Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
130/21.5PAABT.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
AUTO DE DENÚNCIA
REQUERIMENTO DE PROVA
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A participação/denúncia dos factos que deram origem aos autos, não deverá ser lida na audiência de julgamento, conforme resulta do disposto no artigo 356.º, § 2.º CPP, mesmo que comprovada em declarações posteriores por testemunha devidamente constituída. Neste caso estas declarações testemunhais é que serão meio de prova de determinados factos, nomeadamente se prestadas por quem apresentou queixa ou fez a denúncia.
II. Com efeito o auto de denúncia constitui prova documental e, nessa medida, o denunciante que é testemunha pode na audiência de julgamento ser diretamente confrontada com o teor de tal documento e solicitada a comentar ou esclarecer o que turvo se apresente (356.º, § 3.º CPP).
III. Mas não deverá ser confrontada com o que naquele documento declarou, como se tratasse de auto de inquirição de testemunha (declarações anteriormente prestadas nessa qualidade), por o não serem. Nessas circunstâncias tal requerimento deverá ser indeferido (artigo 340.º, § 3.º CPP), por ser legalmente inadmissível.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:



I. RELATÓRIO


A –
Nos presentes autos de Processo Comum Singular, que com o nº 130/21.5PAABT, correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local Criminal de Abrantes, o Ministério Público deduziu acusação contra:
- AA, casado, nascido em 20-12-1988, natural da freguesia de Álvaro, do concelho de Oleiros, filho de BB e CC, canalizador, atualmente desempregado e residente na Avenida …, em Abrantes.

Imputando-lhe a prática em autoria material, na forma consumada, de 2 (dois) crimes de violência doméstica, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 152º, nº 1, alíneas a) e d) nº 2, alínea a), nº 4 e nº 5, do Código Penal.

O arguido apresentou contestação oferecendo o merecimento dos autos, mas não requereu produção de prova.

Realizado a audiência de julgamento, veio a ser proferida pertinente sentença, na qual se decidiu:

- Julgar a acusação improcedente, e consequentemente, absolver o arguido AA da prática de dois crimes de violência doméstica.
- Absolver o arguido AA da instância por inexistência de acusação particular relativamente ao crime de injúrias, previsto e punido pelo artigo 181º do Código Penal e em face disso, considerar não assistir legitimidade ao Ministério Público para o exercício da ação penal (artigos 48º e 49º do Código de Processo Penal).
(…)

Inconformado com esta sentença absolutória, o Ministério Público, da mesma interpôs o presente recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

A. Vem o presente recurso interposto da sentença que absolveu o arguido AA da prática, como autor material e forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 14º, 26º e 152º, nº 1, alínea a), nº 2, nº 4 e nº 5, do Código Penal, na pessoa da sua mulher CC.
B. Desde já sublinha que mantém o interesse em que seja apreciado o recurso interposto, em 04-01-2022 (Ref.ª 24331), do despacho interlocutório proferido em 07-12-2022, que decidiu não proceder à leitura do auto de denúncia de fls 3 a 5, o qual faz parte integrante das declarações prestadas pela vítima CC em sede de inquérito, a fls 51 a 53.
C. No que à sentença recorrida diz respeito, salvo melhor opinião, a sentença recorrida padece dos vícios de erro notório na apreciação de prova e de contradição insanável da fundamentação, previstos nas alíneas a) e c) do nº2 do artigo 410º do Código de Processo Penal. Com efeito,
D. O Tribunal a quo derrogou o conteúdo probatório do relatório pericial de avaliação do dano em corporal em direito penal a fls 15 a 17, sem fundamentação qualificada para o efeito, ou seja, em contravenção com o disposto dos artigos 157º e 163º, ambos do Código de Processo Penal.
E. De acordo com as conclusões do relatório pericial o edema ligeiro da região da articulação temporomandibular direita, com limitação álgica da abertura bucal, é compatível com informação do evento narrada pela vítima, onde é referido que o arguido lhe deferiu bofetadas.
F. O Tribunal a quo desconsiderou tal juízo técnico-científico do senhor Perito, não obstante referir que “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador” (artigo 163º/1 do Código de Processo Penal), o que é contraditório e viola a prova tarifada.
G. O Tribunal a quo fez prevalecer os testemunhos dos agentes da PSP DD, EE e FF, os quais declararam que não viram marcas visíveis no rosto da vítima no dia dos factos, e ainda as declarações do arguido, que negou ter desferido a bofetada, em detrimento do aludido juízo técnico-científico do senhor perito, para concluir que a chapada não foi desferida com a intensidade suficiente para causar um edema na face direita com limitação álgica de abertura bucal, e, consequentemente, classificar o depoimento da vítima de hiperbólico e desprovido de verosimilhança.
H. O Tribunal a quo não tem conhecimentos técnicos iguais aos dos peritos na avaliação do dano corporal em direito penal (no caso vertente), pelo não poderá, sem mais, desconsiderar o resultado obtido pela perícia, tanto mais daí retirando que a chapada não foi desferida com a intensidade suficiente para causar um edema na face direita com limitação álgica de abertura bucal, o que nem corresponde sequer ao resultado a que chegou o perito.
I. Tratando-se de exame pericial o resultado obtido no mesmo apenas pode ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico e nunca pela análise das testemunhas, ou pelas declarações do arguido, o que aparenta ter sucedido no caso vertente.
J. Para que o Tribunal a quo pudesse legalmente afastar a presunção legal de verdade técnica e cientifica do laudo da perícia médico-legal, era necessário que tivesse rebatido, tecnicamente e cientificamente, cada uma e todas as conclusões em que culmina o relatório da perícia médico-legal.
K. Ademais, diversamente do que sucede com o Arguido (cujo estatuto processual lhe confere o direito de dizer o que entender em prol da sua defesa), a vítima (apesar de parte interessada na sorte do processo) está sujeita ao dever de verdade e a responsabilidade penal pela sua violação (artigos 145º, n° 2, do Código de Processo Penal, e 359º, nº 2, do Código Penal).
L. Pelo que também não vemos qualquer razão para que as declarações da vitima não devam merecer credibilidade; até porque são "corroboradas" pela lei e pelo relatório pericial.
M. Conclui-se, deste modo, que o Tribunal a quo não só interpretou erradamente o resultado do exame pericial, como não o valorou em conformidade com o disposto na norma aplicável do artigo 163º, no seu nº 2, do Código de Processo Penal, violando assim prova vinculada, o que configura um erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
N. Dado o exposto, em conformidade o principio da prova tarifada o Tribunal a quo devia ter considerado: parcialmente provado o constante da alínea m) dos factos não provados, com a seguinte redacção: De seguida, o arguido AA (…) desferiu-lhe uma chapada na face do lado esquerdo, causando-lhe dor nos locais do corpo atingidos; e integralmente provada a constante das alíneas o), p), t) y), z) e aa) dos factos não provados.
O. Sem prejuízo do recurso interposto do despacho interlocutório mencionado na alínea B. supra, tais factos configuram os elementos objectivos e subjectivos de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143º, do Código Penal.
Consequentemente, devia Tribunal a quo ter condenado o arguido na prática
deste crime.
P. O Tribunal a quo derrogou ainda o teor certidão do processo nº 424/19.0PAABT de fls. 104 a 139, por no seu entender não poder ser valorada em desfavor do arguido processos pendentes e ainda não transitados, em contravenção com o disposto do artigo 71º, nº 2, alínea e) do Código Penal [vide alíneas a) a d) dos factos não provados].
Q. A circunstância de um arguido ter beneficiado da suspensão provisória do processo no âmbito de um inquérito, sobretudo pela prática do mesmo tipo legal de crime pelo qual se encontra a ser julgado (realidade facto demonstrada na aludida certidão), não pode ser ignorada pelo Tribunal, sendo de sopesar essa circunstância em desfavor do arguido, ainda que não se trate de um antecedente criminal.
R. Face ao disposto no citado artigo 71º, nº 2 do Código Penal, todas as circunstâncias relativas ao facto e ao agente que não fazendo parte do tipo legal de crime, que depõem a favor ou contra o arguido, nas quais se inclui a suspensão provisória do processo, são efectivamente relevantes para a determinação da medida concreta da pena.
S. Nestas circunstâncias, tais factos constantes das mencionadas alíneas a) a c), devem ser considerados integralmente provados e valorados, uma vez que está efectivamente demonstrado nos autos por prova documental, conforme cit. certidão do processo nº 424/19.0PAABT de fls. 104 a 139.
T. A sentença recorrida padece ainda do vício de contradição insanável na fundamentação, previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), 1ª parte, do Código de Processo Penal. Com efeito,
U. A Mma Juiz a quo deu como provado e não provado que “Aí chegado e depois de CC abrir a porta da residência, o arguido AA atirou a mala deste para o chão.” [vide ponto 4 dos factos provados e alínea j) dos factos não provados].
V. Da análise do ponto III fundamentação de facto resulta que os factos constantes dos pontos 3 a 5 foram dados como provados com fundamento nas declarações confessórias do arguido, não se descortinando que a convicção do Tribunal a quo nessa parte tenha sido infirmada por outro meio de prova.
W. Consequentemente, por imperativo de coerência lógica, impõe-se eliminar a alínea j) da factualidade não provada.
X. Quanto ao mais constante das alíneas f) a i), l), m) n), s), e u) a w) dos factos não provados, impõe-se previamente conhecer/apreciar o recurso interposto pelo Ministério Público mencionado no ponto B supra.
Y. Não tivesse o Tribunal a quo dado o dito por não dito naquele seu despacho, eventualmente, a decisão sobre a mencionada factualidade seria outra e o arguido condenado pelo crime de que vinha acusado.
Z. Razão por que a mesma vai aqui impugnada, uma vez que que com aquele despacho o Tribunal a quo impediu a descoberta da verdade material sobre tal factualidade.
Dado o exposto, e o imprescindível e esperado suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida na parta ora impugnada e o arguido AA condenado na prática como autor material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, do Código Penal, na pessoa da sua mulher CC, sem prejuízo do aludido recurso interposto, em 04-01-2022 (Ref.ª 24331) e, bem assim, do disposto do artigo 358º, nº 1 e nº 3, do Código de Processo Penal.
Assim se fará Justiça.


Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal, o arguido AA, pronunciou-se no sentido da improcedência, concluindo por seu turno (transcrição):

AA, arguido nos autos, tendo sido notificado do recurso apresentado em 17-JAN-2023, vem dizer que a sentença proferida não padece de qualquer vicio, antes revelando que no mundo do Direito nem sempre temos o branco puro ou o preto retinto, pelo que deverá o recurso interposto ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão proferida.

Anteriormente, havia já o Ministério Público, interposto recurso interlocutório, relativo a despacho judicial que indeferiu o requerimento de produção de prova, nos termos do disposto no artigo 340º, nº 3, do Código de Processo Penal, extraindo da respectiva motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
A. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido em 07-12-2022 pelo Tribunal a quo, que decidiu não proceder à leitura do auto de denúncia de fls 3 a 5, cujo teor faz parte integrante das declarações prestadas, pela vítima CC, na fase de inquérito, como testemunha, conforme fls 51 (mais precisamente 6º paragrafo) a 53.
B. Tal despacho reza assim, conforme Acta de audiência de discussão e julgamento de 07-12-2022 – Ref.ª 91890246:
DESPACHO
Não se determina a leitura do auto de denúncia a que se reporta as suas declarações a fls. 51, uma vez que o mesmo não constitui declarações de testemunha, mas apenas de denunciante, pelo que, no modesto entender deste Tribunal o mesmo não está abrangido pelo nº 5 do art. 356º do CPP.
Aliás, se tal valesse como depoimento na qualidade de testemunha a mesma tinha que ser advertida de que tinha que falar com verdade, prestando juramento, o que não sucede no auto de denúncia.
Aliás, do respectivo auto consta tal advertência de obrigação de falar com verdade e no auto de denúncia não consta tal advertência, nem a mesma tem a qualidade de testemunha, mas apenas de denunciante.
Notifique.
(gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, das 15:05 às 15:09 horas).
C. O recurso vem interposto de tal despacho, porquanto, momentos antes, na mesma sessão de Audiência de discussão e julgamento de 07-12-2022, o Tribunal a quo havia deferido a leitura de tais declarações sem qualquer ressalva, conforme tudo a seguir se transcreve:
(…)
No decorrer do depoimento da testemunha pela Digna Magistrada do MP foi dito:
“Uma vez que a testemunha tem lapsos de memória, o MP requer a leitura das declarações prestadas em sede de inquérito pela mesma a fls. 51 a 53, as quais deverão ser conjugadas com o auto de denúncia que deu origem aos presentes autos, nos termos do disposto do art. 356º, nº 5, com referência ao disposto no nº 3, al. a), do Código de Processo Penal".
*
De seguida dada a palavra á Ilustre Defensora do arguido, pela mesma foi dito: “nada ter a opor".
*
Após pela Mm. Juiz foi proferido o seguinte:
DESPACHO
Uma vez que o arguido não se opõe à leitura das declarações da testemunha, defere-se o promovido pelo MP.
Notifique.
D. Tendo o Tribunal a quo proferido despacho, que admitiu a leitura das declarações da vítima/testemunha (das quais faz parte integrante o teor do auto de denúncia, conforme resulta à saciedade do 6º paragrafo das mencionadas declarações a fls 51) não podia, pois, por novo despacho, reponderar a sua decisão sem que qualquer alteração de circunstâncias tivesse sobrevindo, e decidir não admitir o que já se mostrava admitido, pois que sobre tal matéria se encontrava esgotado o seu poder jurisdicional, conforme disposto do artigo 613º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal.
E. Estamos assim, perante duas decisões de sentido oposto, que incidiram sobre os mesmos factos, no mesmo processo, razões pelas quais se entende que o despacho recorrido está ferido do vício de ineficácia processual absoluta e total, nos termos do artigo 625º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal, por ter sido proferido sobre assunto relativamente ao qual estava esgotado o poder jurisdicional, o que se invoca para os devidos e legais efeitos.
F. Com tal leitura pretendeu o Ministério Pública reavivar a memória da vítima e, consequentemente, fazer prova dos factos articulados na acusação sob os pontos 10, 11, 12, 15, 16 e 17 (1ª parte), 19 e 21, os quais se acham reflectidos no mencionado 6º parágrafo das declarações prestadas pela vítima a fls 51, por remissão à alínea g) descrição narrativa dos factos, do ponto 5 ocorrência, do Auto de denúncia a fls 3 a 5, mais precisamente seus 5º, 6º (2ª parte), 7º, 8º (1ª parte) e 11º parágrafos.
G. Com efeito, reza assim tal auto de inquirição na parte que ora releva e que não foi lida pelo Tribunal a quo (cfr. cit. parágrafos 4º e 6º de fls 51):
«(…) A testemunha foi ainda informada que tem que responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas, sobre pena de incorrer em responsabilidade criminal.
À matéria dos autos, declarou:
Que confirma todo o conteúdo do Auto de Denúncia, registado sob o NUIPC acima indicado (130/21.5PAAB), no qual, acusa o seu marido AA (de) Violência Doméstica. (…)»
H. Por sua vez, reza assim a alínea g) descrição narrativa dos factos, do ponto 5 ocorrência, do Auto de denúncia [cfr. cit. parágrafos 5º, 6º (2ª parte), 7º, 8º (1ª parte) e 11º parágrafos]:
«(…)
Que ontem dia 19 de junho de 2021, uma vez que não tinha a responsabilidade de estar com o filho, foi sair, tendo sido contactada telefonicamente pelo AA, e tendo este dito que não tinha nada que sair, que andava a gastar o dinheiro do filho dele, que iria à sua procura e lhe arrancava os dentes todos.
(…) quando a Denunciante se preparava para a apanhar, foi agredida com uma pancada de mão aberta nas costas, tendo o suspeito questionado “Estás com medo?”
Que lhe respondeu negativamente, disse que simplesmente não queria conversas com ele, nem olhar para a sua cara.
Que quando ia a entrar em casa e a fechar a porta, o suspeito puxou pelo braço (…)
Que, devido às agressões que sofreu, tem fortes dores (…), bem como dores no braço esquerdo, em virtude do agarrão que sofreu (…)»
I. Acresce que é falacioso argumentar, para não se ler o auto de denúncia, como argumenta o Tribunal a quo, que a vítima, nesse acto, não foi previamente advertida de que devia responder à verdade...
J. Pois o que importava, para efeitos do artigo 356º, nº 5, do Código de Processual Penal, era saber se a vítima foi previamente advertida disso mesmo, quando, em sede de inquirição de testemunha, confirmou teor daquele Auto, e a resposta a essa questão era e é afirmativa, conforme tudo resulta à saciedade de tal auto de inquirição.
K. Donde se conclui, salvo o devido respeito, que falta a mais séria razão para Tribunal a quo decidir com decidiu.
L. Termos em que o Tribunal a quo decidindo como decidiu violou o disposto do artigo 613º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal, enfermando a decisão proferida do vício de ineficácia e todo o demais processado, consequente, nos termos do artigo 625º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal.
Dado o exposto e o sempre esperado douto suprimento de V. Exas, deve ser concedido provimento a recurso, declarando-se a ineficácia jurídica do despacho recorrido e de todo o processado consequente, com vista a dar cumprimento integral ao primeiro despacho, mormente proceder-se à leitura de 6º parágrafo do auto de inquirição da vítima a fls 51 e do auto de denúncia a fls 3 a 5, cujo o teor faz parte integrante daquelas declarações, sem prejuízo do disposto no artigo 328º, nº 6 do Código de Processo Penal.
Assim se fará Justiça.

Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal, o AA não se pronunciou sobre este recurso interlocutório.

Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência dos recursos interpostos, invocando a posição assumida pelo Ministério Público na 1ª instância.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -
Do despacho objecto de recurso interlocutório, consta o seguinte:
“Não se determina a leitura do auto de denúncia a que se reporta as suas declarações a fls. 51, uma vez que o mesmo não constitui declarações de testemunha, mas apenas de denunciante, pelo que, no modesto entender deste Tribunal o mesmo não está abrangido pelo nº 5 do art. 356º do CPP.
Aliás, se tal valesse como depoimento na qualidade de testemunha a mesma tinha que ser advertida de que tinha que falar com verdade, prestando juramento, o que não sucede no auto de denúncia.
Aliás, do respectivo auto consta tal advertência de obrigação de falar com verdade e no auto de denúncia não consta tal advertência, nem a mesma tem a qualidade de testemunha, mas apenas de denunciante.
Notifique”.

Do requerimento do Ministério Público consta o seguinte:
“Uma vez que a testemunha tem lapsos de memória, o MP requer a leitura das declarações prestadas em sede de inquérito pela mesma a fls. 51 a 53, as quais deverão ser conjugadas com o auto de denúncia que deu origem aos presentes autos, nos termos do disposto do art. 356º, nº 5, com referência ao disposto no nº 3, al. a), do Código de Processo Penal".

Do despacho anterior ao despacho objecto do presente recurso interlocutório, consta o seguinte:
“Uma vez que o arguido não se opõe à leitura das declarações da testemunha, defere-se o promovido pelo MP”.


Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:

Factos Provados:
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
1. O arguido AA e a vítima CC (doravante CC), nascida em 31-07-1989, natural de Abrantes (S. João), casaram-se entre si no dia 07-04-2018.
2. Desse relacionamento, nasceu GG no dia 10-12-2017.
3. No dia 20-06-2021, Domingo, o arguido AA dirigiu-se à residência de CC para entregar o filho de ambos.
4. Aí chegado e depois de CC abrir a porta da residência, o arguido AA atirou a mala deste para o chão.
5. Ambos encetaram uma discussão e o arguido apelidou a vítima de puta
6. O arguido sabia que a expressão proferida era ofensiva da honra e consideração pessoal da sua mulher e mãe do seu filho, tendo agido com o propósito, concretizado, de denegrir a honra.
7. Atuou o arguido de forma livre, voluntária e consciente, apesar de saber que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
 Das condições pessoais, familiares, económicas e sociais do arguido
8. O arguido tem o 7º ano de escolaridade.
9. O arguido tem dois filhos.
10. Iniciou o seu percurso laboral aos 16 anos ainda no decorrer do processo escolar.
11. Foi trabalhar como padeiro, atividade que exercia nas férias e em períodos noturnos. Posteriormente, foi para a tropa onde esteve sete anos, em regime de contrato.
12. Em seguida trabalhou em diferentes empresas locais, com contratos temporários e no sector da construção civil.
13. Desde outubro que se encontra desempregado, alegadamente porque sofreu um acidente, esteve de baixa e, em seguida, não lhe foi renovado o contrato.
14. O arguido não aufere qualquer rendimento, sendo sustentado pela mãe e companheira.
15. O arguido realiza trabalhos ocasionais na área da construção civil, cerca de 6 dias por mês, auferindo cerca de 50 euros por dia.
16. Não assume qualquer problemática aditiva, nem consumos abusivos de álcool, com nocividade no seu comportamento.
17. O arguido indica como morada a residência da mãe, sita no ZZZ, mas passa vários dias em casa da sua namorada atual, que reside em YY.
18. No ZZZ, não são atribuídas relações significativas ao arguido, sendo referido como uma pessoa com fracas ligações à comunidade, sendo que raramente é visto naquele local.
19. Não são percecionados sentimentos de hostilidade ou animosidade para com ele.
20. A nível dos tempos livres, o arguido não identifica qualquer participação em atividade com carácter parassocial.
21. O arguido adotou um discurso adaptado às situações, mas contido.
22. Deixou transparecer dificuldades a nível da resolução de problemas, quando confrontado em situações com maior complexidade.
23. Em relação à situação processual em apreço deixou transparecer alguma preocupação, não obstante a tenha desvalorizado, apresentando alguma dificuldade em refletir sobre as possíveis consequências da mesma em si e em terceiros.
24. Não identifica quaisquer vitimas, para além dele próprio e do filho.
 Dos antecedentes criminais
25. Por acórdão de 13-12-2019 e transitado em 27-01-2020, o arguido foi condenado, por factos reportados 02-06-2016, pela prática do crime de deserção na pena de prisão de um ano e seis meses, suspensa na sua execução.

Factos não provados:
Com relevo para a boa decisão da causa, não se provou:
a) No referido inquérito, o aqui arguido AA encontra-se indiciado da prática, como autor material e na forma consumada de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea a), do Código Penal, na pessoa da aqui vítima CC.
b) Por despacho, proferido pelo Ministério Público, com a concordância da Mma Juiz de Instrução Criminal, no mencionado inquérito e pelos factos aí melhor descritos foi decretada a sua suspensão provisória, pelo período de 12 (doze) meses, nos termos do art. 281º, nº 1, alíneas b) e c) e nº 7 do Código de Processo Penal, com início em 27-07-2020.
c) Sucede que o aludido processo não serviu de suficiente advertência para o aqui arguido interiorizar o desvalor da sua atuação e a gravidade das suas consequências.
d) Com efeito, durante a suspensão e indiferente ao seu destino, e não obstante a separação, o arguido AA voltou a reiterar na prática de atos de similar recorte sobre a sua mulher e na presença do filho de ambos.
e) O arguido AA continuou a perseguir a vítima para saber o que está fazer ou com quem está, nomeadamente, passando e permanecendo junto da residência desta, tentando controlar o que a mesma faz e quem convive, inclusivamente, o filho de ambos, e dizendo-lhe ainda que lhe retira o filho e fará mal as outras pessoas que se relacionam consigo, pretendendo segrega-la e impedir que a mesma refaça a sua vida longe do seu alcance.
f) Assim, nomeadamente, no dia 19-06-2021, o arguido AA tomou conhecimento de que CC tinha saído para um convívio.
g) Nesse dia era sábado, fim de semana em que o filho de ambos estava com o arguido AA.
h) Desagradado com essa saída, o arguido AA telefonou a CC, dizendo em tom sério e agressivo que não tinha nada que sair; que andava a gastar o dinheiro do filho de ambos; que iria a sua procura e que lhe iria arrancar os dentes todos.
i) No dia 20-06-2021, Domingo, o arguido AA dirigiu-se à residência de CC para entregar o filho de ambos.
j) Aí chegado e depois de CC abrir a porta da residência, o arguido AA atirou a mala deste para o chão.
k) Ato contínuo e na presença do filho de ambos, quando a CC se baixou para a apanhar, o arguido AA desferiu uma pancada de mão aberta nas costas daquela, causando-lhe dor, e questionou-a “Estás com medo?”.
l) Tendo CC lhe respondido que não, que não queria mais conversa, nem olhar para cara dele.
m) De seguida, quando CC se preparava para fechar a porta, e uma vez mais na presença do filho de ambos, o arguido AA puxou com força pelo braço esquerdo da mesma e, ato contínuo, desferiu-lhe uma chapada na face do lado esquerdo, causando-lhe dor nos locais do corpo atingidos.
n) De imediato, CC fechou a porta, refugiando-se em casa para não ser novamente agredida.
o) Como consequência direta e necessária da conduta supra descrita, o arguido AA casou as seguintes lesões no corpo da vítima:
- Face: edema ligeiro da região da articulação temporomandibular direita, com limitação álgica de abertura bucal; e
- Membro superior esquerdo: equimose arroxeada na face interna do terço inferior do braço com 2 centímetros de diâmetro.
p) Tais lesões demandaram cinco dias para cura com afetação da capacidade para o trabalho em geral e sem afetação para a capacidade para o trabalho profissional de CC.
q) Perturbou ainda a estabilidade e o equilíbrio emocional, bem como o normal desenvolvimento do filho de ambos, que surpreso, perante tais atos, exclamou junto da mãe “Ó mãe o pai bateu-te! Tens de lhe dizer que isso não se faz.”,
r) Ao atuar do modo acima descrito, o arguido AA agiu com o propósito reiterado e conseguido de humilhar, maltratar física e psiquicamente a vítima, que sabia ser sua mulher e mãe do seu filho.
s) Mais sabia o arguido AA que ao comportar-se da forma descrita relativamente à vítima, infligia sofrimento psíquico, medo e inquietação, resultados estes que o arguido quis repetidamente produzir e que logrou concretizar.
t) O arguido AA quis ainda infligir maus-tratos físicos à vítima, querendo causar-lhe as lesões verificadas, bem sabendo que tais condutas eram idóneas a adequadas produzir tais resultados.
u) Ademais, ao dizer vítima que lhe iria arrancar os dentes todos e, no dia seguinte, questioná-la se estava com medo, pretendeu outrossim, intimidar e perturbar o sentimento de segurança daquela, bem como a sua liberdade de decisão e de movimento, e fazê-la recear pela sua integridade física, o que conseguiu, bem sabendo outrossim que tais condutas em idóneas a adequadas produzir tais resultados.
v) Agiu ainda repetidamente com o propósito concretizado de perturbar a paz e o sossego da vítima, bem sabendo que, com tais condutas, lhe causava medo, inquietação, angústia e sofrimento, resultado esses que também representou.
w) Mais sabia que, ao atuar junto do domicílio da vítima, ampliava o sentimento de receio desta, por se tratar de espaço um espaço reservado da vida privada da mesma e securitário, mas quis isso mesmo.
x) Sabia ainda que sobre si impediam especiais deveres de respeito, consideração e assistência em relação à sua mulher, e ainda de educação em relação ao filho de ambos, o que vilipendiou, tendo perturbado ainda com as condutas descritas nos pontos 14 a 17, a estabilidade e o equilíbrio emocional, bem como o normal desenvolvimento de GG, bem sabendo que este era seu filho, menor de idade e dependente da sua pessoa, privando-o de um ambiente calmo, tranquilizador e seguro, necessário ao salutar crescimento de uma criança, resultado que anteviu e com o qual se conformou.
y) Mais sabia que todas as condutas, supra, descritas eram proibidas e punidas por lei, como tinha a necessária capacidade para se autodeterminar de acordo com essa valoração e estava livre na sua vontade.
z) Apesar disso, quis atuar, como atuou.
aa) Agiu assim sempre de modo consciente, livre e deliberado.

Motivação:
O Tribunal formou a sua convicção positiva com base na análise crítica e conjugada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento globalmente considerada, atendendo aos dados objetivos fornecidos pelos documentos juntos aos autos.
Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica dos meios de prova, destacando-se:
 A Prova pericial:
 Do teor da Perícia de avaliação de dano corporal em Direito Penal de fls. 15 a 17, respeitante à ofendida, sendo que “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador” (artigo 163º/1 do Código de Processo Penal).
Não obstante da perícia atestar que a ofendida apresentava as lesões nele constantes, o que não se coloca em crise, na verdade, atento o depoimento da daquela nos moldes que infra se expenderão, conjugado com o depoimento do agente da PSP FF, o qual referiu que no próprio dia não viu quaisquer lesões no rosto da ofendida, só tendo mencionado tal circunstância por a ofendida o reportar, quando lavrou o auto de denúncia e ainda com as declarações negatórias do arguido, suscitou-se dúvida de tais lesões que a examinanda apresentava resultava de ação do arguido.
Acresce que a ofendida só foi sujeita a exame pericial 4 dias após os eventos. A mesma não foi sujeita a tratamento hospitalar ou observada por um médico nos dias imediatamente a seguir.
De facto, resulta que a ofendida apresentava na face um edema ligeiro da região da articulação temporomandibular direita, com limitação álgica de abertura bucal. Das declarações da ofendida, esta reportou que lhe foi desferida uma bofetada no lado esquerdo (o que igualmente vem mencionado na perícia). Ora, para que uma bofetada no lado esquerdo provocasse um edema ligeiro no lado direito, tal bofetada teria que ser desferida com bastante força. E uma chapada desferida com bastante força cerca das 16h50m teria causado um trauma na face esquerda que necessariamente estaria visível pelas 18h54m, data em que a mesma se apresenta na esquadra da PSP. Sucede que o agente que lavrou o auto de denúncia não viu qualquer lesão.
Igualmente se estranha, tendo a ofendida referido, inicialmente, que só ficou com dores e não ficou com marcas, para posteriormente referir que ficou com a cara vermelha e que só começou a ter dores no lado direito, quando mastigava no dia seguinte. Se assim foi, porque não foi ao médico ou não recorreu a tratamento hospitalar, tendo aguardado pela realização da perícia 4 dias após o evento?
Acresce que não tendo o perito médico constatado qualquer lesão na face esquerda, conclui-se que a chapada não foi desferida com a intensidade suficiente para causar um edema na face direita com limitação álgica de abertura bucal.
Tendo em conta estas circunstâncias não tem dúvidas o Tribunal que a ofendida no dia 24 de junho de 2021 apresentava as lesões constatadas pelo perito médico. Contudo, o Tribunal já tem dúvidas que as lesões mencionadas na perícia tenham resultado de conduta praticada pelo arguido. Pelo que se deu como não provado os factos o) e p).
 A prova documental, cujo teor não foi impugnado:
 Auto de Denúncia de fls. 3 a 5, a qual permitiu dar como provado o dia, hora e local dos acontecimentos.
 Assento de nascimento de fls. 81 e 82, o qual permitiu dar como provado a filiação do menor e respetiva data de nascimento (facto 2).
 Assentos de nascimento de fls. 83 a 86, o qual permitiu dar como provado que arguido e ofendida casaram um com o outro e respetiva data de casamento (facto 1)
 Certidão do processo nº 424/19.0PAABT de fls. 104 a 139, cujo teor permitiu balizar os factos em termos temporais, para distinguir o lapso temporal dos factos dos presentes autos a fim de evitar que o arguido fosse julgado por factos ali indiciados.
Esta certidão permitiu dar como não provado os factos constantes nas alíneas a) a c), uma vez que não podem ser valorados em desfavor do arguido processos pendentes e ainda não transitados.
 CRC de fls. 237 e ss, o qual permitiu apurar que o arguido possui antecedentes criminais (facto nº 25);
 Relatório social de fls. 239 a 243, o qual permitiu apurar as circunstâncias de vida do arguido e sua personalidade, porquanto elaborado de forma objetiva, fundamentada, conseguido através de entrevista com o arguido, bem como com pessoas do meio, permitindo dar como provado os factos nº 8 a 24.
 Autos de transcrição de mensagens conjugado com termo de autorização de transcrição de fls. 264 a 288, o qual permitiu apurar que eventuais factos persecutórios por parte do arguido relativamente à vítima ocorreram em finais 2021 e no ano de 2022, e não no período compreendido entre 06/05/2020 e 20/06/2021 (data da denúncia). Na verdade, apesar da ofendida verbalizar que o arguido lhe batia à porta de madrugada, que lhe fazia esperas à porta de casa, etc, apenas conseguiu precisar em momento posterior ao período balizado na acusação. No período anterior não conseguiu precisar, com a certeza que se impõe, se foi antes ou depois dos factos indiciados no processo nº 424/19.0PAABT.
Na verdade, da leitura destas transcrições, o que ressalta à vista é que o arguido e a ofendida se agridem mutuamente em termos verbais, as quais não deixam de ser lamentáveis em situações de conflito e onde o filho de ambos é usado constantemente como arma de arremesso para se atingirem emocionalmente. E isto é triste entre dois adultos. E não se diga que é só o arguido a perseguir a ofendida, esta também o faz, atento o teor da participação de fls. 138 e 139. Consequentemente, deu-se como não provado o facto constante na al. e).
 As declarações do arguido, o qual, no que diz respeito aos factos que lhe são imputados a título de violência doméstica, negou os mesmos, à exceção dos impropérios dirigidos à mulher, naquele dia em que foi deixar o filho. Na verdade, o arguido reportou corresponder à verdade que o casal sempre discutiu, negando que alguma vez tenha agredido a ofendida, no lapso temporal mencionado na acusação.
Porém deixou transparecer que o ambiente entre ambos, desde que se separaram era pautado, reiteradamente, por discussões em face da discordância quanto às visitas do filho. E isso é notório que ainda assim acontece, em face do teor das mensagens transcritas e supra aludidas.
Ora, concatenando as declarações do arguido com o depoimento da ofendida conjugado com a prova pericial e documental, não conseguiu o Tribunal, sem quaisquer margens para dúvidas, apurar se os factos constantes no libelo acusatório assim se passaram. Assim, não existindo outros meios de prova que dessem credibilidade ao depoimento da ofendida, terá o Tribunal que julgar a favor do arguido, por força do princípio in dUbio pro reu.
Na realidade, o Tribunal não conseguiu formar a sua convicção positiva relativamente à ocorrência do facto que tenha sido o arguido a praticar os factos constantes no libelo acusatório, à exceção dos por ele admitidos, antes tendo sido assolado por uma dúvida inultrapassável quanto à sua verificação, atenta a versão dos factos trazida pelo arguido, o qual, antes de ver ser produzida a prova testemunhal perante si, reportou ao Tribunal, de forma espontânea, que discutiu com a ofendida quando lhe foi entregar o filho, apodando-a de puta, mas negando o demais. Chegando, inclusivamente, a questionar que como a arguida poderia ter lesões do lado direito da face quando foi observada pelo perito médico, se da acusação constava o desferimento no lado da face esquerda?
Antes de mais, impõe-se referir, em primeiro lugar, que a “justificação” fornecida pelo arguido não se mostra, em si mesma, totalmente desprovida de verosimilhança. Com efeito, o arguido admitiu que discutiu com a ofendida, mas que não a agrediu. Sucede que o agente da PSP que recebeu a denúncia não viu quaisquer lesões, apenas mencionado que a ofendida estava nervosa e ruborizada por estar a chora (o que se pode atestar, pois a ofendida quando chorou na audiência de julgamento ficou bastante ruborizada)
Ora, se pode dizer-se que a “justificação” fornecida pelo arguido “vale o que vale”, dado que não foi surpreendido a agredir a ofendida, não se pode deixar de dizer que, objetivamente, a prova produzida não permite afirmar, com a mínima segurança, que aquela não é verdadeira e, menos ainda, que os factos ocorreram tal como vêm descritos no libelo acusatório.
Como supra, referimos, a versão do arguido de que não foi o autor dos factos em causa, não pode ser totalmente colocada de parte, não existindo, pois, elementos probatórios que permitam afastar com segurança a sua versão, nem o contrário resulta das regras da experiência comum. Note-se que a prova testemunhal vai no sentido contrário de não lhe ser vista qualquer lesão pelos agentes da PSP que com ela estiveram nesse dia.
O julgador está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, tal como estabelece o artigo 127º do Código de Processo Penal.
Sempre que no espírito do julgador, ao fixar a matéria de facto, se instale uma dúvida séria e insanável acerca da veracidade ou não de um determinado facto desfavorável ao arguido, deve lançar-se mão do princípio do in dúbio pro reo.
O princípio da presunção de inocência, princípio basilar e fundamental da prova em Direito Processual Penal, e espelhado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, consagra a inadmissibilidade da condenação de uma pessoa enquanto não for demonstrada a sua culpabilidade, pelo que, a dúvida acerca da ocorrência dos factos deverá ser valorada e resolvida a favor do arguido.
Na verdade, estamos no âmbito de um princípio com consequências exclusivas ao nível da apreciação da matéria de facto, ou seja, um princípio que opera na fase da valoração da prova de quaisquer factos cuja fixação prévia seja condição indispensável de uma decisão suscetível de desfavorecer, objetivamente o arguido (neste sentido Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Volume I, Lisboa, 2000, 4ª Edição, pág. 83, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.11.1998, CJ 98, III, 201, entre outros), nos termos do qual qualquer dúvida, fundamentada e motivada, relativamente à ocorrência de um facto pressuposto do preenchimento do tipo de crime ou demonstrativo da existência de uma causa da exclusão da ilicitude ou da culpa, deverá ser valorada a favor do arguido.
No entanto, note-se, que não é qualquer dúvida sobre o facto que permite uma solução mais favorável ao arguido, mas apenas aquela dúvida insanável, motivada, que não é suscetível de ser ultrapassada com recurso a critérios objetivos.
Nestes termos, na medida em que existe uma dúvida insanável acerca se o arguido foi o autor dos factos descritos na acusação, decide-se, por aplicação do supra referido princípio constitucional, dar como não provado os factos d) e f) a n) e q) a u).
Relativamente aos factos v) a aa), os mesmos resultam não provados pois que não foi feita qualquer prova sobre a sua ocorrência, uma vez que não resultando provado que tenha sido o arguido a praticar os factos descritos na acusação, ou seja, a intenção de praticar tais factos.
As suas declarações apenas permitiram dar como provados os factos constantes nos pontos 3 a 5, por confessórias.
 Quanto às declarações da ofendida e assistente, desde logo, não obstante haver prestado declarações de modo, aparentemente, emocionado e, mesmo, causticado (a mera audição do registo fonográfico, não temos dúvidas, induz a pensar que o “desespero” manifestado no tom de voz aplicado é fruto de uma imaginação fértil, que maquinou toda esta situação para conseguir que o marido não visitasse o filho as vezes que este pretendia), não podemos deixar de dizer que a audição das suas declarações fizeram nascer, no espírito do Tribunal, muito sérias dúvidas acerca da veracidade do relatado pela mesma, dúvidas que se não lograram afastar mediante a valoração dos demais meios de prova produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento, merecedores de credibilidade (aliás, os agentes da PSP foram unânimes em afirmar que não viram lesões no rosto da CC). Efetivamente, tratou-se de um depoimento teatral, escarninho, não respondendo ao perguntado, mas verbalizando, por vezes de forma desconexa, situações que revelavam incompatíveis com cenário de violência doméstica, mas sim de duas pessoas que mantém uma situação conjugal desrespeitosa de parte a parte, onde o vernáculo abunda (atente-se o teor das mensagens que ambos trocaram).
A verdade é que as suas declarações não se mostraram credíveis quando conjugadas com as demais provas testemunhais, documentais e periciais.
Na verdade, a forma como a ofendida descreveu as agressões, a serem verdadeiras, as lesões que a mesma teria sofrido seriam significativas e visíveis, tal como se dilucidou supra.
Portanto, a versão trazida pela ofendida peca pelo excesso e, por força de tal circunstância, mostra-se incompatível com as demais provas produzidas em julgamento. Ao produzir um relato hiperbólico, ficou o Tribunal sem saber o que realmente se passou. Portanto, tem o Tribunal sérias dúvidas que a versão constante no libelo acusatório por si trazidos ao tribunal, tenham ocorrido da forma como foi relatada pela ofendida.
Com efeito e quanto à factualidade dada como não provada (als. d) e f) a n) e q) a u), conforme acima se referiu, tais declarações suscitaram graves dúvidas a este Tribunal, considerando, por um lado, a postura evidenciada pela ofendida, mas, sobretudo, tendo em vista a inverosimilhança do relato.
Concomitantemente, importa considerar, por um lado, que a ofendida nunca solicitou assistência hospitalar.
Acresce que mesma reportou que o filho não ficou perturbado com a situação pois não voltou a fazer perguntas sobre o assunto, o que sedimenta a convicção do julgador que as coisas não se passaram com a gravidade que a ofendida quis imputar ao arguido. Acreditando mais que se tratou de mais uma discussão relativamente às entregas do filho, tal como as mensagens trocadas assim o espelham.
Tudo visto e ponderado, não logrou, pois, ante a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal convencer-se de que os factos se passaram, tão-somente, conforme descritos pelo arguido, mas, menos ainda, logrou o Tribunal o convencimento de que ocorreram nos termos reportados pela ofendida (tudo evidenciando, como se expressou, que assim não foi), constantes do libelo acusatório.
O Tribunal não ficou convicto, nesta sede, de que o arguido tenha procedido do modo descrito no libelo acusatório (quanto aos factos que consubstanciariam em violência doméstica). Também não ficou convicto do contrário e, numa situação de dúvida, essa dúvida, em obediência ao princípio in dubio pro reo, só pode ser resolvida em prol do arguido, sendo certo que a mesma não pode obstar ao ato de julgar. Apenas ficou convicto o Tribunal que este casal se desrespeitava mutuamente e de forma reiterada e, por vezes, esquecendo que tinha um filho a assistir a tudo o sucedido.
 As testemunhas DD, EE e FF, todos agentes da PSP e que estiveram com a ofendida no dia dos acontecimentos, reportaram que não se aperceberam que a ofendida tivesse lesões visíveis. Os mesmos, de forma unânime, reportaram que a ofendida estava chorosa, exaltada, nervosa e por isso bastante roborizada, não se apercebendo de marcas de bofetadas na cara daquela. FF referiu que se limitou a fazer constar no auto de denúncia as declarações da ofendida e esclareceu que, apesar de ali constar que a ofendida apresentava ferimentos ligeiros, a verdade é que tal menção apenas resultou das declarações daquela, mas que por si não foram observadas. Referiu que, apesar de a ofendida ter reportado que a criança assistiu ao sucedido, não viu necessidade de falar com o filho, nem de reportar a CPCJ. Ora, se o agente da PSP à data não tomou esta decisão, quando tudo tinha acabado de suceder, é porque a situação não pareceu tão grave quanto o relatado pela vítima. Pelo que, esta circunstância sedimentou as dúvidas acerca da realidade do verbalizado pela vítima.
Ora, o depoimento destas testemunhas foi prestado de foram objetiva, sincera e imparcial, não se vislumbrando qualquer espírito de sacrifício, tendo conhecimento dos factos por si reportados por os terem presenciado, pelo que foram todos valorados na íntegra. Como se referiu, as declarações destas testemunhas sedimentaram as dúvidas que se vinham aflorando desde o depoimento da ofendida.
 A prova do elemento subjetivo (factos 6 e 7) resultou, desde logo, da factualidade objetiva provada, porquanto, tratando-se de demonstrar a intenção do agente, é a mesma insuscetível de prova direta, devendo comprovar-se por meio de presunções baseadas nas regras da experiência e da normalidade – cfr., neste sentido, o decidido no Ac. do STJ, de 08/04/1999, in CJ/STJ, Tomo II, p. 171.
Na verdade, o arguido ao apelidar a ofendida de puta, quis ofender na sua honra e consideração, bem sabendo que tal não correspondia à verdade. As circunstâncias da ação revelam, inequivocamente, atentas as regras da lógica, o comportamento voluntarioso do arguido na ação que tomou e, bem assim, a intenção havida, que não poderia ser qualquer outra, até pela natureza da própria expressão dita e o contexto em que o foi.
(…)

II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, as cominadas com nulidade da sentença, artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código e, as nulidades que não devam considerar-se sanadas, artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-1998, B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03-02-1999, B.M.J. nº 484, pág. 271 e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

1 - Do Recurso Interlocutório:
No recurso interlocutório as questões que se suscitam são as seguintes:
- Impugnação do despacho proferido que não permitiu a leitura do auto de denúncia de fls. 3 a 5 dos autos, por não corresponder a depoimento de testemunha, mas sim a declaração de denunciante e não se encontrar abrangido pelo artigo 356º, nº 2, do Código de Processo Penal e, consequentemente não ser legalmente admissível tal meio de prova, artigo 340º, nº 3, do mesmo diploma legal.
- Violação do disposto no artigo 613º, nº 4, do Código de Processo Civil, “ex vi” do disposto no artigo 4º, do Código de Processo Penal.

2 - Do Recurso Principal:
No caso em apreço, atendendo às conclusões do recurso principal, as questões que se suscitam são as seguintes:
- Impugnação da sentença proferida, relativamente à matéria de facto, por contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal.

1 - Do Recurso Interlocutório:
- Da impugnação do despacho proferido que não permitiu a leitura do auto de denúncia de fls. 3 a 5 dos autos, por não corresponder a depoimento de testemunha, mas sim a declaração de denunciante e não se encontrar abrangido pelo disposto no artigo 356º, nº 2, do Código de Processo Penal e, consequentemente não ser legalmente admissível tal meio de prova, artigo 340º, nº 3, do mesmo diploma legal.
A denúncia ou queixa é a comunicação que se faz às autoridades de que um crime aconteceu, sendo na maior parte das situações a única forma de as autoridades saberem da ocorrência do crime e darem início à investigação.
Tal denúncia ou queixa não reveste qualquer formalismo (artigo 49º a 52º, do Código de Processo Penal) e poderá ser apresentada por qualquer pessoa com legitimidade para tal efeito, conforme se trate de crime público ou semi-público ou particular.
Assim, tal participação criminal, é um meio de prova documental, no sentido que no dia a que se reporta, tal indivíduo comunicou tais factos susceptíveis de constituirem um crime.
Nada mais resulta de tal meio de prova, não constituindo essa declaração prova testemunhal, nos termos do disposto nos artigos 128º e 139º, do Código de Processo Penal.
Assim, a comprovação feita por testemunha relativamente ao auto de denúncia, apenas permite provar a veracidade do documento em si, no sentido que naquele dia e naquela hora, determinada pessoa aí se deslocou e comunicou tais factos, nunca podendo tal auto de denúncia ser meio de prova dos factos denunciados.
Decorrendo claramente do disposto no artigo 356º, nº 2, do Código de Processo Penal, que apenas é permitido na audiência de julgamento a leitura de declarações do assistente, das partes civis ou de testemunhas e, em específicas situações, das declarações do arguido (artigo 357º, do Código de Processo Penal).
No caso presente a participação/denúncia dos factos que deram origem aos autos, nunca poderá ser lida na audiência de julgamento nos termos do referido artigo 356º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que comprovada em declarações posteriores por testemunha devidamente constituída, estas declarações da testemunha é que poderão ser meio de prova, de determinados factos, nomeadamente que apresentou queixa ou denúncia.
Desde logo porque o auto de denúncia apenas e só constitui prova documental devendo a testemunha em audiência de julgamento ser diretamente confrontada com o teor do mesmo documento e solicitada a comentar ou esclarecer o teor do mesmo, mas não ser confrontada, nos termos do disposto no artigo 356º, do Código de Processo Penal, como constituindo declarações anteriormente prestadas pela mesma, por tal meio de prova não ser legalmente admissível, artigo 340º, nº 3, do mesmo diploma legal.
Assim, improcede nesta parte o recurso interposto.

- Da violação do disposto no artigo 613º, do Código de Processo Civil, “ex vi” do disposto no artigo 4º, do Código de Processo Penal.
Resulta do disposto no artigo 613º, do Código de Processo Civil:
1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
2 - É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.
3 - O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos.
Alega o recorrente Ministério Público que ao proferir despacho a deferir a leitura das declarações da testemunha em inquérito e esta nas mesmas confirmar o teor do auto de denúncia, implicitamente e indirectamente deferiu a leitura desse mesmo auto de denúncia na audiência de julgamento, não podendo posteriormente proferir novo despacho a indeferir tal leitura, por se ter esgotado o seu poder jurisdicional aquando da prolacção do primeiro despacho, face ao disposto no artigo 613º, do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do disposto no artigo 4º, do Código de Processo Penal.
Desde já cumpre apreciar o que efectivamente foi requerido pelo Ministério Público.
Então, no decurso da audiência e do depoimento da ofendida, o Ministério Público requereu:
“Uma vez que a testemunha tem lapsos de memória, o MP requer a leitura das declarações prestadas em sede de inquérito pela mesma a fls. 51 a 53, as quais deverão ser conjugadas com o auto de denúncia que deu origem aos presentes autos, nos termos do disposto do art. 356º, nº 5, com referência ao disposto no nº 3, al. a), do Código de Processo Penal”.
Resulta evidente e inequívoco que o Ministério Público requereu a leitura das declarações da testemunha prestadas em sede de inquérito a fls. 51 a 53, só e unicamente, aliás como é legalmente admissível conforme já supra referido, acrescentando que tais declarações deveriam ser conjugadas na sua interpretação com o auto de denúncia, por tal constituir prova documental, não tendo sido requerido a leitura do mesmo auto de denúncia, pelo menos de forma clara e inequívoca, logo o despacho proferido e mesmo a não oposição ao requerido pelo arguido, foram quanto ao efectivamente requerido que era a simples leitura das declarações da testemunha prestadas em sede de inquérito.
Só quando a Juiz compreendeu que a intenção do Ministério Público, era para além do efectivamente requerido, proceder sub-repticiamente também à leitura do auto de denúncia, nos termos do disposto no artigo 356º, do Código de Processo Penal, prolatou o despacho ora recorrido.
Então nos termos já anteriormente referidos sobre a ilegalidade de tal leitura do auto de denúncia como uma simples declaração de uma testemunha, certo é que no despacho inicial proferido pela Sra. Juiz, apenas e unicamente se pronunciou sobre o efectivamente requerido pelo Ministério Público, a leitura das declarações da testemunha prestadas em sede de inquérito constantes de fls. 51 a 53 dos autos, esgotando quanto ao assim requerido e deferido o seu poder jurisdicional, nos termos do disposto no artigo 613º, do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do disposto no artigo 4º, do Código de Processo Penal.
Contudo, tal não contempla a leitura do auto de denúncia, nos termos e para os efeitos do artigo 356º, do Código de Processo Penal, não se pronunciando expressamente sobre tal questão que pela sua relevância e controvérsia jurídica, sempre exigiria pronúncia expressa.
Assim ao não comtemplar tal despacho, pronúncia expressa sobre a leitura do auto de denúncia nos termos do disposto no artigo 356º, do Código de Processo Penal, apenas com o despacho judicial subsequente que veio a indeferir expressamente tal leitura, por inadmissibilidade legal, nos termos do artigo 340º, nº 3, do Código de Processo Penal, é que de facto e de direito se veio a esgotar o poder jurisdicional da juiz quanto à matéria da causa, nos termos do disposto no artigo 613º, do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do disposto no artigo 4º, do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, improcede na totalidade o recurso interlocutório interposto pelo Ministério Público.

2 - Do Recurso Principal:
- Da impugnação da sentença proferida, relativamente à matéria de facto, por contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal.
A alteração da factualidade assente na 1ª instância poderá ocorrer pela verificação de algum dos vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma –, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe oficiosamente.
Em comum aos três vícios, terá o vício que inquina a sentença em crise que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, local supra, mencionado.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.”, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local mencionados.
O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada.
Ora, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, a mesma apreciou os factos aportados na acusação e bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento.
Então do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê, por isso, que a matéria de facto provada e não provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, nem se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final.
Contudo, bem, como salienta, o Ministério Público no recurso interposto, a sentença recorrida, faz constar exactamente o mesmo facto no ponto 4 dos factos provados e no ponto j) dos factos não provados, “Aí chegado e depois de CC abrir a porta da residência, o arguido AA atirou a mala deste para o chão”.
Evidentemente resulta que tal identidade factual consubstancia objectivamente uma contradição insanável sobre a fundamentação da sentença proferida.
Procede, pois, o recurso do Ministério Público, quanto ao invocado vício de contradição insanável da fundamentação, previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal, que nos termos do artigo 426º, do mesmo diploma legal, face aos elementos constantes dos autos, deverá ser suprido nesta instância de recurso.
Então, resultando da motivação dos factos provados, que os constantes dos pontos 3 a 5, foi provado com base nas declarações do arguido, as quais não foram contraditadas por qualquer testemunha ou documento, conforme resulta da mesma motivação, terá de se concluir que tal ponto 4 se encontra provado e, o ponto j), dos factos não provados, terá de ser eliminado, por se tratar de um mero e óbvio lapso.

Quanto ao invocado vício de erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal, relativamente à valoração probatória do relatório pericial de avaliação do dano corporal e à valoração probatória da certidão do Processo nº 424/19.0PAABT, junto a fls. 104 a 139 dos autos.
Da sentença recorrida consta:
“Do teor da perícia de avaliação de dano corporal em Direito Penal de fls. 15 a 17, respeitante à ofendida, sendo que “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador” (artigo 163º/1 do Código de Processo Penal).
Não obstante da perícia atestar que a ofendida apresentava as lesões nele constantes, o que não se coloca em crise, na verdade, atento o depoimento da daquela nos moldes que infra se expenderão, conjugado com o depoimento do agente da PSP FF, o qual referiu que no próprio dia não viu quaisquer lesões no rosto da ofendida, só tendo mencionado tal circunstância por a ofendida o reportar, quando lavrou o auto de denúncia e ainda com as declarações negatórias do arguido, suscitou-se dúvida de tais lesões que a examinanda apresentava resultava de ação do arguido.
Acresce que a ofendida só foi sujeita a exame pericial 4 dias após os eventos. A mesma não foi sujeita a tratamento hospitalar ou observada por um médico nos dias imediatamente a seguir.
De facto, resulta que a ofendida apresentava na face um edema ligeiro da região da articulação temporomandibular direita, com limitação álgica de abertura bucal. Das declarações da ofendida, esta reportou que lhe foi desferida uma bofetada no lado esquerdo (o que igualmente vem mencionado na perícia). Ora, para que uma bofetada no lado esquerdo provocasse um edema ligeiro no lado direito, tal bofetada teria que ser desferida com bastante força. E uma chapada desferida com bastante força cerca das 16h50m teria causado um trauma na face esquerda que necessariamente estaria visível pelas 18h54m, data em que a mesma se apresenta na esquadra da PSP. Sucede que o agente que lavrou o auto de denúncia não viu qualquer lesão.
Igualmente se estranha, tendo a ofendida referido, inicialmente, que só ficou com dores e não ficou com marcas, para posteriormente referir que ficou com a cara vermelha e que só começou a ter dores no lado direito, quando mastigava no dia seguinte. Se assim foi, porque não foi ao médico ou não recorreu a tratamento hospitalar, tendo aguardado pela realização da perícia 4 dias após o evento?
Acresce que não tendo o perito médico constatado qualquer lesão na face esquerda, conclui-se que a chapada não foi desferida com a intensidade suficiente para causar um edema na face direita com limitação álgica de abertura bucal.
Tendo em conta estas circunstâncias não tem dúvidas o Tribunal que a ofendida no dia 24 de junho de 2021 apresentava as lesões constatadas pelo perito médico. Contudo, o Tribunal já tem dúvidas que as lesões mencionadas na perícia tenham resultado de conduta praticada pelo arguido. Pelo que se deu como não provado os factos o) e p)”.
Consta expresso no artigo 163º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador.
Na sentença recorrida não resulta que o julgador interferiu de alguma forma com o teor científico do relatório pericial de avaliação do dano corporal, confirmando integralmente o mesmo afirmando que aquando da sua realização a ofendida apresentava as lesões no mesmo relatório assinaladas, não colocando assim em causa, por alguma forma, tal avaliação pericial técnica/científica.
O que a sentença questiona é se tais lesões confrontadas com a restante prova produzida nos autos, são compatíveis com o depoimento da testemunha/vítima, quando refere que o arguido lhe desferiu uma bofetada na face esquerda da cara, ou apenas compatíveis com a informação do evento narrada pela testemunha/vítima ao Sr. Perito, pois o mesmo no seu relatório pericial faz constar que o arguido desferiu bofetadas.
Desde logo tal afirmação, resulta não de um juízo científico, mas das declarações transmitidas ao Sr. Perito pela ofendida e face a tais declarações as lesões apresentadas são compatíveis com as mesmas declarações. Contudo, o que não resulta do relatório pericial nem tal deveria resultar, é quais as declarações que lhe foram transmitidas pela testemunha/vítima, nomeadamente porque expressamente refere no relatório pericial que o arguido desferiu bofetadas, quando nos autos consta apenas uma bofetada.
Tais factos circunstanciais e considerações, não constituem um juízo científico, subtraído à livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no artigo 163º, nº 1, do Código de Processo Penal, consubstanciando apenas a compatibilidade das lesões corporais examinadas com o referido pela ofendida ao perito na realização do exame, ou seja, constitui apenas um juízo científico sobre as lesões e a sua compatibilidade com declarado no exame pela ofendida, o que não é colocado em causa pelo Tribunal “a quo”.
A compatibilização de tais conclusões periciais, com a restante prova constante dos autos, nomeadamente, a prova testemunhal, tal como bem resulta da sentença recorrida, não constitui prova tarifada, e é da competência exclusiva do julgador, nos termos do disposto o artigo 127º, do Código de Processo Penal.
Por outro lado, relativamente aos pontos a) a c), dos factos não provados, relativos à certidão do Processo nº 424/19.0PAABT, junto a fls. 104 a 139 dos autos, consta da decisão recorrida:
“Certidão do processo nº 424/19.0PAABT de fls. 104 a 139, cujo teor permitiu balizar os factos em termos temporais, para distinguir o lapso temporal dos factos dos presentes autos a fim de evitar que o arguido fosse julgado por factos ali indiciados.
Esta certidão permitiu dar como não provado os factos constantes nas alíneas a) a c), uma vez que não podem ser valorados em desfavor do arguido processos pendentes e ainda não transitados.
Efectivamente, trata-se de uma certidão relativa a um processo pendente, onde foi decretada a suspensão provisória do processo, nos termos do disposto no artigo 281º, do Código de Processo Penal, o arguido é o mesmo dos presentes autos e os factos são semelhantes aos dos presentes autos, mas que não foram objecto de qualquer julgamento e por tal, não são susceptíveis de ser imputados desfavoravelmente ao arguido, não estando de todo excluída a possibilidade de vir a ser revogada tal suspensão do processo, o mesmo ser acusado e julgado e ser absolvido.
Então, tal circunstância relativa à pendência do processo referenciado, nunca poderia ser ponderada negativamente nestes autos, relativamente ao arguido, nem nos termos invocados no recurso interposto, para efeitos da determinação da eventual medida concreta da pena, nos termos do disposto, no artigo 71º, do Código de Processo Penal.
Nestes termos improcede na globalidade o recurso interposto relativo a eventuais erros notórios na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal.

Assim, não se vislumbra qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.
De igual modo, conforme supra, referido, do texto de tal decisão não se detecta qualquer violação do “favor rei”, na medida em que se não verifica, nem demonstra, que o tribunal de julgamento haja resolvido qualquer dúvida contra o arguido.
Por outro lado, conceda-se, a decisão recorrida, como já se afirmou, não deixa de expor, de forma clara e lógica, os motivos que fundamentaram a decisão sobre a matéria de facto, com exame criterioso, das provas que abonaram a decisão, tudo com respeito do disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
A decisão recorrida está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.
O Tribunal “a quo” decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a de forma objectiva e motivada e, portanto, capaz de se impor aos outros.
Em consequência, mantém-se e, sedimentada se mostra, a factualidade assente pelo Tribunal “a quo”, não se vislumbrando na decisão recorrida vício ou nulidade cujo conhecimento oficiosamente ou a requerimento se imponha a este Tribunal “ad quem”.
Por tal, não resulta existir qualquer dos vícios constantes do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas a), b) ou, c), do Código de Processo Penal, bem como não se mostra verificado qualquer nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código ou nos termos dos artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, que não devam considerar-se sanadas.
Assim, procede em parte o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se e anulando-se, nos termos do disposto nos artigos 410º, nº 2, alínea b) e 426º, nº 1, do Código de Processo Penal, o ponto j) dos factos não provados, confirmando-se no demais a sentença recorrida.

Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público, artigo 522º, do Código de Processo Penal e a procedibilidade parcial do recurso.

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar totalmente improcedente o recurso interlocutório interposto pelo Ministério Público, confirmando-se integralmente o despacho recorrido.

- Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se e anulando-se, nos termos do disposto nos artigos 410º, nº 2, alínea b) e 426º, nº 1, do Código de Processo Penal, o ponto j) dos factos não provados, confirmando-se no demais a sentença recorrida.

Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público, artigo 522º, do Código de Processo Penal e a procedibilidade parcial do recurso.


Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 18-05-2023

Fernando Paiva Gomes M. Pina (Relator)
Beatriz Marques Borges (Adjunta)
João F. R. Carrola (Adjunto)