a destituição do Apelante das funções de Administrador da Insolvência.
Decidindo nesta conformidade será feita boa Justiça!
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da:
i) existência de nulidade por incumprimento do contraditório relativamente ao incidente de destituição.
ii) alegada errada interpretação do Tribunal recorrido quanto à aplicação da existência de justa causa para a destituição do administrador de insolvência.
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III – Dos factos apurados:
Dos elementos constantes dos autos e da análise do suporte documental apresentado é considerada com interesse para a decisão da apelação a seguinte factualidade:
1) A insolvente detém um crédito hipotecário sobre "(…) & Filhos – Sociedade Promotora de Empreendimentos Imobiliários, Lda.", também declarada insolvente, não o reclamou naqueles autos e, em consequência, os bens hipotecados foram vendidos e nada foi pago à insolvente.
2) Os autos aguardam desde Abril de 2016 que o Administrador de Insolvência interponha a competente acção cível tendo em vista o ressarcimento do prejuízo alegadamente causado à massa insolvente pela Exma. Sra. AI da "(…) & Filhos – Sociedade Promotora de Empreendimentos Imobiliários, Lda.", mostrando-se já finda, nos presentes autos, a liquidação quanto aos bens apreendidos.
3) Após notificação do Tribunal, o Administrador de Insolvência veio informar que já havia mandatado o ilustre mandatário da insolvente para desencadear os procedimentos necessários à interposição de tal acção (cfr. fls. 163 dos autos).
4) Por despacho exarado a fls. 166 dos autos foi determinada a notificação do Administrador de Insolvência para, no prazo de 30 dias, comprovar nos autos a instauração da supra mencionada acção.
5) Não obstante devidamente notificado de tal despacho, o Administrador de Insolvência nada disse.
6) Por despacho de fls. 167 dos autos determinou-se a repetição da notificação anterior com a cominação de condenação em multa.
7) Por requerimento de fls. 168 dos autos veio o Administrador de Insolvência afirmar que a acção ainda não havia sido interposta por motivo de doença do ilustre mandatário constituído, afirmando, contudo, que já havia constituído outro mandatário para o efeito, o qual assumiu a responsabilidade de intentar a acção até ao dia 08/07/2016.
8) Por despacho exarado a fls. 169 dos autos determinou-se que os autos aguardassem o decurso da data indicada pelo Administrador de Insolvência após o que, caso nada fosse comunicado aos autos, o mesmo deveria ser notificado para comprovar a instauração da acção em questão.
9) Decorrido o prazo aludido o Administrador de Insolvência nada juntou aos autos e, notificado para o efeito, nada disse.
10) Por despacho de fls. 170 dos autos determinou-se a repetição da notificação anterior com a cominação de condenação em multa.
11) Por requerimento de fls. 171 verso dos autos veio o Administrador de Insolvência afirmar que a acção ainda não havia sido interposta por falta de tempo do ilustre mandatário constituído, afirmando, contudo, que já havia contactado o anterior mandatário da massa insolvente para o efeito, o qual havia assumido a responsabilidade de intentar a acção até ao dia 14/10/2016 comprovando nos autos tal facto.
12) Por despacho exarado a fls. 173 dos autos determinou-se que os autos aguardassem o decurso da data indicada pelo Administrador de insolvência.
13) Decorrido o aludido prazo, o Administrador de insolvência nada disse, pelo que, por despacho exarado a fls. 174 foi determinada a respectiva notificação para, no prazo de dez dias, comprovar nos autos a instauração da acção.
14) Decorrido o prazo aludido o Administrador de Insolvência nada juntou aos autos e, notificado para o efeito, nada disse, pelo que foi determinada a repetição da notificação com a cominação de multa (cfr. fls. 175 dos autos).
15) Por requerimento de fls. 176 dos autos veio o Administrador de Insolvência afirmar que a acção ainda não havia sido interposta por o ilustre mandatário constituído o ter informado que aguarda a realização das escrituras de venda das fracções o que reputa essencial para comprovar o dano causado na massa insolvente e demonstrar que o bem foi adjudicado por valor inferior ao real.
16) Nessa sequência, a fls. 178 dos autos, consignou-se que a justificação avançada pelo Administrador de Insolvência não colhia na medida em que, por um lado, os autos aguardavam desde Abril de 2016 pela interposição da acção cível em questão sem que o argumento ora alegado alguma vez tivesse sido anteriormente invocado. Por outro lado, o dano poder-se-ia provar por recurso à contraposição entre o valor da adjudicação e o valor resultante de avaliação do bem.
17) Nesta conformidade, o Administrador Judicial foi notificado para, no prazo de 30 (trinta) dias, comprovar nos autos a interposição da acção sob pena de destituição.
18) Decorrido o prazo aludido o Administrador de Insolvência não comprovou a interposição da referida acção nem justificou a sua omissão.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Da nulidade por preterição do princípio do contraditório:
O juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, fundadamente considerar existir justa causa» (artigo 56º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas).
O recorrente entende que ocorreu uma preterição da formalidade de audição e que não foi previamente ouvido quanto aos fundamentos, razões e motivos da sua destituição.
O recorrente espraia a sua discordância nas conclusões identificadas em A) a H), concluindo que o despacho é nulo por preterição de formalidade essencial ao abrigo do disposto no artigo 195º do Código de Processo Civil.
A necessidade do pedido e da contradição constitui um dos pilares do moderno direito adjectivo civil e a imposição legal está precipitada no artigo 3º do Código de Processo Civil[1].
Na leitura de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre o princípio do contraditório «é hoje entendido como corolário duma concepção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão»[2].
Com as necessárias adaptações à estrutura do processo de insolvência e à situação peculiar do Administrador Judicial é também aqui aplicável o princípio geral que dita que constitui direito fundamental de qualquer litigante a possibilidade de se pronunciar sobre o objecto da acção, participar de forma efectiva «no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poder influenciar todos os elementos que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa»[3].
Não merece contestação a afirmação de que a violação do contraditório inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do artigo 195º, nº 1, do Código de Processo Civil[4], pois, dada a importância do princípio, é indiscutível que a sua inobservância é susceptível de influir no exame ou na decisão da causa[5].
Por nulidades do processo entendem-se quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, a que esta faça corresponder, embora não de forma expressa, uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais[6].
Aquilo que se pergunta é se o contraditório foi efectivamente violado?
Após 7 (sete) decisões judiciais relacionadas com a questão da propositura de acção tendente a recuperar activos para a massa insolvente [factos 3), 4), 6), 8), 10), 12), 14)], o Tribunal notificou o Administrador Judicial para, no prazo de 30 (trinta) dias, comprovar nos autos a interposição da acção sob pena de destituição [pontos 16 e 17) dos factos provados]. Decorrido o prazo aludido o Administrador de Insolvência não comprovou a interposição da referida acção nem justificou a sua omissão [ponto 18) dos factos provados].
Da análise do processo resulta que assim que, ao contrário do propugnado pelo recorrente, o Tribunal «a quo» decidiu a questão da destituição permitindo que o Administrador Judicial se pronunciasse sobre a questão controvertida.
No caso concreto, ao assim decidir, o julgador de primeira instância não proferiu um veredicto surpresa, isto é, uma «decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado»[7] pelo Administrador Judicial. Carece assim de absoluta razão a proposição de que a situação corresponde a uma violação do princípio da tutela jurisdição efectiva.
Em adição, considerando igualmente o tempo decorrido desde a primeira intervenção do julgador no sentido de serem recuperados activos para a massa insolvente, a questão não pode ser dissociada das sucessivas notificações para esclarecer se a acção já tinha sido proposta, sendo que foi sempre necessário repetir essas comunicações, pois o Administrador Judicial nunca respondeu à solicitação do órgão de soberania na primeira ocasião em que foi determinada requisição de informação sobre a propositura da acção.
Não estamos assim conceptualmente perante de uma decisão surpresa e foi accionado o princípio do contraditório, o que afasta liminarmente a situação do leque das nulidades processuais. Aquilo que perpassa implicitamente da impugnação por via recursal apresentada pelo Administrador Judicial é que o Tribunal estava vinculado a emitir uma decisão preparatória que integrasse todos os elementos constitutivos da situação jurídica de destituição.
Todavia, essa obrigação inexiste e a notificação para se pronunciar sobre a destituição é feita por referência a todos actos procedimentais anteriores e todo o acervo processual relacionado com a matéria sub judice está subentendido na intervenção jurisdicional em que é avançada a possibilidade da destituição do cargo.
É plenamente incontroversa a conclusão do Tribunal «a quo» ao afirmar que «é notório que o Excelentíssimo Sr. AI destituído tinha conhecimento da obrigação que sobre si impendia e estava perfeitamente ciente das consequências do incumprimento dessa obrigação, não se alcançando porque só agora, quando notificado do despacho que determinou a sua destituição, se veio pronunciar quando antes, não obstante notificado do despacho de fls. 178 dos autos, nada disse aos autos, sequer para justificar a omissão cometida, ciente que estava da mesma» (despacho de 24/02/2017).
É certo que existe uma incompletude formal do procedimento de destituição, pois era desejável que os membros da comissão de credores se pronunciassem sobre uma matéria desta magnitude e importância substancial. Na visão da doutrina[8] e da jurisprudência[9] a preterição da auscultação da comissão de credores representa uma irregularidade processual relevante. Todavia, esse vício de actuação processual está sanado, mas é essencial que se represente que, no novo paradigma do direito falimentar, a intervenção da comissão de credores não é meramente simbólica.
Deste modo, julga-se improcedente o pedido de declaração de nulidade por preterição da obrigação de exercício do contraditório.
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4.2 – Da destituição do Administrador Judicial – Da (in)existência de justa causa:
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (nº 1 do artigo 1º do CIRE).
A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (nº 1 do artigo 46º do CIRE).
O administrador judicial é a pessoa incumbida da fiscalização e orientação dos actos integrantes do processo especial de revitalização, bem como da gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvente sendo competente para a realização de todos os actos que lhe são cometidos pelo Estatuto que lhes é próprio e pela legislação, como especial enfoque no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Os administradores judiciais devem, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se servidores da justiça e do direito e, como tal, mostrar-se dignos da honra e das responsabilidades que lhes são inerentes, tal como proclama o artigo 12º, nº 1, da Lei nº 22/2013, de 26/02.
Em caso de liquidação, caso falhe o objectivo precípuo da recuperação do devedor, como decorre da parte final do nº 2 do Estatuto do Administrador Judicial, tem o dever de orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores.
Neste domínio, a lei atribui especificadamente ao administrador judicial competência para preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação que lhes incumbe promover, dos bens que a integram e prover, entretanto, à conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da exploração da empresa, se for o caso, evitando, quanto possível, o agravamento da sua situação económica.
A capacidade de acção e o cumprimento pontual das competências que lhe estão reservadas por lei, mormente as que constam do catálogo do artigo 55º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, «é decisiva para a consecução dos objectivos do processo, no respeito pelo princípio da igualdade dos credores e na defesa genérica dos seus interesses»[10].
As incumbências enunciadas naquele dispositivo correspondem a verdadeiros poderes funcionais e, ao analisar os deveres legais, profissionais e deontológicos que lhe são dirigidos, ressalta claramente que o administrador de judicial deve desempenhar as funções com a diligência de um gestor criterioso e ordenado.
Em caso de violação funcional grave, «o juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, fundadamente considerar existir justa causa» (artigo 56º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas).
O conceito de justa causa é lato e indeterminado e na esfera de protecção da noção podem inscrever-se uma pluralidade de hipóteses legitimadoras do afastamento do administrador de insolvência do exercício do cargo.
Nas palavras de Luís Menezes Leitão este conceito «abrange naturalmente a violação grave dos deveres do administrador, mas também quaisquer outras circunstâncias que tornem objectivamente insustentável a sua manutenção no cargo»[11].
É consensualmente aceite que, quando não resulte de incapacidade do Administrador para o exercício das respectivas funções, a justa causa pressupõe a violação grave dos deveres no exercício das respectivas funções.
A aplicação da medida cessatória assenta assim na ideia de inexigibilidade de continuação da relação, por grave violação de deveres e importante atentado ao princípio da confiança que está subjacente às relações funcionais estabelecidas com o Tribunal, os órgãos de gestão, credores e demais interessados do processo especial de revitalização ou de insolvência.
Neste horizonte interpretativo, a justa causa é sempre alguma circunstância ligada à pessoa ou a uma conduta do administrador que, pela sua gravidade inviabilize, em termos de razoabilidade, a manutenção das suas funções e deverá ser apreciada em concreto, tendo em atenção as condições de exercício do cargo.
Em qualquer hipótese, aquilo que é decisivo é que nos encontremos perante uma falha importante e grave, tanto na sua dimensão individualizada, como no domínio do resultado consequencial. Nesta linha de pensamento já foi editada jurisprudência que afirma que «não faria, de facto, sentido, que o referido administrador pudesse ser destituído por qualquer atitude que simplesmente desagradasse ao insolvente, a algum dos credores ou a outro interveniente processual. A necessidade da justa causa ser preenchida por uma falta grave, no sentido indicado, constitui um elemento essencial para garantir a independência do administrador da insolvência»[12].
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O Tribunal «a quo» estriba a ocorrência da justa causa na violação e no incumprimento de deveres no exercício das suas funções, designadamente por não ter sido proposta acção destinada a recuperar o valor do crédito hipotecário constituído a favor da insolvente por parte de “(…) e Filhos – Sociedade Promotora de Empreendimentos Imobiliários, Lda.”.
Após ter convocado todos os procedimentos de notificação referidos nos pontos 1) a 19) dos factos provados, o Tribunal recorreu à seguinte fundamentação para determinar a cessação de funções do Administrador Judicial «do exposto decorre que mostram-se decorridos cerca de dez meses desde que foi determinado que o Exmo. Sr. AI que, no prazo de trinta dias, comprovasse nos autos a instauração da supra referida acção, não colhendo qualquer das justificações avançadas, sendo, aliás, patente a recusa do Exmo. Sr. AI em responder às notificações que lhe foram dirigidas pelo Tribunal, com excepção das que eram cominadas com multa, pelo que se impõe a sua substituição, o que se decide».
Em contraponto, apoiando-se na argumentação já expressa por este colectivo (Acórdão da Relação de Évora de 30/11/2016, processo nº 2744/12.5TBSTR-I.E1, in www.dgsi.pt) e no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03/02/2014, in www.dgsi.pt [13], o recorrente pugna pelo não preenchimento do conceito de justa causa.
Como é facilmente intuível, o encadeamento lógico, as regras de interpretação da lei e a metodologia de integração dos factos ao direito anteriormente formulados no âmbito do recurso do Tribunal da Relação de Évora atrás mencionado mantêm-se e a questão que se coloca é a de apurar se a conduta legitimadora da destituição invocada pela Primeira Instância preenche (ou não) o conceito de cessação legítima da relação estabelecida entre o Estado e o Administrador Judicial.
Sem necessidade de problematizar ou de fazer acrescer qualquer detalhe adicional é patente que a situação não se enquadra na esfera de protecção da alocução conduta do administrador reveladora de inaptidão ou de incompetência para o exercício do cargo.
Para além das competências profissionais e da ética no agir, num processo de natureza urgente, aquilo que se reclama de um Administrador Judicial é a capacidade de diligência, a eficácia e a eficiência no desenvolvimento das operações de liquidação do património insolvente e de repartição do produto obtido pelos credores, nos casos em que não é concretizável a recuperação da empresa através de um plano de insolvência.
O Tribunal «a quo» castigou essa ineficiência operativa e o recorrente contrapõe que não é formado em direito e que a inércia se deve à não propositura da acção por parte dos mandatários contratados para o efeito e, por isso, o Administrador Judicial não poderá ser responsabilizado.
Neste capítulo, não se pode omitir que, por se tratar de um processo com natureza urgente, se exige uma especial diligência no tempo de actuação e na capacidade de resposta às solicitações que lhe são dirigidas e é exactamente a inacção e o tempo de demora no desenvolvimento das funções legal e estatutariamente que lhe estão adstritas que fundamentam a decisão do Tribunal de Primeira Instância.
Sem embargo de não lhe poder ser endereçada qualquer responsabilidade na questão da preterição pelo não pagamento privilegiado de um crédito que beneficiava de uma garantia real até ao montante provisionado pela hipoteca, cumpre aferir se a não propositura dessa acção corresponde a uma violação grave no exercício das funções[14].
Estamos perante uma situação que, face ao tempo de duração da omissão (desde Abril de 2016), a negligência na escolha do mandatário e o acompanhamento deficiente na prossecução da tarefa que lhe foi imposta pelo tribunal incorporam todos os elementos integradores da responsabilidade neste domínio do direito e esta violação grave do dever de cuidado exigível repercute-se na esfera jurídica do Administrador de Insolvência.
Uma das fontes de preenchimento do conceito em discussão ocorre quando o administrador cria uma situação, concorre para ela ou permite a sua manutenção, de tal modo que, com elevada probabilidade, objectivamente, dela pode advir desvantagem considerável para a tutela dos interesses a proteger[15].
E nesta situação é patente que, sem lhe ser imputável a causa da preterição no pagamento do crédito garantido por hipoteca, o comportamento sucessivo que manteve entre Abril de 2016 e Fevereiro de 2017 – que se traduziu na não promoção das providências adequadas à reparação do dano – é idóneo a criar uma desvantagem considerável para a tutela dos interesses dos credores da presente insolvência. E a gravidade do comportamento está presente nas sucessivas e reiteradas interpelações realizadas pelo Tribunal para promover a regularização da situação.
Se se poderá considerar como causa de destituição a recusa do administrador da insolvência em fornecer ao juiz as informações a que está vinculado, por força do artigo 58º do CIRE[16], também se infere que o protelamento injustificado do fornecimento de informações, a que se associa a não propositura tempestiva de uma acção, é enquadrável neste tipo de violação e poderá assim ser preenchido o conceito normativo de justa causa.
Luís Carvalho Fernandes e João Labareda advogam que a disposição em apreciação tem como alvo aquelas situações em que se verifica «a inaptidão ou incompetência para o exercício do cargo, traduzidas na administração ou liquidação deficientes, inapropriadas ou ineficazes da massa, e, segundo o entendimento que temos por correcto, aqueles que traduzam uma situação em que, atentas as circunstâncias concretas, é inexigível a manutenção da relação com ele e infundada a possível pretensão do administrador de se manter em funções»[17] [18] [19].
Nesta perspectiva, a justa causa abrange aquele tipo de situações que «tornem objectivamente insustentável a sua manutenção no cargo, mormente por constituírem sinal de quebra irreversível do elo de confiança que o legítima ou por serem susceptíveis de revelar inaptidão ou incompetência para o respectivo desempenho»[20].
Reitera-se assim que a justa causa é sempre alguma circunstância ligada à pessoa ou a uma conduta [pessoal ou indirecta] do administrador que pela sua gravidade inviabilize, em termos de razoabilidade, a manutenção das suas funções e terá sempre de ser apreciada casuisticamente, tendo por referência os actos susceptíveis de comprometer a manutenção do vínculo estabelecido entre a Administração da Justiça e o Administrador Judicial.
E neste caso concreto o prolongamento da inércia no agir concretamente devido comprometeu as relações de confiança que deviam existir com o Tribunal. Com efeito, a soma dos episódios relatados permite concluir que existe justa causa de destituição, tal como foi decidido na decisão sob censura.
Efectivamente, por se tratar de um processo com natureza urgente em que se exige uma especial diligência no tempo de actuação e na capacidade de resposta às solicitações que lhe são dirigidas, o prolongamento da inércia no agir concretamente devido [negligência na escolha e falta de fiscalização do mandato] para a propositura de uma acção tendente a recuperar activos necessários à tarefa de liquidação do património do devedor insolvente e subsequente repartição do produto obtido pelos credores pode, com elevada probabilidade objectiva, causar desvantagem considerável para a tutela dos interesses a proteger, constituindo assim justa causa de destituição, por, além de se tratar de um processo com natureza urgente em que se exige uma especial diligência no tempo de actuação e na capacidade de resposta às solicitações que lhe são dirigidas, o prolongamento da inércia no agir concretamente devido [negligência na escolha e falta de fiscalização do mandato] para a propositura de uma acção tendente a recuperar activos necessários à tarefa de liquidação do património do devedor insolvente e subsequente repartição do produto obtido pelos credores pode, com elevada probabilidade objectiva, causar desvantagem considerável para a tutela dos interesses a proteger, constituindo assim justa causa de destituição, por estar comprometida a relação especial de confiança que é suposto ter com o Tribunal mais, estar comprometida a relação especial de confiança que é suposto ter com o Tribunal.
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V – Sumário:
1. Quando não resulte de incapacidade do Administrador para o exercício das respectivas funções, a justa causa pressupõe a violação grave dos deveres no exercício das respectivas funções.
2. A aplicação da medida cessatória assenta assim na ideia de inexigibilidade de continuação da relação, por grave violação de deveres e importante atentado ao princípio da confiança que está subjacente às relações funcionais estabelecidas com o Tribunal, os órgãos de gestão, credores e demais interessados do processo especial de revitalização ou de insolvência.
3. Por se tratar de um processo com natureza urgente em que se exige uma especial diligência no tempo de actuação e na capacidade de resposta às solicitações que lhe são dirigidas, o prolongamento da inércia no agir concretamente devido [negligência na escolha e falta de fiscalização do mandato] para a propositura de uma acção tendente a recuperar activos necessários à tarefa de liquidação do património do devedor insolvente e subsequente repartição do produto obtido pelos credores pode, com elevada probabilidade objectiva, causar desvantagem considerável para a tutela dos interesses a proteger, constituindo assim justa causa de destituição, por, além do mais, estar comprometida a relação especial de confiança que é suposto ter com o Tribunal
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 08/06/2017
José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Matos Peixoto Imaginário
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[1] Artigo 3º do Código de Processo Civil (Necessidade do pedido e da contradição)
1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2 - Só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4 - Às excepções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.
[2] Código de Processo Civil anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra 2014, pág. 7.
[3] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra 2014, pág. 7 (nota 5).
[4] A prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
[5] Miguel Teixeira de Sousa, Os princípios estruturantes da nova legislação processual civil, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa 1996, pág. 48.
[6] Anselmo de Castro, «Direito Processual Civil Declaratório», vol. III, pág. 103.
[7] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra 2014, pág. 9.
[8] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, pág. 350.
[9] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15/10/2009, in www.dgsi.pt.
[10] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, 2015, pág. 335.
[11] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 6ª edição, pág. 104.
[12] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04/02/2013, in www.dgsi.pt.
[13] As conclusões deste aresto manifestam que «o conceito de justa causa legitimadora da destituição do Administrador Judicial num processo de insolvência se preenche e concretiza: i) com a conduta do administrador reveladora de inaptidão ou de incompetência para o exercício do cargo; ii) ou com a conduta traduzida na inobservância culposa dos seus devedores, “apreciada de acordo com a diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado” (artigo 59º, nº 1, do CIRE); iii) exigindo-se cumulativamente a qualquer dos requisitos anteriores, que tal conduta, pela sua gravidade justifique a quebra de confiança, inviabilizando, em termos de razoabilidade, a manutenção nas funções para que foi nomeado».
[14] Na nossa óptica até poderia ser dispensada a propositura da mesma desde que fossem tomadas medidas tendentes a recuperar o valor afectado pela decisão tomada no âmbito da insolvência da “(...) & Filhos – Sociedade Promotora de Empreendimentos Imobiliários, Lda.”.
[15] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/07/2011, in www.dgsi.pt.
[16] Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra 2009, pág. 118-119.
[17] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, 2015, pág. 334.
[18] No mesmo sentido, Luís Menezes Leitão, Código da Insolvência, pág. 104.
[19] Sobre o conceito de justa causa podem ainda ser consultados os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/02/2012, Tribunal da Relação de Évora de 14/04/2010 e Tribunal ad Relação e Guimarães de 16/04/2009, in www.dgsi.pt.
[20] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/02/2010, in www.dgsi.pt.