Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
33/04.8TBEVR.E2
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
NEGLIGÊNCIA
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A deserção da instância constitui um mecanismo que pretende combater a eternização dos processos quando a parte que está onerada com o impulso da instância revela desinteresse na tramitação destinada a prover a resolução do litígio.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 33/04.8TBEVR.E2

ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrentes / Autor: Município de Lisboa

Recorridos / Réus: (…) e outra

Trata-se de uma ação declarativa de condenação instaurada por Epul – Empresa Pública de Urbanização de Lisboa, a que sucedeu o Município de Lisboa, comportando os autos reconvenção deduzida pela Ré (…).


II – O Objeto do Recurso

Em sede de audiência final, no seu início, as partes requereram a suspensão da instância por 60 dias. O que foi deferido. Sucederam-se outros atos vindo a ação a ser julgada extinta por deserção conforme segue:
«Os presentes autos encontram-se a aguardar, há mais de seis meses, o impulso processual das partes, nomeadamente do autor, a quem incumbe, em primeira linha, tal desiderato. A isto acresce que, decorreu o prazo concedido a fls. 2391, em 26-10-2015, sem que o autor, viesse aos autos reiterar o requerido a fls. 2387 ou justificar o motivo pelo qual, permanece em silêncio.
Pelos motivos expostos, considero a conduta do autor, em apreço, negligente, pelo que, ao abrigo do disposto no artº 281, nº 1, do CPC, julgo deserta a presente instância.
Notifique.»

Inconformado, o Autor apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da sentença recorrida, a substituir por outra que determine o prosseguimento dos autos, com o agendamento da audiência de julgamento. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«(i) Ao decidir como decidiu, a Meritíssima Juíza violou o disposto no n.º 1 do art.º 281º, n.º 3 do art.º 3º e art.º 6º, todos do Código de Processo Civil;
(ii) Findo o prazo concedido às partes para tentar compor consensualmente o litígio, sem que a instância tenha sido suspensa, deveria a Meritíssima Juíza ter diligenciado no sentido do prosseguimento dos autos, mais concretamente marcando a audiência de julgamento;
(iii) Ainda que assim não se entenda, sem conceder, sempre se dirá que antes de ter proferido o despacho em que declarou a instância deserta, deveria a Meritíssima Juíza ter dado às partes a oportunidade de se pronunciarem acerca daquela questão, que nunca foi aflorada;
(iv) Pelo que, atento o exposto, deverá a presente apelação ser julgada procedente e, em consequência, revogado o despacho recorrido e ordenado o prosseguimento dos autos, com o agendamento da audiência de julgamento.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar se existe fundamento para extinção da instância por deserção e, na afirmativa, se tal decisão devia ter sido precedida da audição das partes.


III – Fundamentos

A – Dados a considerar
1 – A 28/05/2015, em sede de audiência final, as partes informaram o Tribunal que pretendiam alcançar um acordo nos autos, que passaria, com grande probabilidade, pelo reconhecimento por parte do Réu da propriedade da Autora relativamente ao dirigível e demais instrumentos e pela desistência do pedido reconvencional – cfr. ata de fls. 2383.
2 – Declararam necessitar do período de 60 (sessenta) dias para ultimarem os termos do acordo, e que a produção da prova indicada nos autos não se mostrava necessária à resolução do litígio – cfr. ata de fls. 2383.
3 – Foi, nesse dia, proferido o seguinte despacho:
«Considerando a posição manifestada por ambos os Ilustres Mandatários, bem como o estado dos autos, uma vez que grande parte do seu objeto foi já excluído por decisões anteriores, afigura-se não ser de iniciar a audiência no dia de hoje, por existir forte probabilidade de se alcançar uma solução consensual do litígio.
Acresce que a intervenção recente do Autor na ação, justifica a necessidade do prazo indicado pelas partes.
Assim, e no sentido de evitar a prática de atos inúteis, fica sem efeito a realização do julgamento, aguardando-se pela junção aos autos do acordo a celebrar entre as partes.
Decorridos os sessenta dias sem nada ser remetido aos autos, faça os mesmos conclusos.
Notifique.» - cfr. ata de fls. 2384.
4 – Conclusos os autos a 29/09/2015, sem que até então qualquer ato tenha sido praticado no processo, foi proferido o seguinte despacho:
«Notifique as partes para que requeiram o que tiverem por conveniente.» - cfr. fls. 2385.
5 – Notificadas as partes, apresentaram requerimento ao processo a 20/10/2015 informando manter-se alta a probabilidade de ser alcançada a tão almejada transação, requerendo a concessão de um novo prazo de 30 (trinta) dias para finalizarem a transação que permita a resolução consensual do litígio – cfr. fls. 2387 a 2390.
6 – A 26/10/2015 foi proferido o seguinte despacho:
«Concede-se o prazo requerido.
Notifique.» - cfr. fls. 2391.
7 - Conclusos os autos a 18/01/2016, sem que até então qualquer ato tenha sido praticado no processo, foi proferido o seguinte despacho:
«Aguardem os autos pelo impulso processual das partes.
Notifique.» - cfr. fls. 2392.
8 – O que foi notificado às partes a 21/01/2016.
9 – Seguiu-se a prolação do despacho recorrido, declarando deserta a instância, a 29/11/2016 – cfr. fls. 2393.

B – O Direito

Nos termos do disposto no art. 281.º, n.º 1, do CPC, «Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.»

Trata-se de mecanismo que pretende combater a eternização dos processos quando a parte que está onerada com o impulso da instância revela desinteresse na tramitação destinada a prover a resolução do litígio. «Para a boa ordem dos serviços», verifica-se a necessidade de se não manter indefinidamente parados nos tribunais processos em relação aos quais as próprias partes deles se haviam desinteressado.[1]

A deserção da instância declarativa depende, assim, da falta de impulso processual durante mais de seis meses e da negligência da parte onerada com tal impulso processual.

Ora, se no anterior regime processual civil a deserção da instância pressupunha uma anterior interrupção da mesma instância, quando as partes, maxime o autor, tivessem o ónus de impulso subsequente, atualmente, «com a extinção da figura da interrupção da instância, o requisito da negligência das partes em promover o impulso processual transita para a deserção. Sendo manifestamente injustificado o abandono da lide pelos seus sujeitos durante largos meses ou anos, o prazo de deserção da instância fixa-se agora em seis meses.»[2]

E porque se impõe a verificação da conduta negligente das partes, «A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.» - art.º 281.º n.º 4 do CPC. A deserção deixou de verificar-se independentemente de qualquer decisão judicial.[3] O regime atual, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, encontra-se em vigor desde 1 de setembro de 2013[4], sendo aplicável às ações pendentes.[5]

Importa, pois, apreciar se, neste caso concreto, o processo se encontrou a aguardar impulso processual por mais de seis meses, por negligência das partes. Está em causa «a negligência retratada ou espelhada objetivamente no processo (negligência processual ou aparente). Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência.»[6]

Como decorre dos dados supra enunciados, a instância deixou de prosseguir os seus regulares termos por via de requerimento formulados pelas partes. Satisfazendo a pretensão destas, a 28/05/2015, o tribunal ordenou que aos autos aguardassem a junção aos autos do acordo a celebrar entre as partes, devendo ser conclusos decorridos que fossem sessenta dias sem nada ser remetido aos autos. Uma vez que as partes não praticaram qualquer ato no processo, por despacho de 29/09/2015 foi determinada a notificação delas para requererem o que tivessem por conveniente. A 20/10/2015, requereram as partes um novo prazo de 30 (trinta) dias para finalizarem a transação que permita a resolução consensual do litígio, informando manter-se alta a probabilidade de ser alcançada a tão almejada transação. O que foi deferido por despacho de 26/10/2015. Por via do silêncio das partes, conclusos os autos a 18/01/2016, sem que até então qualquer ato tenha sido praticado no processo, foi proferido despacho determinando que os autos aguardem pelo impulso processual das partes, o que foi notificado a estas a 21/01/2016. Seguiu-se a prolação do despacho recorrido, declarando deserta a instância, a 29/11/2016.

É certo que a partir da propositura da ação cabe ao juiz providenciar pelo andamento do processo.[7] Cumpre ao juiz dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto por lei às partes.[8] Porém, no caso em apreço, as partes atuaram no sentido de operar a sustação dos atos que visavam o julgamento final da lide, expressando claramente no processo que a produção da prova indicada nos autos não se mostrava necessária à resolução do litígio[9]. Tendo os serviços judiciários afetado recursos para a realização da audiência final no âmbito deste processo, convocando intervenientes para ativamente participarem na resolução do litígio (encontravam-se presentes 7 testemunhas, como da ata de fls. 2383 se alcança), a audiência final não se realizou por ter sido atendida a pretensão das partes. O tribunal, por seu turno, também claramente expressou que os autos ficavam a aguardar a junção do acordo, vindo mesmo a notificar as partes, decorridos que estavam mais de sete meses sobre a data do requerimento do prazo de 60 dias, de que os autos ficavam a aguardar pelo impulso processual das partes. Despacho que foi notificado às partes, e que estas não colocaram em crise.[10]

Ora, tendo sido determinado, por despacho transitado em julgado[11], que os autos aguardavam o impulso processual das partes, por essa via definiu-se, neste concreto processo, que a inércia das partes (do A e Reconvinte) configurava falta de impulso processual, que o andamento e ulterior processamento do mesmo estava dependente da intervenção das partes. Uma vez que nenhum ato foi praticado no processo decorridos que foram mais de dez meses, cabe concluir que as partes incumpriram o dever de promoção processual, atuaram de forma negligente, o que implica na deserção da instância à luz do disposto no art. 281.º n.º 1 do CPC.

Coloca-se, contudo, a questão de saber se o tribunal recorrido incorreu na violação do princípio do contraditório (art. 3.º n.º 3 do CPC), do princípio da cooperação (art. 7.º do CPC), prolatando decisão-surpresa.

Seguindo de perto o Acórdão do STJ de 14/12/2016[12], cabe notar que «o aludido preceito não prescreve que a decisão a considerar deserta a instância seja proferida notificando-se previamente as partes para se pronunciarem sobre se estão efetivamente verificados os pressupostos que a determinam. Há efetivamente casos em que a lei prescreve que a decisão não seja proferida sem prévia audição das partes – decisão sobre agilização processual (artigo 6.º/1), decisão sobre o texto final da ata em caso de invocada desconformidade entre o teor do que foi ditado e o ocorrido (artigo 155.º/9), decisão sobre prazo mais longo ou mais curto para o cumprimento das cartas (artigo 176.º/3), decisão sobre a apensação de processos (artigo 267.º/4), decisão sobre a fixação da indemnização no caso de litigância de má-fé quando não haja elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização (artigo 543.º/3).
(…)
Nos casos apontados, a audição das partes visa evitar decisões oficiosas que implicam um fator de surpresa para as próprias partes, o que não sucede no caso de deserção pelo decurso do prazo de seis meses, pois é certo que, neste caso, é a própria lei que fixa um prazo, advertindo que ele constitui condição sine qua non de deserção da instância. Da lei resulta que, decorrido esse prazo, sem que nada seja requerido nos autos, o Tribunal não pode deixar de considerar verificada ipso facto uma situação de negligência e isto porque o Tribunal, para proferir a decisão, apenas se pode socorrer dos elementos que estão nos autos (quod non est in actis non est in mundo) e não dos elementos que os interessados podiam ter apresentado no processo que pudessem então viabilizar ao juiz considerar que, não obstante o decurso do prazo de seis meses, não ocorria situação de negligência.»

Ainda assim, «De modo a evitar-se equívocos, pode justificar-se a notificação da parte, esclarecendo-se que o processo aguarda o seu impulso (art. 7.º).»[13]

Ora, nos presentes autos, tanto o Autor como a Reconvinte foram notificados, a 21/01/2016, que os autos ficavam a aguardar o impulso processual das partes. Não obstante essa expressa informação às partes, estas, cientes que estavam de que o processo aguardava que elas próprias promovessem o seu impulso, não cuidaram de praticar qualquer ato no processo nem informaram o tribunal dos motivos que estavam na base da inércia que adotaram. O que, à luz do regime inserto no art.º 281.º, n.º 1, do CPC, implica na declaração da deserção da instância.

Termos em que improcedem as conclusões da alegação do recurso.

As custas recaem sobre o Recorrente.

Concluindo:
- a deserção da instância assenta na verificação da negligência processual das partes em promover o seu impulso;
- a decisão de deserção da instância pelo decurso do prazo de seis meses não consubstancia uma decisão surpresa, ainda que não tenham sido previamente auscultadas as partes, porquanto é a própria lei que fixa o prazo, advertindo que constitui condição sine qua non de deserção da instância;
- justifica-se, no entanto, que as partes sejam notificadas de que o processo aguarda que elas impulsionem o seu andamento.

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.

Évora, 8 de Junho de 2017

Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria da Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura

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[1] Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol. 3.º, p. 432 e ss.
[2] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2013, vol. I, p. 249.
[3] Cfr. art. 291.º do regime processual civil revogado.
[4] Cfr. art. 8.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.
[5] Cfr. arts. 5.º e 6.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho; Ac. STJ de 03/07/2014 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza).
[6] Ac. STJ de 20/09/2016 (José Rainho).
[7] Cfr. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 3.ª ed. p. 157 e 158.
[8] Cfr. art. 6.º n.º 1 do CPC.
[9] Não é lícito realizar no processo atos inúteis – art. 130.º do CPC.
[10] Designadamente a coberto do regime inserto no art. 644.º n.º 3 do CPC.
[11] Cuja bondade não cabe aqui sindicar.
[12] Relatado por Salazar Casanova.
[13] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit., p. 250.