Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
49/11.8GBMMN.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 04/30/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário:
1 - O exame da prova é a análise de todas as provas, mesmo daquelas de que nada se retira, pois só assim a sentença revela que o tribunal conheceu e apreciou todas as provas.

2 - Ao não ter analisado os documentos em que diz ter “atentado” e ao ter praticamente omitido a análise da prova pericial e por exame, o tribunal motivou a decisão de facto de forma incompleta e deficiente, o que consubstanciaria uma nulidade de sentença por deficiente fundamentação da matéria de facto (art. 379º, nº1 al. a) do Código de Processo Penal).

3 - Mas o recurso efectivo da matéria de facto permite preservar a sentença nos casos em que o juiz de julgamento não se soube exprimir devidamente, ou seja, naquelas situações em que a primeira instância julgou bem (de facto), mas fundamentou deficientemente a convicção (de facto).

4 - Na análise das provas efectuada em segunda instância, a Relação pode vir a confirmar a boa decisão apesar das eventuais deficiências que o texto da sentença apresente, o que, nesta medida, esvazia as valências da nulidade da sentença decorrente de imperfeito exame crítico (formal) da prova (arts 379º, nº1-al. a) e 379º, nº 2 do Código de Processo Penal).

5 - Sendo a prova pericial e por exame de considerar como inconclusiva quanto à identificação do arguido como autor dos factos imputados, restando a ponderação da prova pessoal, por declaração e por depoimento, e sendo afinal, processualmente, aqueles primeiros meio de prova (perícia) e de obtenção de prova (exame) os mais seguros e menos falíveis, a sua concreta irrelevância exigirá do tribunal um particular cuidado na apreciação da restante prova oral, para mais tratando-se de crime sexual contra vítima menor de idade, em que a testemunha-vítima é uma criança. [1]
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No processo comum colectivo n.º 49/11.8GBMMN do 1º juízo do Tribunal Judicial de Montemor-o-Novo foi proferido acórdão em que se decidiu condenar o arguido R, como autor de um crime de abuso sexual de crianças do n.º 2 do art.º 171.º, na pena de cinco anos e seis meses de prisão, e a pagar a quantia de trinta e seis euros ao Centro de Saúde de Montemor-o-Novo.

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, concluindo que:

“1 - O presente recurso encontra a sua fundamentação à luz do preceituado nas alíneas a) e c) do nº 2 do artigo 410º do Código de processo Penal. De facto,

2 - É, por demais, evidente a insuficiência da matéria de facto dada por assente, para fundamentar a parte decisória da Sentença e

3 - Verifica-se a existência de uma errónea valoração, na apreciação da prova. Além disso,

4 – Na determinação da medida da pena não foi feita criteriosa aplicação do dispositivo contido no artigo 71º do Código Penal,

5 -. Assim se justificando o pedido de atenuação da pena aplicada, de forma a fixá-la em limite temporal próximo do mínimo previsto para este tipo de crime.

6 - Deve o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro onde sejam reparadas as deficiências apontadas”.

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo por seu turno:

“1. Os factos provados integram sem margem para dúvidas todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de abuso sexual de criança, p. e p. no art. 171º, nºs. 1 e 2, do Cód. Penal, na forma consumada, pelo qual foi condenado.

2. Pelo que não se verificam os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou de erro notório na apreciação da prova, previstos nas als. a) e c), do nº 2, do artº 410º, do Cód. Proc. Penal, que têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos.

3. O testemunho de I não é o decisivo na sustentação dos factos provados - que não presenciou - mas é plenamente válido e dele não resulta qualquer dúvida razoável que possa exigir a aplicação do princípio in dubio pro réu.

4. As circunstâncias da mãe do menor ter telefonado ao arguido momentos antes do seu regresso a casa e de ter aguardado pelo regresso do pai do menor a casa, antes de apresentar queixa, em nada afectam a credibilidade do testemunho de I.

5. Por um lado, a mãe do menor estava confrontada com um relato de factos graves pelo seu filho e a negação desses factos pelo seu irmão, que aquele apontava como o agente desses factos, pelo que decidiu aguardar pela chegada do pai do menor para em conjunto decidirem o que fazer.

6. Por outro lado, a existência do telefonema não é incompatível com a circunstância da porta se encontrar fechada. Basta que o arguido se tenha esquecido que tinha fechado a porta ou não ter tido tempo de a abrir pois o telefonema ocorreu momentos antes.

7. A pena aplicada ao arguido L, em medida inferior ao meio da moldura penal aplicável, mostra-se conforme aos critérios legais previstos no art. 71º, nº 2, do Cód. Penal, tendo o tribunal colectivo ponderado, adequadamente, a medida da culpa e as necessidades de prevenção exigidas pelo caso.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer também no sentido da improcedência.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. No acórdão consideraram-se os seguintes factos provados:

“1.º No dia 16-03-2011, no período compreendido entre as 19h15m e as 20 horas, dentro da casa de habitação de ambos, sita ..., em Montemor-o-Novo, mediante a promessa de doação de vinte euros, o arguido aliciou e logrou obter consentimento do seu sobrinho T, nascido em 11-02-2004, então com sete anos de idade, para sobre ele praticar os actos sexuais que vão ser descritos, de seguida.

2.º Assim, dentro da casa de banho daquela casa, a pedido do arguido, o ofendido T, manipulou o pénis daquele até ficar erecto.

3.º Depois, o arguido, consecutivamente, friccionou o seu pénis na região anal do ofendido, durante cerca de 5 minutos, introduziu-o na boca do mesmo, dizendo-lhe para chupar.

4.º O arguido conhecia a idade do ofendido T, por ser seu tio materno e saber a data do seu aniversário, e a incapacidade natural do mesmo para consentir prática de actos sexuais sobre ele.

5.º Aproveitou a ausência momentânea da mãe do T, em cuja casa estava temporariamente hospedado, para praticar os factos antes descritos.

6.º Os quais praticou para satisfação dos seus instintos libidinosos e para obter prazer.

7.º Em tudo agiu voluntária, livre e conscientemente, sabendo as suas condutas proibidas e puníveis por lei.

8 - Por sentença exarada no processo a que coube o n.º ---/09.8GBMMN do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Montemor-o-Novo, transitada em julgado, o arguido foi condenado pela prática de três crimes relativos à caça e um crime de detenção de arma proibida, na pena de € 1680 de multa.

9 – À data da prática dos factos, o arguido morava com a irmã, o cunhado e o sobrinho T, desde Janeiro de 2011. Tinha ficado sem emprego, mas em Fevereiro de 2011, começou a trabalhar como servente de pedreiro nas obras executadas na Escola Secundária de Montemor-o-Novo.

10 - O arguido tem como habilitações literárias o 7º ano de escolaridade.

11 – Actualmente trabalha como tractorista e vaqueiro na Herdade ..., onde vive, sozinho, em casa cedida gratuitamente pelo patrão. Aufere mensalmente 500 euros.”

Foi ainda consignada a inexistência de factos não provados.

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões a apreciar são as seguintes:

(a) Impugnação da matéria de facto, erro notório na apreciação da prova e insuficiência da matéria de facto para a decisão;

(b) Medida da pena.

(a) O recorrente discorda do juízo sobre a matéria de facto (provada) plasmado no acórdão, pretendendo recorrer de facto.

Embora formalmente se limite a trazer às conclusões a arguição de dois dos vícios do art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal, também nelas se refere ainda a uma ambígua “errónea valoração da prova”.

E embora o faça confusamente, e com deficiente especificação das concretas passagens em que funda a impugnação, percebe-se que pretende impugnar a matéria de facto com recurso à prova gravada.

Da motivação e das conclusões retiramos pois que, na visão do recorrente, o tribunal deveria ter concluído que os factos imputados não resultaram provados.

Para tanto, bastaria terem sido positivamente valoradas as declarações do arguido – de negação dos factos provados – e desvalorizadas as declarações da vítima, que o recorrente não considera credíveis.

Para sustentar esta sua tese, socorre-se então de passagem do depoimento da mãe da vítima, única concreta prova sinalizada – em que a testemunha refere ter avisado o arguido de que estava a chegar a casa, o que retiraria sentido ao depoimento na parte em que afirma que o arguido mantinha a porta de casa fechada à chave quando ali chegou, porta que teria demorado três ou quatro minutos a abrir. Será apenas esta a concreta prova especificada, e apenas neste preciso ponto.

Adita o recorrente que o depoimento da mãe da vítima mais se fragiliza pela circunstância da queixa ter sido apresentada dois ou três dias após os factos, tendo o arguido permanecido até àquela data, em casa da irmã e em contacto com o menor.

A esta argumentação contrapõe no entanto o Ministério Público, fazendo-o com pertinência, que “as circunstâncias da mãe do menor ter telefonado ao arguido momentos antes do seu regresso a casa e de ter aguardado pelo regresso do pai do menor a casa, antes de apresentar queixa, em nada afectam a credibilidade do testemunho de I. Por um lado, a mãe do menor estava confrontada com um relato de factos graves pelo seu filho e a negação desses factos pelo seu irmão, que aquele apontava como o agente desses factos, pelo que decidiu aguardar pela chegada do pai do menor para em conjunto decidirem o que fazer. Por outro lado, a existência do telefonema não é incompatível com a circunstância da porta se encontrar fechada. Basta que o arguido se tenha esquecido que tinha fechado a porta ou não ter tido tempo de a abrir pois o telefonema ocorreu momentos antes.”

Assim, a argumentação expendida pelo recorrente é frágil, não permitindo, por si só, enfraquecer a credibilidade que o depoimento em causa mereceu. Na verdade, para além de considerações laterais e inconsequentes, nada de verdadeiramente abalador da verosimilhança do depoimento é assinalado. E essas considerações, de acordo com as circunstâncias do caso avaliadas à luz da experiência comum, suscitam a explicação que o Ministério Público pertinentemente lhes deu.

Acresce que a prova dos factos decorreu essencialmente de três contributos probatórios, e não apenas deste, como se verá.

Consigna-se, por último, que o recorrente inobservou (na motivação e nas conclusões) as especificações impostas pelo art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal, como resulta do que já se disse. Não procedeu à indicação das concretas passagens por referência ao consignado na acta, e também não procedeu à transcrição das concretas provas em que funda a impugnação, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (AFJ nº 3/2012).

No entanto, o incumprimento não impede totalmente a sindicância da decisão de facto, uma vez que são ainda perceptíveis as razões do recurso. E assim, apesar da desvalorização (já efectuada) da impugnação da única prova especificada, completar-se-á a sindicância da decisão de facto.

Importa rever o exame crítico da prova que integra o acórdão, podendo ainda esta Relação, para além da concreta prova indicada cuja impugnação já desvalorizámos, examinar “outras provas que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa” (art. 412º, nº 6 do Código de Processo Penal).

E no acórdão motivou-se a matéria de facto da forma seguinte:

“No que concerne à globalidade dos factos constantes na acusação e dados como provados, descritos nos nºs. 1 a 7, consideraram-se as declarações do menor T, que depôs de forma credível e segura, referindo ter ficado sozinho com o tio e arguido em casa, enquanto a mãe foi comprar tabaco. O tio foi tomar banho e chamou-o à casa de banho. Ele foi e, viu o tio sem roupa. O tio tirou a roupa dele e chegou a “pila” ao rabo dele, o que lhe fez doer. De seguida o tio meteu a “pila” dele na sua boca. O tio disse-lhe para ele não contar nada à mãe e ao pai e prometeu dar-lhe vinte euros. Quando a mãe chegou, ele não quis jantar e contou à mãe o que tinha acontecido com o tio. O tio zangou-se e chamou-lhe “cabrão”.

Acrescentou que isto nunca tinha acontecido anteriormente, nem com o tio nem com nenhum outro adulto.

Na prova dos referidos factos, consideraram-se, ainda, as declarações seguras da mãe do T – I – tendo esta referido que, à data da prática dos factos, vivia com o filho T, o companheiro e o irmão. O marido só vinha a casa ao fim de semana, pois trabalha fora durante a semana. O irmão estava sem trabalho e pediu-lhe para ir viver na casa dela por uns tempos. Acedeu. Pouco tempo depois, ele arranjou emprego nas obras da Escola Secundária de Montemor-o-Novo.

No dia 16-03-2011, o irmão chegou a casa depois do trabalho, por volta das 6 da tarde e fumou os últimos 2/3 cigarros que ela tinha. Disse-lhe que ia comprar tabaco e disse ao filho para ir com ela. O irmão disse-lhe para ela deixar ficar o menino, porque assim ia mais depressa. Demorou cerca de 30 minutos. Quando chegou a casa, a porta estava fechada, o que não era habitual. O irmão perguntou quem era e demorou 3 a 4 minutos a abrir a mesma.

Reparou que o irmão, quando ela saiu ainda não tinha tomado banho e quando regressou, já o havia feito.

Achou o T muito parado, nesse serão e ele não quis jantar. O filho disse-lhe que tinha uma coisa para dizer à mãe e acabou por lhe contar que o tio lhe tinha posto a pilinha no rabo. O irmão disse-lhe para ela não acreditar no “gaiato” e subiu para o sótão, onde dormia. Quando despiu o filho e lhe deu banho, reparou que ele tinha o rabo vermelho e disse que lhe doía. Ligou ao marido e, posteriormente, participou à GNR. O irmão foi-se embora e nunca mais falaram um com o outro.

Nesse dia o irmão cheirava a cerveja quando chegou a casa e reparou, depois que ele tinha bebido vinho que havia no frigorífico de casa.

Após o sucedido, o seu filho teve uma fase complicada dentro e fora da escola, andava muito sobressaltado. Ultimamente andava mais calmo. Mas, quando soube que tinha que vir a tribunal, ficou outra vez inquieto e agitado.

O filho é acompanhado por uma psicóloga, semanalmente, na escola (Drª. A. Entregou à Polícia Judiciária a roupa que o filho tinha vestido nesse dia.

O depoimento da Drª A, psicóloga que acompanha semanalmente o menor, desde a data da ocorrência dos factos dados como assentes, contribuiu para a aferir da credibilidade do depoimento do menor, na medida que esta técnica referiu que o menor não tem tendência para efabulação e o seu comportamento é típico de um menor que tivesse sido abusado sexualmente, demonstrando, numa fase inicial do acompanhamento, baixa auto-estima, grande ansiedade e instabilidade na escola.

Tal comportamento atenuou-se, mas voltou-se a repetir quando o menor soube que tinha que vir a Tribunal. Nos seus relatos, o menor identifica sempre o tio como o “mau”. A mãe do menor demonstra grande preocupação e proximidade com o mesmo, sendo patente a afectividade entre ambos, não sendo plausível que tivesse inventado os alegados abusos ao filho e tivesse incutido no mesmo tal versão.

Estes depoimentos seguros contrastaram com o depoimento do arguido que negou ter praticado os referidos factos, dizendo que passou o tempo todo em que a irmã esteve ausente, fora de casa, a brincar com o menor e, que não tomou banho antes da irmã chegar. Em primeiro interrogatório judicial admitiu que esteve algum tempo dentro de casa com o menor sozinho. Em julgamento, confrontado com tal discrepância, acabou por admitir que assim foi. De qualquer forma, o seu relato é contraditório com o da irmã e o do menor, nomeadamente no que toca ao facto de ter tomado banho, antes de ela chegar, o que é plausível, pois sendo servente de pedreiro, é natural que sentisse necessidade de se lavar da sujidade inerente ao trabalho que desempenha e ao tempo de permanência dentro de casa com o menor.

Por outro lado, não explicou o motivo pelo qual a porta da rua estava fechada quando a irmã chegou e demorou alguns minutos a abrir a mesma.

Todas estas circunstâncias, aliadas à forma credível como o menor depôs em julgamento, o comportamento do menor após a ocorrência dos factos, relatados pela mãe do menor e psicóloga que o acompanha, fez-nos incutir que os factos correram como descritos nos factos assentes.

Atentou-se ainda na prova documental:
- de fls. 3 a 5, 44, 21 a 23, 105, 127 a 129, 151, 152, 166 a 168;
Bem como no teor da seguinte Prova Pericial:
-Relatório de exames de fls. 147, 148 e 171 a 176.

Para apurar os antecedentes criminais do arguido (nº. 8) atendeu-se ao CRC actualizado junto aos autos.

Os factos atinentes à condição sócio-económica do arguido (nºs. 9 a 11) resultam do teor das respectivas declarações.

Facto não provado: Não se provou que o arguido tivesse introduzido o seu pénis no ânus do menor, uma vez que do teor do relatório pericial de fls. 147 e 148, não consta que o menor tivesse, à data da realização do exame, qualquer lesão do ânus. É certo que o exame foi feito no dia 21-03-2011 e os factos dados como assentes ocorreram cinco dias antes. Contudo, considerando a idade do menor e compleição física do mesmo, seria plausível que, a ter havido introdução anal, ainda fossem visíveis lesões. Na dúvida, há que dar o referido facto por não assente.”

Algum reparo merece este exame crítico da prova.

O caminho percorrido desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987 sedimentou o entendimento, que temos por incontroverso, de que a motivação da matéria de facto exige exame crítico das provas, de todas as provas conducentes ao conjunto dos enunciados fácticos afirmados na sentença, no sentido de que não basta enumerar, mencionar, transcrever ou reproduzir provas, impondo-se exteriorizar em que medida a prova influenciou o julgador, convencendo-o em determinado sentido.

Logo nos primeiros trabalhos doutrinários realizados sobre o novo Código de Processo Penal, divulgados pelo Centro de Estudos Judiciários em 1988, dizia Marques Ferreira: “A obrigatoriedade de tal motivação surge em absoluta oposição à prática judicial na vigência do Código de Processo Penal de 1929 e não poderá limitar-se a uma genérica remissão para os diversos meios de prova fundamentadores da convicção do tribunal (…). De facto, o problema da motivação está intimamente conexionado com a concepção democrática ou antidemocrática que insufle o espírito de um determinado sistema processual (…). No futuro processo penal português, em consequência com os princípios informadores do Estado de Direito democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado no art. 32º, nº1 e 210º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, exige-se não só a indicação das provas e dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal mas, fundamentalmente, a expressão tanto quanto possível completa ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão. Estes motivos de facto (…) não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência” (Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 1988, 229/30)

Ao motivar, o tribunal tem de dar a conhecer “as razões – necessariamente racionais e objectivas – da decisão. (…) O tribunal dará cumprimento à norma, tendo em conta o art. 205º da CRP, ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência e ao expor as razões de forma objectiva e precisa porque é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e porque é que outras não serviram. (…) Ela destina-se a justificar, de forma racional e objectiva, a convicção formada” (Sérgio Poças, Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Rev. Julgar, nº3).

O recorrente não arguiu a nulidade do acórdão, mas a invalidade da sentença que não revela adequadamente como se chegou à prova dos factos que consigna é de conhecimento oficioso.

O exame do texto do acórdão patenteia uma fundamentação que padece de deficiências. Assim sucede com as provas reais examinadas em audiência de julgamento.

Consigna-se no exame crítico que se “atentou ainda na prova documental: - de fls. 3 a 5, 44, 21 a 23, 105, 127 a 129, 151, 152, 166 a 168; bem como no teor da seguinte prova pericial: Relatório de exames de fls. 147, 148 e 171 a 176”. E, nesta parte, é tudo.

A respeito da prova documental, exceptuando casos residuais em que a extrema simplicidade do tema probando ou a literalidade do próprio documento falem por si, “remeter para o valor probatório dos documentos juntos aos autos é o mesmo que nada dizer” (STJ 24.07.2003).

Impondo-se explicar como se comprovaram os factos, importava para tanto ter analisado os documentos em que se diz ter “atentado”, explicando que documentos foram esses e o que deles se terá retirado ou deixado de retirar.

O exame da prova é a análise de todas as provas, mesmo daquelas de que nada de útil se extraia.

Mesmo quando determinada prova se apresenta como irrelevante, há que dizê-lo. Fazendo-o justificadamente, pois só assim a decisão revela que o tribunal conheceu e apreciou todas as provas.

Mais grave ainda se afigura a remessa para as folhas do processo onde se encontram as perícias, a cujo exame exaustivo não se procedeu na motivação. O exame crítico da prova omite quase totalmente a análise da prova pericial e por exame, sendo ainda certo tratar-se de meios de prova e de obtenção de prova que se revestem da maior valia.

É certo que o tribunal se lhe referiu quando fundamentou a matéria de facto não provada – “Não se provou que o arguido tivesse introduzido o seu pénis no ânus do menor, uma vez que do teor do relatório pericial de fls. 147 e 148, não consta que o menor tivesse, à data da realização do exame, qualquer lesão do ânus. É certo que o exame foi feito no dia 21-03-2011 e os factos dados como assentes ocorreram cinco dias antes. Contudo, considerando a idade do menor e compleição física do mesmo, seria plausível que, a ter havido introdução anal, ainda fossem visíveis lesões”.

Mas desconsiderou-o numa parte importante, como seja a da não detecção de vestígios de ADN do arguido na pessoa da vítima e nas cuecas desta.

O tribunal motivou a decisão de facto de forma assim incompleta, e, logo, insuficiente nos pontos acabados de assinalar. O que consubstanciaria uma nulidade de sentença por deficiente fundamentação da matéria de facto (art. 379º, nº1 al. a) do Código de Processo Penal). Nulidade que este Tribunal da Relação, tendo acesso a toda a prova que serviu de base à decisão, pode no entanto suprir.

Em caso de recurso efectivo da matéria de facto, as possibilidades de cognição da Relação em matéria de facto não se atêm a um simples exercício sobre o texto da sentença, nem se cingem à vigilância, através dele, do cumprimento de regras e princípios de prova. O recurso efectivo da matéria de facto permite também preservar a sentença nos casos em que o juiz de julgamento não se soube exprimir devidamente. Ou seja, naquelas situações em que a primeira instância julgou bem (de facto), mas fundamentou deficientemente a convicção (de facto).

Na análise das provas efectuadas em segunda instância, a Relação, porque também em contacto com as provas, pode agora confirmar a boa decisão, apesar das eventuais deficiências que o texto da sentença apresente. Oportunidade que, em certa medida, esvazia as valências da nulidade da sentença decorrente de imperfeito exame crítico da prova (arts 379º, nº1-al. a) e 379º, nº 2 do Código de Processo Penal).

No caso, a prova pericial e os exames são de considerar como inconclusivos, no que respeita à identificação do arguido como autor dos factos imputados.

Na verdade, nem na pessoa da vítima, nem nas cuecas que então vestia, foram identificados vestígios do arguido. Este resultado não suporta assim, probatoriamente, a acusação. Contudo, também não exclui a possibilidade dos factos terem ocorrido da forma considerada provada.

Por outras palavras, esta prova (pericial e por exame) não demonstra que o arguido tenha praticado quaisquer actos de cariz sexual na pessoa da vítima. No entanto, atendendo à circunstância de os exames físicos terem ocorrido alguns dias após os factos, já depois da vítima ter tomado banho (conforme depoimento gravado de I), da ausência de prova pericial de contacto físico entre arguido e vítima, não resultará então que esse contacto não possa ter ocorrido.

Daí que, no presente contexto, se considere inconclusivo o resultado negativo da pesquisa de ADN do arguido na pessoa da vítima.

O mesmo se diga relativamente à ausência de vestígios (como sendo ADN do arguido) nas cuecas do menor. A prática dos factos provados não implicaria necessariamente esses vestígios, já que se deu como provado que o arguido “friccionou o seu pénis na região anal do ofendido” mas não que o tenha feito sobre as cuecas, ou junto das cuecas, da vítima.

Assim, na ausência de prova por exame e por perícia relevante, resta a ponderação da prova pessoal, por declaração e por depoimento. E sendo afinal, processualmente, aqueles primeiros meios de prova (perícia) e de obtenção de prova (exame) os mais seguros e menos falíveis, a sua irrelevância vai exigir, no caso, por parte do tribunal, um particular rigor e cuidado na apreciação da restante prova oral.

Acresce que os crimes sexuais contra vítimas menores de idade, assim como os crimes sexuais em geral, ocorrem geralmente na reserva da privacidade. São por isso crimes em que, na descoberta da verdade, assume particular importância o depoimento da testemunha-vítima. Sendo esta uma vítima especial, a vítima criança, podem sobrevir dificuldades na reconstituição interna do facto e na construção do discurso narrativo pelo menor. O que não terá deixado de acontecer, também no caso presente.

Da leitura do acórdão resulta que a prova dos factos se baseou essencialmente nas declarações de T, de sete anos de idade à data dos factos, e com oito anos de idade à data do julgamento. Assentou também no depoimento da mãe, I, e da psicóloga, A, que o tem acompanhado desde os factos.

Assim, ainda de acordo com o exame crítico, o menor confirmou em audiência os factos provados, e as suas declarações foram suportadas pelos testemunhos corroborantes da mãe e da psicóloga, conforme explicado na motivação. Por seu turno, as declarações do arguido, de negação dos factos imputados, também ainda de acordo com a apreciação do tribunal de julgamento, não mereceram credibilidade – para além de não terem sido sempre uniformes relativamente a questões essenciais (referimo-nos aos pontos questionados no confronto, em audiência de julgamento, com as declarações prestadas em primeiro interrogatório judicial), foram infirmadas por prova mais consistente, de sinal contrário (as declarações do ofendido, os depoimento da mãe e da psicóloga).

O texto da decisão no que à convicção de facto se refere mostra-se, nesta medida, racional e lógico.

E da prova oral produzida em julgamento, a cuja audição integral procedemos – por via das gravações, e legitimados pela impugnação de facto do recorrente – resulta que o tribunal ouviu o que efectivamente foi dito. E do confronto das razões do recurso com a motivação do acórdão – ora completada/sanada na parte referente à prova pericial e por exame –, e após audição integral do registo da prova, resulta que: não se detecta qualquer desconformidade entre o que terá sido dito pelo arguido e pelas testemunhas e aquilo que o tribunal diz ter ouvido; que nenhuma das provas valoradas é proibida ou foi produzida fora das normas procedimentais que regem os meios de prova em apreciação; que o tribunal justificou racionalmente e logicamente a opção que fez relativamente à escolha e graduação dos contributos probatórios; que, perante provas de sinal contrário e, abstractamente, de igual peso probatório, atribuiu-lhes concretamente valor positivo ou negativo de uma forma também racionalmente justificada, apelando às regras da lógica e da experiência comum.

O princípio da livre apreciação da prova (art.127 Código de Processo Penal), de acordo com o qual o tribunal formou a sua convicção, mostrando-se a prova valorada de acordo com as regras da experiência, da lógica, da razão e dos conhecimentos científicos e técnicos necessários ao caso, não deveria ter conduzido à persistência de uma dúvida razoável. Por isso, não é de reconhecer aqui o pretendido erro de facto.

De todo o exposto resulta também a inexistência dos vícios do art. 420º, nº 2 do Código de Processo Penal, propalados em recurso.

O erro notório na apreciação da prova consistiria num erro evidente, facilmente detectado, e resultante do texto da decisão ou do encontro deste com a experiência comum. Cifrar-se-ia em considerar provado algo notoriamente errado, que não poderia ter acontecido, algo de ilógico, arbitrário ou notoriamente violador das regras da experiência. Seria uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si (…) Há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se respeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 74). Ficou claro que este erro não foi detectado.

O mesmo sucede com a insuficiência da matéria de facto para a decisão. Se bem o entendemos, o recorrente situaria este vício na decorrência da procedência do vício anterior. Ora, insuficiência da matéria de facto provada ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito. E só existe quando o tribunal deixa de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídica, concluindo-se pela existência de factos não apurados que seriam relevantes para a decisão da causa. Inexiste tal “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 69), que o recorrente, aliás, nem especifica.

(b.1.) Pretende o recorrente uma “atenuação da pena aplicada, de forma a fixá-la em limite temporal próximo do mínimo previsto para este tipo de crime”.

O crime de abuso sexual do art. 171º, nº 2, do Código Penal, é punido com pena de três a dez anos de prisão, não ocorrendo, no caso, circunstância modificativa.

A determinação concreta da pena terá de partir dos dispositivos nucleares dos artigos 40º e 71º, nº1 do Código Penal, relacionando-se adequadamente os princípios da culpa e da prevenção, no quadro constitucional da proibição do excesso.

Na doutrina para nós mais significativa, de Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005) e de Anabela Rodrigues (A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995), toda a pena prossegue finalidades exclusivamente preventivas.

Assim, na síntese de Figueiredo Dias, “toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais” (Direito Penal Português, Parte Geral I, Coimbra Editora, 2004, p.81).

Também para Anabela Rodrigues, “a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral”, devendo a pena “ser medida basicamente com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto” e o limite mínimo da moldura de prevenção geral será em concreto definido “pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode estender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica”. A pena deve ser medida pelo juiz “em função das exigências de protecção das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e que têm no processo um papel primordial”. E “os limites de pena assim definida pela necessidade de protecção de bens jurídicos não podem ser desrespeitados em nome da realização da finalidade de prevenção especial, outra finalidade em nome da qual a pena é medida”, sendo aqui o “desvalor do facto valorado à luz das necessidades individuais e concretas de socialização” do agente. À culpa fica reservado o papel de “incontestável limite de medida da pena assim encontrada” (A determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, p. 570-576).

A prevenção geral positiva ou de integração apresenta-se, pois, como a finalidade primordial a prosseguir com as penas, não podendo a prevenção especial positiva pôr em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, tendo sempre a culpa como limite.

Partindo das normas e dos princípios enunciados, cumpre rever a fundamentação da pena constante do acórdão.

Neste, justificou-se a pena da forma seguinte:

“Considerando, o grau de ilicitude da conduta do arguido – muito elevado –, estando em causa um bem jurídico com elevada protecção jurídica no nosso ordenamento, como sejam a liberdade sexual.

O dolo directo que imprimiu às suas condutas; As consequências emocionais para o ofendido, que se viu limitado na sua liberdade; Este tipo de crimes pela sua natureza e repercussão social, causam grande alarme, tornando ponderosas as necessidades de prevenção geral. No caso concreto, essas exigências são maiores, uma vez que o arguido, não demonstrou qualquer arrependimento nem ter interiorizado a gravidade da sua conduta.

Agrava ainda a conduta do arguido a grande disparidade de idades entre ele e a vítima e o facto de ter abusado da confiança que a sua irmã depositou nele, num contexto que esta o estava a apoiar financeiramente, dando-lhe guarida na sua própria casa. Este circunstancialismo, leva a concluir que o arguido manifesta uma personalidade distorcida dos mais elementares valores sociais e não permite efectuar um juízo de prognose favorável relativamente à sua capacidade futura para reprimir os seus instintos básicos na presença de menores indefesos.

Pesa também contra o arguido, a existência de antecedentes criminais (embora por factos de diferente natureza);

A seu favor: - Apenas a modesta situação económica e estar integrado profissionalmente.

Pelo exposto, entende este Tribunal Colectivo, ser justa e proporcional a aplicação ao arguido de uma pena de cinco e seis meses anos de prisão, pela prática do crime de abuso sexual previsto e punível pelo art. 171º, nº 2, do Código Penal”.

Adiantamos que a pena fixada, situada abaixo do ponto médio, mas já acima do primeiro quarto da pena abstracta, o foi em medida excessiva. Avaliação que efectuamos, no quadro das normas e dos princípios expostos.

O tribunal ponderou as exigências de prevenção geral, que representam, como se disse, a “finalidade primordial a prosseguir com as penas”. Mas essas exigências, no caso concreto, mostram-se ainda satisfeitas num patamar menos elevado de pena, e que melhor se adeqúe às exigências de prevenção especial e ao limite da culpa.

Assim, as necessidades de prevenção especial não se situam a um nível tão elevado, desde logo porque, apesar de uma ausência de exteriorização de arrependimento, não são significativos os antecedentes criminais do arguido, e este apresenta-se socialmente integrado. A única condenação anterior, por ilícitos “de caça”, revela-se, no presente contexto, de reduzido peso agravante.

Embora “os limites de pena definida pela necessidade de protecção de bens jurídicos não possam ser desrespeitados em nome da realização da finalidade de prevenção especial”, a prevenção geral não deixa de se manter assegurada através de uma pena situada abaixo da fixada no acórdão.

Na avaliação da ilicitude terá de caber o efectivo grau de ofensa ao bem jurídico, que não é de considerar, em concreto, particularmente elevado, tendo em conta os específicos actos praticados e a ausência de particulares consequências para a vítima, para além das que se intuem como normalmente resultantes deste tipo de crime.

Reponderando assim todas as circunstâncias que funcionam contra e a favor do arguido, considera-se mais justa e adequada uma pena de quatro anos de prisão.

Esta pena concreta contem-se nos limites da culpa, aferidos da personalidade desvaliosa revelada no facto, de acordo com as circunstâncias sinalizadas no acórdão. Algumas delas influem também ao nível da ilicitude – relação de proximidade, de parentesco e de confiança, entre o arguido e a vítima, a concreta idade desta e a desproporção de idades da vítima e do agressor, num tipo de protecção de menor até aos 14 anos.

(b.2.) Da (não) suspensão da execução da pena:

As penas de prisão aplicadas em medida não superior a cinco anos devem ser, por princípio, suspensas na execução, “salvo se o juízo de prognose sobre o comportamento futuro do agente se apresentar claramente desfavorável, e a suspensão for impedida por prementes exigências geral-preventivas, em feição eminentemente utilitarista da prevenção” (STJ 07.11.2007, Henriques Gaspar).

É o que resulta do art. 50º do Código Penal, lido à luz da Constituição, no conjunto de normas e de princípios que disciplinam a pena.

Assumindo neste momento do processo aplicativo a prevenção especial um papel dominante, e apesar do arguido se apresentar relativamente integrado e de não ter significativos antecedentes criminais, as prementes exigências de prevenção geral, associadas também a algumas exigências de prevenção especial (o arguido não manifestou qualquer interiorização do mal do crime), inviabilizam a opção por pena de substituição.

Há que ter presente que “a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral” e que “os limites de pena assim definida pela necessidade de protecção de bens jurídicos não podem ser desrespeitados em nome da realização da finalidade de prevenção especial, outra finalidade em nome da qual a pena é medida”, sendo aqui o “desvalor do facto valorado à luz das necessidades individuais e concretas de socialização” do agente (Anabela Rodrigues, loc. cit.). E que “a sociedade tolera uma certa perda do efeito preventivo geral – isto é, conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição, mas, quando a sua aplicação possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão(Anabela Rodrigues, “Estudos em Homenagem ao Professor Eduardo Correia”).

São claras as exigências de prevenção geral, já destacadas no acórdão e não colocadas em crise no recurso, a que se associam, em menor grau é certo, as de prevenção especial. Para além da relativa integração social do arguido e do passado criminal pouco significativo, nada mais resultou provado em seu favor, o que, no conjunto de todas as concretas circunstâncias, não é o bastante para se optar por uma ressocialização em liberdade.

Rectificam-se, por último, duas imprecisões do acórdão: o tipo de crime da condenação não protege a liberdade sexual, já que o legislador presume que o menor abaixo dos 14 anos de idade não tem capacidade para livre e esclarecidamente se decidir no relacionamento sexual; protege sim a autodeterminação sexual, ligada ao livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual (Maria do Carmo Dias, Notas Substantivas sobre os crimes sexuais com vítimas menores de idade, revista do Cej, 15, pp 213-215); a ausência de arrependimento, se bem que não exclusivamente (não exclusivamente, “na medida em que a diminuição da gravidade dos efeitos do facto possa ser captada positivamente pela comunidade”, Anabela Rodrigues, loc. cit., p. 677), releva sobretudo para as exigências de prevenção especial.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

Julgar parcialmente procedente o recurso, reduzindo-se a pena para quatro anos de prisão, mantendo-se no mais o acórdão.

Sem custas.

Évora, 16.04.2013

(Ana Maria Barata de Brito)

(António João Latas)

__________________________________________________
[1] - Sumariado pela relatora.