Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
488/14.2PBELV.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: ADVOGADO
OFENSAS À HONRA
IMUNIDADES
Data do Acordão: 03/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1 - Desde a prolação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 1 de Março de 1989 (in CJ ano 1989 tomo ll pag. 76) tem sido costume a jurisprudência repetir o esquema de possibilidades de comparticipação criminal de advogados em peças processuais, configurando três situações possíveis: « - Ou o advogado transfere para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse depois de o advertir expressamente das consequências que daí podem ocorrer e ambos serão co-autores do crime de difamação que vai ser cometido; - Ou, por seu alvedrio e entendimento é apenas o advogado o autor do escrito, sem qualquer advertência ao cliente, que vem a ser surpreendido por aquilo que sai a público e então, é só o advogado o autor do crime que é cometido; - Ou, finalmente, o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros para que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade, e que, dessa forma, não integrariam qualquer crime, e neste caso, o crime seria apenas do cliente.No primeiro caso temos uma comparticipação criminosa; no segundo um crime cometido apenas pelo advogado e no último um crime cometido apenas pelo cliente.»
2 - Sendo louvável, a sistematização exposta pode causar vícios de raciocínio se nos bastarmos com ela, como aliás já realçado em posteriores arestos, designadamente no acórdão da Relação de Coimbra de 14-02-2007 quando refere que “efectivamente embora estas sejam as hipóteses possíveis, está subjacente em todas elas que o mandatário tem conhecimento que os factos reproduzidos no articulado não correspondem à verdade e mesmo assim não se inibe de os reproduzir”. Ou seja, a sistematização – que é útil – presume factos desfavoráveis ao advogado para ficcionar a comparticipação sem que exista a base factual que permita fazer operar uma presunção de facto. Ficciona, portanto.

3 - O que nos remete, inexoravelmente, para a necessidade de ter em atenção o que efectivamente consta dos autos e que o advogado está no exercício do mandato judicial que tem características muito próprias e obriga a olhar para o artigo 180º do Código Penal (no caso) com outros olhos, sob pena de se negarem as virtudes inerentes ao exercício do dito mandato.

4 - Quanto à primeira realidade – se viciosamente associada à primeira hipótese supra dita, hipotéticamente configurada como comparticipação – está a presumir factos que os autos podem não permitir em termos indiciários na medida em que, como dito, se supõe que o advogado “tem conhecimento que os factos reproduzidos no articulado não correspondem à verdade”.

5 - O Código de Processo Civil, no seu artigo 150º, nº 2, veio consagrar um critério prático que concretiza uma causa de exclusão da ilicitude específica do mandato quando afirma que “não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”, norma que não se vê razão para limitar aos actos dirigidos por magistrados, mas a assumir uma natureza genérica, aplicável aos articulados e requerimentos, mesmo que para tal se tenha de chamar à colação o disposto no art. 31º, nº 1 e 2, al. b) do Código Penal.

6 - A imunidade não está dependente de uma ponderação de valores de compatibilização que tenha em vista evitar a liberdade de expressão do advogado, de forma que se possa afirmar que quando atinge a honra de alguém a imunidade já não opera. Essa sempre seria uma imunidade ridícula, que apenas existiria caso não ferisse ninguém. Só existiria nos casos em que seria inútil a sua existência.

7 - A imunidade existe para operar quando ofende mas a ofensa se justifica pela necessidade de defesa. A não ser assim a imunidade de advogado assemelhar-se-ia a certos seguros de saúde que implicam o pagamento de prémios mas que a seguradora cancela se o segurado ficar doente. No caso a “imunidade” existiria enquanto fosse desnecessária e ficaria cancelada quando fosse necessária.

8 - Assim, o juízo a formular não assenta numa ponderação igualitária e não se limita ao círculo liberdade de expressão do advogado versus direito à honra e consideração do visado pelo escrito. Isso é esquecer o básico em confronto. O juízo a formular exige a análise da necessidade do escrito em função da defesa de um direito e demanda a proporcionalidade entre esse dito por necessidade e aquelas honra e consideração.

(Sumário do relator)

Decisão Texto Integral: Processo n.º 488/14.2PBELV

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nestes autos de Instrução que corre termos no Tribunal Judicial de Setúbal – I. Local, SC, J2 - após encerramento do inquérito, os assistentes MJVGC e MAVC deduziram acusação contra MASR, imputando-lhe a prática de dois crimes de difamação, previstos e punidos pelos artigos 181º, nº 1 e 182º do Código Penal, cumulativamente com dois “crimes” de publicidade e calúnia, p. e p. pelo artigo 183º, n. 1, al., al. b), do mesmo diploma legal.

O Ministério Público determinou o arquivamento dos autos quanto ao arguido BB e aderiu às ditas acusações na parte em que imputam ao arguido a prática de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180º do Código Penal, mais pedindo que se considere sanada a nulidade das ditas acusações por não identificarem devidamente o arguido, remetendo-se essa identificação para os documentos de fls. 79 e ss.

A Mmª Juíza lavrou despacho a 29-04-2016 e decidiu declarar extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido MASR e determinou o oportuno arquivamento dos autos, tudo com fundamento na circunstância de as acusações não terem sido deduzidas contra todos os comparticipantes mas apenas contra o arguido (mandante) e, nessa medida, lhes faltar uma condição legal de procedibilidade, nos termos do artigo 115º, nºs 2 e 3 e artigo 117º do Código Penal.


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Inconformados com o assim decidido recorreram:

- a assistente MJVGC, com as seguintes conclusões (transcritas, apenas se corrigindo o lapso de numeração que passava de XXIII para XIV):

I) - O douto tribunal recorrido entende in casu que a peça processual subscrita por advogado, cfr. artigo 5º da acusação particular, - ao não ser alegado se o mesmo teve interferência do cliente - e, nessas circunstâncias, não sendo o arguido o autor da prática de tais factos, nem sendo alegado o seu conhecimento ou qualquer intervenção da sua parte, sempre seria de concluir pela não verificação do ilícito imputado ao arguido, por o mesmo ser da exclusiva responsabilidade do seu subscritor, o advogado.

II) - Mais refere a douta decisão sob recurso que mesmo que se subentendesse da acusação particular que o advogado agiu em representação do arguido, aquela peça processual é omissa a que o advogado desconhecia a natureza não verídica dos factos que assinalou - e, nessa situação, estar - se - ia perante uma situação de comparticipação.

III) - Não tendo sido deduzida acusação particular contra todos os comparticipantes, o tribunal a quo declarou extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido MASR.

IV) - Dos autos resulta que a assistente, nos pontos 9, 10, 11 e 17 da acusação particular, referiu ter tomado conhecimento da imputação, pelo arguido MASR, a seu filho de alegados comportamentos pedófilos, - os quais disse serem de conhecimento directo da assistente -, quer por intermédio de requerimento apresentado, pelo seu mandatário, junto do Tribunal de Família e Menores de Setúbal e, bem assim, da participação crime que o arguido efectuou junto dos Serviços do Ministério Público de Elvas, cfr. fls 132 e ss dos autos.

V) - Salientando, por esta via, uma cumplicidade por parte da Assistente quando esta, segundo afirma o arguido no ponto 11 do supra melhor identificado requerimento, se recusou a admitir aquela possibilidade e nada fez para evitar os contactos entre a menor e o seu irmão.

VI) - Isto é, o arguido MASR reportou factos difamatórios em requerimento dirigido a tribunal, cfr. requerimento apresentado no processo n.º 55/14.0TMSTB e também a orgãos de polícia criminal, cfr. despacho de arquivamento proferido no âmbito do processo n.º 21/14.6T9ELV, que correu termos junto da Secção de Inquéritos do Ministério Público junto do Tribunal de Comarca de P, fls 132 e ss.

VII) - Entendeu, no entanto, o tribunal a quo que não há condições de procedibilidade criminal uma vez que a assistente não apresentou acusação particular contra um dos comparticipantes, o advogado que subscreveu a peça processual difamatória.

VIII) - Defendendo aquele tribunal ainda que, se a assistente considerou que as expressões em causa tinham um conteúdo difamatório, não apresentando qualquer justificação que afastasse a intervenção activa ou objectiva do advogado que subscreveu o articulado processual, na dúvida, a responsabilidade criminal seria de ambos, advogado e recorrente, como co-autores da prática do crime de difamação.

IX) - Ao ter apresentado acusação particular apenas contra um dos arguidos, omitindo a apresentação de acusação particular também contra o advogado subscritor da aludida peça processual, tal omissão aproveitaria ao arguido MASR, nos termos do art. 115º, n.º 2 e 3 e 117º do C.P.

X) - Afigura-se-nos não fazer sentido a invocação da falta de uma condição legal de procedibilidade consagrada no referido normativo legal. No caso dos presentes autos não poderemos olvidar que estamos perante um mandato forense ou judicial, em que o mandatário age em nome de outrem, o mandante, o qual lhe conferiu poderes para o efeito, vertendo para as peças processuais aquilo que lhe é transmitido pelo mandante/cliente, com base numa relação de confiança estabelecida entre ambos.

XI) - Não partilhamos, com o respeito devido, do entendimento que, neste caso concreto, em que estamos perante peça processual subscrita por advogado, a acusação particular terá que ser apresentada obrigatoriamente contra aquele, quando se entenda que do conteúdo de tal peça resultam expressões com carácter difamatório.

XII) - Nessa perspectiva e face ao ordenamento jurídico vigente, analisado no seu todo, a responsabilidade jurídico criminal do mandatário forense ou judicial deverá considerar-se uma excepção ao princípio da indivisibilidade do direito de queixa.

XIII) - Em primeiro lugar há que atentar ao estipulado no artigo 208º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual, «a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça», onde se garante e assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato, regulando-se o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça.

XIV) - E também na Lei da Organização do Sistema Judiciário, n.º 62/2013, de 26 de Agosto, com a Rectificação n.º 42/2013, de 24 de Outubro, no n.º 2 do artigo 13º, que assegura aos advogados para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente o direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão.

XV) - Tal imunidade estava já prevista, nos mesmos termos, na anterior Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judicias, no seu art. 114º, revogada pela Lei referida no ponto antecedente.

XVI) - Poderá dizer-se que aquele normativo legal reforça o princípio de exclusão da ilicitude vertido no artigo 31º, n.º 2 do Código Penal. Este princípio correlaciona-se e concilia-se com o dever de urbanidade a que o advogado está obrigado ao exercer o patrocínio, com o direito do mesmo a ser vigoroso, arrojado, veemente e firme nas intervenções que faz, seja a nível de requerimentos, articulados ou alegações.

XVII) - Ao subscrever as peças processuais em representação dos seus clientes, mandantes, o advogado actua e fá-lo como mero procurador, transmitindo ao processo os factos que lhe são comunicados por aqueles, não tendo, por conseguinte, o “domínio dos factos”.

XVIII) - Quando intervém em representação judicial do seu cliente, o advogado não defende interesses próprios, mas sim alheios, no exercício profissional do mandato forense que lhe foi conferido, exactamente para discutir os interesses e direitos em colisão, o que terá que fazer, na maioria das vezes, de forma agressiva e mesmo incómoda para com os demais intervenientes.

XIX) - De não somenos importância é o estatuído no artigo 97º do Estatuto da Ordem dos Advogados, de que a relação entre o advogado e o cliente deve fundar-se na confiança recíproca, bem como o vertido no artigo 95º, no que se refere ao dever geral de urbanidade a que o advogado está obrigado.

XX) - Assim, face aos princípios gerais acolhidos no Estatuto da Ordem dos Advogados, "(...)que dá primazia ao princípio da liberdade plena de defesa dos interesses do cliente e seus reflexos na ordem jurídica, quando perante uma situação que poderá ser difamante, injuriosa ou ultrajante, afigura-se-nos mais acertado o raciocínio de que, por regra, o advogado é a “boca” do cliente e, por conseguinte, não lhe é exigível qualquer exercício de censura, quando aquilo que lhe foi transmitido expresse a defesa de um direito (...), in Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22-05-2013, WWW.dgsi.pt.

XXI) - Na esteira do douto acordão precedente, com interesse para os presentes autos, mais se diz que

"(...) O princípio da indivisibilidade da queixa significa, simplesmente, que a queixa deverá ser apresentada contra todos os comparticipantes conhecidos.

Não há dúvidas de que o sistema penal português consagrou o chamado princípio da indivisibilidade, ao referir que “O não exercício do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa” – n.º 2, do art.º 115º, do Código Penal.(...)

Este princípio da indivisibilidade da queixa - e da acusação – tem como objectivo evitar que o titular do direito de queixa escolha apenas um dos comparticipantes, perdoando aos demais, caso em que a perseguição teria então mais natureza pessoal do que em razão do crime praticado.

No nosso caso, temos uma situação em que se discute a eventual comparticipação criminosa (artigo 26.º, do CP), entre o advogado subscritor da peça dita injuriante e o respectivo mandante.

Estando em causa a prática de actos por advogado, importa fazer algumas considerações sobre o mandato.

O mandato é um contrato de prestação de serviços «pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra.» (artigo 1157.º, do Código Civil).

Como todos sabem, a advocacia tem um estatuto e regulamentação próprios que se sobrepõem ao regime do mandato consagrado no referido código.

O mandato judicial configura-se como um contrato atípico que se rege, no essencial, pelas normas do Estatuto da Ordem dos Advogados. (...)

(...) segundo a normalidade do desenvolvimento processual, para haver comparticipação num crime de difamação, numa peça processual, é necessário que exista um acordo prévio, mesmo que tácito, entre mandatário e mandante, para afirmar ou propalar factos inverídicos, ou seja, o conhecimento e vontade de realização do facto anti-jurídico, com consciência da ilicitude.

O mandatário forense, de acordo com as regras próprias da deontologia profissional, escreve na peça processual os factos que lhe são transmitidos pelo seu cliente, convencido de que correspondem à verdade.

Este é o princípio que deve estar subjacente na análise da questão.

Os princípios da boa-fé e da colaboração entre os intervenientes processuais impõem tal premissa, sob pena de se tornar perverso, à partida, o acesso aos Tribunais, sem prejuízo da necessidade de estar atento a eventuais desvios que, justamente devido à sua natureza, devem ser alegados e provados e não tomados aprioristicamente. (...)"

XXII) - Salvo o merecido respeito não há na queixa, ou resulta da acusação particular, a mínima referência a que o mandatário, ao transferir para a peça processual aquilo que lá consta, soubesse que afirmava ou propalava factos falsos. Não tendo fundamento para, em boa-fé, reputar verdadeiros esses factos inverídicos.

XXIII) - De igual modo, se dos autos resultasse que o crime fora praticado em comparticipação entre o ora arguido e o seu mandatário, que subscreveu o requerimento em causa, seria de considerar, sem dúvida, a falta de uma condição legal de procedibilidade, nos termos do artigo 115.º, n.º 3, do Código Penal, por não ter sido deduzida acusação particular contra o advogado subscritor do requerimento, com a consequente extinção do procedimento criminal.

XXIV) - Mas essa não é a realidade dos presentes autos.

XXV) - Em lado algum da acusação se escreveu que o advogado subscritor do requerimento sabia que as imputações que aí descreveu não correspondiam à verdade.

XXVI) - Aliás, não foi apresentado qualquer elemento no sentido de que as expressões difamatórias constantes do requerimento apresentado nos presentes autos e o referido no processo de inquérito com início nos orgãos de polícia criminal de Elvas, cfr. processo de inquérito n.º 21/14.6T9ElV, tivessem sido, de algum modo, congeminadas num conluio entre mandante e mandatário.

XXVII) - Pelo que se não verifica a falta de uma condição legal de procedibilidade, nos termos do artigo 115.º, n.º 3, do Código Penal, por não ter sido deduzida acusação particular contra a Exmo. Advogado que subscreveu o requerimento, com a consequente extinção do procedimento criminal.

XXVIII) - No mesmo sentido decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra in Acordão de 25.03.2015.

Tendo o arguido MASR cometido, quer em tribunal de família e de menores de Setúbal, quer nos orgãos de polícia criminal de Elvas, na forma consumada, dois crimes de difamação p. e p., nos artigos 180º, n.º 1, 182º agravados nos termos do artigo 183º, n.º 1, alínea b), todos do Código Penal.

XXIX) - Assim e com o devido respeito, o douto despacho, ora sob censura, violou os preceitos legais insertos nos artigos 115.º, n.º 3 ex vi do 117º e 26º, todos do Código Penal.

Termos em que se requer a V.ªs Excelências a procedência do presente recurso, revogando-se a douta decisão proferida no sentido aduzido nas conclusões.


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- o assistente MAVC, com as seguintes conclusões:

A - Não existem factos, indícios ou elementos que permitam concluir que o advogado subscritor das peças processuais o fez em conluio de esforços e objetivos com o mandante, actuando para além dos poderes conferidos pelo mandato forense.

B - A convicção da Mma. Juiz “a quo” fundou-se, em exclusivo, no facto de que, as peças são da autoria do advogado e considerando que o aí relatado é a expressão da sua vontade e conhecimento e não o “dar voz” ao cliente, em nome de quem advogado actua no exercício da sua profissão.

C - Não tendo o assistente de fazer menção expressa acerca do desconhecimento ou não da natureza não verídica dos factos que escreveu por parte do mandatário, pois tal, decorre dos próprios princípios constitucionais e da demais regulamentação da profissão de advogado, entendendo a doutrina e jurisprudência que apenas deverá ser feita menção expressa no caso em que se considere que estes foram violados e consequentemente, houve da parte do mandatário, um extrapolar dos poderes que lhe foram conferidos.

D - O mandatário agiu de acordo com as regras próprias da deontologia profissional.

E - Não sendo hipótese possível ou sequer, resultando indiciado, que existia um acordo prévio entre este e o mandante, para afirmação e propalação dos factos inverídicos.

F - Consequentemente não poderá decorrer dos autos que o crime de difamação foi praticado em comparticipação entre o mandante e o seu advogado, subscritor das peças processuais difamatórias referidas na queixa-crime, ao ser deduzida queixa só apenas contra o mandante.

H - Resultando sim, de forma inequívoca a prática pelo Arguido MASR, dos factos pelos quais o assistente deduziu acusação particular e que a douta Procuradora Adjunta acompanhou, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, previsto e punido pelo Art.º 180º do Código Penal.

I - Violando o despacho da Mma Juiz “a quo”, ora em crise, o legalmente estatuído e previsto nos art.º s 115º, n.º 3, 117º e 26º do Código Penal.

Termos em que e nos Demais de Direito, que por V.Exas doutamente serão supridos, deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando a Douta decisão recorrida, com as consequências legais daí decorrentes.


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O Ministério Público apresentou resposta aos recursos dos assistentes, concluindo:

1ª- O Ministério Público entende que assiste razão aos assistentes, motivo pelo qual, aliás, acompanhou as duas acusações particulares, determinando o arquivamento dos autos quanto à responsabilidade criminal do arguido ASPMF, desde logo, por ser legalmente inadmissível, atenta a ausência de acusação particular, tudo nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 285º n.º 1, 50º e 277º n.º 1 todos do CPP.

2ª- Considera o Min. Público que durante a investigação não foram recolhidos indícios suficientes, que nos permitam concluir que o mandatário / arguido ASPMF, foi para além do estatutariamente preconizado, no que se prende com a extensão do exercício da profissão ou, do mandado forense.

3ª- O mandatário ao transpor para peças processuais os fatos relatados pelo cliente, o arguido nos autos que segue acusado, agiu por dever decorrente do mandato que os liga ( cfr. art.º 1157º do Cód. Civil ), e tal não significa só por si que tenha agido em conluio de esforços com este, com a finalidade de propalar fatos que sabia serem falsos.

4ª-Não decorre da prova produzida nos autos, qualquer evidência que permita concluir que tenha existido acordo prévio, mesmo tácito, entre o mandante e o mandatário, para a afirmação de fatos difamatórios / inverídicos.

5ª-Por este motivo, considera o Min. Público que não decorre da fatualidade apurada nos autos que o crime de difamação tenha sido praticado em comparticipação entre o mandante e o seu advogado / o arguido ASPMF, subscritor das peças processuais difamatórias referidas na queixa-crime.

6ª- Assim, deverão os recursos apresentados pelos assistentes proceder.

Termos em que, deve ser dado provimento aos recursos dos assistentes e, consequentemente seja o despacho recorrido substituído por outro que admita as acusações particulares apresentadas pelos dois assistentes e acompanhadas pelo Ministério Público.


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Nesta Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência de ambos os recursos.

Observou-se o disposto no nº 2 do art. 417° do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

B.1 - São elementos de facto relevantes e decorrentes do processo, para além dos que constam do relatório, o teor do despacho judicial e os factos que dele constam.

É o seguinte o teor do despacho judicial de 29.04.2016:

«A assistente MJVGC e o assistente MAVC deduziram acusações particulares, respetivamente, a fls. 169 e ss. e a fls. 187 e ss., contra o arguido MASR, ali melhor identificado, imputando-lhe, cada um, a prática de crimes de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, nº 1 e 182º e de publicidade e calúnia, p. e p. pelo artigo 183º, nº 1, al. b) do Código Penal.
Nos termos do disposto no artigo 283º, nº 3 aplicável ex vi do artigo 285º, nº 3 do Código de Processo Penal, a acusação particular contém obrigatoriamente as indicações tendentes à identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, a indicação das disposições legais aplicáveis, a indicação das provas a produzir ou a requerer, nomeadamente o rol das testemunhas, dos peritos e dos consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respetiva identificação, e por fim a data e a assinatura.
E a acusação tem que incluir esses elementos sob pena de nulidade, conforme estatui o mesmo preceito.
A factualidade e sua incriminação delimitam a decisão e vinculam o Tribunal, caso contrário violar-se-ia o princípio da estrutura acusatória em que repousa o processo penal.
Importa, desde já salientar, que a “Publicidade e calúnia” consagrada no artigo 183º não constitui um ilícito autónomo, mas antes a agravação do tipo, entre outros, consagrado no artigo 180º do Código Penal. Estamos, assim, perante a imputação do crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, nº 1, agravado nos termos do artigo 183º, nº 1, al. b), ambos do Código Penal.

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Acusou a assistente MJVGC o arguido MASR, a fls. 169 e ss., nos seguintes termos:
- No âmbito do processo nº 55/14.0TMSTB, que correu seus termos na 1ª Secção de Família e Menores de Setúbal – J2, o «arguido apresentou um requerimento, por intermédio do seu legal representante onde, no ponto 3, afirma que a Assistente:
“movida por tenebrosas frustrações que, radicando-se em zonas profundas da personalidade, dão origem a incontida raiva que, com laivos de irracionalidade, descarrega sobre o seu antigo companheiro”
- E, continuando, no ponto 4 do mesmo, reitera ainda que
“Situação que é tanto mais perigosa quanto mais instável e insana for a mente onde tais frustrações se instalaram e desenvolvem”.
- Mais certifica ainda, no ponto 5 daquele requerimento, que a Assistente é mentirosa e deturpa a realidade.
- Arvorando, no ponto 9 do mesmo requerimento, que a a Assistente é “(...) uma mãe alucinada que não se importa de sacrificar a própria filha para satisfazer incontroláveis desejos de vingança, alimentados por uma mente perversa e perturbada, cuja sanidade cada vez mais parece necessário avaliar”.
- Culminando nos pontos 10 e 11 do supra melhor identificado requerimento, na afirmação circunstanciada de ter sobre o CC – filho mais velho da Assistente e aqui Assistente, “graves e fundadas suspeitas (...) de que possa molestar gravemente a sua filha DD pois já se apercebeu das tendências pedófilas que tal filho da requerente tem vindo a manifestar – algumas do seu conhecimento directo – que determinaram queixa apresentada nos Serviços do Ministério Público de Elvas (…)
- Salientando por esta via, uma cumplicidade por parte da Assistente quando esta, segunda afirma no ponto 11 do supra melhor identificado requerimento, se recusou a admitir aquela possibilidade e nada fez para evitar os contactos entre a menor e o seu irmão».
Por seu turno, acusou o assistente MAVC o arguido MASR, a fls. 187 e ss., nos seguintes termos:
- No âmbito do processo nº 55/14.0TMSTB, que correu seus termos na 1ª Secção de Família e Menores de Setúbal – J2, foi pelo «arguido apresentado um requerimento, por intermédio do seu legal representante onde, entre outras figuram as seguintes afirmações sobre a progenitora da menor e do Assistente:
“movida por tenebrosas frustrações que, radicando-se em zonas profundas da personalidade, dão origem a incontida raiva que, com laivos de irracionalidade, descarrega sobre o seu antigo companheiro”
“Situação que é tanto mais perigosa quanto mais instável e insana for a mente onde tais frustrações se instalaram e desenvolvem”.
“(...) uma mãe alucinada que não se importa de sacrificar a própria filha para satisfazer incontroláveis desejos de vingança, alimentados por uma mente perversa e perturbada, cuja sanidade cada vez mais parece necessário avaliar”.
- Culminando nos pontos 10 e 11 do supra melhor identificado requerimento, na afirmação circunstanciada de ter sobre o CC – aqui Assistente, “graves e fundadas suspeitas (...) de que possa molestar gravemente a sua filha Mariana pois já se apercebeu das tendências pedófilas que tal filho da requerente tem vindo a manifestar – algumas do seu conhecimento directo – que determinaram queixa apresentada nos Serviços do Ministério Público de Elvas (…)
- Afirmando que a progenitora era conivente com a situação ao recusar a admitir tal possibilidade nada fazendo para evitar os contactos entre a menor e o assistente».
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Resulta, assim, que a factualidade alegada em ambas as acusações particulares – e que, em abstrato, integrariam dois crimes de difamação (por os titulares dos bens jurídicos protegidos serem distintos) – se reporta a factos escritos em requerimento dirigido a tribunal, no processo nº 55/14.0TMSTB, que correu seus termos na 1ª Secção de Família e Menores de Setúbal – J2, subscrito por advogado, ASPMF, cuja cópia se encontra a fls. 33 e ss.
Contudo, e pese embora o referido advogado tenha assumido a qualidade de arguido nos presentes autos (fls. 78), as acusações particulares não se mostram contra si dirigidas, mas tão só e expressamente contra o arguido MASR.
Ambos os assistentes atribuem a autoria do escrito ao referido advogado (e o que é bem clarividente a fls. 34/40 dos autos).
Assim, há que ter em conta que:
- o escrito/peça processual – com expressões alegadamente de natureza ofensiva – foi subscrito por pessoa distinta daquele contra quem é dirigida a acusação particular, antes o tendo sido por um advogado;
- o autor do escrito/peça processual representava judiciariamente o aqui arguido, no âmbito de um processo judicial (nº 55/14.0TMSTB, que correu seus termos na 1ª Secção de Família e Menores de Setúbal – J2);
- os assistentes apenas deduzem acusação contra o aqui arguido, ali mandante;
- os assistentes não alegam na acusação particular que o mandatário (a que fazem alusão nos seus artigos 5º), desconhecia que não fosse verdade os factos que alegou no escrito/peça processual que elaborou e que tais factos lhe foram transmitidos pelo mandante, agora arguido.
Nos termos do artigo 26º do Código Penal “É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.
Para que haja comparticipação em termos de coautoria, o comparticipante há-de contribuir com a sua ação, conjugada com a dos outros, para a realização típica do evento qualificado como crime, ainda que não tenha participação em todos os atos que fazem parte daquele processo de realização; tem que ter o inteiro domínio do facto, ao seu nível (isto é, no respeitante ao que lhe cabia executar, em conformidade com o acordado entre todos); pressupondo a existência de uma decisão conjunta – e não necessariamente um acordo prévio – e uma execução também conjunta – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.09.2004 (Proc. nº 2505/04).
Sobre esta matéria, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05.03.2003 (processo nº 0213271), in www.dgsi.pt, que preconiza que “Quando numa peça processual sejam relatados factos ofensivos da honra de outrem, subscrito por advogado, de acordo com as informações prestadas pelo arguido seu cliente, e não tiver sido alegado (mesmo na acusação particular) que o advogado agiu no convencimento de que os factos que lhe foram relatados pelo cliente correspondem à verdade, a responsabilidade penal será de imputar a ambos (trata-se de um caso de comparticipação criminosa). Tendo a acusação sido deduzida contra o arguido cliente e já não contra o advogado, falta uma condição legal de procedibilidade (art. 115º, nº 2 do Cód. Penal), o que determina a extinção do procedimento criminal. Se o autor do escrito é apenas o advogado sem qualquer interferência do cliente que, inclusive, é surpreendido por aquilo que é difundido, o ilícito é de imputar exclusivamente ao advogado”.
No mesmo sentido, se pronuncia o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03.10.2006 (processo nº 29/2006-5), in www.dgsi.pt, onde se fez constar que “A afirmação em articulado processual ou é da autoria exclusiva do advogado ou deste e do mandante; se for exercido o respectivo procedimento criminal apenas contra o mandante, dado o disposto no nº 3 do art. 114º do Cód. Penal de 1982 – actual nº 2 do art. 115º - é de concluir pela desistência da queixa, se excedido o prazo da queixa contra o mandatário.”
Também no Acórdão da Relação de Guimarães, de 12.03.2007 (processo nº 2580/06-2), in www.dgsi.pt, se conclui que “porque a assistente não deduziu acusação particular contra todos os comparticipantes, falta uma condição legal de procedibilidade, o que importa a declaração de extinção do procedimento criminal”.
No caso em apreço, como se viu, a peça processual é da autoria do advogado (artigos 5º das acusações particulares e cfr. fls. 34/40), não sendo sequer alegado se o mesmo teve interferência do cliente – e, nessas circunstâncias, não sendo o arguido o autor da prática de tais factos, nem sendo alegado o seu conhecimento ou qualquer intervenção da sua parte, sempre seria de concluir pela não verificação do ilícito imputado ao arguido, por o mesmo ser da exclusiva responsabilidade do seu subscritor, o advogado.
No entanto, mesmo que se subentenda da acusação particular, que o advogado agiu em representação do arguido, aquela peça processual é totalmente omissa que o advogado desconhecia a natureza não verídica dos factos que escreveu – e, nessa situação, estaríamos perante uma situação de comparticipação.
Tendo presente que a acusação particular não foi deduzida contra todos os comparticipantes, mas apenas contra o arguido (mandante), falta uma condição legal de procedibilidade, nos termos do artigo 115º, nºs 2 e 3 e artigo 117º do Código Penal.
Face ao exposto, declaro extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido MASR e determino o oportuno arquivamento dos autos.
Notifique.»
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B.2 – Sendo o objecto do recurso penal delimitado pelas conclusões da respectiva motivação, a questão abordada nos recursos reconduz-se a apurar se deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por despacho que aceite não faltar uma condição legal de procedibilidade, nos termos do artigo 115º, nºs 2 e 3 e artigo 117º do Código Penal.

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B.3 – Pelo menos desde que foi lavrado o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 1 de Março de 1989 (in CJ ano 1989 tomo ll pag. 76) tem sido costume a jurisprudência repetir o esquema, supostamente exclusivo, de possibilidades criminais no horizonte processual do advogado em casos que tais, com base na ideia de que “o advogado serve para joeirar o que pode sair para o conhecimento de outras pessoas ou para os processos, dada a sua posição objectiva e os seus conhecimentos técnicos”.

E assim, ligando aquela técnica agrícola ao destino dos advogados, afirmava aquele aresto existirem:

«três situações possíveis:

- Ou o advogado transfere para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse depois de o advertir expressamente das consequências que daí podem ocorrer e ambos serão co-autores do crime de difamação que vai ser cometido;

- Ou, por seu alvedrio e entendimento é apenas o advogado o autor do escrito, sem qualquer advertência ao cliente, que vem a ser surpreendido por aquilo que sai a público e então, é só o advogado o autor do crime que é cometido;

- Ou, finalmente, o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros para que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade, e que, dessa forma, não integrariam qualquer crime, e neste caso, o crime seria apenas do cliente.

No primeiro caso temos uma comparticipação criminosa; no segundo um crime cometido apenas pelo advogado e no último um crime cometido apenas pelo cliente.»

Sendo louvável, a sistematização exposta pode causar, no entanto, vícios de raciocínio se nos bastarmos com ela, como aliás já realçado em posteriores arestos, designadamente no acórdão da Relação de Coimbra de 14-02-2007 (rel. Ataide das Neves, proc. 1.544/04.0TACBR.C1) quando refere que “efectivamente embora estas sejam as hipóteses possíveis, está subjacente em todas elas que o mandatário tem conhecimento que os factos reproduzidos no articulado não correspondem à verdade e mesmo assim não se inibe de os reproduzir”.

Ou seja, a sistematização – que é útil – presume factos desfavoráveis ao advogado para ficcionar a comparticipação sem que exista a base factual que permita fazer operar uma presunção de facto. Ficciona, portanto.

O que nos remete, inexoravelmente, para a necessidade de ter em atenção duas realidades:

a) - uma, o que efectivamente consta dos autos e ter presentes os princípios de processo penal;

b) - outra, que o advogado está no exercício do mandato judicial que tem características muito próprias e obriga a olhar para o artigo 180º do Código Penal (no caso) com outros olhos, sob pena de se negarem as virtudes inerentes ao exercício do dito mandato.

Quanto à primeira realidade – se viciosamente associada à primeira hipótese supra dita, hipotéticamente configurada como comparticipação – a mesma está a presumir factos que os autos podem não permitir em termos indiciários na medida em que, como dito, se supõe que o advogado “tem conhecimento que os factos reproduzidos no articulado não correspondem à verdade”.

No caso sub iudicio essa presunção hominis, que também foi feita, não é permitida. Não é possível, com os indícios recolhidos, concluir que o advogado soubesse que os factos que fez constar do articulado não correspondiam à verdade. Ou que, não constando da acusação que o advogado desconhecia a natureza não veridica dos factos que escreveu se está perante uma situação de comparticipação.

Logo, afastar a ideia de comparticipação adiantada pelo citado aresto e pelo tribunal recorrido é um imperativo, por mais de uma razão.

Desde logo porquanto se configura como uma mera hipótese, uma abstracção jurídica.

Depois por se afirmar como uma impossibilidade factual. Não se indicia!

Por fim, nem consta da acusação que o advogado soubesse da “não-verdade” dos factos e suspeitas que fez constar do requerimento! E tanto basta para que seja afastada.

Caso se indiciasse tal facto, o saber da inverdade, deveria constar da acusação. Não constando não poderia o tribunal nesta fase – em atenção ao princípio do acusatório – concluir pela indiciação de factos não constantes da acusação, devendo reservar-se essa posição para a audiência de julgamento onde, já sem as amarras do acusatório, lhe era lícito formular juízos de procedência ou improcedência factual e daí retirar as devidas ilações, mesmo que processuais.

Juízo e ilações que não se podem formular e retirar em fase de admissão de instrução ou de despacho de recebimento de acusação. Trata-se de um juízo de facto vedado nessas fases processuais. Consequentemente, inviabilizadas as ilações de direito.

E o acórdão da Relação de Coimbra de 14-02-2007 supra citado (cujo sumário é razoavelmente infeliz por sugerir uma pobreza de conteúdo que é negada pela sua completa leitura) afirma, com toda a razão, que contrariamente ao presumido em arestos que cita, se deve partir da ideia contrária:

«E porque não abordar a questão no sentido inverso? Só quando constar dos autos e da acusação que o mandatário tinha conhecimento do carácter difamante das expressões, por não corresponderem à verdade, é que se verifica a comparticipação criminosa.»

Duas ordens de razões confirmam o acerto desta asserção.

Uma, de índole eminentemente processual, que não se presume a prática de um crime com base numa abstracção nem o arguido pode ser prejudicado com o ónus de ter de provar que desconhecia factos que o incriminam.

Outra, de índole mais plúrima, que reconhece ao exercício do mandato judicial um grau variável de imunidade no seu exercício, desde o artigo 208º da Constituição da República Portuguesa ao afirmar que a “A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça”.

Até à Lei da Organização do Sistema Judiciário, Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que no seu artigo 13.º, nº 2, al. b), assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos actos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça concretizando que, para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente (no que ao caso interessa) [b)] “o direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto da profissão”.

Será, no entanto, o Código de Processo Civil que, no seu artigo 150º, nº 2, virá a consagrar um critério prático que concretiza uma causa de exclusão da ilicitude específica do mandato quando afirma que “não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”, norma que não se vê razão para limitar aos actos dirigidos por magistrados, mas a assumir uma natureza genérica, aplicável aos articulados e requerimentos, mesmo que para tal se tenha de chamar à colação o disposto no art. 31º, nº 1 e 2, al. b) do Código Penal.

Há, portanto, que fazer uso dos critérios da necessidade e da proporcionalidade para balancear o uso da linguagem e as necessidades de defesa de direitos e, com “concretude” e tendo presentes as circunstâncias do caso, emitir esse juízo de necessidade e proporcionalidade adequado à defesa da causa.

Isto pressupõe uma certeza: que o advogado supõe o acerto da defesa da causa e, por isso, beneficia da dita imunidade.

Porque se o contrário ocorre, ideia também realçada pelo citado aresto da Relação de Coimbra, “se o advogado conhecedor do carácter difamante de uma qualquer descrição, por não corresponder à verdade, opta por transcrevê-la em articulado, incorre em responsabilidade criminal. Mas neste caso viola flagrantemente o dever de urbanidade a que está sujeito e como tal perde a protecção legal que lhe é concedida”.

De notar que desta forma se entende e expressa a ideia de que a imunidade não está dependente de uma ponderação de valores de compatibilização que tenha em vista evitar a liberdade de expressão do advogado, de forma que se possa afirmar que quando atinge a honra de alguém a imunidade já não opera. Essa sempre seria uma imunidade ridícula, que apenas existiria caso não ferisse ninguém.

Ou seja, só existiria nos casos em que seria inútil a sua existência. Porque, entende-se, a imunidade existe para operar quando ofende mas a ofensa se justifica pela necessidade de defesa. A não ser assim a imunidade de advogado assemelhar-se-ia a certos seguros de saúde que implicam o pagamento de prémios mas que a seguradora cancela se o segurado ficar doente. No caso a “imunidade” existiria enquanto fosse desnecessária e ficaria cancelada quando fosse necessária.

Assim, o juízo a formular não assenta numa ponderação igualitária e não se limita ao círculo liberdade de expressão do advogado versus direito à honra e consideração do visado pelo escrito. Isso é esquecer o básico em confronto.

O juízo a formular exige a análise da necessidade do escrito em função da defesa de um direito e demanda a proporcionalidade entre esse dito por necessidade e aquelas honra e consideração.

Mas estes são já entendimentos a fazer operar em fase diversa na medida em que os recursos se balizam, únicamente, na questão da eventual comparticipação, não sendo lícito ao tribunal de recurso pronunciar-se sobre matéria que não foi objecto de decisão em primeira instância e, logo, não pode ser objecto de recurso. Os considerandos feitos justificam-se pela necessidade de enquadramento da questão central a decidir.

Basta-nos, desta forma, afirmar que em função das acusações deduzidas não é possível formular um juízo de existência de comparticipação.

Neste sentido é ver os acórdãos da Relação de Coimbra:

- de 09-11-2011 (rel. Luís Teixeira, proc. 129/10.7TATMR.C1):

“Face a um articulado processual, subscrito por advogado, alegadamente contendo factos difamatórios, e não havendo elementos que permitam concluir por qualquer forma de comparticipação, o facto de não ter sido apresentada queixa contra o mandatário do arguido em nada obsta ao prosseguimento do procedimento criminal contra o arguido.”

- de 22-05-2013 (rel. José Eduardo Martins, proc. 365/10.6T3OBR.C1) cujo sumário parcial, partindo destas constatações no texto do acórdão:

«O mandatário forense, de acordo com as regras próprias da deontologia profissional, escreve na peça processual os factos que lhe são transmitidos pelo seu cliente, convencido de que correspondem à verdade.

Este é o princípio que deve estar subjacente na análise da questão.

Os princípios da boa-fé e da colaboração entre os intervenientes processuais impõem tal premissa, sob pena de se tornar perverso, à partida, o acesso aos Tribunais, sem prejuízo da necessidade de estar atento a eventuais desvios que, justamente devido à sua natureza, devem ser alegados e provados e não tomados aprioristicamente.»

conclui:

III - Nestes termos, para que haja comparticipação num crime de difamação, cometido através de peça processual, é necessário que exista um acordo prévio, mesmo tácito, entre mandatário e mandante, para afirmação ou propalação de factos inverídicos.

IV - Consequentemente, se dos autos não decorre que o crime de difamação foi praticado em comparticipação entre o mandante e o seu advogado, subscritor da peça processual difamatória, ao ter sido deduzida queixa apenas contra o primeiro, não se verifica a falta da condição de procedibilidade consignada no n.º 3 do artigo 115.º do CP.

De onde se deve retirar inexistirem no caso em apreciação elementos que permitam afirmar que ocorre a falta da condição de procedibilidade apontada pelo despacho recorrido.

Do que decorre serem procedentes os recursos interpostos no sentido de que deve ser lavrado novo despacho que assuma a ausência de indícios de comparticipação e de inexistência da apontada condição de procedibilidade na medida em que este tribunal se não pronuncia sobre outras questões que se podem suscitar, designadamente a errada qualificação por crime inexistente que mais não é do que uma agravante.


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C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto e em determinar seja lavrado despacho que assuma a ausência de indícios de comparticipação e de inexistência da apontada condição de procedibilidade.

Notifique.

Sem tributação.

Évora, 07 de Março de 2017 (Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

António Condesso