Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
8/23.8GBABT-A.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: DETIDO
NACIONALIDADE ESTRANGEIRA
DESCONHECIMENTO DA LÍNGUA PORTUGUESA
DIREITO À INTERPRETAÇÃO E TRADUÇÃO
COMUNICAÇÃO EM LÍNGUA QUE DESCONHECE
NULIDADE
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Sendo o detido em flagrante delito de nacionalidade estrangeira e desconhecedor da língua portuguesa, tem o mesmo de ser informado dos seus direitos numa língua que compreenda (artigos 47.° e 48.°, § 2.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; e artigo 6.° da CEDH, à luz dos quais deverão aqueles ser interpretados; e artigo 2.º, § 1.º, 4.º e 5.º da Diretiva 2010/64/EU e 3.º, § 1.º, al. d) da Diretiva 2012/13/EU e 2013/48/EU.
II. Se depois de constituído arguido e informado dos seus direitos em língua que compreende, lhe é comunicado que terá de comparecer em Juízo em dia e gora certos, para tanto se lhe entregando, apenas, um escrito em língua portuguesa, tal constitui nulidade que implica a repetição do ato invalidamente praticado e dos que dele forem dependentes (artigo 122.º, § 1.º CPP).

III. É certo que a norma do artigo 120.º, § 2.º, al. c) CPP considera ser esta nulidade - a falta de nomeação de intérprete/tradutor nos casos que a lei a considere obrigatória - dependente de arguição. Mas esta dependência de arguição mostra-se flagrantemente violadora dos direitos de defesa do arguido e do princípio da efetividade. Assim porquanto o prazo previsto para ser arguida tal nulidade se esgotou logo que o arguido saiu do posto da GNR, conforme decorre do artigo 120.º, § 3.º, al. a) CPP (cf. acórdão do TJUE, de 1ago2022 - proc. C-242/22 PPU).

Decisão Texto Integral: I – Relatório
a) Tendo sido agendada data para julgamento em processo sumário, no Juízo Local Criminal de …, de AA, nascido em … de 1959, cidadão do Reino Unido, acusado da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto no artigo 292.º, § 1.º do Código Penal, a Mm.a Juíza proferiu despacho liminar com o seguinte teor:

«Foram os presentes autos apresentados para julgamento sob a forma especial sumária no dia de hoje, 24.01.2023.

***

Após o primeiro contacto com os autos, na presente data, afigura-se-me que:

a) A constituição de arguido tem menções em língua portuguesa e inglesa;

b) Resulta do TIR que o arguido prestou TIR em língua inglesa, onde apenas está traduzido as obrigações decorrentes do TIR e constantes do art.º 196, n.º 3 do C.P.P., estando o demais em língua portuguesa.

c) Tal TIR apenas está assinado pelo militar da GNR e pelo próprio arguido.

d) Não estava acompanhado de intérprete quando foi notificado para comparecer em Tribunal, cujo documento está redigido em língua portuguesa, apesar de o arguido ter assinado tal documento (o que não permite concluir que o mesmo percebeu o teor da notificação, até porque o mesmo não compareceu no DIAP cfr. ref.ª …).

e) O mesmo sucede do teor das notificações nos termos do art 39º da Lei 34/2004, de 29 de julho, auto de libertação;

Dispõe o art.º 64, n.º 1 al. d) que:

É obrigatória a assistência do defensor: (…) d) em qualquer ato processual, à exceção da constituição de arguido sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída.»

Dispõe o art.º 119.º, al. c) do CPP que «Constituem nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas noutras disposições legais: (…) c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência:»

Uma vez que o arguido, nos termos e fundamentos que antecedem, não prestou TIR de forma válida e eficaz bem como as suas notificações até ao despacho de acusação e onde se designou data para se apresentar em Tribunal para ser submetido a julgamento (11.01.2023 cfr refª …), não poderiam ser feitas em língua portuguesa, mas sim, em língua inglesa ou na presença de um interprete, nos termos do art.º 92.º, n.º 2 do C.P.P., torna-se necessário reparar todo o processado até à prolação do despacho de 11.01.2023, nomeadamente que:

a) o arguido preste novo TIR na presença do seu Defensor, a realizar pelo OPC, devendo este solicitar a nomeação para o ato ou convocar o defensor oficioso para estar presente;

b) a constituição de arguido seja toda redigida em língua inglesa;

c) se proceda à notificação nos termos do artº 39º da Lei 34/2004, de 29 de julho também em língua inglesa.

Como é apodítico, tal não pode ser realizado dentro dos prazos do artº 387º, nº 7 do CPP, ainda que lhe seja atribuído o caráter urgente, nos termos do nº 8 do mesmo preceito legal, pois as traduções necessárias nunca se completarão no prazo previsto no nº 2, al. c) do mesmo preceito legal, dado que os factos foram praticados a 10.01.2023.

Por todo o exposto, nos termos do artº 390º, nº 1, al. b) do CPP, importa remeter os presentes autos ao MP para a tramitação sob outra forma processual.

Notifique.»

b) Inconformado com esta decisão, apenas na parte que se refere aos efeitos das nulidades declaradas, dela recorre o Ministério Público, com as seguintes conclusões:

«1. Não vem o presente recurso interposto da decisão de reenvio do processo sumário a outra forma processual, em respeito ao AUJ 8/2014, de 12 de Junho.

2. Antes se recorre, por se discordar do despacho que determinou a repetição de actos já legalmente realizados no inquérito, ordenando reparação de todo o processado em sede de inquérito, mormente quanto à constituição de arguido, prestação de TIR, notificação para estar presente em Tribunal, notificação nos termos do artigo 39º da Lei 34/2004, de 29 de Julho, por entender ser obrigatória a presença de defensor em tais actos, ao abrigo do disposto no artigo 64º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Penal ou a presença de intérprete e tradução.

3. O Ministério Público deduziu acusação pública em processo sumário contra o arguido AA imputando-lhe a prática em autoria material e na forma consumada de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº 1 alínea a) do Código Penal.

4. Aquando o recebimento da acusação a Mm.a Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:

( … ) (1)

5. Do despacho em crise resulta que a Mm.a Juiz entende existir uma "patologia" que afecta os autos, não tendo realizado audiência em processo sumário.

6. Contudo, o alegado "vício" de que padecerá a ausência de defensor aquando da prestação de TIR, a constituição de arguido na íntegra na língua inglesa e a notificação em inglês, nos termos do artigo 39º da Lei 34/2004, de 29 de julho, não resulta de forma clara e inequívoca do despacho recorrido, bem como, não resultam as eventuais consequências processuais dos citados "actos", apenas a mesma aludindo a uma "reparação", sem que o alegado "vício" tenha sido declarado.

7. Mas ainda que assim não fosse, não pode, em nosso entender, a Mm. a Juiz a quo declarar que a prestação de TIR e a constituição de arguido padece de "patologia" e ordenar ao Ministério Público a sua reparação, pois a matriz constitucional do processo penal, com a sua estrutura acusatória e com a atribuição ao Ministério Público do exercício da acção penal orientado pelo princípio da legalidade e com a autonomia desta Magistratura (artigo 219º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa), sempre impediria o entendimento sufragado no despacho recorrido.

8. O despacho recorrido violou o disposto nos artigos 61º, 92º, 122º, 123º, 311º do Código de Processo Penal pois interpretou estas normas em violação do disposto nos artigos 32º e 219º da Constituição da República Portuguesa.

9. Assim, também, Paulo Pinto de Albuquerque ("Comentário do Código de Processo Penal", UCE, 2a edição actualizada, PS. 790/791) que, em anotação ao artigo 311º defende que "pelos motivos já expostos, atinentes ao princípio da acusação, o juiz de julgamento não pode censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público (...) para reparar nulidades ou irregularidades praticadas no inquérito (...)" (neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/02/2013, Processo nº406/10.7GALNH-A.L1-5, Relator: Juiz Desembargadora Alda Tomé Casimiro).

10. Não existe, in qualquer "patologia" que afecte os autos, pelo que não podia a M.ma Juiz proferir o despacho proferido, sob pena de violar o disposto nos artigos 32º e 219º da Constituição da República Portuguesa no atinente à autonomia da intervenção do Ministério Público no inquérito e a do Juiz na fase da instrução e/ou do julgamento, "não tem fundamento legal qualquer «ordem», nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunção" (Cfr. o acórdão do STJ, de 27.04.2006, in www.dgsi.pt),

Com efeito,

11. Ao que acresce, os autos não enfermam de qualquer patologia, porquanto as garantias de defesa do arguido e o disposto no artigo 64º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Penal encontram-se plenamente cumpridos.

12. O cidadão inglês AA foi constituído arguido nessa mesma data 10 de Janeiro de 2023, tendo-lhe sido entregue auto da constituição de arguido redigido em inglês, onde constam elencados todos os direitos que assistem ao arguido ["Procedual rights, Arto 61/1 do CPP)"] e ainda os deveres que sobre o mesmo impedem ["Procedural duties, Arto 61/1 do CPP)"], cfr resulta de termo utilizado pela Guarda Nacional Republicana, redigido na língua inglesa e constante de fls. 19 e 20, regularmente assinado pelo arguido e pelo militar.

13. O cidadão inglês AA prestou Termo de Identidade e Residência, tendo-lhe sido comunicadas todas as obrigações decorrentes da prestação de TIR e foi-lhe entregue Termo de Identidade e Residência redigido em língua inglesa, onde se encontram elencadas na língua inglesa, as obrigações decorrentes de tal medida de coacção, nos exactos termos constantes de fls. 21, regularmente assinado pelo arguido e pelo militar.

14. A fls. 34 consta despacho de validação da detenção do arguido em flagrante delito e validação da constituição de arguido, e em face da possibilidade de o arguido não entender a língua portuguesa, pelo Ministério Público foi determinado de imediato que se procedesse à indicação de intérprete idóneo e que se procedesse a nomeação de defensor, devendo ambos comparecer de imediato nos serviços do DIAP, o que sucedeu.

15. Perante a presença da I. Defensora e da Sra. intérprete, e perante a ausência do arguido, a I. Defensora requereu prazo para defesa, tendo então sido designado o dia 24 de Janeiro de 2023, pelas 11h para realização de audiência de julgamento em processo sumário.

16. O arguido AA foi notificado, por meio de contacto pessoal por OPC, do teor de notificação para comparência devidamente traduzida para a língua inglesa, de que se encontrava notificado para estar presente no dia 24 de Janeiro de 2023, pelas 11h no Juízo Local Criminal de …, bem como foi notificado do teor integral da acusação já traduzida para língua inglesa, cfr notificação junta a fls. 63 a 67.

17. A notificação por meio de contacto pessoal por OPC, na língua inglesa, foi regularmente efectuada na pessoa do arguido AA em 17 de Janeiro de 2023, cfr. fls. 67.

18. Não assiste razão, nem legitimidade à M.ma Juiz para determinar que o Ministério Público "convalesça patologias" que inexistem, nem à luz de se invocar uma qualquer nulidade que no caso não existe.

19. A Mm.a Juiz a quo declarar que a prestação de TIR e a constituição de arguido padece de "patologia" e ordenar ao Ministério Público a sua reparação, viola a matriz constitucional do processo penal, com a sua estrutura acusatória e com a atribuição ao Ministério Público do exercício da acção penal orientado pelo princípio da legalidade e com a autonomia desta Magistratura (artigo 219º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa), o que sempre impediria o entendimento sufragado no despacho recorrido.

20. Pelo que, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 61º, 92º, 122º, 123º, 311º do Código de Processo Penal pois interpretou estas normas em violação do disposto nos artigos 32º e 219º da Constituição da República Portuguesa.

21. Visa o legislador com o disposto no artigo 92º nº 1 do Código de Processo Penal assegurar que o cidadão que não entende a língua portuguesa, fique entendedor dos direitos e deveres que lhe assistem na qualidade de arguido e das obrigações decorrentes do Termo de identidade e Residência.

22. Apenas uma leitura positivista imporia que para além da tradução do TIR e do auto de constituição de arguido tivesse que estar presente intérprete, sendo extensa a jurisprudência que perfilha não ser obrigatória a presença do intérprete- de entre os quais salientamos apenas dois acórdãos de entre tantos mais, Acórdão da Relação de Guimarães de 14-05-2007, CJ, 2007, T3, pág. 291 "Não é obrigatória a nomeação de intérprete para a realização de teste de alcoolemia a pessoa que desconheça a língua portuguesa. ";Acórdão da Relação do Porto de 24/10/2012, relator Pedro Vaz Pato: "Não é obrigatória a nomeação de intérprete para uma revista em que a pessoa visada desconheça ou não fale a língua portuguesa. "

23. Ora, no caso dos autos quer o auto de constituição de arguido, quer o Termo de Identidade e Residência (formulários disponibilizados pelo sistema informático da GNR) foram entregues ao arguido traduzidos na língua inglesa, como resulta dos autos.

24. Pugnando no mesmo entendimento perfilhado no Acórdão da Relação de Évora de 5/4/2022, relator João Amaro, in processo 53/19.8GACUB-C.E1, in www.dgsi.pt: "A falta de nomeação de intérprete" (ou, o mesmo é dizer, a omissão de tradução de atos processuais a arguido estrangeiro que não entende a língua portuguesa) configura uma nulidade "dependente de arguição".

25. A lei não exige concomitantemente a tradução e a presença de intérprete!

26. No caso dos autos no momento da prestação do TIR e no momento da constituição de arguido não esteve presente intérprete, mas em ambos foi assegurada a tradução para integral compreensão por parte do cidadão estrangeiro.

27. Conforme resulta dos autos, foi ainda assegurada a notificação pessoal em língua inglesa e por meio de contacto pessoal por OPC ao arguido as em língua que entenda e de forma

minuciosa"(ah. 60, nº3 da C.E.D.H.)», pelo que inexiste qualquer nulidade neste conspecto- Acórdão da Relação de Évora de 8/1/2013, relator Ana Barata Brito, processo 128/12.4GTABF.E1, in www.dgsi.pt

28. Ao contrário do entendido pela M.ma Juiz a quo, inexiste qualquer nulidade, pois no caso dos presentes autos foi assegurada a tradução do auto de constituição de arguido e do Termo de Identidade e Residência, pelo que ao arguido foi assegurada a comunicação na língua inglesa dos seus direitos e deveres na qualidade de arguido e das obrigações decorrentes da prestação de TIR [ neste sentido o mesmo supra citado Acórdão da Relação de Évora de 5/4/2022, a falta de intérprete ou de tradução configuraria uma nulidade 'Essa nulidade pode afetar, obviamente, a prestação de T.I.R. (a comunicação ao arguido das obrigações decorrentes da prestação de T.I.R.), e, bem assim, a validade de qualquer notificação que tenha de ser feita ao arguido. "

29. Certamente no despacho recorrido laborou-se em erro, ao olvidar que o que o legislador pretendeu no nº 2 do artigo 92º do Código de Processo Penal e artigos 2º e 3º da Diretiva 2010/64/EU de 20/10 foi salvaguardar que os arguidos ficassem conhecedores dos direitos e deveres que sobre eles impendem, quer da sua posição processual como arguido, quer das obrigações decorrentes da prestação de TIR.

30. A presença de intérprete apenas é exigida quando o arguido tiver que ser ouvido. Neste sentido Acórdão da Relação de Évora de 25.10.2022, relator Renato Barroso, processo 128/22.6GDFAR.E1, in www.dgsi.pt: "Está ferido de nulidade insanável o procedimento criminal, desde a constituição de arguido, se a este, sendo estrangeiro e desconhecedor da língua portuguesa, não for nomeado intérprete para o auxiliar nos atos em que tenha de ser ouvido e bem assim (…) mesmo dos documentos relevantes de processo traduzidos para a sua língua (artigo 92.º/2 CPP e artigos 2º e 3º da Diretiva 2010/64/EU de 20/10). "(sublinhado nosso)

31. Ora, no caso dos autos para além do TIR traduzido, auto de constituição de arguido traduzido, traduzida a notificação para designação de data de audiência de julgamento, foi ainda assegurada desde logo a tradução da acusação, para acautelar que na data designada para julgamento a mesma já estivesse disponível ao arguido na língua inglesa; e foi regularmente convocada uma Sra. Intérprete quer para a data em que o arguido estava convocado para comparecer no DIAP, quer para a data designada para realização de audiência de julgamento.

32. Entender que o TIR ou o auto de constituição de arguido traduzido para a língua inglesa é insuficiente implica o entendimento por parte da M.ma Juiz a quo de infirmar todos os formulários em uso pelos OPC, disponibilizados em diversas línguas estrangeiras!

33. De evidenciar que, .com excepção do arguido que se encontrava regularmente notificado na língua inglesa] todos estiveram presentes no dia designado para julgamento, tendo a Sra. Juiz, com os fundamentos de que ora se recorre, optado por não realizar a audiência.

34. Por outro lado, também não assiste razão à M.ma Juiz a quo ao determinar que o Ministério Público "repare" a falta de defensor aquando da constituição de arguido ou da prestação de TIR a cidadão inglês.

35. Exigir a assistência de defensor no momento da prestação de Termo de Identidade e Residência quando o legislador considera que tal presença não é obrigatória nem na constituição de arguido é uma interpretação legalmente inadmissível do disposto no artigo 61º nº 1 alínea d) do Código de Processo Penal.

36. A prestação de Termo de Identidade e Residência não se confunde com acto processual.

37. A prestação de Termo de Identidade e Residência é uma medida de coacção, uma providência de natureza cautelar e processual, que visa assegurar que o processo penal decorra sem incidentes.

38. Ainda que o arguido seja cidadão cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída não é exigível a presença de defensor na prestação de termo de identidade e residência.

39. Perfilhamos o entendimento pugnado no Acórdão da Relação de Évora de 14/10/2014, relator Proença da Costa, processo 921/12.8TAPTM, versando sobre a prestação de TIR por arguido de idade inferior a 21 anos, in www.dgsi.pt: «1— Não é exigíve/ a presença de defensor na prestação de termo de identidade e residência. II Dado o conteúdo do termo de identidade e residência, apenas se trata de obrigar o arguido a identificar-se e a referir a sua residência e a não se ausentar desta por determinado prazo sem o comunicar às autoridades, visando-se assegurar que aquela pessoa, em relação à qua/ estão a decorrer investigações de ordem criminal, não desapareça sem as autoridades saberem.»

40. Assim, afigura-se-nos que resulta dos autos que o arguido se encontra válida e regularmente constituído arguido, bem como o TIR foi regularmente prestado e foi regular a notificação traduzida para a língua inglesa e efectuada por OPC, para a data de realização da audiência, nada havendo a reparar.

41. A vingar a interpretação que a tradução da constituição de arguido e do TIR não dispensam a presença de intérprete em tais elementos devidamente traduzidos; e a perfilhar o entendimento que na prestação da medida de coacção TIR não se dispensa a presença de defensor, esvaziaria por completo a medida de coacção termo de identidade e residência, equiparando aquilo que é a medida de coacção menos gravosa a um mero acto processual, o que não pode colher!

42. Em face do exposto, entendemos que não existe, in casu, qualquer "patologia" que afecte os autos, pelo que deveria a Mm. a Juiz a quo, ao invés de ter proferido o despacho recorrido, ter realizado a audiência de discussão e julgamento, sendo nulo o despacho que ordena ao Ministério Público a reparação de actos que se encontravam validamente cumpridos, devendo tal despacho ser declarado nulo por violação do disposto nos artigos 61º, 92º, 122º, 123º, 311º do Código de Processo Penal pois interpretou estas normas em violação do disposto nos artigos 32º e 219º da Constituição da República Portuguesa.

c) O arguido não respondeu ao recurso.

d) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância, em parecer exarado nos autos, manifesta concordância com o sentido do recurso, considerando que foi válida e legal a constituição de arguido do cidadão estrangeiro bem como a prestação de TIR.

e) Não foi apresentada nenhuma resposta no âmbito do contraditório ao referido parecer.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1.Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2).

O recurso do arguido suscita apenas uma questão: se a constituição de arguido e a prestação por este de Termo de Identidade e Residência, bem como a nomeação de defensor e a notificação feita ao arguido pela GNR para comparecer em Juízo constituem nulidades insanáveis.

2. Apreciando

3.1. Da nulidade prevista na al. c) do artigo 119.º do Código de Processo penal (CPP)

Preceitua o artigo 119.º, al. c) CPP, que:

«Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:

(…)

c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;

(…)» Estatui o artigo 120.º, § 1.º 2.º al. c) CPP, que: «1. Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e foca sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.

2. Constituem nulidade dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais: (…) c) A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória.»

Releva, também, consignar o que dispõem os seguintes normativos, invocados no despacho recorrido (64.º, § 1.º, al. b) e 92.º, § 2.º CPP e 39.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho).

Artigo 64.º, § 1.º, al. b) CPP:

«1 - É obrigatória a assistência do defensor:

(…) d) Em qualquer ato processual, à exceção da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída;» Artigo 92.º, § 2.º CPP: «2 - Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao ato ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada.»

Artigo 39.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho:

«1 - A nomeação de defensor ao arguido, a dispensa de patrocínio e a substituição são feitas nos termos do Código de Processo Penal, do presente capítulo e da portaria referida no n.º 2 do artigo 45.º

2 - A nomeação é antecedida da advertência ao arguido do seu direito a constituir advogado.

(…)» E também as normas mais relevantes das Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho, concernentes à interpretação, tradução de atos e documentos e informações relativos a arguidos que não dominem o idioma do processo, nomeadamente os artigos seguintes das Diretivas 2010/64/EU, de 20 de outubro; e 2012/13/EU, de 22 de dezembro.

Da Diretiva 2010/64/EU:

Artigo 1.º

«1. A presente diretiva estabelece regras relativas ao direito à interpretação e tradução em processo penal e em processo de execução de mandados de detenção europeus. 2. O direito a que se refere o n.º 1 é conferido a qualquer pessoa, a partir do momento em que a esta seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado-Membro, por notificação oficial ou por qualquer outro meio, que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração, inclusive, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado. (…) 4. A presente diretiva não afeta o direito nacional no que diz respeito à presença de um defensor legal durante todas as fases do processo penal, nem no que diz respeito ao direito de acesso dos suspeitos ou acusados aos documentos do referido processo.»

Artigo 2.º «1. Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa beneficiem, sem demora, de interpretação durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias. 2. Os Estados-Membros asseguram que, caso tal seja necessário à garantia da equidade do processo, seja disponibilizada interpretação para as comunicações entre o suspeito ou acusado e o seu defensor legal diretamente relacionadas com qualquer interrogatório ou audição no decurso do processo, com a interposição de um recurso ou com outros trâmites de carácter processual. (…) 4. Os Estados-Membros asseguram a existência de um procedimento ou método que permita apurar se o suspeito ou acusado fala e compreende a língua do processo penal e se necessita da assistência de um intérprete. 5. Os Estados Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária interpretação e, caso esta seja disponibilizada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da interpretação não ser suficiente para garantir a equidade do processo. (…) 8. A interpretação disponibilizada nos termos do presente artigo deve ter a qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, assegurando, designadamente, que o suspeito ou acusado tenha conhecimento das acusações e provas contra ele deduzidas e seja capaz de exercer o seu direito de defesa.»

Artigo 3.º «1. Os Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo. 2. Entre os documentos essenciais contam-se as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças.

(…) 4. Não têm de ser traduzidas as passagens de documentos essenciais que não sejam relevantes para que o suspeito ou acusado conheça as acusações e provas contra ele deduzidas. 5. Os Estados-Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária a tradução de documentos ou passagens de documentos e, caso esta seja facultada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da tradução não ser suficiente para garantir a equidade do processo. (…) 7. Como exceção às regras gerais estabelecidas nos n.os 1, 2, 3 e 6, podem ser facultados uma tradução oral ou um resumo oral dos documentos essenciais em vez de uma tradução escrita, na condição de essa tradução oral ou esse resumo oral não prejudicarem a equidade do processo. 8. A renúncia ao direito à tradução de documentos previsto no presente artigo fica sujeita ao requisito de que o suspeito ou acusado tenha previamente recebido aconselhamento jurídico, ou obtido, por outra via, pleno conhecimento das consequências da sua renúncia, e de que essa renúncia seja inequívoca e voluntária. 9. A tradução facultada nos termos do presente artigo deve ter a qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, assegurando, designadamente, que o suspeito ou acusado tenha conhecimento das acusações e provas contra ele deduzidas e seja capaz de exercer o seu direito de defesa.»

Da Diretiva 2012/13/EU:

Artigo 3.º

«1. Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados de uma infração penal recebam prontamente informações sobre pelo menos os seguintes direitos processuais, tal como aplicáveis nos termos do direito nacional, a fim de permitir o seu exercício efetivo:

a) O direito de assistência de um advogado;

(…)

d) O direito à interpretação e tradução;

(…)»

De acordo com a pretensão manifestada pelo recorrente, o presente recurso cinge-se à verificação da nulidade declarada, preconizando-se impedir os seus efeitos.

Importará encetar essa apreciação afirmando e contrariando, com clareza, que a decisão recorrida em nada colide – evidentemente – com o estatuto constitucional do Ministério Público! Sendo este argumento do recurso manifestamente infundado. Ao contrário disso, o que subjaz à decisão sob recurso é a afirmação do respeito que é devido aos direitos, liberdades e garantias do arguido, sendo que na ordem constitucional e democrática tal constitui intransigente missão dos Tribunais (artigo 202.º, § 1.º e 2.º da Constituição). Cabendo-lhes nomeadamente aferir, logo que os autos entram em Juízo nos casos em que não houve instrução (como foi o caso), se na fase preliminar (artigo 311.º, § 1.º ex vi artigo 386.º, § 1.º CPP) se não cometeram nulidades ou se desrespeitaram as regras do processo equitativo (artigo 20.º, § 4.º da Constituição e 6.º da CEDH). Perscrutando a decisão recorrida constatamos que as nulidades declaradas assentam em dois fundamentos:

Um - ausência de defensor por ocasião da constituição de arguido e da prestação do Termo de Identidade e Residência;

Dois - da notificação do arguido para comparecer no Tribunal sem intérprete ou tradução da mesma para a sua língua.

Ainda antes de nos debruçarmos sobre cada um dos atos referidos, importará recordar, numa breve nota, as cautelas com que a lei (em sentido amplo) rodeia o arguido desconhecedor da língua portuguesa, justamente para garantir que lhe não são cerceados direitos de defesa nem que a sua liberdade ou garantias fundamentais quedem diminuídas. Isso mesmo decorre patentemente dos normativos legais citados no despacho recorrido, mas também do âmbito do artigo 32.º da Constituição e das Diretivas da União Europeia 2010/64/EU, 2012/13/EU e 2013/48/EU.

Referimos estas Diretivas porquanto integrando estas normas jurídicas, produzidas por instituições da União Europeia, produzem efeitos na ordem interna em conformidade com o previsto no artigo 8.º, § 4.º da Constituição. Não obstante terem as diretivas como destinatários diretos os Estados membros da União Europeia, visando em primeira linha a respetiva transposição para o direito nacional, delas poderá também derivar um efeito direto vertical (dos cidadãos para com o respetivo Estado), se – como é aqui o caso – as mesmas não forem transpostas (e não foram mesmo); se as suas disposições forem incondicionais e suficientemente precisas (e são-no conforme dimana dos próprios preceitos transcritos); e se mostrar esgotado o prazo de transposição (como é também o caso (3)). A pertinência das citadas normas das Diretivas da União Europeia a que se vem fazendo referência, mostra-se cristalina e proficientemente caracterizada no recente acórdão do Tribunal de Justiça (4), proferido no âmbito de reenvio prejudicial promanado deste Tribunal da Relação de Évora, cuja síntese se mostra efetuada no acórdão deste Tribunal, de 2ago2022 (5), nos seguintes termos: «As Diretivas em referência – que consagram o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal – não se encontram transpostas no ordenamento jurídico português, sendo certo que se mostram esgotados os respetivos prazos de transposição, que terminaram, respetivamente, em 27.11.2013 e 02.06.2014. Encontramos no Tratado de Funcionamento da União Europeia (T.F.U.E), concretamente no seu artigo 288 o princípio segundo o qual uma Diretiva, à partida, só produz efeitos na ordem interna do Estado-Membro após ser transposta, vinculando, porém, os Estados-Membros à sua transposição. Todavia, para além da aplicabilidade direta a possibilidade de aplicação de uma norma comunitária na ordem jurídica dos Estados-Membros pode resultar do chamado efeito direto, que surge como uma “criação jurisprudencial” num primeiro momento relativa ao “direito comunitário originário” (Tratados) – expressamente reconhecido pela primeira vez no acórdão Van Gend & Loos, de 05.02.1963 e, em 1964 (no quadro da afirmação do princípio do primado), no Acórdão Costa c. ENEL – que tem sido estendido pela jurisprudência comunitária, no que diz respeito ao efeito direto vertical, ao “direito comunitário derivado”, onde se incluem as Diretivas. Segundo a Jurisprudência do Tribunal de Justiça o efeito direto vertical de uma Diretiva, ou seja, o que é feito valer pelos particulares perante os poderes públicos (neste caso, o Tribunal e o Estado português), existirá posto que se encontrem preenchidos cumulativamente determinados pressupostos, a saber: - Que não tenha sido efetuada a sua transposição para a legislação nacional ou que a mesma tenha sido objeto de transposição incorreta; - Que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas; - Que as disposições da Diretiva confiram direitos a particulares; - Que esteja esgotado o prazo de transposição. No que diz respeito à verificação destes requisitos relativamente às duas Diretivas acima identificadas, acompanhamos, sem hesitações, a posição defendida por João Gomes de Sousa no estudo acima citado – e que pelo mesmo autor foi aplicada no Acórdão da Relação de Évora de 28.12.2018, no proc. n.º 55/2017.9GBLGS.E1 por si relatado, disponível em www.dgsi.pt – no sentido de que os mesmos se encontram preenchidos, pelo que se impõe concluir pelo efeito direto dos dois atos do Direito da União que acima identificámos. Assim e analisando mais de perto cada um dos mencionados requisitos, verificamos que o primeiro e o último se encontram indiscutivelmente preenchidos, pois que, conforme já demos nota, nenhuma das duas Diretivas foi transposta para o ordenamento jurídico português, encontrando-se há muito esgotados os prazos fixados para as suas transposições (o que ocorreu, respetivamente, em 27.11.2013 e 02.06.2014). No que diz respeito ao terceiro requisito que enunciámos, nenhuma dúvida pode igualmente subsistir relativamente à sua verificação, uma vez que as duas Diretivas em referência, nas normas aplicáveis à situação dos autos, conferem indiscutivelmente direitos a particulares, concretamente o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal.

Finalmente, no que tange ao preenchimento do segundo critério definido – que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas – e que se apresenta como o que gera maior dificuldade de verificação, fazendo apelo à jurisprudência do Tribunal de Justiça, convocamos, atenta a sua clareza e assertividade, o acórdão do Tribunal de Justiça Susanne Gassmayr c. Bundesminister für Wissenschaft und Forschung de 1 de julho de 2010 (Processo C-194/08)[6], no qual podemos ler: “(…) 44 - Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, em todos os casos em que, tendo em conta o seu conteúdo, as disposições de uma diretiva sejam incondicionais e suficientemente precisas, os particulares têm o direito de as invocar contra o Estado nos tribunais nacionais, quer quando este não tenha feito a sua transposição para o direito nacional nos prazos previstos na diretiva quer quando tenha feito uma transposição incorreta (…) 45 - Uma disposição de direito da União é incondicional quando prevê uma obrigação que não é acompanhada de condições nem subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à intervenção de qualquer ato das instituições da União ou dos Estados-Membros. Uma disposição é suficientemente precisa para ser invocada por um particular e aplicada pelo juiz quando prevê uma obrigação em termos inequívocos (…).»

Continuando a citar o aresto a que nos vimos referindo, ali mais se refere que: «Na previsão dos atos e documentos relativamente aos quais deverá ser garantido o direito à interpretação e à tradução, incluem-se, indiscutivelmente, todos os que se revelem importantes ou condicionadores do direito de defesa dos arguidos. Assim, para além dos que especificamente se encontram enumerados no n.º 2 do artigo 3.º transcrito – decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças – também os atos processuais levados a efeito quer nas fases preliminares, quer nas fases subsequentes do processo penal com intuito eminentemente informativo e concretizador das garantias de defesa dos arguidos deverão ser objeto de tradução para língua dominada pelos seus destinatários, sob pena de total esvaziamento dos referidos atos, que, praticados no processo sem tradução, mais não assegurariam do que o cumprimento estritamente formal de normas processuais, sem qualquer correspondência material no que diz respeito aos fins que visam prosseguir.»

Pois bem.

Atentemos agora nos concretos atos e documentos postos em causa da decisão recorrida, começando pela constituição de arguido e pela prestação de Termo de identidade e Residência. Considerou o Tribunal recorrido, com referência à al. d) do § 1.º do artigo 64.º CPP, ser obrigatória a presença do defensor na constituição de arguido e na prestação de termo de identidade e residência.

«A obrigatoriedade de defensor em certos atos do processo penal tem sobretudo uma função de garantia, de controlo da legalidade dos atos e de assistência técnica ao arguido para que este possa estar bem informado dos seus direitos e deveres processuais e das consequências jurídicas dos seus atos. (6)

Importa ter em conta as circunstâncias em que decorreram a constituição de arguido e a prestação de Termo de Identidade e Residência. O arguido tinha sido detido na estrada, por estar a conduzir sob a influência do álcool, tendo nessa ocasião logo sido realizado o exame de presença de álcool no sangue. Para além da realização deste exame o arguido foi constituído nessa qualidade, mediante a comunicação ao mesmo dos direitos e deveres que lhe assistem, através de documento que lhe foi entregue, redigido em língua inglesa, cuja cópia subscreveu. No concernente a este ato de constituição de arguido (na sequência de flagrante delito – artigo 58.º, § 1.º, al. c) CPP), a lei exceciona expressamente a obrigatoriedade da presença do defensor (al. d) do § 1.º do artigo 64.º CPP). Não tendo também de estar necessariamente presente tradutor/intérprete, se ao arguido forem comunicados os direitos e deveres que decorrem desse estatuto, por escrito redigido na sua língua materna (como foi o caso). O que realmente importa é que o arguido compreenda os direitos e deveres que lhe advêm com o estatuto que passou a ter, para o que o documento em língua inglesa a que se aludiu se mostra suficiente. O mesmo acontece relativamente ao Termo de Identidade e Residência, que foi prestado naquela mesma ocasião, através de documento que lhe foi entregue, redigido em língua inglesa, cuja cópia ele subscreveu. Verifica-se que o Termo de Identidade e Residência subscrito pelo arguido não é tão completo como o que usualmente é utilizado pelos arguidos nacionais e outros conhecedores da língua portuguesa. Mas nele se contém o essencial: a lista de deveres consignados no § 3.º do artigo 196.º CPP. E é o essencial que releva, conforme expressamente se refere no artigo 3.º, § 4.º da Diretiva 64/2010/EU, que os documentos ou partes de documentos que não sejam relevantes para que o suspeito ou acusado conheça as acusações e provas contra ele deduzidas, não têm de ser traduzidas. No respeitante ao direito à defesa importa clarificar que este não implica a presença obrigatória e imediata do defensor em todos os atos e momentos, nomeadamente nos que se deixaram referidos (mas para quê?). O direito de defesa estará cabalmente assegurado se o advogado nomeado ou constituído tiver a possibilidade de controlar nos autos todos os passos dados, logo que possível. (7) Como veio a suceder. Naquela mesma ocasião a GNR solicitou à Ordem dos Advogados a nomeação de defensor para o arguido.

Alude o despacho recorrido também à comunicação a que se refere o artigo 39.º da Lei 34/2004, de 29 de julho; e ao auto de libertação, como atos que só poderiam ter lugar na presença de defensor e intérprete!

No concernente à comunicação prevista no artigo 39.º da Lei 34/2004, a mesma é obviamente irrelevante por se tratar de comunicação entre serviços do Estado.

O que releva, isso sim, é a comunicação ao arguido de que tinha o direito a constituir advogado ou de contrário lhe seria nomeado defensor. E foi isso que sucedeu, através de documento escrito redigido em língua inglesa (documento de constituição de arguido).

Depois de constituído arguido e ter prestado termo de identidade e residência, o detido deverá ser apresentado ao juiz ou ser libertado, como determina a lei (artigo 385.º, § 1.º e 2.º CPP). O arguido foi libertado. Sendo que o ato de libertação em nada afeta os seus direitos, sendo para isso desnecessária a presença de defensor ou intérprete.

Daí que apenas relativamente à comunicação feita para comparecer em Juízo no dia 11jan2023, pelas 9h30 (através de documento redigido apenas em língua portuguesa), se constata uma incontornável nulidade (prevista no artigo 120.º, § 2.º, al. c) CPP, com referência ao artigo 92.º, § 2.º CPP e artigos 2.º, § 1.º e 3.º, § 1.º da Diretiva 64/2010/EU e do artigo 3.º, § 1.º, al. d) da Diretiva 2012/13). A norma do artigo 120.º, § 2.º, al. c) CPP considera ser esta nulidade - a falta de nomeação de intérprete/tradutor nos casos que a lei a considere obrigatória - dependente de arguição. Sucede que essa dependência de arguição se mostra flagrantemente violadora dos direitos de defesa do arguido e do princípio da efetividade. E assim porquanto o prazo previsto para ser arguida tal nulidade – por preterição do direito de tradução/interpretação daquela comunicação se esgotou logo que o arguido saiu do posto da GNR, conforme decorre do artigo 120.º, § 3.º, al. a) CPP. Isto é, o prazo esgotou-se antes de ser comunicado ao arguido que tinha o direito a ser informado numa língua que compreendesse (decorrente dos artigos 47.° e 48.°, § 2.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; do artigo 6.° da CEDH, à luz dos quais deverão ser interpretados os artigos 2.°, § 1.º, e 3.°, § 1.º da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3.°, § 1.º, al. d), da Diretiva 2012/13). E por essa razão, a dependência de arguição prevista no artigo 120.º, § 2.º, al. c) CPP deverá desaplicar-se, para plenamente se assegurar ao arguido a proteção conferida pelas normas europeias constantes das Diretivas citadas, considerando-se, em conformidade com estas, que tal nulidade é insanável e de conhecimento oficioso. É esta necessidade de aplicação das normas europeias e consequente desaplicação do direito interno (por desconforme aos normativos europeus citados), que se reporta o TJUE no acórdão de 1ago2022 (Proc. C-242/22 PPU) - seguindo uma linha jurisprudencial desse mesmo Tribunal - em matéria de plena proteção dos direitos conferidos ao arguido pelas normas europeias - que já vem de trás. (8) Volvendo às circunstâncias do caso em apreço e à nulidade da comunicação feita ao arguido, pela GNR, para comparência em Juízo no dia 11jan2023 (em escrito redigido apenas em língua portuguesa), verificamos que a consequência dessa nulidade é a repetição do ato invalidamente praticado e dos que dele forem dependentes (artigo 122.º, § 1.º CPP). Isto é: - realizar uma nova comunicação (em língua inglesa) dirigida ao arguido para se apresentar em Juízo, em determinado dia e hora para ser julgado; - não podendo haver sanção pela falta ocorrida no dia 11 de janeiro; - nem ser aproveitado qualquer ato praticado nesse dia 11 de janeiro (em diligência em que o arguido tinha o direito de estar presente), em sequência da comunicação nula, em razão da ausência involuntária do arguido, sobre o qual tivesse o direito de se pronunciar, por este não ter sido regularmente convocado para essa data e ato agendado. Portanto, no dia 24 de janeiro de 2023, data em que foi prolatado o despacho recorrido subsistia uma nulidade nos autos, ainda não reconhecida nem declarada, cujos efeitos se repercutem em tudo o que se passou no dia 11 de janeiro, em decorrência da não comparência do arguido (nomeadamente o agendamento de nova audiência, em processo sumário, para 24 de janeiro). O Ministério Público reconheceu apenas implicitamente a nulidade praticada quando ordenou que a nova notificação – que veio a ser feita ao arguido no dia 17 desse mês – o fosse já através de escrito redigido em língua inglesa. Em suma: tem razão o recorrente quando afirma a inexistência das nulidades apontadas na decisão judicial recorrida relativas à constituição de arguido, à prestação de termo de identidade e residência, à comunicação prevista no artigo 39.º da Lei n.º 34/2004; e ao auto de libertação. Mas não tem razão relativamente à nulidade apontada à comunicação ao arguido da data para audiência, feita ao arguido pela GNR no dia 10 de janeiro, em escrito apenas em língua portuguesa. Pois que como de nulidade absoluta se trata, ela afeta aquele ato e os subsequentes dele dependentes, nomeadamente tudo o que aconteceu no dia 11 de janeiro, à margem da participação do arguido artigo (122.º, § 1.º CPP).

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em:

1. Manter a decisão recorrida relativamente à declaração de nulidade da comunicação feita ao arguido pela GNR, no dia 10 de janeiro de 2023, para comparência em Juízo no dia 11jan2023, com os efeitos assinalados supra; e também na parte em que remeteu a tramitação subsequente do processo para outra forma processual (nesta parte já transitada).

2. Revogar a decisão recorrida na parte em que declarou (ainda que de modo apenas implícito) a nulidade dos atos de constituição de arguido; de prestação de termo de identidade e residência; da comunicação prevista no artigo 39.º da Lei n.º 34/2004; e do auto de libertação do arguido.

3. Sem tributação por o recorrente estar isento (artigo 522.º, § 1.º CPP).

Évora, 25 de maio de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

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1 Teor do despacho judicial recorrido extratado supra.

2 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

3 O prazo fixado no artigo 9.º para transposição da Diretiva 2013/64/EU era até 27out2013; e o prazo de transposição da Diretiva 2012/13/EU terminou a 2jun2014, conforme consta do seu artigo 11.º.

4 Acórdão do TJUE, de 1ago2022, proc. C-242/22 PPU.

5 Proc. 53/19.8GACUB-B.E1, relatado pela Desemb. Maria Clara Figueiredo (que neste é adjunta). No mesmo processo, mas com data de 8mar2023, havia sido proferido acórdão pelo qual se decidiu submeter ao TJUE, através de reenvio prejudicial, a questão de saber se os artigos 1.º a 3.º da Diretiva n.º 2010/64/EU e 3.º da Diretiva n.º 2012/13/EU, isoladamente ou em conjunto com o artigo 6.º da CEDH, podiam ser interpretados no sentido de não se oporem a uma norma de direito nacional que comine com o vício de nulidade relativa, dependente de arguição, a falta de nomeação de intérprete e de tradução de atos processuais essenciais a arguido que não compreenda a língua do processo, permitindo a sanação de tais vícios com o decurso do tempo. Ambos os arestos se mostram disponíveis em www.dgsi.pt

6 Acórdão TRÉvora, de 14/10/2014, proc. 921/12.8TAPTM, Desemb. Proença da Costa. Neste sentido tb. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, p. 312.

7 Neste sentido Tiago Caiado Guerreiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo I, 2019, p. 692/693.

8 Cf. acórdão de 21out2021, proc. C-282/20 (pontos 40 e 41); e acórdão do mesmo Tribunal de 24ju2019, proc. C-573/17.