Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7253/19.9T8STB-A.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
LEGITIMIDADE PASSIVA
Data do Acordão: 11/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - A sentença, proferida em acção pauliana, que julgou ineficaz, em relação ao aí autor, a venda efectuada por um dos réus ao outro, constitui título executivo contra o réu comprador.
- Esse título executivo confere ao réu comprador legitimidade passiva em acção executiva movida pelo autor com vista à satisfação de um crédito seu sobre o réu vendedor à custa dos bens cuja venda foi impugnada.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 7253/19.9T8STB-A.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…), Lda., executada nos autos principais para entrega de quantia certa, em que é exequente (…) – Comércio de (…), Lda., veio deduzir oposição à execução mediante embargos de executado, pedindo a total extinção da execução.
Para o efeito alegou, em resumo, a falta de título executivo relativamente a si e, além disso, que os bens identificados na sentença exequenda só respondem até ao montante de € 19.130,18 e, por fim, que (…) é parte ilegítima na execução. Mais veio requerer a condenação da embargada como litigante de má-fé, em multa e indemnização a favor de (…).
De seguida, pela Mma. Juíza a quo foi proferida decisão que indeferiu liminarmente os presentes embargos de executado, por manifestamente improcedentes, ao abrigo do disposto no artigo 732.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

Inconformada com tal decisão dela apelou a embargante, tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1ª) – Do ponto de vista substantivo e material um título executivo é um elemento comprovativo elaborado pelo homem com o fim de representar uma obrigação, e que pode, por determinação legal, ser o fundamento de uma acção executiva por ser a demonstração suficiente de um determinado direito.
2ª) – As finalidades da acção executiva são as que constam do artigo 10.º do Código de Processo Civil, e cuja enumeração é taxativa, destinando-se ao pagamento de quantia certa, ou à entrega de uma coisa certa ou à realização de uma prestação de facto positivo ou negativo (ou de pati).
3ª) – O título executivo determina o fim e os limites da acção executiva, nos termos do preceituado no artigo 10.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.
4ª) – Os limites da execução estão determinados pelo título executivo no plano da quantidade e da qualidade, rectius, na subjectividade, identificando o quantum e os sujeitos.
5ª) – O limite subjectivo reside na identificação do ou dos condenados a pagar, a entregar ou a fazer ou eventualmente a não fazer (non facere) ou a tolerar (pati).
6ª) – Sobre a alegação de inexistência de título executivo não se diz que não há uma sentença, mas que a executada não figura em nenhum dos títulos (sentenças) como devedora.
7ª) – Acontece que a inexistência de título contida no artigo 729.º alínea a), do Código Processo Civil pede uma interpretação extensiva e abarca não só o facto negativo de não existir o título, como abrange ainda a hipótese de o documento apresentado não conter uma determinação para cumprimento de uma obrigação não identificando o condenado.
8ª) – Do artigo 616.º do Código Civil concluiu-se que declarada procedente a impugnação, o credor tem direito à i) restituição dos bens cedidos na medida do seu interesse; ou ii) pode executá-los no património do obrigado à restituição.
9ª) – A exequente não pode, nem com base na sentença condenatória do Tribunal de Guimarães, nem fundada na declaração de ineficácia da alienação, propalada na sentença da acção de impugnação pauliana, julgada procedente, requerer a execução para pagamento de quantia certa contra a executada.
10ª) – Por isso, se entende que a exequente não dispõe de título executivo contra a executada para obrigar esta a uma prestação de quantia certa e neste sentido não existe título executivo.
11ª) – A alienante é devedora (condenada a pagar) a adquirente ficou condenada a (impugnação procedente) suportar a execução dos bens no seu património e posse.
12ª) – A exequente o que pediu foi que, afirmando que executada nada entregou à exequente, esta devia efectuar o pagamento de quantia certa do mesmo passo pretende que esta acção levasse, teologicamente, à entrega de coisas certas, o que constitui uma contradição nos próprios termos.
13ª) – A execução para pagamento de quantia certa devia correr contra a devedora (para isso existe título) e a executada devia suportar a execução sobre os bens descritos na sentença que contra ela faz título executivo.
14ª) – E se neste particular se encontra algum desfasamento cabe ao intérprete, na unidade do sistema, encontrar um sentido nas normas que dê coerência e segurança à lei.
15ª) – A douta sentença posta em crise neste recurso afastou-se das questões nucleares que a presente acção suscita e nesse sentido fez inadequada aplicação do Direito.
16ª) – Assim sendo o tribunal de 1ª instância fez inapropriada aplicação do Direito, seja não elegendo (como normativo plausível) o conteúdo dispositivo do artigo 616.º do Código Civil, seja deixando de levar em conta o preceituado nos artigos 5.º/2, alínea c), 10.º/5 e 6, 607.º/2, 3 e 4, 621.º, 628.º, 703.º, 704.º e 727.º, al. a), todos dos Código de Processo Civil.
17ª) – Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exªs, Venerandos Desembargadores, suprirão, requer-se julguem as presentes conclusões por provadas e fundamentadas e assim revoguem a douta sentença recorrida e decretem a extinção da execução, por inexistência de título executivo que tenha condenado a executada em pagamento de quantia certa a favor da exequente. Pois só assim se fará a costumada Justiça.
Pela embargada foram apresentadas contra-alegações de recurso nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável à recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo 635.º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela embargante, aqui apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se as sentenças juntas ao processo principal (a que estes autos estão apensos) não constituem título executivo, uma vez que não condenaram a executada em pagamento de quantia certa a favor da exequente e, por via disso, deverão os presentes embargos de executado ser julgados procedentes, com as legais consequências, decretando-se a extinção da execução.

Antes de mais importa ter presente a factualidade que, com interesse para a decisão a proferir neste aresto, resultou apurada nestes autos e no processo principal (execução), a qual, de imediato, passamos a transcrever:
1 - Em 6/11/2019 o exequente intentou a presente acção executiva classificando-a quanto ao modo de interposição como uma acção de execução de sentença nos próprios autos, contra a executada, ora apelante, tendo identificado a execução, quanto ao fim, como sendo para pagamento de quantia certa.
2 - O exequente apresentou como título executivo a sentença datada de 9/3/2015, já transitada em julgado, proferida na acção declarativa de impugnação pauliana, que correu termos pelo Tribunal da Comarca de Setúbal – Sesimbra - Instância Local - Secção de Competência Genérica - J1 com o n.º 824/13.9TBSSB.
3 - A sentença proferida na acção supra referida tem o seguinte teor:
- “Declarar impugnada a transmissão dos bens descritos no ponto 5 dos factos provados efetuada pela (…), Lda., à (…), Lda.
- Reconhecer à autora o direito a executar, até ao montante de € 19.130,18 (dezanove mil, cento trinta euros e dezoito cêntimos), acrescidos de juros de mora à taxa legal comercial contabilizados nos termos da sentença proferida pelo 2.º Juízo cível do tribunal Judicial de Guimarães, no processo n.º 4691/10.6TBGMR, todos os bens transmitidos pela extinta (…), Lda. à Ré (…), Lda., descritos no ponto 5 dos factos provados que se encontrem nas instalações desta ré, designadamente, os seguintes:
a) 3 Máquinas Vulcanizar Marca Leister;
b) Máquina Costura;
c) Carro Ferramentas Beta;
d) Pistola de agrafar;
e) Berbequim elétrico;
f) Aspirador elétrico;
g) Bancada de trabalho
h) Prensa e matrizes+esferas;
i) Rebarbadora;
j) Engenho de furar;
k) Computador;
l) Empilhador a bateria;
m) Máquina pneumática Aut. + Matrizes;
n) Serra de disco;
o) Trilho Guia + Grampo;
p) Escada Berner;
q) Pistola Mastique;
r) Serra TS 55.

Apreciando, de imediato, a questão recursiva suscitada pela embargante, ora apelante – saber se as sentenças supra identificadas não constituem título executivo contra si – importa dizer a tal propósito que resulta claro do teor da sentença proferida na acção de impugnação pauliana que a mesma reconheceu à credora, ora exequente, o direito de executar os bens transmitidos à recorrente, até ao limite que nela se estabeleceu, correspondente ao crédito sobre a sociedade (…), Lda. (a qual veio a ser declarada insolvente e, entretanto, já extinta).
E esse direito concedido à exequente, ora apelada, tem cobertura legal, uma vez que se mostra expressamente consagrado no artigo 54.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Na verdade, a tal respeito, afirma Amâncio Ferreira que o direito à execução pode incidir sobre bens de terceiros, quando estejam vinculados à garantia do crédito, ou quando sejam objeto de ato praticado em prejuízo do credor, que este haja precedentemente impugnado – cfr. Curso de Processo de Execução, 5ª ed., páginas 59/60.
E, neste sentido, pode ver-se o artigo 616.º, n.º 1, do Código Civil, no qual se estipula que, julgada procedente a impugnação pauliana, o credor tem não só o direito à restituição dos bens, na medida do seu interesse, como à execução deles no património do terceiro adquirente (podendo fazê-lo ao abrigo do disposto nos artigos 818.º do Código Civil e 735.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Quanto ao modo de se operar a restituição (dos bens) afirma Vaz Serra que na pauliana individual (a exercida no exclusivo interesse do autor) não há necessidade de os bens regressarem ao património do devedor, podendo conservar-se no do terceiro, onde o credor poderá executá-los (…) – cfr. RLJ, Ano 111º, página 157.
Também Almeida e Costa refere, a tal propósito, que os bens não têm que sair o património do obrigado à restituição, onde o credor poderá executá-los (…) – cfr. Obrigações, 3ª ed., página 610.
Assim sendo, forçoso é concluir que, no caso em apreço, o credor, ora exequente, pode instaurar uma execução contra o adquirente dos bens – in casu, a executada, ora apelante – sem ter a necessidade de fazê-los reverter ao património do respectivo alienante – in casu, a sociedade (…), Lda., já extinta – para aí os executar.
Isto porque, a legitimidade passiva da executada, aqui recorrente, resulta e tem a sua origem, não no facto de ser devedora da exequente, mas sim no facto de ser o terceiro a quem foram transmitidos os bens objecto do acto que foi precedentemente impugnado na acção pauliana, respondendo dentro dos precisos limites que foram estabelecidos na sentença proferida no âmbito do supra citado Proc. 824/13.9TBSSB – cfr. ponto 3 dos factos provados.
Neste sentido, e em caso similar ao dos presentes autos, veja-se o Ac. desta Relação, datado de 8/10/2020, disponível in www.dgsi.pt, no qual, a dado passo, foi afirmado o seguinte:
- (…) Como o despacho recorrido expressamente refere, a sentença proferida no processo n.º 2406/13.6TBPTM constitui título executivo na medida em que “é desta que resulta propriamente a legitimação da intervenção da ora requerida”. Precisamente porque esta última, ora recorrente, não consta, como devedora, do título executivo com base no qual a acção executiva foi instaurada, a sentença que, posteriormente, julgou procedente a acção pauliana relativamente à recorrente, aí demandada na qualidade de adquirente de bens da devedora/executada, constitui título executivo contra a mesma recorrente, legitimando o seu ingresso, como parte passiva, na acção executiva. Isso não significa que, substantivamente, a recorrente passe a ser condevedora. Substantivamente, a situação da recorrente é aquela que foi fixada na sentença proferida no processo 2406/13.6TBPTM: terceira titular de bens que, por efeito da procedência da impugnação pauliana, passam a poder ser executados com vista à satisfação do crédito exequendo, nos termos dos artigos 616.º, n.º 1 e 818.º, 2ª parte, do Código Civil. Processualmente, a mesma sentença constitui título executivo para o efeito de legitimar o ingresso da recorrente na acção executiva como parte passiva, como executada. Porém, do ponto de vista substantivo e como não podia deixar de ser, a medida em que o património da recorrente responde, na acção executiva, pela satisfação do crédito dos exequentes, é estritamente aquela que resulta da sentença proferida no processo 2406/13.6TBPTM. É líquido que apenas os bens cuja compra e venda foi declarada ineficaz relativamente aos recorridos podem ser atacados, na acção executiva, através da penhora e subsequente venda, tendo em vista a satisfação do crédito exequendo. O despacho recorrido não determinou que todo o património da recorrente responda pela satisfação deste crédito. Se o fizesse, então sim, seria ilegal e teria de ser revogado.
Para que os bens cuja compra e venda foi declarada ineficaz relativamente aos recorridos possam ser penhorados e vendidos nesta execução, é indispensável que a recorrente assuma a posição processual de executada, como resulta, por analogia, do artigo 54.º, n.º 2, do CPC, bem como do artigo 735.º, n.º 2, do mesmo Código. Daí não decorre que, substantivamente, a recorrente passe a ser devedora e, como tal, responda pela dívida exequenda com todo o seu património. A assunção da qualidade processual de executada por parte da recorrente visa apenas assegurar que os bens acima referidos sejam susceptíveis de penhora e venda com vista à satisfação do crédito exequendo. O restante património da recorrente está, obviamente, a salvo, pois, do ponto de vista substantivo, não responde pela dívida exequenda.
No mesmo sentido pode ver-se ainda o recente Ac. desta Relação, datado de 30/6/2021, também disponível in www.dgsi.pt, no qual veio a ser afirmado o seguinte:
- Julgada procedente a impugnação pauliana, o credor tem o direito à execução dos bens no património do terceiro adquirente.
- Com efeito, pretendendo-se obter o pagamento de um crédito com recurso a bens de terceiro este tem necessariamente que figurar como sujeito passivo na execução.
Assim sendo, face às razões e fundamentos supra referidos, é nosso entendimento que bem andou a Meritíssima Juíza a quo ao indeferir liminarmente os presentes embargos por serem manifestamente improcedentes, o que fez ao abrigo do estipulado no artigo 732.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.
Nestes termos, dado que o recurso em análise não versa outras questões entendemos que a decisão recorrida não merece qualquer censura ou reparo, sendo, por isso, de manter na íntegra. Em consequência, improcedem, in totum, as conclusões de recurso formuladas pela embargante, aqui apelante, não tendo sido violados os preceitos legais por ela invocados.

***

Por fim, face ao estipulado no n.º 7 do artigo 663.º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)
***

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto pela embargante, confirmando-se inteiramente a decisão proferida pela M.ma Juiz a quo.
Custas pela embargante, aqui apelante.
Évora, 11 de Novembro de 2021
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás


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[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, páginas 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, n.º 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ n.º 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ n.º 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, páginas 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).