Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5543/16.1T8STB.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
MÁ FÉ
Data do Acordão: 05/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Verifica-se o comportamento intencional e doloso suscetível de ser objeto de impugnação pauliana quando aquele que está prestes a constituir-se devedor, dois dias antes da data da constituição do crédito, declara doar 10 bens imóveis que constam no seu património, com o intuito de diminuir as garantias patrimoniais do futuro credor.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Autor: Banco (…), SA

Recorridos / Réus: (…), (…), (…) e (…)

Trata-se de uma ação declarativa de condenação através da qual o A pretende fazer operar a impugnação pauliana, decretando-se a ineficácia, em relação a si, da doação efetuada pelos 1.º e 2.ª RR aos 3.ª e 4.º RR dos imóveis descritos na p.i., podendo o A executar os referidos bens no património dos 3.ª e 4.º R na medida em que tal seja necessário para obter o pagamento integral do seu crédito e praticar atos de conservação de garantia patrimonial.

II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a ação totalmente improcedente, absolvendo os RR do pedido.

Inconformado, o A apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que decrete a procedência da impugnação pauliana. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«a) Mal andou o douto tribunal a quo ao decidir como decidiu, que julgou totalmente improcedente os pedidos formulados pelo Banco Apelante, porquanto, considerou que o crédito daquele é posterior ao acto impugnável, a doação, e considerou não existir dolo por parte dos Réus;
b) Salvo o devido respeito, o Banco Apelante não se pode conformar com esta douta Sentença, pois considera que a mesma não fez uma correcta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, conforme a seguir se demonstrará;
c) O douto Tribunal, a quo, considerou, apesar dos factos que julgou provados, que “o direito de crédito cambiário do A. constituiu-se após as doações em causa (…)”, pelo que não estaria preenchido o pressuposto da anterioridade do crédito ao acto impugnado exigido pela alínea a) do artigo 610º do C.C.;
d) Na situação, in casu, o que se pretende é a impugnação da doação feita pelos 1º e 2º Réus aos filhos, aqui 3º e 4º Réus, uma vez que à data da doação o Banco Apelante era credor do 1º Réu, enquanto avalista de diversos créditos concedidos à Empresa, (…) Com. Internacional S.A., da qual era administrador;
e) Resultou provado nos autos que o crédito de € 1.000.000,00 foi concedido para regularizar responsabilidades anteriormente assumidas pela (…) e avalizadas pelo 1º Réu, (…);
f) Como resulta do contrato junto com a petição inicial sob o doc. n.º 2 “…este Banco aceita conceder a V. Exas uma facilidade de crédito sob a forma de empréstimo, destinado à regularização de responsabilidades e que se regerá pelas condições gerais de crédito do Banco, subscritas por V. Exas em 10-4-2002…”, ou seja, estamos perante um caso típico de restruturação de dívida;
g) No entanto o douto Tribunal, a quo, não teve em consideração todas as anteriores relações entre as partes, que o 1º Réu avalizou;
h) A douta decisão em causa, smo, apenas faria sentido se estivéssemos perante um crédito “novo”, o que não acontece aqui, já que todos os pressupostos negociais advêm de anteriores relações comerciais entre as partes;
Contudo, e mesmo que assim não se entenda,
i) Estão provados os seguintes factos:
“12. Dessa doação resultou, a impossibilidade de o A. obter a satisfação ainda que parcial do seu crédito.
13-a) As doações foram realizadas com o intuito de diminuir as garantias patrimoniais do A.”;
j) Tendo em conta os factos provados nos autos podemos então concluir, à semelhança do que faz o douto Tribunal, a quo, que, a doação foi realizada apenas com o intuito de diminuir as garantias patrimoniais do Banco Apelante, uma vez que os Réus não conseguiram provar que, o facto de terem realizado a escritura de Doação dois dias antes da formalização do contrato de empréstimo, se ficou a dever a uma “partilha em vida”;
k) Assim sendo, parece-nos evidente que a doação, embora celebrada 2 dias antes da formalização do contrato de empréstimo, foi realizada dolosamente “com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor” como dispõe o artigo 610º alínea a) 2ª parte do C.C.;
l) Por este motivo, e mesmo que não se entenda que o critério da anterioridade, exigido na primeira parte da aliena a) do artigo 610º do C.C esteja preenchido, facilmente se constata que os pressupostos da 2º parte do alínea a) do artigo 610º do C.C. se mostram preenchidos;
m) E não serão necessários grandes argumentos para se perceber esta posição, se tivermos em conta que um crédito de € 1.000.000,00 (um milhão de euros) não é negociado e formalizado no prazo de 2 dias;
n) Estamos por isso em querer, salvo o devido respeito, que o douto Tribunal, a quo, entra em contradição na decisão, ao considerar como provado no ponto 13. a) da douta Sentença recorrida “As doações foram realizadas com o intuito de diminuir as garantias patrimoniais do A.”, mas concluindo que o acto doloso, previsto na 2ª parte da alínea a) do artigo 610º do C.C. não se mostra preenchido;
o) De facto, nos actos gratuitos a impugnação procede mesmo que as partes estejam de boa-fé, não se exigindo ao credor que prove que os devedores e terceiros estejam de má-fé, ao contrário de um acto oneroso, em que ambas as parte obtém vantagem reciprocas e por isso o credor não vê, à partida, as suas garantias diminuídas, tendo por esse motivo de fazer prova que o acto foi realizado com o intuito de o prejudicar- neste sentido, o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-5-2015, no processo nº 903/11.7TBFND.C1;
p) Pelo exposto, não concordamos com a interpretação feita pelo douto Tribunal, a quo, quando refere que “…o dolo, no caso, haveria de traduzir-se na criação da aparência, através de artifícios, sugestões empregues pelo devedor no sentido de fazer crer ou manter o credor em erro de que o seu património tem uma determinada extensão, é composto por determinados bens, sem correspondência com a realidade, o que, como acima se assinalou, não aconteceu.”, porquanto, a conduta que se configura, neste caso, como dolosa é o facto de o devedor ter a consciência do prejuízo que iria causar ao credor com a doação;
q) De facto, a conduta dolosa exigida na 2ª parte da alínea a) do art. 610º do C.C, não é, como referido na douta Sentença recorrida, “a criação da aparência, através de artifícios, sugestões empregues pelo devedor no sentido de fazer crer ou manter o credor em erro…” sobre o património que realmente existe na sua esfera patrimonial, mas sim um dolo que se traduz na consciência do prejuízo que o acto irá causar ao credor;
r) Dolo esse, que no entendimento do Banco Apelante se mostra provado nos presentes autos;
s) Mostrando-se igualmente provados os restantes requisitos da impugnação pauliana definidos no artigo 610º, n.º 1, do C.C, devendo, por esse motivo, ser alterada a douta Sentença recorrida.»

Os Recorridos apresentaram contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, já que se não se verificam todos pressupostos do art.º 610.º do CC, pois as doações precederam a constituição do crédito por parte do Réu (…) e inexistiu conduta dolosa por parte dos RR.

Assim, atentas as conclusões da alegação de recurso, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[1], são as seguintes as questões a decidir, salvo prejudicialidade decorrente do anteriormente apreciado:
- da anterioridade do crédito do Recorrente relativamente aos atos de disposição dos imóveis;
- da conduta dolosa dos RR atuando com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor.

III – Fundamentos

A – Os factos provados em 1.ª Instância, que não foram impugnados em sede de recurso:
1. A 17 de Dezembro de 2004 o Banco, ora A., celebrou com a sociedade “(…) Com. Internacional, S.A.” uma linha de crédito designada de “Contrato (…)”, até ao limite máximo de € 1.000.000,00 (um milhão de euros).
2. No dia 14 de Novembro de 2011, o referido contrato sofreu um aditamento às condições gerais e particulares.
3. A 10 de Agosto de 2012, o Banco ora A., celebrou com a sociedade “(…) Com. Internacional, S.A.”, uma facilidade de crédito, sob a forma de empréstimo, destinado à regularização de responsabilidades anteriormente assumidas pela sociedade, no montante de € 1.000.000,00 (um milhão de euros).
4. O referido empréstimo funcionaria através de uma conta aberta em nome da sociedade supra referida com o n.º (…), sendo o montante mutuado creditado na conta de depósito à ordem n.º (…).
5. No âmbito do já identificado contrato, a sociedade “(…) Com. Internacional, S.A.” subscreveu e entregou ao Banco, uma livrança preenchida e também avalizada pelo 1º Réu, (…), e também por (…) e (…), no valor de € 1.192.260,60, emitida em 10.08.2012 e com vencimento em 28.04.2014.
6. A sociedade subscritora da dita livrança foi declarada insolvente nos autos que sob o n.º 1415/13.0TYLSB correram os seus termos no 4.º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa.
7. O A. reclamou o seu crédito nos autos de insolvência acima aludidos.
8. O Banco A. instaurou ação executiva de pagamento de quantia certa contra os avalistas da referida livrança, processo que corre os seus termos sob o número 585/16.0T8ALM, na Comarca de Lisboa – Almada – Inst. Central – 2.ª Sec. Execução J1.
9. Até à presente data, o Banco A. não logrou obter qualquer pagamento por conta da dívida mencionada nos artigos anteriores.
10. Por escritura pública de 8 de Agosto de 2012, lavrada no Cartório Notarial de Almada, os 1.º e 2.º RR doaram aos 3.º e 4º RR, os seguintes bens imóveis:
a - Prédio Urbano sito na Rua das (…), n.º 7, da Freguesia e concelho da Moita, descrito na conservatória do registo predial da Moita sob o número (…) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…).
b - Fração Autónoma designada pela letra B, correspondente a rés-do-chão esquerdo, com entrada pelo n.º 11, destina a comércio, no prédio urbano sito na Rua (…), n.ºs 7, 9 e 11 da freguesia de Alhos Vedros, concelho da Moita descrito na conservatória do registo predial da Moita sob o número (…) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…).
c - Fração Autónoma designada pela letra A, correspondente a rés-do-chão, com entrada pelo n.º 15, destina a comércio, no prédio urbano sito na Rua (…), n.ºs 13 e 15 da freguesia de Alhos Vedros, concelho da Moita descrito na conservatória do registo predial da Moita sob o número (…) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…).
d - Prédio Urbano sito em (…), Freguesia de Alhos Vedros, concelho da Moita, composto por: a) edifício rés-do-chão e 1º andar para habitação, dependência e quintal; b) edifício de rés-do-chão para habitação e quintal. Descrito na conservatória do registo predial da Moita sob o número (…) e inscrito na matriz predial urbana sob os artigos (…) e (…), respetivamente.
e - Fração Autónoma designada pela letra J, correspondente ao 1º andar, n.º 104, para habitação, um lugar de estacionamento e uma arrecadação na cave, sito na Rua (…), 90, Blocos A e B, Freguesia da Quarteira, concelho de Loulé, descrito na conservatória do registo predial de Loulé sob o número (…) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…).
11. Na mesma escritura pública, os 1.º e 2.º RR doaram ao 4º R., os seguintes bens imóveis:
f - Fração Autónoma designada pela letra A, correspondente a cave frente, do prédio urbano, sito na Rua (…), n.º 2, freguesia de Setúbal (S. Sebastião), concelho da Setúbal descrito na conservatória do registo predial de Setúbal sob o número (…) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…).
g - Fração Autónoma designada pela letra A, correspondente à cave, no prédio urbano sito na Rua (…), n.º 2, da freguesia de Alhos Vedros, concelho da Moita descrito na conservatória do registo predial da Moita sob o número (…) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…).
h - Fração Autónoma designada pela letra B, correspondente a rés-do-chão, com entrada pelo n.º 2-E, da Av. (…), no prédio urbano sito na Av. (…), n.ºs 2-C, 2-D e 2-E, da freguesia de Alhos Vedros, concelho da Moita descrito na conservatória do registo predial da Moita sob o número (…) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…).
I - Fração Autónoma designada pela letra AD, correspondente ao piso três e mezzanine, Bloco A, constituída pelo Aparamento tipo T1,no prédio Urbano denominado Edifício Apartamentos da (…), sito em (…), lote 3.1, da freguesia do (…), concelho de Grândola, descrito na conservatória do registo predial de Grândola sob o número (…) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…).
J - Fração Autónoma designada pela letra H, correspondente ao 1º andar frente, no prédio urbano sito em (…), Gaveto da Rua (…) com a Av. (…), Freguesia da Quarteira, concelho de Loulé, descrito na conservatória do registo predial de Loulé sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…).
12. Dessa doação resultou a impossibilidade de o A. obter a satisfação ainda que parcial do seu crédito.
13. A Ré (…) sofreu de doença oncológica.
13 - a) As doações foram realizadas com o intuito de diminuir as garantias patrimoniais do A.
14. Aquando da escritura pública de 10 de Agosto de 2012, foram constituídas a favor da ora Autora hipotecas voluntárias sobre as frações A e B da descrição predial (…) da 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira, correspondente ao Artigo Matricial (…), as quais foram constituídas para garantia de todas as responsabilidades da sociedade (…), SA.
15. A sociedade (…), SA é proprietária, para além das frações A e B, que têm o valor patrimonial global de € 668.170,00, das frações C e D, com o valor patrimonial global de € 1.990.940,00.

B – O Direito

Da anterioridade do crédito do Recorrente relativamente aos atos de disposição dos imóveis

A impugnação pauliana insere-se no conjunto de meios colocados à disposição dos credores para evitarem a frustração da posição de segurança que constitui a garantia patrimonial, enquanto expectativa jurídica do direito de executar o património do devedor para satisfação dos seus créditos. Este direito está associado ao princípio enunciado no art.º 601.º do CC, de que pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens penhoráveis do devedor, sendo este princípio que traduzem as noções de responsabilidade patrimonial e de garantia geral, comum, ou patrimonial dos credores[2].

Dispõe o art.º 610.º do C.C. que os atos que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:
- ser o crédito anterior ao ato ou, sendo posterior, ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
- resultar do ato a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.

Visando a impugnação pauliana manter o património-garante ao alcance do credor nos limites que assegurem a satisfação dos seus interesses, é condição para o seu exercício a existência de um crédito que efetivamente justifique o seu acionamento.

Tratando-se de ato oneroso, só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má-fé, entendendo-se por má-fé a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor. Mas se se tratar de um ato gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa-fé – art. 612.º n.ºs 1 e 2 do CC. E a doação é, por definição, um negócio gratuito: assenta na atribuição patrimonial geradora de um enriquecimento na esfera jurídica do donatário, atribuição essa que é gratuita pois inexiste um correspetivo de natureza patrimonial; é feita à custa do património do doador que resulta, por via disso, diminuído, com espírito de generosidade ou espontaneidade oposto a espírito de necessidade ou de dever.[3]

O Recorrente sustenta estar demonstrada a anterioridade do crédito de que é titular relativamente às doações realizadas pelos 1.º e 2.º RR aos 3.ª e 4.ª RR. Invoca que à data em que foram realizadas as doações já era credor do 1.º R, enquanto avalista de diversos créditos concedidos à sociedade (…), de quem era administrador, sendo certo que resultou provado que o crédito de 1 M € foi concedido para regularizar responsabilidades anteriormente assumidas por (…) e avalizadas pelo 1.º R (…).

Compulsados os factos provados, constata-se estar assente que:
- a 10 de Agosto de 2012, o Banco celebrou com a sociedade “(…) Com. Internacional, S.A.” uma facilidade de crédito, sob a forma de empréstimo, destinado à regularização de responsabilidades anteriormente assumidas pela sociedade, no montante de € 1.000.000,00 (um milhão de euros).
- no âmbito desse contrato, a sociedade “(…) Com. Internacional, S.A.” subscreveu e entregou ao Banco, uma livrança preenchida e também avalizada pelo 1º Réu, (…), e também por (…) e (…), no valor de € 1.192.260,60, emitida em 10.08.2012 e com vencimento em 28.04.2014;
- os bens imóveis foram doados pelos 1.º e 2.ª RR aos 3.ª e 4.º RR a 8 de Agosto de 2012.

Não está já provado que 8 de Agosto de 2012 o 1.º R fosse avalista de créditos concedidos pelo Recorrente, que figurasse como devedor nas responsabilidades que foram objeto de regularização por via do crédito concedido a 10 de Agosto de 2012. Donde, o crédito que constitui fundamento para a impugnação pauliana exercitada pelo Recorrente nestes autos é o crédito decorrente da livrança avalizada pelo 1.º R, emitida a 10/08/2012. Crédito esse posterior ao ato de disposição de património, realizado a 08/08/2012.

Da conduta dolosa dos RR atuando com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor

Sendo o crédito posterior ao ato que envolve a diminuição da garantia patrimonial do crédito, importa apurar se foi realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor (cfr. art. 610.º, al. a), do CC), para o que é indiferente se o ato apresenta natureza gratuita ou onerosa. Requisito diverso da má-fé a que se refere o art. 612.º, n.ºs 1 e 2, do CC, a ter em conta no caso de o ato praticado constituir ato oneroso.

Ora, por via da referida al. a) do art. 610.º do CC, a impugnação pauliana pode ter por objeto atos realizados antes do nascimento do crédito «desde que aos mesmos presidisse uma intenção preordenada de impedir a futura satisfação daquele, sendo realizados dolosamente.»[4] Para além da intencionalidade de impedir a satisfação do crédito futuro, exige-se a conduta dolosa, ou seja, o emprego de sugestão ou de artifício com intenção ou consciência de induzir ou manter outrem em erro – cfr. art. 253.º, n.º 1, do CC. O requisito do comportamento doloso a que alude o art. 610.º, al. a), do CC limita a utilização da impugnação pauliana «às hipóteses em que o devedor não só pretendeu evitar que o bem retirado do seu património viesse a responder pela satisfação duma obrigação a contrair, mas também agiu de modo a que o credor continuasse erradamente convencido, ou se convencesse, que esse bem se mantinha no seu património, garantindo o cumprimento da obrigação a contrair.»[5]

Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela[6], «o dolo supõe, na verdade, a intenção de enganar (cfr. art. 253.º). Quer-se, por exemplo, fazer crer ao credor que os bens ainda existem no património do devedor à data em que foi constituído o crédito.»

No caso em apreço, o crédito do Recorrente sobre o 1.º R constitui-se a 10/08/2012 por via da livrança por este avalizada, com a referida data de emissão, visando garantir o empréstimo nessa data concedido a (…) Com. Internacional, SA, destinado à regularização de responsabilidades anteriormente assumidas pela referida sociedade no valor de € 1.000.000. Ora, a constituição do crédito naqueles moldes pressupõe prévia negociação entre as partes contratantes e respetivos garantes, seguramente que não se trata de episódio negocial gizado e concluído na referida data.

Provou-se que, dois dias antes da contração daquele crédito pelo 1.º R, este e a 2.ª R declararam doar aos 3.ª e 4.º RR os bens imóveis enunciados nas als. a) a e) do n.º 10 dos factos provados e ao 4.º RR os bens imóveis enunciados nas als. f) a j) do n.º 11 dos factos provados. Mais se provou que as doações foram realizadas com o intuito de diminuir as garantias patrimoniais do Banco A.

Decorre, assim, da factualidade provada que a doação, o ato que envolve a diminuição da garantia patrimonial do crédito que havia de ser contraído daí a dois dias, foi realizado com o fim de impedir a satisfação desse crédito através dos bens imóveis que constatavam na titularidade do 1.º R, prestes que estava a constituir-se como devedor. Para além disso, o facto de a atuação intencionalmente ilícita dos RR ter tido lugar a dois dias da data em que veio a ser contraído o crédito sob a forma de empréstimo para regularização de responsabilidades da sociedade avalizada no montante de € 1.000.000 traduz uma conduta dolosa, não denunciando ao credor a transferência da propriedade operada nem lhe dando objetivamente tempo suficiente para se aperceber ou se inteirar, sem negligência da sua parte, de que tinha ocorrido a subsunção de 10 imóveis do património do devedor avalista.

Afigura-se, portanto, que a doação dos 10 bens imóveis pelos 1.º e 2.ª RR, nos moldes relatados nos factos provados, configura comportamento intencional e doloso, suscetível de impugnação pauliana à luz do disposto no art. 610.º do CC.

Dado que mais de provou que dessa doação resultou a impossibilidade de o A. obter a satisfação ainda que parcial do seu crédito, verificam-se os requisitos legais de que depende a procedência da pretensão esgrimida pelo A Recorrente.

As custas recaem sobre os Recorridos – art. 527.º do CPC.

Concluindo:
- em sede de impugnação pauliana, a anterioridade do crédito decorrente da subscrição de aval numa livrança em face do ato que envolva a diminuição da garantia patrimonial desse crédito afere-se pela data dessa subscrição;
- sendo o crédito posterior ao ato impugnado, a procedência da impugnação pauliana assenta na afirmação da intencionalidade dolosa de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
- verifica-se o comportamento intencional e doloso suscetível de ser objeto de impugnação pauliana quando aquele que está prestes a constituir-se devedor, dois dias antes da data da constituição do crédito, declara doar 10 bens imóveis que constam no seu património, com o intuito de diminuir as garantias patrimoniais do futuro credor.

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que revoga a decisão recorrida, declarando a ineficácia em relação ao A. da doação realizada entre os RR, reconhecendo-se o direito do A a executar os bens imóveis objeto de doação enunciados no n.º 10 dos factos provados no património dos 3.ª e 4.º RR e dos bens imóveis enunciados no n.º 11 dos factos provados no património do 4.ª R na medida do que se mostrar necessário para integral satisfação do seu crédito ainda em dívida.
Custas pelos Recorridos.
Évora, 10 de Maio de 2018
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos

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[1] Cfr. arts. 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[2] João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2004, p. 82 e 84.
[3] V. Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. II, 3.ª edição, p. 257 a 260.
[4] João Cura Mariano, ob. cit., p. 151.
[5] João Cura Mariano, ob. cit., p. 154.
[6] Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, p. 627.