Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
172/15.0T8CBA-A.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
LIVRANÇA
Data do Acordão: 06/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 172/15.0T8CBA-A.E1

ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Embargado: Banco (…) Portugal, SA

Recorrida / Embargante: (…)

O presente processo consiste em embargos de executado deduzidos em oposição à execução intentada com base em livrança assinada em branco pela executada, embargos esses visando que seja “declarado inepto e nulo o título executivo, julgando-se improcedente a exceção dilatória de nulidade do processo, absolvendo-se a executada da instância executiva.”

II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferido saneador sentença julgando procedentes os embargos por ineptidão do requerimento executivo decorrente da falta de indicação da causa de pedir, implicando na nulidade de todo o processado.

Inconformado, o Embargado apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da sentença recorrida, a substituir por outra que julgue improcedentes os embargos de executado deduzidos pela Executada determinando-se o prosseguimento da execução. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«I – Serve de título à presente execução uma livrança, documento cuja disciplina jurídica é regulada pela L.U.L.L.;
II - Na ação executiva não tem cabimento falar-se em causa de pedir, pelo menos com o sentido em que é utilizado na ação declarativa;
III – Estando em causa a execução de uma relação cambiária titulada numa livrança, e atentas as características da incorporação, literalidade, autonomia e abstração dos títulos de crédito, a livrança como título vale do que dela consta, sendo desnecessária a alegação de qualquer relação extra-cartular ou causa de pedir.
IV - Tudo quanto importa à obrigação cambiária exequenda consta do título – ‘livrança’ – junto pela exequente ao requerimento executivo, nenhum outro facto se tornando necessário referir com vista à demonstração do direito de crédito nele mencionado.
V - A livrança é título suficiente para fundamentar a presente execução, não carecendo de quaisquer factos suplementares dando a conhecer de início aos executados, a concreta razão da demanda, indicando, nomeadamente, o facto concreto e identificado donde decorre;
VI - Verificando-se, assim, que o Recorrente Banco atuou de acordo com a lei, sendo certo que o art. 724º, nº 1, al. e), do CPC apenas exige a exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo, não sendo pois inepto o requerimento executivo, por falta da indicação da causa de pedir.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Assim, em face das conclusões da alegação das Recorrentes, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[1], a questão a conhecer consiste em apurar se do requerimento executivo consta a indicação da causa de pedir, não enfermando de ineptidão por falta de causa de pedir.

III – Fundamentos

A – Dados a considerar
1 – Do requerimento executivo consta o seguinte:
- O exequente é legítimo portador de uma livrança no valor de € 5.909,33 assinada pela executada, com vencimento em 1 de Setembro de 2014, que ora se junta e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
- A referida Livrança não foi paga pela Executada na data do seu vencimento, nem posteriormente.
2 – Como título executivo é junta uma Livrança, preenchida no local e data de assinatura, respetivo vencimento e a inscrição (lápis) “2010.001890”, e contempla a seguinte declaração pré-redigida: “No seu vencimento pagarei por esta única via de livrança ao banco (…) Portugal, S. A. a quantia de cinco mil, quinhentos e nove euros e trinta e três cêntimos”.
3 – A Livrança apresenta assinatura atribuída à executada.

B – O Direito

O processo executivo alicerça-se no título executivo, no documento que lhe serve de base (cfr. art. 703.º do CPC), cabendo ao exequente instruir o requerimento executivo com cópia ou o original do título executivo (cfr. art. 724.º, n.º 4, do CPC). Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva – art. 10.º, n.º 5, do CPC. «O título executivo constitui pressuposto de caráter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão executiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Constitui, assim, a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto, assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação.»[2]

Os títulos executivos são documentos (escritos) constitutivos ou certificativos de obrigações que, mercê da força probatória especial de que estão munidos, tornam dispensável o processo declaratório para certificar a existência do direito do portador. O título executivo reside no documento e não no ato documentado, por ser na força probatória do escrito, atentas as formalidades para ele exigidas, que radica a eficácia executiva do título (quer o ato documentado subsista, quer não)[3]. Trata-se do documento do qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade de realização coativa da correspondente pretensão através de uma ação executiva; esse título incorpora o direito de execução, ou seja, o direito do credor a executar o património do devedor ou de um terceiro para obter a satisfação efetiva do seu direito à prestação (cfr. arts. 817.º e 818.º do CC).[4]

As espécies de títulos executivos estão enunciadas no art. 703.º do CPC. Entre elas constam os títulos de crédito, ainda que mero quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo – al. c) do n.º 1 do art. 703.º do CPC. Título de crédito é o «documento necessário para exercitar o direito literal e autónomo nele mencionado», sendo título de crédito em sentido estrito aquele que incorpora o direito a uma prestação em dinheiro (letra, livrança, cheque).[5] «Não existindo o direito cartular nem a correspondente obrigação cambiária (por exemplo, porque a ação cambiária prescreveu), não se está perante um título de crédito (em sentido próprio), mas sim perante um documento particular despido das caraterísticas da incorporação, literalidade e autonomia, que caraterizam e são essenciais à própria definição de título de crédito.»[6] Neste caso, conforme estatui a norma em apreço[7], a força executiva depende de a relação causal ou subjacente à sua emissão constar do documento ou ser alegada no requerimento executivo.

No caso que temos em mãos, o título executivo consiste numa livrança assinada pela executada embargante – a assinatura é-lhe atribuída e tal circunstância não é por ela posta em causa.

A livrança constitui um título de crédito à ordem que consubstancia uma promessa de pagamento pela qual o emitente, subscritor ou sacador se compromete a pagar determinada importância em certa data a certa pessoa. Ao subscritor incumbe assinar a livrança, assumindo a respetiva obrigação (art.º 75.º, n.º 7, da LULL), tornando-se responsável na mesma medida que o aceitante de uma letra (art.º 78.º da LULL). Por conseguinte, assinando a livrança, torna-se um obrigado cambiário que, em primeira linha, responde pelo montante titulado no título: “Com o aceite, o aceitante assume uma obrigação abstrata que nasce exclusivamente do ato formal da sua assinatura.”[8]

Ora, a livrança constitui título executivo quer tenha quer não tenha a qualidade de título de crédito; valendo como título de crédito, assumem relevância os princípios da incorporação, da literalidade e da abstração desses títulos; valendo como mero quirógrafo (documento particular assinado pelo seu autor), impõe-se que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo – cfr. art.º 703.º, n.º 1, al. c), do CPC.

Apresentada que foi a livrança como título executivo, mediante a alegação, pelo exequente, de que era o legítimo portador da mesma, subscrita pelo valor de € 5.909,33, assinada pela executada, com vencimento em 1 de Setembro de 2014, e que não foi paga pela Executada na data do seu vencimento, nem posteriormente, coloca-se a questão de saber se, neste caso concreto, o requerimento executivo é inepto por falta de causa de pedir.

Por via do disposto no artigo 724.º, n.º 1, al. e), do CPC, no requerimento executivo o exequente deve expor sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo. O regime legal vigente traduz a afirmação de que, no âmbito da ação executiva, nem sempre a causa de pedir se consubstancia no título executivo.

É certo que era entendido e sustentado, à luz dos preceitos legais originários insertos no CPC nesta matéria e quando os títulos executivos eram maioritariamente de natureza cambiária e, por isso, abstratos (cheques, letras e livranças), que a causa de pedir numa ação executiva era consubstanciada pelo próprio título executivo.[9] Atualmente, porém, temos por certo que a causa de pedir na ação executiva assenta na obrigação exequenda, que constitui o seu fundamento substantivo, sendo o título executivo o instrumento documental privilegiado da sua demonstração.[10]

Tratando-se, no entanto, de títulos que valham como títulos de crédito, verificando-se a unidade entre a relação jurídica cambiária e a relação jurídica subjacente (princípio da incorporação) e valendo a relação cambiária independentemente da causa que lhe deu origem (princípio da abstração), atento ainda o regime conjugado decorrente dos arts. 703.º, n.º 1, al. c) e 724.º, n.º 1, al. e), do CPC, cabe concluir que uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai.[11]

No caso em apreço, o título executivo consiste na livrança, enquanto título de crédito. Por conseguinte, prescinde da alegação, no requerimento executivo, dos factos constitutivos da relação subjacente, pelo que não se verifica a exceção dilatória da falta de causa de pedir.

Termos em que se conclui procederem integralmente as conclusões da alegação do recurso.

As custas recaem sobre a Recorrida – art.º 527.º, n.º 1, do CPC.

Concluindo: uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai.


IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, declarando-se a improcedência da exceção dilatória de falta de causa de pedir, cabendo ao tribunal recorrido proferir o despacho necessário à adequada ulterior tramitação do processo, em ordem à discussão e resolução das demais questões suscitadas nos autos.

Custas pela Recorrida.
Évora, 28 de Junho de 2017
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria da Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura
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[1] Cfr. arts. 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[2] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. 1.º, 3.ª edição, p. 33.
[3] Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 78 e 79.
[4] Ac. STJ de 14/10/2014 (Fernandes do Vale).
[5] Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, p. 3, 4, 13 e 14.\
[6] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. II, 2014, p. 185.
[7] Tomando posição pela corrente que era já maioritariamente defendida pela jurisprudência em face do regime legal decorrente da reforma operada pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro.
[8] Ac. TRL de 30.03.62, in Jur. Rel., 8.º, 289 e Pereira Coelho, Lições de Direito Comercial, 3.º, 9.
[9] Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol. I, p. 98; Lopes Cardoso, Manual da Ação Executiva, p. 23 e 29.
[10] Cfr., entre outros, Ac. STJ de 15/05/2003 (Salvador da Costa).
[11] Cfr. Ac. STJ citado e Ac. TRP de 10/02/2015 (Rui Moreira).