Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
192/13.9 GBABF.E1
Relator: MARIA FILOMENA SOARES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
NE BIS IN IDEM
Data do Acordão: 02/23/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSOS PENAIS
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – Homologada a desistência de queixa apresentada pela ofendida, por factos que foram qualificados como integrantes de um crime de ofensa à integridade física, com o consequente arquivamento dos autos, os factos que dele foram objecto não podem ser de novo e uma vez mais valorados para efeito de poder ser o arguido, por eles, perseguido criminalmente pela prática de um crime de violência doméstica, pois constitui caso decidido, sob pena de insuportável violação da paz jurídica e da segurança do cidadão.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:
I

[i] No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 192/13.9 GBABF, da Comarca de Faro, Instância Local de Albufeira, Secção Criminal, J2, mediante acusação do Ministério Público, precedendo apresentação de contestação [pelo arguido, oferecendo o merecimento dos autos], foi submetido a julgamento o arguido A., filho de…, natural da freguesia de Carregueira, concelho de Chamusca, nascido em 15.10.1960, divorciado, reformado e residente…, em Albufeira, e por sentença proferida em 23.06.2015 e depositada em 01.07.2015 foi decidido:
“(…)

Pelo exposto:
- declaro extinto o procedimento criminal, em obediência ao art. 29º, nº5, CRP, por força do "caso decidido" formado com a homologação da desistência de queixa no Proc. ---/12.9 GBABF, quanto aos factos descritos em 10) a 13) dos factos provados;

- condeno o arguido A., pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, a) e nº2, Código Penal, na pena de 2 dois anos e 2 dois meses de prisão a qual se suspende na sua execução por igual período, nos termos do artigo 50º, nº5, Código Penal.
(…)”.

Inconformados com esta decisão, dela recorreram o Digno Magistrado do Ministério Público e o arguido.

[ii] O primeiro (o Ministério Público), extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões:

“1 - Vem o presente recurso interposto da douta sentença condenatória preferida nos autos a 23/06/2015, na parte em que não conheceu dos factos que deu como provados nos pontos 10) a 13) da matéria assente, declarando extinto o procedimento criminal nessa parte, em obediência ao artº 29º, nº 5 da CRP, por força do suposto "caso decidido" formado com a homologação da desistência de queixa, pelo Ministério Público, em fase de inquérito, no processo apenso (nº ---/12.9GBABF).

2 - Com efeito, foi dito pela Mmª Juiz "a quo", além do mais, que aquela decisão final de arquivamento, nos termos do artº 277º, nº 1 do CPP, por desistência de queixa, colocou aqueles factos ou, se se quiser, aquele "pedaço de vida" a coberto de decisão de carácter definitivo, importando para o arguido o direito a não mais ser perseguido criminalmente e, muito menos, condenado por tais factos, e, para o Estado, uma limitação do seu poder punitivo, que não pode renovar-se a propósito de tal factualidade, em ordem a garantir a segurança e certeza jurídicas.

3 - Discorda-se, dado que aquele segmento fáctico, levado à matéria dada como provada, deveria ter sido apreciado e valorado, ao invés de ter sido obliterado por uma putativa e pretérita extinção do procedimento criminal, conduzindo depois, e seguramente, ao agravamento da reacção penal no caso, em termos de escolha da pena e de determinação da sua medida, tudo de harmonia com os critérios vertidos nos artºs 40º, 70° e 71º, todos do Cód. Penal.

4 - Em retrospectiva histórico-processual há que recuar até ao despacho preferido nos autos a 05/11/2014, pela Digna Magistrada do Ministério Público titular do inquérito, que, antecedendo a prolação da acusação na forma de processo sumaríssimo, determinou, após consulta do inquérito ---/12.9GBABF, a sua reabertura, nos termos do artº 279º n° 1 do CPP, e posterior apensação aos presentes autos.

5 - Nesse inquérito, reaberto e apensado, havia estado em investigação a prática de uma situação de ofensa à integridade física perpetrada pelo arguido sobre a assistente, em 21 de Abril de 2012, e, na ausência de referência a outros episódios de violência (física ou psicológica) entre o casal, perante a manifestação de vontade por parte da ofendida em desistir da queixa apresentada, foram os factos qualificados como crime de ofensa à integridade física e homologada a desistência de queixa.

6 - Entendeu a Digníssima Magistrada do MP que tais factos têm de ser apreciados como um todo e não em separado para se poder avaliar do seu enquadramento jurídico enquanto crime de violência doméstica, tendo-se constatado, face a denúncias depois surgidas, que se encontram relacionados com outros factos praticados pelo arguido, que no seu todo integram a prática do crime de violência doméstica, ou seja, tais factos não têm autonomia enquanto crime diverso do crime de violência doméstica.

7 - O cerne da questão é pois esta decisão de reabertura e de apensação de um inquérito outrora arquivado, por homologação de desistência de queixa e qualificados que foram os factos como crime de ofensa à integridade física, dado que, à luz da matéria entretanto apurada e denunciada pela ofendida, se verificou que os mesmos integravam uma dinâmica mais vasta e dilatada, subsumível ao crime de violência doméstica, havendo por isso novos elementos de prova que invalidavam os fundamentos invocados pelo Ministério Público no referido despacho de arquivamento, de harmonia com o artº 279º do Cód. Proc. Penal, ainda que tal despacho tenha sido lavrado ao abrigo do nº 1 do artº 277º do referido diploma legal.

8 - Como corolário do descrito, está pois a bondade da decisão tomada em sede de sentença que, embora dando como provados tais factos, entendeu não dever valorá-los, considerando tal atingiria a tutela do caso julgado, aqui na vertente de "caso decidido", e, consequentemente, os princípios da certeza e da segurança jurídicas, dado que o "caso decidido" só pode ser alterado nos termos previstos nos artºs 279º e 449º, nº 1 (por via do nº 2) do CPP, não se verificando nos presentes autos qualquer das circunstâncias; excepcionais, previstas naqueles preceitos.

9 - Antes de mais, há acerto na decisão processual tomada pelo MP em sede de inquérito, visto que, aquelas moléstias físicas, quando atomisticamente consideradas, escapavam, de facto, a uma análise mais fina do confronto conjugal que estava em curso e depois continuou, circunstância que só ulteriormente foi sanada, pelas denúncias continuadas da ofendida relativamente à situação de violência doméstica que estava a experienciar, ou seja, o posterior enquadramento de tal episódio num quadro mais vasto de maus-tratos, permitiu qualificar correctamente a conduta do arguido como sendo de cariz reiterado, persistente e visando a contínua humilhação e rebaixamento da ofendida.

10 - Por via daquela decisão de reabertura e apensação, ligou-se aquele episódio do dia 21/01/2012 ao curso factual que tinha correspondência com a realidade, cessando o lapso de leitura efectuado aquando do arquivamento, lapso que só foi sanado pelo surgimento de novos factos e de novos elementos de prova, e integrando tal evento num quadro verídico de violência doméstica, punível nos termos do artº 152º do Cód. Penal.

11 - Com efeito, como é sabido, as condutas integrantes do tipo objectivo do crime de violência doméstica, podem ser susceptíveis de, isoladamente consideradas, constituírem outros crimes, como, por exemplo, ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria e difamação. Todavia, como bem salienta o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04.11.2004, Proc. 8948/2004-9, em www.dgsi.pt “… de acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime, as condutas que integram o tipo de ilícito não são individualmente consideradas enquanto integradoras de um tipo de crime para serem atomisticamente perseguidas criminalmente, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido que signifique maus-tratos sobre o cônjuge ou sobre menores ...”.

12 - Ou seja, entre o crime de violência doméstica e os crimes acima enumerados existe uma relação de especialidade, sendo que a razão de ser que subjaz à punição mais agravada do primeiro reside na relação que liga o agente à vítima, que cria naquele uma particular obrigação de não infligir maus-tratos ao familiar.

13 - A pedra de toque da decisão da Mmª Juiz "a quo" residiu, na circunstância do arquivamento previamente proferido, se ter baseado no estipulado no nº 1 do artº 277º do Cód. Proc. Penal, mais concretamente no segmento de tal norma que prevê que o procedimento criminal é legalmente inadmissível, essencialmente, por razões processuais.

14 - Porém, a circunstância do prévio arquivamento ter sido determinado nos termos do nº 1 do artº 277º do Cód. Proc. Penal, que abarca, como é sabido, além da citada hipótese de impedimentos processuais, os casos de prova de inexistência de crime ou do seu não cometimento por banda do arguido, não é factor impeditivo da reabertura, porquanto, o arquivamento, seja do nº 1, seja do nº 2 de tal preceito, tendo a força de caso decidido, é porém mutável e susceptível de reavaliação se surgirem novos elementos que ponham em causa os efeitos da decisão de abstenção, no âmbito do mesmo processo.

15 - Não é pois uma decisão de mérito, mas uma decisão de alcance processual, sendo que o eventual prosseguimento da acção penal, em resultado de uma decisão de reabertura, não ataca qualquer princípio da certeza e da segurança jurídica, porquanto, não há subordinação ao princípio "ne bis in idem", segundo o qual, ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, visto que no Código de Processo Penal existem, apenas, duas disposições normativas que se reportam à figura em causa - o caso julgado, que são o artigo 84º, respeitante à decisão que conhece do pedido civil, e o artigo 467°, nº 1, ao estatuir que, as decisões penais condenatórias, logo que transitadas, possuem força executiva.

16 - No sentido deste entendimento, embora reportado a uma situação de base diversa, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/03/2008, proc. 2846/07-1, relator Dr. Ribeiro Cardoso, disponível em www.dgsi.pt. o qual, além do mais, reza o seguinte: "... Em caso de hipótese de arquivamento do inquérito nos termos do art. 277º do CPP, pode manter-se ainda numa certa indefinição, quanto ao objecto do processo, que tem como consequência que em caso de reabertura do inquérito os factos podem ser ampliados, restringidos ou ser qualificados diversamente. É que o art. 277º apenas exige a prova de que os factos noticiados, com os desenvolvimentos que o inquérito entretanto propiciou, não constituam crime ou que não se indicie suficientemente que o constituam, mas não que não constituam um determinado crime... O arquivamento do inquérito, ao abrigo do disposto no art. 277º do CPP, não tem efeitos preclusivos, pois o inquérito pode ser reaberto nos termos do art. 279º nº1 do mesmo diploma, ou seja, caso surjam novos factos ou elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento. O despacho de arquivamento neste âmbito é da exclusiva competência do Ministério Público e nele não há qualquer intervenção judicial. A decisão não é, pois, jurisdicional e consequentemente, não é susceptível de recurso, nem de trânsito em julgado. O despacho de arquivamento, resultante de não se terem confirmado indícios da comissão de um crime, ou por concluir que os arguidos não o praticaram, não é urna decisão de mérito. E também assim é em todos os casos de não pronúncia, pois o tribunal conhece simplesmente da não verificação dos pressupostos necessários para que o processo prossiga com a acusação deduzida e submetida à comprovação na fase da instrução; trata-se sempre, pois, de uma decisão de conteúdo estritamente processual:"

17 - No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, comentário ao artº 279º, págs. 725/727: "... Nos casos do artigo 277.°, n.ºs 1 e 2, a situação é diversa: trata-se de decisões unilaterais do MP sobre o objecto provisório do processo, que podem estar viciadas pelo desconhecimento de factos relevantes que só posteriormente venham a ser descobertos. Não se justifica, pois, qualquer tutela da confiança dos sujeitos processuais na definitividade do caso decidido... Por isso, além da revisão fundada no artigo 449.°, n.º 1, als. a) e b), a lei admite a revisão pro societate do despacho de arquivamento nos casos do artigo 277.°, n.° 1 e 2, isto é, a "reabertura" do inquérito com base em novos elementos de prova ...".

18 - Em anotação ao artº 277º (ponto 24, pág. 718) acrescenta o mesmo autor o seguinte: "... Decorrido o prazo do artigo 278.°, o despacho de arquivamento preferido nos termos do artigo 277.°, n.º 1 e 2, faz caso decidido e só é passível de revisão nos termos do artigo 449.°, n.º 2, e com os fundamentos do artigo 449.°, n.º 1, als. a) e b), ou da "revisão pro societate" prevista no artigo 279.° (ver a anotação ao artigo 279.°). Assim, pode reabrir-se o inquérito se se apurar que a data do cometimento do crime é posterior à data relevante para efeitos de aplicação da lei de amnistia ou que entre a verdadeira data e o facto interruptivo da prescrição não decorreu ainda o prazo da prescrição ou ainda que o arguido era imputável á data dos factos ...".

19 - Em suma: sempre que a decisão de reabertura se fundar no surgimento de factos novos e relevantes ou no desconhecimento, à data da decisão de arquivamento, de factos essenciais, antes ignorados ou sonegados, e que só posteriormente foram descobertos, tal reabertura é legítima, já que aquele arquivamento, ainda que lavrado de harmonia com os pressupostos do nº 1 do artº 277º do Cód. Proc. Penal, consubstancia-se numa decisão unilateral do Ministério Público sobre o objecto provisório do processo, que pode estar inquinada por tal desconhecimento ou pela natureza imediatista de todo o acto decisório que não se harmoniza com a dinâmica e o fervilhar que são próprios da vida. Não se justifica, assim, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, qualquer tutela da confiança dos sujeitos processuais na definitividade do caso decidido.

20 - É, assim, legítimo reatar a acção penal quando se constata, em momento posterior, que uma dada agressão não configurou um acto isolado na vida de um casal ou um mero descontrole emocional, mas antes um de muitos episódios desencadeados pelo agressor que visaram molestar e humilhar o cônjuge, isto face ao surgimento de posteriores denúncias que lançaram luz sobre a verdadeira natureza daquela relação.

21 - Defender o contrário seria aceitar que a vida é um fenómeno estático ou com momentos estanques, como se de uma sucessão de fotogramas se tratasse, ao invés de aceitar que é antes uma realidade dinâmica e animada. Como se diz no Ac. do TRL de 08/11/2011, Pº nº 5752/09. OTDLSB, relator Dr. Luís Gominho, disponível em www.dgsi.pt " .. . O crime de violência doméstica é muito mais que uma soma de ofensas corporais, não sendo as condutas que integram o tipo consideradas autonomamente, mas antes valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador daquele crime. Na avaliação desse comportamento, a ponderação de um facto objecto de um processo autónomo, arquivado por falta de queixa da ofendida, não configura violação do princípio ne bis in idem …".

22 - Acresce que o episódio do dia 21/04/2012 é o único que consta da matéria de facto provada, que se concretizou numa conduta agressiva por parte do arguido, ou seja, na prática de moléstias físicas sobre o corpo da vitima, caracterizadas, aliás, por uma acentuada violência e intensidade (socos desferidos na cabeça e no tronco, mesmo quando a vítima se encontrava já caída no chão, e que determinaram que esta recebesse assistência médica), o que faz agravar, de forma considerável, a gravidade e a intensidade da conduta do arguido.

23 - Por tudo o que ficou dito, deve aquele segmento fáctico (pontos 10. a 13. dos factos provados), levado que foi à matéria dada como provada, ser apreciado e valorado, ao invés de ser obliterado por uma putativa e pretérita extinção do procedimento criminal, conduzindo, em consequência, à condenação do arguido também pela prática desses factos e ao agravamento da reacção penal no caso, em termos de escolha da pena e de determinação da sua medida, tudo de harmonia com os critérios vertidos nos artºs 40º, 70º, e 71º, todos do Cód. Penal.

24 - Pugna, assim, o Ministério Público, ora recorrente, pela aplicação de uma pena concreta de 3 (três) anos de prisão, ainda que suspensa na sua execução por igual período, face, em particular às consequências do crime (que se reflectiram não só no plano anímico e psicológico, mas também físico), ao modo de execução deste (corporizado no medo e no ascendente moral, bem como na força e na superioridade físicas), ao grau de ilicitude demonstrado (que não pode ser considerado moderado) e ao grau de violação dos deveres impostos ao agente (o arguido feriu o corpo e a auto-estima da vitima, alheando-se do dever de respeito que é próprio da relação conjugal, querendo humilhá-la e afectá-la no seu amor e respeito próprios).

25 - Deve pois a douta sentença ora em discussão ser revogada e alterada, nessa estrita medida e nos termos vindos de defender.

26 - Ao ter decidido de modo diverso, violou a Mmª Juiz "a quo", por indevida interpretação, ressalvado o devido respeito, que é muito, o preceituado nos artºs 277º, nº 1 e 279°, ambos do Cód. Proc. Penal, 40º, 71° e 152º do Cód. Penal, e ainda o disposto no artº 29º, n° 5 da CRP.

Todavia, V.Exas. decidirão, como sempre, conforme for de lei e de Justiça.”.

[iii] O segundo (o arguido), extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões:

I. Da impugnação da matéria de facto.
1. Considera o ora recorrente, salvo o devido respeito por melhor opinião, que parte da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal “ a quo “ foi julgada de forma incorrecta.

2. Nos termos do artigo 355º, nº 1, do Código de Processo Penal “ Não valem em julgamento, nomeadamente para efeito da formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou analisadas em audiência “

3. Salvo o devido respeito por melhor opinião, o arguido, ora recorrente, considera, nos termos do artigo 412º, nº 3 do CPP, incorrectamente julgados os factos referidos nos artigos 8º, nomeadamente o seguinte chamando-a de puta ….. e “ vaca “ ... ou que a iria matar , e no artigo 15º , nomeadamente …...; vai para o caralho ; nem comida fazes para mim, vai-te foder“ dos factos dados como provados, os quais, atendendo à prova produzida em audiência de julgamento, deviam ter sido dados como não provados.

4. O artigo 8º refere: 8) As discussões, que tinham lugar na morada da família, sucederam-se a acabavam frequentemente com o arguido a dirigir-se à assistente afirmando que esta o tinha traído por questões de dinheiro, chamando-a de “puta “ e “ vaca “, bem como dizendo que aquela “ não valia nada” ou que a iria matar º.

5. Conforme resulta das declarações da própria assistente nunca esta referiu que o arguido alguma vez lhe tivesse chamado “vaca”, tendo referido que às vezes lhe chamava “ cabra “, que não fazia comida., pelo que não deve ser considerado provado que o arguido lhe chamava “vaca. “ - conforme transcrição supra de parte do depoimento da assistente do dia 03.06.2015 .

6.Quanto à expressão “... ou que a iria matar , constante no artigo 8º, tal facto não deveria ter sido considerado como provado , pois o arguido nunca ameaçou a assistente e não houve qualquer menção da assistente ou das testemunhas de que o arguido tenha feito quaisquer ameaças de morte à assistente (Gravação do depoimento da assistente do dia 03.06.2015 -entre as 9h59m12s e as 10.33m16s) .

7. A faca procurada pelo arguido era dele e ele somente tinha pedido à assistente para lha dar, uma vez que ela lhe tinha dito que a tinha escondido. A própria assistente no seu depoimento, refere: - gravação do depoimento da assistente do dia 03.06.2015 17m12s - Assistente: Ele disse “ quero a faca, pode acontecer alguma coisa e depois tornam culpas a mim “

8. Acresce que, no auto de apreensão da faca, constante dos autos a folhas 308, também não há qualquer referência de que a faca terá sido entregue na GNR por motivos de ameaça de morte à assistente, por parte do arguido. Conforme consta no final do auto de apreensão “ por vontade da vítima foi efectuada a apreensão da faca acima referida.

9. Face ao supra exposto, entende assim o arguido, ora recorrente, sempre com o devido respeito por melhor opinião, que a douta sentença proferida não valorou de forma correcta a prova produzida em audiência de julgamento, devendo passar a constar como factos não provados os constantes do artigo 8º, nas partes em que refere ..” . chamando-a de …. “ vaca “ ... ou que a iria matar , os factos constantes do artigo 15º na parte em que refere …...; vai para o caralho ; nem comida fazes para mim, vai-te foder “ , pois tais expressões não foram referidas em parte alguma do depoimento da assistente - depoimento do dia 03.06.2015 -entre as 9h59m12s e as 10.33m16s .

10. O arguido, ora recorrente, não se pronuncia quanto aos factos dados como provados nos artigos 10) a 13) porquanto, conforme bem refere a Mma. Juiz do Tribunal “a quo” na sua decisão, o procedimento criminal quanto aos mesmos factos encontra-se extinto, de acordo com o disposto no artigo 29ª, nº 5 da Constituição da República Portuguesa por força do caso decidido formado com a homologação da desistência de queixa do Proc. 781/12.9GBABF.

11. Conforme documentação clinica junta aos autos e conforme resulta das declarações do arguido, da assistente e também das testemunhas, o arguido, a partir do ano 2009 teve vários problemas de saúde, nomeadamente foi-lhe diagnosticada doença bipolar e depressão, com toma de medicação e períodos de baixa, conforme informação clinica a folhas 72 e seguintes e 182 e seguintes, tendo estado várias vezes internado e tendo inclusive tentado várias vezes o suicídio – folhas 99 e seguintes e folhas 105 e seguintes.

12. Foi elaborado relatório psiquiátrico do arguido, o qual consta a folhas 342 e seguintes dos autos.

13. Note-se que os factos constantes da acusação, terão alegadamente ocorrido, após o início dos problemas de saúde do arguido, sendo que a assistente e o arguido foram casados durante mais de 30 anos, sem problemas de maior a assinalar.

14. Conforme resulta do depoimento da assistente - gravação do depoimento da assistente do dia 03.06.2015 - 22m50s:

Mma. Juiz: A senhora disse que ele passou a ter este comportamento a partir da altura em que lhe foi diagnosticada a doença. Antes disso o comportamento dele era normal?
Assistente: Era, porque ele nem me chamava nomes” .

15. A assistente também sofria de vários problemas de saúde, conforme consta do relatório clinico a folhas 127 e seguintes dos autos, nomeadamente de ansiedade, nervosismo, depressão.

II. Da impugnação da matéria de direito:

a) Do crime de violência doméstica
16. O arguido, ora recorrente, vem acusado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2 do Código Penal.

17. Dispõe o artigo 152º, nº 1, alínea a) do Código Penal que “ 1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofendas sexuais : a) Ao cônjuge ou ex cônjuge ( …) é punido com pena de prisão de um a cinco anos , se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal .”

18. Por sua vez o nº 2 do mesmo artigo prescreve “ 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicilio comum ou no domicilio da vitima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos .

b) Da medida da pena

19. O arguido foi condenado, nos presentes autos, como autor material, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1 , alínea a) e nº 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

20. Atendendo ao factos provados em sede de audiência de julgamento, o arguido considera que a pena aplicada é excessiva, sendo que mesmo a pena mínima prevista no nº 2 do artigo 152º , nº 2 ( 2 anos de prisão), no caso dos presentes autos, já se afigura exagerada .

21.Dispõe o artigo 40º, nº 1 do Código Penal que a aplicação das penas visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. E no nº 2 do mesmo artigo vem referido que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

22. Por sua vez o artigo 71º, nº 2 do Código Penal refere que: “ Na determinação da medida concreta da pena o Tribunal atende a todas as circunstâncias que , não fazendo parte do tipo de crime , depuserem a favor do agente ou contra ele, ...”

23. Refere ainda o artigo 72º, nº 1 do Código Penal, que 1- O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime ou contemporâneas dele , que diminuam por forma a acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. “

24. Entende o arguido, ora recorrente, que no caso concreto dos autos, atendendo à doença do arguido - doença bipolar e depressão, problemas psiquiátricos – conforme ficou provado através dos documentos juntos aos autos e até pelas declarações da assistente, que referiu que o arguido, antes de lhe ser diagnosticada a doença, tinha um comportamento normal, deverá a pena ser especialmente atenuada, nos termos do disposto no artigo 72º do Código Penal.

25. Acresce que o arguido está inserido profissional e socialmente e não tem quaisquer antecedentes criminais.

26. A douta sentença recorrida violou ou aplicou incorrectamente o disposto nos artigos 40º, 71º, 72º e 152º nº 1, a) e 2. todos do Código Penal .

27. Por tudo o exposto, atendendo à prova produzida em audiência de julgamento e aos documentos clínicos juntos aos autos , os quais comprovam a situação de doença do arguido ( doença bipolar , associada a depressão , patologia psiquiátrica ) a qual terá potenciado a ocorrência dos factos dados como provados , entende o arguido, ora recorrente, com o devido respeito por melhor opinião, que a pena deverá ser especialmente atenuada, nos termos do disposto no artigo 72º do Código Penal , devendo a mesma ser fixada pelo seu limite mínimo e suspensa na sua execução.

Nestes termos e nos demais de direito, com o douto suprimento de V. Exas., deverá o presente recurso ser julgado procedente, em consequência, deverá a pena ser especialmente atenuada, nos termos do disposto no artigo 72º do Código Penal, devendo a mesma ser fixada pelo seu limite mínimo e suspensa na sua execução.

Mas os Venerandos Desembargadores melhor decidirão, fazendo a costumada
JUSTIÇA!”.

Admitidos os recursos [cfr. fls. 622], e notificados os devidos sujeitos processuais, foram apresentados articulados de resposta.
Assim:

[iv] Ao recurso interposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público, apresentou articulado de resposta o arguido, concluindo que:

“1. No âmbito dos presentes autos o arguido foi condenado, como autor material, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1 , alínea a) e nº 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período
.
2. O Digmo. Magistrado do Ministério Público interpôs recurso da douta sentença condenatória, por não se conformar com a mesma, na parte em que não conheceu dos factos que deu como provados nos pontos 10) a 13) da matéria assente, declarando extinto o procedimento criminal nessa parte, em obediência ao artigo 29º, nº 5 da CRP, por força do “caso decidido” formado com a homologação da desistência de queixa, pelo Ministério Público, em fase de inquérito, no Processo apenso 781/12.9GBABF.

3. A Mma. Juiz fundamenta a sua decisão, nos seguintes termos:

Ora, ainda que não tenha consagração expressa na lei processual penal o instituto do caso julgado aplica-se por força do principio constitucional “ ne bis in idem “ , plasmado no artigo 29º , nº 5 da CRP , de acordo com o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime “. …...“ Assim, todo o comportamento espácio-temporalmente determinado, facto naturalístico concreto ou “pedaço de vida” de um individuo que tenha sido já objecto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare, e independentemente do “nomem iuris” que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado, fica abrangido pelo efeito de caso julgado, ou na ausência de julgamento propriamente dito, de “ caso decidido “ .

4. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.07.2013, Proc. 130/10.0GAMTR.P1 refere que “ O crime de violência doméstica (artigo 152 do CP) consuma-se com a prática do último acto de execução e assim, qualquer facto que integrasse o pedaço de vida do agente e da vítima e que não fora conhecido no processo já definitivamente julgado, não pode mais ser conhecido em novo processo, pois que isso comportaria a violação do caso julgado.”

5. Por sua vez o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/11/2011, Proc. 2752/09.TDLSB,refere no seu sumário “ Iº O crime de violência doméstica é muito mais que uma soma de ofensas corporais, não sendo as condutas que integram o tipo consideradas autonomamente mas antes valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador daquele crime .

Iiº Na avaliação desse comportamento, a ponderação de um facto objecto de um processo autónomo, arquivado por falta de queixa da ofendida, não configura violação do principio “ ne bis in idem “

6. Neste Acórdão, depois de várias considerações doutrinárias sobre a problemática em questão, é referido o seguinte:

“ Na falta de um outro tempo para maturação destas ideias, entenderemos por ora precipitado tomar estas asserções como doutrinariamente inquestionáveis, sem outro esforço de aferição ou teste. Por isso vamos assentar a nossa posição nos seguintes considerandos:

Para a integração do crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado, tais factos não são imprescindíveis.

Mais, se em relação aos reportados a 31 de Dezembro de 2005 e madrugada de 1 de Janeiro de 2006 (pontos 9 a 11) até poderemos conceder que exista caso julgado pelo efeito “extintivo” que a homologação da desistência de queixa comporta para o respectivo procedimento criminal (embora o que a Lei refere é que a desistência de queixa impede que a queixa seja renovada) o mesmo não concluiremos em relação ao primeiro facto (que reporta a situação verificada em 22 de Julho de 2005) que é uma simples decisão formal ditada por razões processuais decorrente da constatação da falta de legitimidade do Ministério Público para prosseguir a acção penal.

Neste caso, entendemos não existir aquele efeito preclusivo. “

7. Ou seja, neste Acórdão entendeu-se que existe caso julgado pelo efeito “extintivo” que a homologação da desistência de queixa implica para o respectivo procedimento criminal.

8.No entanto, se o Ministério Público não tinha legitimidade para prosseguir a acção penal por falta de queixa da ofendida, o entendimento é que nesta situação não existe aquele efeito preclusivo.

9. No caso concreto dos presentes autos o processo apenso nº ---/12.9GBABF não foi arquivado por falta de queixa da ofendida, mas sim por motivo de desistência da queixa por parte da mesma, devidamente homologada.

10. Pelo que, salvo o devido respeito por opinião diversa, entende-se que a Mma Juiz decidiu corretamente ao declarar extinto o procedimento criminal, de acordo com o artigo 29º, nº 5 da CRP, por força do “caso decidido” formado com a homologação da desistência de queixa no Proc. 781/12.9GBABF, quanto aos factos descritos em 10) a 13) dos factos provados.

11. Face ao acima exposto, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo Digmo. Magistrado do Ministério Público, mantendo-se a decisão de declarar extinto o procedimento criminal quanto aos factos descritos em 10) a 13) dos factos provados.

V. Excelências porém, apreciarão e decidirão como for de JUSTIÇA!”.

[v] Ao recurso interposto pelo arguido respondeu a Digna Magistrada do Ministério, afirmando que:

“Considera o recorrente que o tribunal a quo deu como provados factos que não o poderiam ter sido, face ao depoimento prestado pelas testemunhas, nomeadamente da assistente.

Assim, para além de afirmar que a assistente não referiu certos factos constantes da factualidade provada, o recorrente limita-se a por em causa a valoração da prova efectuada pelo tribunal a quo, argumentando no sentido de que a mesma deveria ter sido valorada de modo diverso, conduzindo à sua absolvição, mediante a aplicação do princípio in dubio pro reo.

Na verdade, se atentarmos na motivação da decisão quanto à matéria de facto, facilmente se compreende quais os elementos probatórios em que se fundou a decisão recorrida, a qual, na nossa perspectiva, não nos merece qualquer juízo de censura.

Senão vejamos.
Considerou o tribunal como relevante o depoimento prestado pelas testemunhas da acusação e pela assistente, os quais mereceram credibilidade.

Com efeito, a fundamentação vertida na douta sentença recorrida não deixa margem para dúvidas acerca do convencimento do tribunal, muito embora o arguido tenha negado a generalidade dos factos, tal como os mesmos vieram a ser dados corno provados.

Ou seja, a percepção dos depoimentos, alcançada com a oralidade e mediação das provas, resulta da conjugação lógica entre tais depoimentos e os demais elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.

Assim, apenas no caso de a decisão sobre a matéria de facto não ter qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo, é que pode a mesma ser posta em causa.
Por esse motivo é que o artigo 127.º do Código de Processo Penal dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente, o que não é o caso.

Conforme refere o Prof. Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal II, pag. 27) as regras ou normas da experiência "são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto, sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade" e a livre convicção "é um meio da descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade, portanto, uma conclusão livre porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores".

Assim, muito embora o arguido tenha apresentado urna versão diferente dos factos, negando a sua prática, tal versão não foi credível, face à ponderação dos demais meios de prova e à luz das regras da experiência e da normalidade do acontecer, pelo que os factos vieram a ser dados como provados como o foram na sentença recorrida, conduzindo à sua condenação.

Não será, portanto, a mera discordância do arguido com a forma como o tribunal formou a sua convicção que poderá, sem mais, por em causa a factualidade vertida na douta sentença recorrida, a qual não nos merece qualquer censura, não tendo sido violado o princípio da presunção de inocência, conforme pretende o arguido ver reconhecido.

Citando, a este propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.11.2009 (disponível em www.dgsi.pt), "o princípio in dubio pro reo não é uma regra para a apreciação da prova, mas apenas se aplica depois de finalizada a valoração e apreciação crítica da prova, como ensina Roxin (. .. ). O princípio in dubio pro reo, é apenas uma regra de decisão da prova.

Ora conforme se dá conta na motivação não se debateu o tribunal com qualquer dúvida final resistente à apreciação crítica. A prova produzida foi bastante para sustentar o juízo formulado nos autos. E, sendo a prova bastante, não se verifica qualquer incerteza quanto a autoria dos factos. Não foi assim violado o princípio in dubio pro reo ", motivo pelo qual deverá a douta sentença ser mantida nos seus precisos termos.

Da determinação da medida concreta da pena:

Relativamente à pena aplicada, não nos merece a mesma qualquer espécie de censura.

O crime em apreço é punível com pena de prisão de dois a cinco anos. Na determinação, dentro da moldura penal abstracta, da medida concreta da pena, seguir-se-á assim o critério geral dos artigos 71 º, n.º 1 e 40º, n.º 1 e 2 do Código Penal: em função da culpa do agente, e atendendo ainda às exigências de prevenção do cometimento de futuros crimes.

Os princípios regulativos da actividade de determinação da medida concreta da pena são, pois, a culpa e a prevenção.

A culpa estabelece o máximo de pena concreta que não pode, em caso algum, ser ultrapassado. Constitui-se, assim, como um limite inultrapassável pelas considerações de prevenção.

Ora, até ao máximo consentido pela culpa, é a medida exigida pela tutela dos bens jurídicos, ou seja, a prevenção geral positiva ou de integração, que vai determinar a medida da pena.

A medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos oferece-se como uma "moldura de prevenção", cujo máximo é o ponto mais alto consentido pela culpa e o mínimo resulta do quantum de pena imprescindível à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias (defesa da ordem jurídica). Dentro desta "moldura de prevenção" actuarão sem restrição as finalidades de prevenção especial, cujo critério decisivo é a medida das necessidades de socialização do agente, as quais irão, em última análise, determinar a medida da pena.

Cada um desses princípios regulativos tem subjacente um conjunto de circunstâncias relativas ao facto e ao agente (não taxativamente previstas nos arts. 71 º, n.º 2 do Código Penal), que auxiliam o julgador na tarefa de determinação do quantum concreto de pena.

Cumpre neste momento apreciar a pena concretamente aplicada ao crime em causa, atendendo à respectiva moldura penal, aos critérios de escolha e medida da pena e às suas finalidades.

Assim, considerou o tribunal a quo, por referência aos critérios estabelecidos no artigo 71.º do Código Penal, que:

a) O arguido actuou com dolo intenso e directo, consciente da ilicitude da sua conduta;

b) As consequências do crime não excederam o resultado normalmente atingido, não se considerando muito graves, do ponto de vista dos bens pessoais atingidos;
c) A ilicitude assume um carácter moderado, atenta a natureza e duração da factualidade praticada pelo arguido;

d) O grau de culpa é moderado, tendo o arguido actuado com dolo directo, ponderando ainda o tribunal a doença psiquiátrica do arguido e o contexto de ruptura da relação conjugal, pese embora por ele potenciado;

e) A ausência de antecedentes criminais do arguido, associado à sua inserção social;

Ponderou ainda a Mma. Juiz a quo as elevadas exigências de prevenção geral, fixando a pena de dois anos e dois meses de prisão, suspensa na sua execução, por entender que a simples censura do facto, aliada à ameaça de prisão, se mostrar adequada e suficiente à realização das finalidades de prevenção geral e especial.

Aderindo à fundamentação vertida na douta sentença, é nosso entendimento que a pena aplicada é adequada, devendo, por isso, ser mantida nos seus precisos termos, tanto mais que se encontra muito próxima do limite mínimo da moldura penal.

Termos em que deve ser negado provimento ao recurso em análise e mantida a decisão recorrida, assim se fazendo Justiça.”.

[vi] Remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no âmbito do qual, no que se reporta ao recurso interposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público na primeira instância, se limita a apor “Visto” e, no que se refere ao recurso interposto pelo arguido, afirma, em síntese, “(…) o Ministério Público na instância recorrida na resposta que apresentou, onde rebate de forma convincente os argumentos apresentados pelo recorrente. Porque, em nosso entender, ali são tecidos argumentos que evidenciam o malogro quanto às questões colocadas à jurisdição deste tribunal, nada mais com relevo para a decisão a proferir, se oferece acrescentar, por desnecessário e mesmo redundante (…)”.

Conclui, em consequência, que a decisão recorrida não merece censura e “ao recurso deverá ser negado provimento”.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido feito uso do direito de resposta.

Foi efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais.
Foi realizada a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito v.g. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

Acresce que, no âmbito dos poderes de cognição do Tribunal, estenão está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, como decorre claramente do preceituado no artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.

Nestes termos, vistas as conclusões dos recursos em apreço, verificamos que as questões suscitadas são as seguintes (agora ordenadas segundo um critério de lógica e cronologia preclusivas):

(i) - Como questão prévia, saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de direito ao ter considerado que determinado segmento da factualidade dada como provada [o constante dos pontos sob os nºs “10) ” a “13)” da decisão de facto da sentença recorrida] se encontrava abrangido pela força do “caso decidido”, nos termos prevenidos no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa [porquanto foi alvo de despacho de homologação de desistência de queixa, em sede de outro inquérito – nº ---/12.9 GBABF –, proferido pelo Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 277º, nº 1, do Código de Processo Penal];

(ii) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos prevenidos no artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal e bem assim por errónea apreciação e valoração da prova produzida na instância, em violação do disposto no artigo 127º, do Código de Processo Penal e ainda em violação do princípio in dubio pro reo;

(iii) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de direito no tocante à dosimetria da pena aplicada ao arguido [entendendo o Magistrado do Ministério Público, enquanto recorrente, dever ser a mesma ser comutada in peius e reclamando o arguido, enquanto recorrente, ser a mesma excessiva].

III
Com vista à apreciação das suscitadas questões, a sentença recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos:
“(…)
II. FUNDAMENTAÇÃO
DOS FACTOS
a) FACTOS PROVADOS:

Com interesse para a decisão da causa, ficaram provados os seguintes factos:

1) O arguido e a assistente F. casaram em 19.10.80.

2) O arguido e a assistente encontram-se separados desde data não concretamente apurada mas próxima do início do ano de 2012.

3) Dessa relação nasceram dois filhos: S (nascida em 27.08.1984) e P (nascido em 29.03.1981).

4) O arguido e a assistente fixaram residência no edifício …, em Albufeira.

5) Após a separação do casal, a assistente permaneceu na habitação do casal.

6) Enquanto o arguido, embora tendo abandonado a residência, continuou a frequentá-la assiduamente.

7) Em virtude de o arguido padecer de doença bipolar, associada a depressão, registando tentativas de suicídio, pelo menos desde o ano de 2012 que a relação entre o arguido e a assistente se deteriorou, tornando a convivência do casal muito difícil.

8) As discussões, que tinham lugar na morada da família, sucederam-se a acabavam frequentemente com o arguido a dirigir-se à assistente afirmando que esta o tinha traído com questões de dinheiro, chamando-a de "puta" e de "vaca”, bem como de dizendo que aquela "não valia nada "ou que a iria matar.

9) Tais episódios continuaram a verificar-se mesmo após o arguido ter deixado de residir na residência comum.

10) Em 21.4.12, quando se encontravam na habitação onde residiam, durante o jantar, o arguido começou a discutir com a assistente porque esta saía muitas vezes de casa.

11) No decurso da discussão o arguido levantou-se e dirigiu-se à assistente e desferiu sobre esta diversos socos que a atingiram no tronco e cabeça.

12) Em virtude dessas agressões a assistente caiu ao chão, todavia, mesmo quando se encontrava caída o arguido continuou a desferir sobre esta socos que a atingiram na cabeça.

13) Como consequência direta e necessária deste evento a assistente sofreu dores nas regiões atingidas, tendo tido necessidade de receber tratamento médico no Centro de Saúde de Albufeira para onde foi transportada na ambulância do INEM.

14) No dia 3.2.13, quando se encontravam na residência onde habitavam, o arguido, porque verificara que o pássaro se encontrava morto na gaiola, dirigiu-se se à assistente e disse que esta que não servia para nada, nem para tomar conta do pássaro.

15) A assistente retirou-se para o quarto, todavia foi seguida pelo arguido que continuava a dirigir-se à assistente dizendo “és uma ranhosa, uma traidora; vai para o caralho; nem comida fazes para mim, vai-te foder".

16) No dia 12.8.13, pelas 12h, o arguido deslocou-se à casa de ambos, com o intuito de procurar uma faca de cozinha (tipo talhante, com 27,5 cm de lâmina e 15 cm de cabo) de grandes dimensões.

17) O arguido, apresentando-se descontrolado, procurava a faca nas gavetas enquanto se dirigia à assistente dizendo que esta o traía a nível financeiro pois tinha gasto todo o seu dinheiro.

18) A assistente, temendo pela sua integridade física, por desconhecer o que o arguido pretendia fazer com a faca, da qual já tinha andado à procura cerca de um mês antes, acabou por lhe dizer que a tinha deitado fora.

19) Em data anterior ao descrito em 16), o arguido dirigiu-se à assistente dizendo-lhe: "como é que consegues viver com € 300 (...) não tens vergonha como andas vestida, pareces as meninas da 125”.

20) Desde há pelo menos dois anos que o arguido vinha causando à assistente sofrimento profundo ao nível psíquico, pelo sentimento de insegurança, nervosismo, desgosto, medo e vergonha a que o mesmo a sujeitou ao tratá-la da forma acima descrita, tendo-lhe causado instabilidade emocional, que se vem refletindo na sua vida do dia-a-dia, vivendo esta com receio de que tais situações se voltem a repetir.

21) O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, atuando com a intenção concretizada de atingir a assistente - sua esposa e mãe dos seus filhos - na sua integridade física e psíquica, lesando a sua integridade moral e dignidade pessoal, fazendo-a temer pela sua integridade física e afetando a sua liberdade de movimentos e decisão.

22) Bem sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.

23) O arguido não tem antecedentes criminais.

24) A assistente encontra-se reformada, auferindo cerca de € 300,00/mês; vive com companheiro, em casa própria deste.

25) O arguido encontra-se reformado, auferindo cerca de € 412,00/mês; é voluntário na Cruz Vermelha, exercendo funções de motorista; vive sozinho, em casa arrendada, pela qual paga cerca de € 150,00/mês; como habilitações literárias tem a 4ª classe.

26) O arguido é tido como um bom colega de trabalho, uma pessoa calma e de bom trato.

b) FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provou que:
27) No dia 11.2.13, pelas 18h, o arguido chegou a casa e começou a dizer à assistente, num tom enraivecido, que aquela era uma traidora, pois não fazia a comida e não tratava dele.

28) De seguida o arguido dirigiu-se à assistente e encostou o seu corpo ao daquela, com o intuito de a intimidar e fazer calar.

29) No dia 11.3.13, sem que nada o fizesse prever, o arguido desferiu sobre a assistente diversos murros que a atingiram na cabeça e no tronco, fazendo-a cair ao chão por duas vezes.

30) Nesta sequência, a ofendida teve necessidade de ser assistida no Centro de Saúde Albufeira.

31) O descrito em 10) ocorreu em 21.5.12.

A demais factualidade alegada afigurou-se-nos conclusiva, irrelevante ou contendo conceitos de Direito.

c) MOTIVAÇÃO DE FACTO
Nos termos dos artigos 125º e 355º, a contrario, Código de Processo Penal, a convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto resultou, além do recurso às regras da experiência comum, da análise crítica e conjugada da prova produzida e/ou examinada em audiência de julgamento, à luz do princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127º Código de Processo Penal.

O arguido prestou declarações, admitindo o descrito em 1) a 5), mas negando, em suma, a prática dos factos que lhe vinham imputados, apresentando discurso evasivo, desculpabilizante e marcado por clara intenção de desvio da atenção para pormenores de escassa relevância, relativos a aspetos patrimoniais da vida do casal (que entregava a sua reforma à assistente, que esta gastava o dinheiro e lhe omitia informações sobre o estado das contas, etc.) e pela preocupação de ressaltar o facto de ninguém ter presenciado quaisquer factos.

Admitiu, no entanto, ter dirigido à assistente as expressões 'traidora” e "mentirosa”, em contexto de discussão e não ter qualquer explicação para tais imputações, que reputa de falsas, por parte da assistente.

Referiu-se, ainda, à sua situação pessoal e económica, de forma espontânea e consistente com as regras de experiência comum (25)), tendo-se reportado, ainda, à doença psiquiátrica de que padeceu e internamentos e tratamentos efetuados.

As declarações do arguido sobre os factos afiguraram-se pouco credíveis, denotando o mesmo uma atitude de alheamento da situação que lhe vem imputada, proferindo negações genéricas dos factos, revelando uma clara animosidade relativamente à assistente, e uma atitude culpabilizante da mesma pelo rumo da relação do casal.

Valorou o tribunal as declarações da assistente F, que se revelaram suficientemente claras (apesar da dilação temporal dos factos), espontâneas (com hesitações e correções que, por se afigurarem normais e expectáveis, denotaram ausência de preparação do relato) e serenas (não obstante a emotividade necessariamente associada aos factos sob julgamento), não denotando qualquer intenção persecutória relativamente ao arguido, chegando mesmo a negar a ocorrência de alguns factos (28) e 29)) e dando a perceber, na sua postura e discurso, o sofrimento e constrangimento emocional gerado peta situação em apreço, que também verbalizou (20)).

A assistente descreveu a vivência e a relação com o arguido desde o início do casamento e a sua degradação após as tentativas de suicídio do arguido e internamento no serviço de psiquiatria, aludindo a situações, frequentes, de discussão, ocorridas na residência do casal, antes e mesmo depois da separação, mas na ausência dos filhos, em que o arguido lhe dirigia diversos insultos e expressões, a que se referiu de modo claro e espontâneo, com a precisão exigível (1) a 9), 14) e 15)).

Esclareceu, também, de modo suficientemente concretizado, as circunstâncias em que o arguido a atingiu, com socos, na cabeça e no tronco, na sequência de mais uma discussão iniciada pelo mesmo, após a assistente ter saído com a filha do casal, referindo-se, ainda, ao facto de a filha ter acorrido à habitação na sequência de um telefonema seu, e de ter sido transportada ao Centro de Saúde de Albufeira, de ambulância (10) a 13)).

Além da referida espontaneidade do depoimento, valorado com imediação, na medida em que a ofendida contextualizou os factos e obteve, ainda que em parte, corroboração na prova documental e no depoimento das demais testemunhas - que havia identificado como tendo conhecimento, ainda que parcial, dos factos - colheu total credibilidade junto do tribunal, tanto mais que, atento o tipo de criminalidade em causa, não raras vezes a ofendida é testemunha isolada do sucedido.

A assistente referiu-se igualmente à sua situação pessoal e económica, de modo objetivo e isento de dúvidas (24)).

A testemunha S, filha do casal, prestou depoimento sereno e espontâneo, sem denotar intenção de prejudicar o arguido, apesar do corte de relações que assumiu. Revelou, no entanto, conhecimento restrito dos factos em apreço, referindo-se, com relevância, ao facto de o arguido ter alterado o seu comportamento após a depressão diagnosticada em 2009, passando a assumir uma atitude agressiva, ainda que apenas em termos verbais, já que a testemunha nunca presenciou agressões físicas. Contudo, a testemunha referiu-se às circunstâncias em que se deslocou à residência dos pais, depois de ter ouvido a mãe chorar ao telefone, e a viu caída no chão quando abriram a porta, e com marcas nos braços, tendo sido a assistente, nessa altura, transportada ao Centro de Saúde.

A testemunha reportou, ainda, espontaneamente, uma ocasião em que a mãe lhe telefonou a dizer que estava com medo do arguido, embora este já não vivesse lá em casa nessa altura, tendo sido chamada a autoridade policial ao local.

A testemunha L, amiga do casal, prestou depoimento sincero, claro, não denotando qualquer animosidade para com o arguido, e reportou-se, por conhecimento direto da convivência que tinha com o casal, ao facto de a assistente denotar ter medo do arguido, o qual se mostrava recorrentemente alterado, alternadamente exaltado e deprimido, por motivos que, segundo o mesmo verbalizava, estavam relacionados com dinheiro e dívidas contraídas.

A testemunha M., vizinha do casal, por sua vez, prestou depoimento objetivo e descomprometido, referindo-se às alterações de comportamento que observou no arguido após o regresso deste do internamento no Serviço de Psiquiatria, tendo a testemunha ouvido, a partir de então, diversas discussões provindas do apartamento do casal, uma vez que morava no piso de cima, sendo que durante as discussões o arguido proferia diversos insultos, como "puta" e "vaca" e fazia referência a uma faca, que a testemunha acabou por ir entregar à GNR, acompanhando a assistente.

Referiu-se, igualmente, ao facto de a assistente ter recorrido por diversas vezes à sua ajuda, refugiando-se na sua habitação, na sequência de discussões com o arguido, mostrando-se transtornada e com medo, necessitando, por vezes, de assistência médica.

O filho do casal, P, que já não vivia com os pais na altura dos factos em apreço, apesar do ressentimento manifestado em relação ao pai, prestou depoimento sereno e objetivo, afirmando nunca ter presenciado agressões - à exceção de um estalo de que tem memória da altura em que era muito pequeno - nem ter visto a mãe com quaisquer marcas, embora tenha confirmado que o arguido insultava a assistente, por diversas vezes, com nomes como "cabra" e "vadia", imputando-lhe, ainda, o facto de gastar o dinheiro todo.

As testemunhas D, I e MD, que depuseram exclusivamente sobre os aspetos da personalidade do arguido, referiram-se ao facto de o arguido ser um bom colega de trabalho, calmo, tranquilo e de bom trato, de modo espontâneo e suficientemente assertivo e consistente (26)).

Como referimos supra, as declarações da assistente revelaram-se, no essencial, consistentes com a prova documental junta, tendo o tribunal valorado o teor do auto de denúncia de fls. 25 e ss. (quanto às circunstâncias em que a assistente se dirigiu à GNR, na sequência do referido em 14)); aditamento de f1s. 307 (relativo às circunstâncias em que a assistente se dirigiu à GNR, na sequência do referido em 16)) e auto de apreensão (da faca) de fls. 308; a informação clínica de f1s. 72 e ss., remetida pelo ACES Central- ARS Algarve, e de fls. 182 e ss., remetida pelo C.H.Algarve, respeitante ao arguido, donde resulta, designadamente, o diagnóstico de doença bipolar e depressão, com toma de medicação e períodos de baixa, bem como informação de fls. 99, referente ao internamento do arguido; relatório de episódio de urgência de fls. 105 e ss., do Centro de Saúde de Albufeira, relativo a assistência prestada ao arguido na sequência de intoxicação por tentativa de suicídio; relatórios de episódio de urgência de fls. 126 e ss. e 131 e ss., do Centro de Saúde de Albufeira, relativo a assistência prestada à assistente no dia 21.4.12, à noite, e 3.1.13, ao início da tarde, saindo a mesma com diagnóstico de distúrbio ansioso e medicada; relatório pericial de f1s. 342 e ss. - relativo à patologia psiquiátrica do arguido e respetiva imputabilidade - de cujo juízo técnico-científico, nos termos do disposto no art. 163º, CPP, não temos razões para duvidar.

Assim, das declarações da assistente, valoradas com imediação, e conjugadas com a prova supra descrita, resultou provada a generalidade dos factos imputados ao arguido (6) a 19».

Valorou-se, ainda, a certidão de registo civil de fls. 439 e ss..

Quanto à ausência de antecedentes criminais, valorou o Tribunal o teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos a fls. 519 (23)).

No que se refere aos factos atinentes ao elemento subjetivo (21, 22), pertencendo ao foro interno do agente, insuscetível de direta apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, dos quais se possam concluir, por meio de presunções, ligadas às regras da experiência e da normalidade do acontecer, pelo que ponderámos a globalidade da demais factualidade provada, à luz das regras da experiência comum, sendo que a sua atuação se deu em circunstâncias tais que não permitem duvidar da intencionalidade da mesma e, face ao relevo e gravidade dos atos em apreço, também não permitem questionar o conhecimento da proibição e punição de tais condutas, tendo presente, para tais conclusões, o teor do relatório pericial a que aludimos supra.

Assim, sendo a intencionalidade a característica normal da atuação humana, inexistindo qualquer indício de que a correspondência entre a atuação objetiva e a intenção subjetiva não se verifica, considera-se provada a factualidade atinente ao elemento subjetivo.

Os factos não provados resultaram essencialmente da ausência de prova suficiente e idónea produzida nesse sentido, sendo que o teor do aditamento de fls. 43 e ss. não resultou corroborado pelas declarações da assistente, que a tal episódio não se referiu de modo claro e assertivo, eventualmente por falta de memória para tal facto (27), 28); a ofendida negou assertivamente o descrito em 29) e 30), que também não resultou apurado do depoimento das testemunhas, referindo-­se ao dia em causa, de modo genérico, como uma situação em que o arguido se limitou a tentar atingir a assistente. O descrito em 31) resultou não provado pela prova produzida em sentido contrário, quanto à data do sucedido em 10), sendo que ainda que a assistente não soubesse precisar o mês (abril ou maio), tal resulta do auto de notícia elaborado a fls. 33 e ss. do apenso.
(…).”.
IV
Apreciando a primeira editada questão, [(i)], aportada ao conhecimento desta instância pelo Digno Magistrado do Ministério junto do Tribunal recorrido, a saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de direito ao ter considerado que determinado segmento da factualidade dada como provada [o constante dos pontos sob os nºs “10)” a “13)” da decisão de facto da sentença recorrida] se encontrava abrangido pela força do “caso decidido”, nos termos prevenidos no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa [porquanto foi alvo de despacho de homologação de desistência de queixa, em sede de outro inquérito – nº 781/12.9 GBABF –, proferido pelo Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 277º, nº 1, do Código de Processo Penal], importa, antes de mais, atentar nos seguintes elementos que os autos nos fornecem:

(i) No âmbito do processo de Inquérito nº 781/12.9 GBABF, que correu termos nos Serviços do Ministério Público de Albufeira, sob a notícia de crime de violência doméstica [cfr. auto de notícia de fls. 3 e 4, como tal classificado e tramitado], com apresentação de queixa [por banda da ali ofendida e nos presentes autos também ofendida e Assistente, Filomena Ferreira Leonardo Valador], realizados todos os actos de investigação [designadamente constituição como arguido e tomada de declarações a José Carlos da Silva Valador – cfr. fls. 85 a 90], findo o inquérito, o Digno Magistrado do Ministério Público, em 11.07.2012, proferiu o seguinte despacho:

Declaro encerrado o inquérito.
***
Os presentes autos de inquérito visam a investigação de factos susceptíveis de, a terem-se verificado, configurarem a prática do crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143º nº 1 do Código Penal.

Relativamente a tal crime, tem o mesmo natureza semi-pública, dependendo o procedimento criminal da apresentação de queixa (cfr. artigo 143º nº 2 do supra referido diploma).

No caso presente, embora tenha sido apresentada queixa, a ofendida veio desistir da mesma.

O ofendido tem legitimidade para apresentar e desistir da queixa, porque é o titular dos interesses especialmente protegidos pelas incriminações (artigos 113º, nº 1 e 116º, nº 2, do Código Penal).

Compulsando os autos, constata-se que o arguido declarou nada ter a opor à desistência de queixa.

A desistência apresentada é juridicamente válida e eficaz, por ter sido apresentada em tempo pelo(s) titular(es) do direito de queixa.

Pelo exposto, nos termos do artigo 143º nº 2 do Código Penal e 51º, nº 2, do Código de Processo Penal, homologo a desistência de queixa apresentada e, em conformidade, ao abrigo do artigo 277º, nº 1, do Código Penal, determino o arquivamento dos autos.
***
Comunique. (artigo 277º, nº 3, do Código de Processo Penal).”.

(ii) Este despacho não foi alvo nem de requerimento para abertura de instrução, nem de intervenção hierárquica, tendo os autos sido arquivados em 31.10.2012 [cfr. fls. 101].

(iii) Os presentes autos (agora) de recurso penal, tiveram início, como Inquérito nº 192/13.9 GBABF, que correu termos nos Serviços do Ministério Público de Albufeira, sob a notícia, em 07.02.2013, de crime de violência doméstica [cfr. auto de notícia de fls. 3 a 5, como tal classificado e tramitado], com apresentação de queixa [por banda da ali ofendida que se veio a constituir Assistente, Filomena Ferreira Leonardo Valador], e realizados todos os actos de investigação, sob o título “Considerandos prévios”, a Digna Magistrada do Ministério Público, proferiu despacho, em 05.11.2014, no âmbito do qual, além do mais, determina “(…) Verifica-se agora que tais factos se encontram relacionados com outros factos praticados pelo arguido, que no seu todo integram a prática do crime de violência doméstica, ou seja, tais factos não autonomia enquanto crime diverso daquele que se investiga nestes autos. Como tal, ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 279º, do CPP declaro reaberto o inquérito que está na origem do NUIPC 781/12.9 GBABF. Ao abrigo do disposto no art. 25º e nº 2 do art. 28º do CPP apense por linha o NUIPC 781/12.9 GBABF a estes autos. (…)” e, após, declarando encerrado o inquérito, formula requerimento para aplicação de pena em processo sumaríssimo, nos termos prevenidos no artigo 392º, do Código de Processo Penal. Em tal requerimento elenca, no acervo fáctico que considera suficientemente indiciado e imputa ao arguido, para além de todos aqueles que foram objecto da decisão de facto constante da sentença recorrida, os constante sob os pontos nºs “10) ” a “13) ” objecto do aludido Inquérito nº 781/12.9 GBABF. [cfr. fls. 449 a 453 dos presentes autos].

(iv) O requerimento para julgamento em processo sumaríssimo foi judicialmente rejeitado, por despacho proferido em 11.11.2014, ao abrigo do preceituado no artigo 395º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal [cfr. fls. 457 a 459] e os autos vieram a ser distribuídos, recebidos e julgados em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, mostrando-se o objecto da acção penal definido nos termos dos factos descritos no requerimento para aplicação de pena em processo sumaríssimo acima aludido, passando a valer, desde então, como acusação [cfr. fls. 479 a 480].

(v) A propósito da questão em apreciação, o Tribunal a quo, na sentença recorrida, opinou no sentido seguinte:
“(…)
Vem o arguido acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, a) e nº2, Código Penal, por factos praticados nos anos de 2012 e 2013.

Os factos descritos em 10) a 13) ocorreram em 21.4.12 (e não a 21.5.12, conforme descrito na acusação) e são os atinentes ao apenso 781/12.9 GBABF.

Naqueles autos, estando em investigação exatamente essa factualidade, foi proferido despacho de homologação de desistência de queixa e de arquivamento dos autos, nos termos do art. 277º, nº1, CPP,

Ora, ainda que não tenha consagração expressa na lei processual penal, o instituto do caso julgado aplica-se por força do princípio constitucional "ne bís ín idem", plasmado no art.º 29.º, n.º 5 da CRP, de acordo com o qual "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

Trata-se, por um lado, de obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a um processo, tendo em vista assegurar a sua paz jurídica e, por outro lado, impor uma limitação ao poder punitivo do Estado.

O efeito negativo do caso julgado em processo penal consiste em impedir qualquer novo julgamento sobre a mesma questão, sendo certo que a causa de pedir é o facto jurídico concreto que fundamenta a aplicação de uma pena e como se disse no Ac. TRC 9.6.03, CJ, III, 2003, p, 42: “[O] comportamento referenciado no «facto» como expressão da conduta penalmente punível é o acontecimento da vida que, enquanto dotado de unidade de sentido se submete à apreciação do tribunal".

Tendo em consideração as finalidades apontadas, a garantia constitucional deve ser encarada como proibição de dupla perseguição penal do indivíduo, estendendo-se, portanto, não apenas ao julgamento em sentido formal, mas a qualquer outro ato processual que signifique uma definitiva assunção valorativa por parte do Estado sobre determinado facto penal, nos termos definidos supra, como seja o arquivamento do inquérito ou a decisão de não pronúncia e a declaração de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento criminal ou por desistência da queixa (cfr., a este propósito, Ac. STJ 15.3.06, Proc. 05P4403, in www.dgsi.pt).

Como tem vindo a ser pacificamente entendido, o efeito preclusivo do caso julgado diz respeito não apenas àquilo que foi conhecido como àquilo que podia tê-lo sido no processo anterior.

Assim, todo o comportamento espácio-temporalmente determinado, facto naturalístico concreto ou "pedaço de vida" de um indivíduo que tenha sido já objeto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare, e independentemente do "nomem iuris" que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado, fica abrangido pelo efeito de "caso julgado" ou, na ausência de julgamento propriamente dito, de "caso decidido".

No caso dos autos, contra o arguido procedeu já criminalmente o Ministério Público, no apenso 781/12.9 GBABF, proferindo, em 11.7.12, decisão final de arquivamento, nos termos do art, 277º, nº1, CPP, por desistência de queixa.

Não sendo essa decisão objeto de requerimento de abertura de instrução ou de intervenção hierárquica, não pode mais o arguido ser perseguido criminalmente por tais factos, designadamente em virtude de novo enquadramento jurídico feito pelo Ministério Público.

Como refere MAIA COSTA, in "Código de Processo Penal Comentado", Almedina, 2014, p. 973, em anotação ao art. 277º, CPP, «[O] despacho de arquivamento proferido nos termos do nº1 que não seja impugnado pelas formas indicadas, ou que seja confirmado, "consolida-se" na ordem jurídica, não podendo em caso algum ser “reaberto”», Continua dizendo, «[T]rata-se não propriamente de “caso julgado”, que se reporta exclusivamente a decisões de natureza jurisdicional (…) mas de um instituto paralelo, o "caso decidido”, que igualmente se manifesta no art. 282º, nº3, e que visa, afinal, salvaguardar o princípio constitucional "non bis in idem" (art. 29º, nº5, da Constituição)».

Os factos apurados em 10) a 13) são, portanto, factos pelos quais o arguido já foi alvo de processo de natureza criminal, definitivamente decidido.

Em abstrato, os mesmos eram já suscetíveis de serem enquadrados no crime de violência doméstica a que alude o art. 152º, CP. Assim não entendendo o Ministério Público, decidiu qualificá-­los como ofensa à integridade física simples e, como tal, admitir e homologar desistência de queixa, arquivando os autos nos termos do art. 277º, nº1, CPP, e não por falta de indícios suficientes do crime de violência doméstica, nos termos do art. 277º, nº2, CPP.

Em consequência, ficou aquele "pedaço de vida" a coberto de decisão de caráter definitivo, que importa para o arguido o direito a não mais ser perseguido criminalmente, e muito menos condenado, por tais factos, e para o Estado uma limitação do seu poder punitivo, que não pode renovar-se a propósito de tal factualidade, em ordem a garantir a segurança e certeza jurídicas.

O "caso decidido" só pode ser alterado nos termos previstos nos arts. 279º e 449º, nº1, (por via do nº2), CPP, não se verificando nos presentes autos qualquer das circunstâncias, excecionais, previstas naqueles preceitos.

Em situação diferente da dos autos mas seguindo idêntico raciocínio e indo, segundo cremos, mais longe ainda na aplicação da garantia do "ne bis in idem", decidiu-se no Ac. TRP, 7.10.13, Proc. 130/10.0 GAMTR.P1, in www.dgsi.pt, “[O] crime de violência doméstica (art. 152º do CP) consuma-se com a prática do último ato de execução e assim, qualquer facto que integrasse o pedaço de vida do agente e da vítima e que não fora conhecido no processo já definitivamente julgado não pode mais ser conhecido em novo processo, pois que isso comportaria a violação do caso julgado e da garantia constitucional do ne bis in idem”.

Por tudo quanto ficou dito, concluindo-se que os factos imputados e provados em 10) a 13) são, afinal, os ocorridos no dia 21.4.12, já objeto de decisão final de arquivamento no Proc. 781/12.9 GBABF, deve ser declarado extinto, nesta parte, o procedimento criminal, por força do "caso decidido" e em obediência ao disposto no art. 29º, nº5, CRP, o que se decidirá a final.
(…)”.

Vejamos.

Como se lê no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.03.2006, proferido no processo nº 05P4403, disponível em www.dgsi.pt, e, aliás, referido na decisão recorrida, “(…) O Código de Processo Penal de 1987, ao contrário do que sucedia com o Código de Processo Penal pré-vigente, não regula de forma expressa ou implícita o instituto jurídico do caso julgado ou da exceptio judicati, sendo certo que só em duas disposições se refere àquele instituto, designadamente no artigo 84º, ao estatuir que a decisão penal, ainda que absolutória, que conhece do pedido cível constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis, e no artigo 467º, n.º1, ao estabelecer que as decisões penais condenatórias, uma vez transitadas, têm força executiva.

É evidente que a circunstância de a lei adjectiva penal vigente não regular o caso julgado não significa que o processo penal prescinde daquele instituto, consabido que nesta concreta área do Direito se sente com muito maior intensidade e acuidade a necessidade de protecção do cidadão contra situações decorrentes da violação do caso julgado, instituto que também encontra fundamento num postulado axiológico, qual seja o da justiça da decisão do caso concreto, para além de outros, com destaque para a garantia da segurança e da paz jurídicas.

Aliás, a nossa Constituição Política consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, ao dispor no seu artigo 29º, n.º 5, que: «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime» (2)

A lei fundamental ao referir-se ao duplo julgamento e ao mesmo crime carece, contudo, de interpretação, a qual, conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (3), deverá ter em especial atenção que os preceitos constitucionais não podem ser considerados isoladamente e interpretados a partir de si próprios, devendo assim considerar-se as conexões de sentido que se estabelecem entre os seus preceitos, bem como a “arquitectura sistemática” de cada divisão da Constituição. Por outro lado, certo é também que a tarefa interpretativa dos preceitos constitucionais não prescinde igualmente de uma visão global dos ramos de direito em que se projectam, e que ao fim e ao cabo pretendem nortear.

Quanto à expressão “julgado mais do que uma vez”, atenta a situação concreta dos autos em que o que está em causa são dois julgamentos e respectivas sentenças, a mesma não suscita nem impõe labor interpretativo. Refira-se, em todo o caso, que a lei fundamental ao aludir ao duplo julgamento não pode ser entendida no seu estrito sentido técnico-jurídico, tendo antes de ser interpretada num sentido mais amplo, de forma a abranger, não só a fase processual “rainha”, isto é, o julgamento, mas também outras situações análogas ou de valor equivalente, designadamente aquelas em que num processo é proferida decisão final, sem que, todavia, tenha havido lugar àquele conhecido ritualismo.

É o que sucede com a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento ou por desistência de queixa, situações em que, obviamente, o respectivo beneficiário não pode ser perseguido criminalmente pelo crime ou crimes objecto da respectiva declaração de extinção da responsabilidade criminal (4).Este era o sentido, aliás, expressamente inserto no Código de Processo Penal de 1929 (artigo 149º) que textualmente estabelecia que: «Quando por acórdão, sentença ou despacho, com trânsito em julgado, se tenha decidido que um arguido não praticou certos factos, que por eles não é responsável ou que a respectiva acção penal se extinguiu, não poderá contra ele propor-se nova acção penal por infracção constituída, no todo ou em parte, por esses factos, ainda que se lhe atribua comparticipação de diversa natureza».

Relativamente ao inciso “mesmo crime” também se verifica que o mesmo não deve nem pode ser interpretado no seu estrito sentido técnico-jurídico.

É que o termo “crime” tem, por um lado, como referente, a “acção ou omissão” previamente declarada punível e cujos pressupostos devem estar fixados em lei anterior, ou que seja considerada criminosa segundo os princípios gerais de direito internacional comumente reconhecidos (artigo 29º, nºs 1 e 2, da Constituição), por outro lado, a conduta do agente que se torna como referência (n.º 4 do citado normativo) e por outro, ainda, o acto praticado pelo agente e que é objecto de sentença condenatória (artigo 27º, n.º 2).

Assim, crime significa, aqui, um comportamento de um agente espácio-temporalmente delimitado e que foi objecto de uma decisão judicial, melhor, de uma sentença ou de decisão que se lhe equipare.

Entender o termo “crime” empregue no n.º 5 do artigo 29º, da Constituição, como referência a um determinado tipo legal, a uma certa e determinada descrição típica normativa de natureza jurídico-criminal, seria esvaziar totalmente o conteúdo do preceito, desvirtuando completamente a sua ratio e em frontal violação com os próprios fundamentos do caso julgado. Um tal entendimento, traduzir-se-ia numa insuportável violação da paz jurídica e da segurança do cidadão, ao ponto de afectar e destituir de sentido – ao esvaziar todo o conteúdo útil do caso julgado – a própria estrutura acusatória em que assenta o nosso direito processual pena. Seria permitir – o que é inaceitável – que aquele que foi julgado e condenado por ofensas à integridade física (artigo 143º, do Código Penal), pudesse, pelos mesmos factos, ser segunda vez submetido a julgamento e eventualmente condenado por homicídio (artigo 131º, do Código Penal). O critério do bem jurídico tutelado pela norma, é, aqui, só por si, suficiente, para permitir entender aqueles tipos penais como dois crimes diferentes; ou permitir que aquele que foi absolvido – e portanto não cometeu crime algum – pudesse por esses mesmos factos voltar a ser julgado e eventualmente condenado.

O termo “crime” não deve pois ser tomado ao pé-da-letra, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar.

O que o artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, proíbe, é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal.(5)

Fixado o sentido do termo “crime”, convirá agora precisar o que se deve entender por comportamento referenciado ao “facto”, como expressão da conduta penalmente punível, consabido que o instituto do caso julgado só funciona quando existe identidade de “facto” e de sujeitos constantes de uma decisão irrevogável sobre a mesma questão ou, por outras palavras, o que se deve entender por mesmo “objecto processual” (6) - Não se aborda aqui a questão da identidade de sujeitos, uma vez que no que a ela concerne inexiste qualquer dúvida sobre a verificação daquela identidade.).

À luz do que ficou dito, decorre que o conteúdo e limites do caso julgado só podem ser fornecidos pelo objecto do processo; sendo o objecto do processo o mesmo estaremos perante a exceptio judicati, caso contrário não ocorrerá violação do princípio in bis in idem.

Ora, comportamento referenciado ao facto, como expressão da conduta penalmente punível, não pode deixar de ser o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação e julgamento de um tribunal. Daqui resulta que todos os factos praticados pelo arguido até decisão final e que directamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido haverão de ser considerados como fazendo parte do “objecto do processo”.

Deste modo, de acordo com esta visão naturalística, ter-se-á de concluir que ainda que aqueles não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, certo é não poderem ser posteriormente apreciados, já que a sua apreciação violaria frontalmente a regra ne bis in idem, entrando em aberto conflito com os fundamentos do caso julgado.

Tal asserção não encerra em si mesma qualquer hipostasia, já que o nosso processo penal, como é sabido, fornece todos os mecanismos necessários para uma apreciação esgotante do facto processual e, portanto, a possibilidade de se alcançar a verdade material e, consequentemente, uma justa decisão do caso concreto (7).

Aliás, a não ser assim, far-se-ia responder o arguido pela negligência de outros na prossecução da justiça, ou pelos inevitáveis vícios do sistema, acabando, em última análise, por se frustrarem as legítimas expectativas de quem foi julgado e sentenciado, ou viu a sua responsabilidade criminal extinta por decisão judicial, comprometendo assim, inabalavelmente, o respeito pela própria dignidade da pessoa humana (8) e pelos tribunais.

Pronunciando-se sobre esta concreta problemática, obviamente, à luz das disposições legais constantes do Código de Processo Penal de 1929, sem prescindir, porém, de uma visão global sobre o assunto, expressamente refere Cavaleiro de Ferreira (9): «Os “mesmos factos” nos artigos 149º e 150º, serão ainda idêntico facto quando a identidade real não for total, mas apenas parcial. E é de inferir que similar identidade parcial se deve admitir quanto ao artigo 148º e ainda relativamente ao caso julgado condenatório.

Para se dar conta da extensão do caso julgado, em função da identidade do facto, nos dois processos, a doutrina gizou alguns critérios de definição de facto, sob este ponto de vista processual. Para uns o facto seria equivalente a crime; a noção de facto, do ponto de vista do direito penal, seria a mesma.

Não é de aceitar esta orientação, pois que, como já dissemos, o facto é de considerar, processualmente, como uma evento naturalístico, objecto de investigação e de prova. Acresce que a lei é unívoca, ao impedir nova apreciação dos mesmos factos, seja qual for a qualificação jurídica que lhes é atribuída.

E mais adiante textualmente refere: «… a extensão do caso julgado obedece ao princípio de evitar a renovação de processos relativamente a factos que já poderiam ter sido apreciados judicialmente, o que importa é partir da própria lei positiva e esta oferece-nos base orientadora para uma solução.

A identidade parcial pode verificar-se de modo que o facto, objecto de novo processo, seja mais restrito do que o facto apreciado por sentença transitada em processo anterior. Em tal caso, nenhuma dificuldade surge: todo o facto trazido de novo perante a jurisdição cabe no interior do facto apreciado. E mesmo a hipótese inversa, aquela que consideram os artigos 149º e 150º, do Código de Processo Penal; os factos trazidos ao novo processo vão além, porque só em parte coincidem com o facto já julgado.

De comum, para fundamentar naturalisticamente a identidade, deve atender-se aos factos praticados, ou seja, à acção. Podem variar as circunstâncias, os elementos acidentais da actividade que constitui objecto do processo, mas não a própria acção. E por isso haverá caso julgado material quando se acusa em novo processo pela mesma acção, embora acrescida de novas circunstâncias, embora seja diferente o evento material que se lhe segue, embora seja diversa a forma de voluntariedade (dolo ou culpa)».

E no mesmo sentido, fazendo porém apelo a um critério não coincidente, já que não naturalístico, mas essencialmente normativo, especialmente no que concerne à problemática atinente aos poderes cognitivos do juiz, pronunciou-se Eduardo Correia (10), obviamente à luz da lei adjectiva de 1929.

Refere aquele insigne penalista que o objecto ao qual é mister pôr o problema da identidade do facto como pressuposto do caso julgado há-de ser o próprio conteúdo da sentença, não só nos expressos termos em que é formulada, mas ainda naqueles até onde se podia e devia estender o poder cognitivo do tribunal. A força consuntiva de um sentença relativamente a futuras condenações e processos há-de ser medida pelos devidos limites do seu objecto, ou seja, estender-se até onde o juiz tenha o poder e o dever de apreciar os factos submetidos ao seu julgamento.

Deste modo, aquilo que, devendo tê-lo sido, não se decidiu directamente, tem de considerar-se indirectamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tomar-se como decidido tacitamente.

E nem se diga que o que assim se deixou de tomar em consideração deve justamente dar lugar a um novo processo.

Efectivamente, isso implicaria um largo prejuízo da economia processual e da bolsa dos próprios interessados, além de fazer depender da maior ou menor diligência do juiz a possibilidade de renovar o vexame para o acusado de ser objecto de novos julgamentos.

O juiz tem, pois, de estender a sua actividade cognitiva até onde pode e deve. E pelos limites deste dever de cognição há que medir o âmbito do conteúdo da sentença e, portanto, os termos da sua força consuntiva relativamente a futuras acusações. A esta luz, o problema de saber quais os limites da eficácia do caso julgado em matéria penal está, assim, logicamente condicionado por este outro de determinar até que ponto pode e deve ir a actividade cognitiva do juiz (11).

E mais adiante, ao debruçar-se sobre o conteúdo e âmbito do “facto” como pressuposto do caso julgado e da actividade cognitiva do juiz relativamente a situações de continuação criminosa refere que: «…se algumas actividades que fazem parte da continuação criminosa foram já objecto de sentença definitiva, ter-se-á de considerar consumido o direito de acusação relativamente a quaisquer outras que pertençam a esse mesmo crime continuado, ainda que elas de facto tivessem permanecido estranhas ao conhecimento do juiz. … Se o juiz se convence, na verdade, de que tais actividades constituem tão só elementos de um crime continuado, que já foi objecto de um processo, será forçado a concluir que elas deveriam ter sido aí apreciadas. Ainda, pois, que o não tivessem sido, tudo se passa como se assim fosse, estando, por isso, consumido e extinto o direito de as acusar e podendo-se opor sempre ao exercício da respectiva acção penal a excepção ne bis in idem».

E mais à frente refere a propósito de crime simples único ou concurso de crimes: «O problema oferece já, entretanto, certas dificuldades quando uma sentença anterior condenou alguém como autor de um crime único simples, ou como agente de um concurso de crimes e é promovida nova acção penal com fundamento em factos que não foram objecto do conhecimento do primeiro juiz, mas que de harmonia com a convicção do segundo estão com os julgados numa relação de continuação.

Na verdade, semelhante ponto de vista do segundo tribunal parece clamar pela conclusão de que o direito de acusação contra este novos factos se acha consumido; pois, na medida em que formam com o objecto do primeiro processo uma unidade, aí deveriam ter sido julgados.

Não contraditará, porém, esta decisão a anterior, e não será portanto, impossível, justamente por força do caso julgado?

A jurisprudência alemã assim o julga (12). Temos, todavia, para nós, e connosco está quase unanimemente a doutrina que isso não é exacto.

Na verdade, quando o juiz investiga e decide que certos factos estão em qualquer relação de unidade com outros apreciados numa sentença anterior, quando, pois, investiga sobre os limites da identidade do objecto processual, não pratica absolutamente nada que contradiga aquela decisão.

O que tão-somente faz com isso é integrar o conteúdo de tal sentença, é perguntar até que ponto se deveria ter alargado a cognição do tribunal no primeiro processo, com vista a determinar em que limites se devem entender as coisas como julgadas.

Nada impede, por conseguinte, considerar existente, para efeitos de determinação da identidade do objecto do processo, uma relação de continuação entre certos factos e outros já julgados, pois que desta sorte apenas se verificam os limites da unidade jurídica que deveria ter sido conhecida e que, como tal, se deve dizer apreciada e contida na primeira sentença».

Em sentido coincidente também se pronuncia Castanheira Neves (13).
(…).”.

À luz destes ensinamentos e atentando no caso em apreço e nos argumentos em confronto, na decisão recorrida e na peça recursiva do Digno Magistrado do Ministério Público, urge salientar que:

- Os factos obliterados na decisão recorrida não são essenciais e/ou imprescindíveis à imputação ao arguido do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal, por que foi julgado e condenado;

- O despacho de arquivamento proferido no Inquérito nº 781/12.9 GBABF, ao abrigo do estatuído no artigo 277º, nº 1, do Código de Processo Penal, fundou-se na extinção do procedimento criminal por desistência de queixa [que não arquivamento por falta de prova indiciária suficiente da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes];

- À data de tal despacho o “comportamento referenciado ao facto, como expressão da conduta penalmente punível” ou, usando as palavras do Professor Germano Marques da Silva, em “Curso de Processo Penal”, tomo I, 5ª Editorial Verbo, 2008, pág. 380 “o facto com relevância penal” [entendido como sendo aquele “facto com significado e esse significado é-lhe dado pela referência à norma incriminadora”] já era, para além de qualquer dúvida, susceptível de ser qualificado como crime de violência doméstica (o que tornaria a desistência de queixa inoperante) e, mau grado, foi subsumido pelo titular do Inquérito a crime de ofensa à integridade física simples;

- A decisão de arquivamento do Inquérito ao abrigo do estatuído no artigo 277º, do Código de Processo Penal, pode não ter efeitos preclusivos – cfr. artigo 279º, do mesmo compêndio legal –, mas não tem, seguramente, natureza jurisdicional e, por conseguinte, não comporta a noção de “trânsito em julgado” – v.g. a este propósito, versando situação de facto e de direito bem diversa da que ora se aprecia (à semelhança, aliás, de toda a jurisprudência citada pelo Digno recorrente), mas assaz elucidativo sobre a natureza daquela decisão de arquivamento, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11.03.2008, proferido no processo nº 2846/07-1, disponível em www.dgsi.pt.

E, porque assim, concluir, como na decisão recorrida, que aquele preciso [sublinhado nosso] despacho de arquivamento produz efeitos endoprocessuais e extraprocessuais, e que, decorridos os prazos peremptórios para a sua impugnação/revogação, através da abertura de instrução ou de intervenção hierárquica, tem a força de “caso decidido” e, por conseguinte, nos termos prevenidos no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, os factos dele objecto não podem, como não foram, ser de novo e uma vez mais valorados para efeito de poder ser o arguido, por eles, perseguido criminalmente, sob pena de “insuportável violação da paz jurídica e da segurança do cidadão”.

Nestes termos, somos do entendimento que, in casu, o segmento da decisão recorrida em análise [com os contornos supra delineados] não merece censura.

Com vista à apreciação da supra segunda editada questão, [(ii)], trazida ao conhecimento deste Tribunal ad quem pelo arguido recorrente, importa recordar que:

Sabido é que constitui princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no artigo 428º, do Código de Processo Penal, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no artigo 412º, nºs 3 e 4, do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.

O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em primeira instância, havendo que a ouvir em segunda instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal. É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E, exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.

Assim: impõe-se-lhe a especificação dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado; impõe-se-lhe a especificação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, acrescendo que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa. Isto é, impõe-se ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado. E, sendo caso, impõe-se-lhe a especificação das “provas que devem ser renovadas”, que só se satisfaz com a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento no tribunal de primeira instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo – cfr. artigo 430º, nº 1, do citado diploma.

No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão recorrida, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.

Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº 3/2012, de 08.03.2012, publicado no D.R. I Série, nº 77, de 18.04.2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.

A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.

O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.

Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”.

Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, decorre da peça recursiva apresentada pelo arguido que pretende impugnar a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo e constante dos pontos sob os nºs “8)” e “15)” da decisão recorrida e que, em sua opinião, devem ser dados como não provados. Alega, para tanto, não haver suporte na prova produzida.

Ressalvado o devido respeito pelo esforço argumentativo, mal se compreende uma tal alegação, desde logo, da simples leitura da motivação da decisão de facto constante da decisão recorrida na medida em que, diferentemente do alegado e pretendido pelo recorrente, o acervo fáctico constante dos aludidos pontos não teve por base, exclusivamente, as declarações prestadas pela ofendida [que se constituiu Assistente nos presentes autos] mas também as prestadas pelo próprio arguido e o teor da prova por depoimentos ali indicada, designadamente por banda das testemunhas S, M e P..

Depois, porque, precedendo audição in totum do CD contendo a prova gravada - cfr. artigo 412º, nº 6, do Código de Processo Penal -, sem necessidade de outros considerandos, impõe-se afirmar que o dissídio apontado pelo recorrente, neste conspecto, não radica em alguma divergência entre o que na sua peça recursiva afirma ter sido dito pelo arguido e/ou pela Assistente e o que efectivamente foi, por cada um deles, dito no decurso da audiência de julgamento e aquilo que quem julgou diz que se disse, nessa mesma ocasião.

Finalmente, porque, em rigor, o que o recorrente faz ao colocar em crise aquele acervo factual, olvidando o princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127º, do Código de Processo Penal, mais não é que pretender que este Tribunal ad quem sobreponha a sua análise e valoração, enfim a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos, àquela que o Tribunal a quo efectuou, desenvolveu, explicou e explicitou, diga-se, aliás, de forma clara e abundante, e que, naturalmente, não é coincidente com a do recorrente.

Em abono do princípio da livre apreciação da prova a que se refere o citado artigo 127º, do Código de Processo Penal (e que, como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.10.2007, proferido no processo nº 8428/2007-3, disponível em www.dgsi.pt, “é apenas um princípio metodológico de sentido negativo que impede a formulação de “regras que predeterminam, de forma geral e abstracta, o valor que deve ser atribuído a cada tipo de prova”, ou seja, o estabelecimento de um sistema legal de prova legal” e que, “não obstante o seu carácter negativo, este princípio pressupõe a adopção de regras ou critérios de valoração da prova” e esta “valoração há-de conceber-se como um actividade racional consistente na eleição da hipótese mais provável entre as diversas reconstruções possíveis dos factos.”), o caminho trilhado pelo Tribunal a quo na convicção formada e nos motivos dela determinantes, que o recorrente quer colocar em crise, mostra-se perfeitamente explicado, de forma lógica e objectivável e, nessa medida, porque beneficiou da imediação e da oralidade, deve prevalecer. Como constante no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010, proferido no processo nº 11/04.7 GCABT.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, “Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”. Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência, ou, ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e violadora do favor rei.

Ora, também nesta vertente, não se vislumbra que o Tribunal a quo haja violado o princípio in dubio pro reo, um vez que pelos motivos expendidos na decisão recorrida a prova consente (e impõe) a convicção formada pelo Tribunal de primeira instância e a violação de tal princípio suporia, de um lado, a formação de uma convicção positiva sem suporte probatório bastante, o que não ocorre, ou de outro, que o Tribunal demonstrada uma dúvida razoável ante a prova produzida a havia resolvido contra o arguido, o que também não ocorre.

E, porque assim, este Tribunal ad quem não pode deixar de julgar improcedente a invocada impugnação alargada da matéria de facto por banda do arguido recorrente.

Nestes termos, a alteração da factualidade assente na primeira instância só poderá ocorrer pela verificação de algum dos vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: (a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; (b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e (c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma –, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe ex officio, avivando que a este propósito o recorrente nada reclama.

Porque assim, importa apenas recordar que em comum aos três vícios, o vício que inquina a sentença em crise tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum. Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, loc. supra mencionado.

Ora, neste conspecto, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, a mesma apreciou os factos aportados na acusação e na contestação [que se limitou ao “oferecimento dos autos”] e bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento. Do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de nenhum dos vícios elencados nas citadas alíneas, do mencionado artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.

Investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, não se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, como não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão. Acresce que, de igual modo, não se detecta na decisão recorrida qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário. E, do texto da decisão recorrida também não se descortina qualquer violação do favor rei.

Em consequência, mantém-se, e sedimentada se mostra, a factualidade assente pelo Tribunal a quo, não se vislumbrando na decisão recorrida nulidade ou vício cujo conhecimento ex officio se imponha a este Tribunal ad quem, como não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – cfr. artigos 379º e 410º, do Código de Processo Penal.

Impõe-se, agora, a apreciação da terceira questão, [(iii)], trazida ao conhecimento deste Tribunal ad quem por ambos os recorrentes, da dosimetria da pena de prisão em que o arguido foi condenado.

Relativamente à reclamada reformatio in peius da pena de prisão imposta ao arguido por banda do Digno Magistrado do Ministério Público, porque fundada exclusivamente na pretendida, mas perecida, valoração e ponderação de acervo fáctico obliterado [o constante dos pontos sob os nºs “10)” a “13)”] a apreciação de tal pretensão mostra-se, naturalmente, prejudicada, nos termos do estatuído no artigo 608º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.

Relativamente à pretendida reformatio in melius da pena de prisão por banda do arguido, no conspecto da reclamada atenuação especial da mesma, [cfr. artigos 72º e 73º, do Código Penal], sumariamente, sem margem de dúvida, não se descortinam quaisquer circunstâncias contemporâneas dos factos e/ou prévias ou posteriores aos mesmos que, por via da culpa (se de circunstâncias contemporâneas se tratasse) ou por via da prevenção (se de circunstâncias prévias ou posteriores a eles se referissem) que justifiquem e imponham uma atenuação especial da pena. Dito de outro modo, não se vislumbra circunstância alguma que revele e importe a conclusão que o arguido agiu no evento em apreço com culpa significativamente diminuída ou importe a conclusão de acentuada desnecessidade de pena, sendo certo que as apuradas e relativas à condição pessoal do arguido – v.g. factualidade constante dos pontos sob os nºs “7)” e “25)” – não têm tal virtualidade.

No conspecto do quantum da pena de prisão aplicada, dir-se-á que face ao disposto no artigo 71º, nº 1, do Código Penal, na determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, está o Tribunal vinculado a critérios definidos em função da culpa do agente e de exigências de prevenção, sendo que, na sua concreta determinação, deve ainda o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, possam ser consideradas a favor ou contra o agente, as quais se encontram elencadas, de forma não taxativa, nas alíneas a) a f), do nº 2, do citado preceito legal.

Como elementos de referência, na determinação da medida da pena, contam-se o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e as respectivas consequências.

Cumpre, ainda, referir que nos termos do nº 1, do artigo 40º, do Código Penal, a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do autor do crime na sociedade, não podendo, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa – cfr. nº 2, do mesmo artigo.

Seguindo os ensinamentos do Professor Figueiredo Dias, em “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., páginas 79 a 84, “Primordialmente, a finalidade visada pela pena há-de ser a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto; e esta há-de ser também por conseguinte a ideia mestra do modelo de medida da pena. Tutela dos bens jurídicos não obviamente num sentido retrospectivo, face a um crime já verificado, mas com um significado prospectivo, correctamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança (...) e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; sendo por isso uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.
(...)
Afirmar que a prevenção geral positiva ou de integração constitui a finalidade primordial da pena e o ponto de partida para a resolução de eventuais conflitos entre as diferentes finalidades preventivas traduz exactamente a convicção de que existe uma medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar; medida esta que não pode ser excedida (princípio da necessidade), nomeadamente por exigências (acrescidas) de prevenção especial, derivadas de uma particular perigosidade do delinquente. É verdade porém que esta “medida óptima” de prevenção geral positiva não fornece ao juiz um quantum exacto da pena. Abaixo do ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem que perca a sua função primordial de tutela dos bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico –, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.
(...)
Dentro da moldura ou dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração – entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de “defesa do ordenamento jurídico”) – devem actuar, em toda a medida possível, os pontos de vista de prevenção especial, sendo sim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena. Isto significa que releva neste contexto qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza: seja a função positiva de socialização, seja qualquer uma das funções negativas subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. A medida de necessidade de socialização do agente é no entanto, em princípio, critério decisivo das exigências de prevenção especial, constituindo hoje – e devendo continuar a constituir no futuro – o vector mais importante daquele pensamento.”.

Resta referir o princípio da culpa e o seu significado para o problema das finalidades das penas, seguindo o mesmo ilustre Professor, ob. e loc. supra citados. “Segundo aquele princípio, “não há pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa”. A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento da pena, mas constitui o seu pressuposto necessário e o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável por quaisquer considerações ou exigências preventivas (...). A função da culpa (...) é, por outras palavras, a de estabelecer o máximo da pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.”.

Em suma, sobre as finalidades da punição consignadas no artigo 40º, do Código Penal e sobre os critérios concretos a observar no doseamento da pena – cfr. artigo 71º, do mesmo Código –, reproduzindo, uma vez mais, o Professor Figueiredo Dias, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág. 110 e 111, “1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”.

Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, não olvidando que a moldura penal abstracta do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal, cujo cometimento é imputado ao arguido, é de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de prisão, e atentando no que, a este propósito, nos diz e bem, a decisão recorrida [e que ora se recorda: “- as consequências do crime, a ponderar ao nível do desvalor do resultado, e considerando o tipo de ilícito praticado, não excederam o resultado normalmente atingido, pelo que não se consideram muito graves, do ponto de vista dos bens jurídicos pessoais atingidos, atentas as consequências pessoais para a assistente, a assistência médica demandada e a ausência de períodos de convalescença ou tratamentos posteriores; - o grau moderado da ilicitude, considerando que, apesar do período de tempo alargado de um ano em que se perpetrou o ilícito, o casal viveu junto cerca de trinta anos, e os factos reportam-se "apenas" a agressões verbais, insultos e ameaças (embora não se desconsidere as situações de extrema violência e constrangimento que podem ocorrer sem a inflição de agressões físicas, não estamos perante caso de tal gravidade e intensidade); - o grau de culpa moderado, ponderando-se a atuação sob a forma de dolo direto, por um lado, mas a condição de doença psiquiátrica do arguido e o contexto de rutura da relação conjugal - ainda que precipitada pelo comportamento do arguido - por outro. A ausência de antecedentes criminais do arguido, associada à sua inserção social e ao facto de os últimos factos conhecidos remontarem a 2013, denotam, no quadro de moderada gravidade objetiva dos factos, e apesar da postura assumida pelo arguido em audiência, moderadas exigências de prevenção especial. Impõem-se, no entanto, particulares exigências de prevenção geral em relação a este tipo de criminalidade, atenta a frequência deste tipo de ilícitos, nomeadamente em ritmo de violência ascendente, geradora de inequívoco alarme social.”], não se vê no conspecto sedimentado no Tribunal a quo qualquer margem que permita afirmar que a medida da culpa do arguido foi excedida, figurando-se a pena aplicada de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão (suspensa na sua execução por igual período de tempo, nos termos do disposto no artigo 50º, nº 1, do Código Penal) doseada em medida adequada aos factos apurados e ademais temperada com equilibrado critério.

Nestes termos, porque não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas - cfr. artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa -, antes se mostra adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e não ultrapassa a medida da culpa do arguido, inexiste fundamento para a pretendida alteração in mellius.

Em consequência de tudo o que se deixa expendido, improcedem, pois, as pretensões dos recorrentes, mantendo-se o decidido na instância nos seus precisos termos.
V
Pese embora o naufrágio da pretensão recursiva por parte do Digno Magistrado do Ministério Público, nos termos prevenidos no artigo 522º, nº 1, do Código de Processo Penal, por estar isento, não há lugar a tributação.

Diferentemente, tendo em consideração que o arguido recorrente decaiu totalmente no recurso por si interposto, ao abrigo do disposto nos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 9, com referência à Tabela III anexa, do Regulamento das Custas Processuais, impõe-se a condenação do mesmo nas custas, fixando-se a taxa de justiça devida em 5 (cinco) unidades de conta.

VI
Decisão
Nestes termos acordam em:
A) - Negar provimento aos recursos interpostos pelo Digno Magistrado do Ministério Público e pelo arguido A. e, consequentemente, manter a sentença recorrida nos seus precisos termos.

B) - Condenar o arguido recorrente nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta.

[Texto processado e integralmente revisto pela relatora (cfr. artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal)]

Évora, 23 de Fevereiro de 2016

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(Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares)
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(José Proença da Costa)