Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1196/20.0T8BJA.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
TRIBUNAL DO TRABALHO
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Nos termos do artigo 126.º, n.º 1, alínea c), da LOTJ, compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais. O que significa que os juízos do trabalho têm competência para conhecer, em matéria cível, de questões que têm como causa de pedir a ocorrência de um acidente de trabalho.
2 - No caso, o objeto do litígio, que é saber se existe o direito de sub-rogação da apelante decorrente do artigo 17.º, n.º 4, da Lei n.º 98/2009, de 04-09, tem uma causa de pedir complexa, constituída desde logo pela existência de um contrato de seguro de trabalho, e também pela ocorrência de um acidente de trabalho, pela satisfação, pela seguradora, das pretensões indemnizatórias ao(s) lesado(s) e, por fim, pela imputação do sinistro a terceiro.
3 - Embora o acidente de trabalho em si mesmo seja um dos elementos integradores da causa de pedir, na medida em que o direito de crédito invocado resulta da responsabilidade assumida pela apelante enquanto entidade seguradora e em virtude da ocorrência daquele sinistro, o que está em causa nos autos são os pressupostos do direito de crédito invocado pela autora, pelo que o tribunal materialmente competente para conhecer do presente litígio é o juízo central cível.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1196/20.0T8BJA.E1
(1.ª Secção)

Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…)-Companhia de Seguros, SA, autora na ação declarativa de condenação que moveu contra (…)-Construções, Lda. e (…), interpôs recurso da decisão proferida pelo Juízo Central Cível e Criminal de Beja, Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, o qual julgou verificada a exceção de incompetência absoluta, em razão da matéria, daquele tribunal e, em consequência absolveu os réus da instância.

A decisão sob recurso tem o seguinte teor:
«Veio a Autora (…)– Companhia de Seguros, S.A., com sede no Largo do (…), 30, em 1249-001 Lisboa, intentar ação declarativa sob a forma de processo comum contra os Réus (…) – Construções Lda., com sede na Urbanização (…), lote 87, 7500-016 Vila Nova de Santo André e (…), com domicílio na Rua Dr. (…), n.º 43, 7565-222 Ermidas do Sado, com vista ao exercício, enquanto seguradora laboral, de direito de regresso contra a 1.ª Ré, entidade empregadora, e, subsidiariamente, contra o 2.º Réu na qualidade trabalhador da 1.ª Ré, de montantes indemnizatórios que a primeira já pagou na sequência de acidente de trabalho que vitimou um trabalhador da 1.ª Ré (…) e que terá tido origem no incumprimento de normas de segurança no trabalho.
Notificada as partes para, querendo, se pronunciar sobre a eventual verificação de exceção dilatória de incompetência absoluta deste tribunal, em razão da matéria, por violação das regras de competência especializada dos tribunais judiciais, para tramitar a presente ação, apenas a Autora respondeu, o que fez nos termos constantes do requerimento com a referência 2009093.
Cumpre apreciar e decidir.
Na nossa ordem jurídica interna, um dos critérios para repartição da jurisdição pelos diferentes tribunais é a matéria (cfr. 60.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil e 37.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), sendo a lei de organização judiciária a determinar que causas, em razão deste critério, são da competência dos tribunais e dos juízos dotados de competência especializada (cfr. artigo 65.º do Cód. Proc. Civil e artigo 40.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).
No que especificamente concerne aos litígios relativos à relação laboral e aos assuntos com esta conexos, são em regra competentes os juízos do trabalho, salientando-se, para o que in casu releva, que é da competência exclusiva destes juízos conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais. Assim estabelece o artigo 126.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.
Ora, por via da presente ação pretende a Autora, na qualidade de seguradora laboral, reembolsar-se de valores indemnizatórios, por si despendidos, em cumprimento de contrato de seguro laboral celebrado com a 1.ª Ré (empregadora) para ressarcimento de danos emergentes de acidente de trabalho que vitimou um trabalhador desta, acidente esse que, de acordo com a alegação da Autora, terão ocorrido em consequência de violação de normas de segurança do trabalho imputável à 1.ª Ré ou ao 2.º Réu.
Quer dizer: destina-se a presente ação à efetivação pela Autora do direito de regresso contra a empregadora a que alude o artigo 79.º, n.º 3, da Lei dos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (Lei 98/2009, de 4 de setembro – doravante LAT).
Salvo o devido respeito por posição contrária, cremos que tal direito de regresso não pode ser analisado, ponderado e decidido autónoma e hermeticamente, desprendido da factualidade e das normas laborais reguladoras dos acidentes de trabalho, bem assim como das regras de segurança do trabalho e dos deveres que a esse respeito impendem sobre as entidades empregadoras. E, se assim é, parece-nos evidente que a ação com vista ao exercício do direito de regresso em causa, por ter a virtualidade de convocar normas substantivas que regulam questões muito específicas relativas a acidentes de trabalho e deveres laborais, não pode deixar de reputar-se como «questão emergente de acidentes de trabalho» na aceção da alínea c), n.º 1 do art. 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, sendo assim da competência dos juízos do trabalho e devendo esta ação correr por apenso ao processo resultante do acidente (cfr. art. 154.º, n.º 1, do Cód. Proc. Trabalho).
No sentido que propugnamos, pronunciou-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 30.04.2019 (cfr. processo n.º 100/18.0T8MLG-A.G1.S1, relatora Ana Paula Boularout, in www.dgsi.pt) que decidiu o seguinte em situação similar à destes autos: «Seria uma incongruência concluir-se que o Tribunal de Trabalho era o competente para se aferir da responsabilidade da entidade seguradora nesta sede, por via da transferência das responsabilidades através da celebração obrigatória do contrato de seguro havido com a entidade patronal em sede de acidentes de trabalho, e, já não o seria, para averiguar, afinal das contas se teria ou não ocorrido uma efetiva responsabilidade funcional desta na ocorrência do sinistro, por forma a desonerar aquela das obrigações assumidas, porquanto o que está em causa, a jusante e a montante, é o acidente de trabalho e as circunstâncias em que o mesmo se verificou».
E acrescenta, com interesse, o mesmo aresto: «Nos termos do artigo 40º, da LOFT, os Tribunais judiciais têm uma competência residual, apenas intervindo quando as causas não estejam atribuídas a outra ordem jurisdicional e a situação dos autos está expressamente afeta à jurisdição laboral, ex vi do artigo 126º, nº 1, alínea c), do mesmo diploma, tendo em atenção o pedido e a causa de pedir em tela, encontrando-se prevista no CPTrabalho não só a tramitação do processo relativo ao acidente laboral, como também, todos os procedimentos destinados a ultimar a extinção e/ou a efetivação de direitos de terceiro conexos com o acidente de trabalho, prevendo que essas ações corram por apenso ao processo resultante do acidente, caso o haja, artigo 154º do CPTrabalho, no qual se predispõe: «1 - O processo destinado à efetivação de direitos conexos com acidente de trabalho sofrido por outrem segue os termos do processo comum, por apenso ao processo resultante do acidente, se o houver. 2 - As decisões transitadas em julgado que tenham por objeto a qualificação do sinistro como acidente de trabalho ou a determinação da entidade responsável têm valor de caso julgado para estes processos. Consagra-se, assim, o princípio da absorção das competências, o que equivale a dizer que tendo os Tribunais de trabalho a competência exclusiva para a apreciação das problemáticas decorrentes dos acidentes de trabalho, a eles competirá, mutatis mutandis, igualmente, o conhecimento de todas as questões cíveis relacionadas com aqueles que prestem apoio ou reparação aos respetivos sinistrados, já que, o cerne da discussão se concentra na ocorrência do sinistro e eventual violação por banda da entidade empregadora das regras de segurança».
Pese embora não se ignore a existência de jurisprudência em sentido inverso, cremos que os argumentos esgrimidos a favor da posição que perfilhamos, e que acima se deixam expressos, são de maior peso e que melhor se coadunam com o objetivo expresso pelo legislador na repartição da competência entre os diversos juízos.
A violação das regras de competência em razão da matéria gera incompetência absoluta do Tribunal, sendo cognoscível ex officio até à decisão, tendo ademais como corolário a absolvição do réu da instância (cfr. arts. 96, alínea a), 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1 e 278.º, n.º 1, alínea a), todos Cód. Proc. Civil).
Face do exposto, julgo verificada a exceção de incompetência absoluta, em razão da matéria, deste Juízo Central Cível e Criminal de Beja e, em consequência, absolvo os Réus (…) – Construções, Lda. e (…) da instância.
Custas pela Autora (cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Valor da ação: € 76.339,71.
Após trânsito, remeta os autos ao Juízo do Trabalho de Beja (cfr. artigo 99.º, n.º 2, do Código de Processo Civil)»

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«I. Por via do presente Recurso pretende a Autora, ora Apelante, impugnar, com vista à sua ulterior revogação, o despacho sentença proferido nos presentes autos, o qual, julgando verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Juízo Central Cível e Criminal de Beja, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, absolveu os Réus, ora Apelados, da instância;
II. É entendido, pacificamente pela jurisprudência que a natureza da matéria alegada afere-se pela pretensão jurisdicional deduzida e pelo fundamento invocado.
III. In casu, a causa de pedir assenta no direito de regresso de que a Autora se arroga titular, visto que, por efeito de contrato de seguro de acidentes de trabalho, satisfez as quantias relativas a subsídios por morte e por despesas de funeral e de transporte, bem como das pensões, incluindo subsídios de férias e o capital de remição, devidos à beneficiária, assim como suportou os encargos decorrentes de outras despesas decorrentes do acidente de trabalho que vitimou (…).
IV. Estamos, pois, perante um direito de crédito que tem por fundamento o direito de regresso de que a Autora é titular em virtude de o acidente ter sido causado por terceiro(s).
V. Como resulta da factualidade alegada na PI, não se trata aqui de apurar se a obrigação decorrente do acidente de trabalho e do contrato de seguro no confronto com o sinistrado, mas de apurar se aquela tem ou não direito de regresso contra os Recorridos quanto ao montante que pagou em virtude dos mencionados contrato de seguro e acidente de trabalho.
VI. Verifica-se, assim, que o Tribunal a quo ao aplicar a alínea c) do artigo 126.º da LOSJ fez uma errónea interpretação das regras de competência, particularmente, do artigo 40º da LOSJ.
VII. Por tudo o quanto foi aduzido, com o devido respeito por opinião contrária, deverá concluir-se que compete a este Juízo Central Cível, portanto, aos tribunais comuns, conhecer do mérito da ação proposta, para efetivação do direito de regresso contra terceiro(s) causadores do acidente de trabalho, por forma a obter a sua condenação no reembolso das despesas suportadas, em resultado do acidente de trabalho sofrido (…) e causado terceiro(s), tal como amplamente narrado no articulado petitório apresentado em juízo.
Termos em que:
Deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a decisão recorrida, devendo a causa prosseguir na instância central cível do Tribunal da Comarca onde foi distribuída».

I.3.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (art. 608.º, n.º 2 e art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (arts. 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
A questão que cumpre decidir consiste em saber qual o tribunal competente em razão da matéria para conhecer da ação que tem por objeto o direito ao reembolso dos montantes indemnizatórios satisfeitos pela entidade seguradora por força da ocorrência de um acidente de trabalho.

II.3.
Mérito do recurso
Está em causa no presente recurso de uma decisão do tribunal de primeira instância por via da qual aquele se declarou incompetente em razão da matéria para conhecer do litígio que tem por objeto o direito ao reembolso dos montantes indemnizatórios pagos pela seguradora em virtude da ocorrência de acidente de trabalho, e, consequentemente, absolveu os réus da instância.
A incompetência traduz-se na insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa em virtude de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação.
A lei distribui a competência entre os diversos órgãos judiciários segundo uma linha horizontal – competência em sentido horizontal – que é um problema de escolha entre os diferentes tribunais do mesmo grau situados em locais diversos – e segundo uma linha vertical – competência em sentido vertical – que é a eleição, entre os órgãos jurisdicionais diferentes em razão da hierarquia, daquele onde a lide deve ser instaurada.
Para a distribuição das causas segundo uma ordem horizontal, concorrem os critérios da matéria e do território.
As regras que delimitam a jurisdição dos tribunais de acordo com a matéria ou o objeto do litígio têm a designação de regras de competência em razão da matéria e a respetiva infração gera a incompetência absoluta do tribunal (cfr. art. 96.º, al. a), do CPC).
Nos termos do disposto no art. 64.º do Código de Processo Civil, as causas que não sejam atribuídas por lei a alguma jurisdição especial são da competência dos tribunais judiciais, dispondo o art. 65.º do mesmo diploma normativo que são as leis de organização judiciária que determinam as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotadas de competência especializada.
Nos termos do art. 81.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário aprovado pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, doravante LOTJ, os tribunais de comarca desdobram-se em juízos que podem ser de competência especializada, de competência genérica e de proximidade, sendo os juízos do Trabalho juízos de competência especializada (artigo 81.º, n.º 3, alínea h)).
É consabido que a competência do tribunal é aferida através do pedido e da causa de pedir, tal como configurados pelo autor na respetiva petição inicial. Ou seja, através da pretensão formulada pelo autor e do(s) facto(s) jurídico(s) concretos integrantes das normas de direito substantivo que concedem o direito.
No caso, a autora/apelante veio pedir a condenação da 1.ª ré a pagar-lhe o valor de € 52.903,33, acrescidos de juros de mora, desde a data da citação e até integral pagamento e, subsidiariamente, a condenação do 2.º réu, no pagamento daqueles valores.
Para tal desiderato, a autora/apelante alegou que no exercício da sua atividade comercial, celebrou com a 1.ª ré um contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, mediante o qual foi para si transferida a responsabilidade da segunda no âmbito de acidentes de trabalho; o referido contrato de seguro estava em vigor na data em que o trabalhador da 1.ª ré, (…), teve um acidente mortal – que descreveu – enquanto trabalhava na execução das obras de subconcessão Rodovia Baixo Alentejo, entre Santa Margarida do Sado e Figueira dos Cavaleiros, Ferreira do Alentejo, ao serviço da 1.ª ré; no âmbito do processo especial emergente de acidente de trabalho que se seguiu, a autora / apelante, na qualidade de seguradora, firmou acordo com a viúva do sinistrado, homologado pelo tribunal, comprometendo-se a pagar à segunda os seguintes valores: (i) € 2.712,97 a título de pensão anual e vitalícia, (ii) € 5.533,70 a título de subsídio por morte; (iii) € 1.103,84 a título de subsídio de despesas por funeral; e (iv) € 40,00 a título de despesas de deslocação para o tribunal; a autora procedeu ao pagamento da quantia global de € 52.903,33 (no qual se inclui o valor de € 41.966,16 a título de pensões, incluindo subsídios de férias e o capital de remição); o acidente de trabalho que vitimou (…) foi causado pela conduta descuidada e imprudente do 2.º réu enquanto manobrava uma retroescavadora no exercício de funções que lhe haviam sido confiadas pela 1.ª ré, factos que deram origem a um processo crime no âmbito do qual aquele foi condenado pelo crime de homicídio negligente.
A autora invocou o disposto no artigo 17.º, n.º 4, da Lei n.º 98/2009, de 04-09, o qual consagra um direito de sub-rogação da seguradora no direito do lesado contra os responsáveis cíveis, considerando como tais a 1.ª ré, na qualidade de comitente (cfr. art. 500.º, n.º 1, do Código Civil), e o 2.º réu, por ter sido a sua conduta praticada no exercício de funções que lhe foram confiadas pela 1.ª ré a causadora da morte de (…).
O tribunal recorrido, apoiando-se num recente acórdão do STJ de 30-04-2019, proferido no processo n.º 100/18.0T8MLG-A.G1.S1, considerou que a presente ação «não pode deixar de reputar-se como questão emergente de acidentes de trabalho e deveres laborais na aceção da alínea c), n.º 1, do art. 126.º da lei n.º 62/2013, de 26 de agosto», na medida em que convoca normas substantivas que regulam questões muito específicas relativas a acidentes de trabalho e deveres laborais, pelo que se julgou incompetente em razão da matéria.
Vejamos.
Como já assinalámos, os juízos do trabalho são, dentro dos tribunais judiciais de comarca, tribunais de competência especializada (cfr. arts. 79.º, 80.º e 81.º, n.º 3, al. h), da LOTJ).
Nos termos do art. 126.º, n.º 1, c) da LOTJ compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Isto é, de acordo com aquele preceito legal os juízos do trabalho têm competência para conhecer, em matéria cível, de questões que têm como causa de pedir a ocorrência de um acidente de trabalho.
O qual se define como o acidente que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte – artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 04-09 (que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais).
No caso, o objeto do litígio – que é saber se existe o invocado direito de sub-rogação da seguradora (autora/apelante) nos direitos do lesado relativamente aos montantes indemnizatórios que pagou em virtude da ocorrência de acidente de trabalho – tem uma causa de pedir complexa, constituída desde logo pela existência de um contrato de seguro de trabalho, depois pela ocorrência de um acidente de trabalho, pela satisfação, pela seguradora, das pretensões indemnizatórias ao(s) lesado(s) e pela imputação da responsabilidade pela ocorrência do sinistro a terceiro – vd., entre outros, Ac. RG de 21-11-2019, processo n.º 3112/19.3T8BRG.G1. Ou seja, embora o acidente de trabalho em si mesmo seja um dos elementos integradores da causa de pedir, na medida em que o direito de crédito invocado resulta da responsabilidade assumida pela apelante enquanto entidade seguradora e em virtude da ocorrência daquele sinistro, o que está em causa nos autos é um (alegado) direito de crédito relacionado com a responsabilidade civil extracontratual dos réus pela reparação do dano morte ocasionado ao lesado, no local e no tempo de trabalho deste último, responsabilidade que, comprovando-se, gera na esfera jurídica da apelante o direito ao reembolso dos valores que pagou por força do contrato de seguro outorgado com a 1.ª ré, por força do supra referido artigo 17.º, n.º 4 , da Lei n.º 98/2009, de 04-09.
Questão que, ao contrário do sustentado pelo tribunal recorrido, não convoca normas substantivas relativas a acidentes de trabalho e deveres laborais, pois que não se discute na ação se o acidente de trabalho ocorreu, ou não, ou o valor das prestações indemnizatórias devidas pois que, segundo a autora alegou (e está comprovado por documento) já correu termos no competente tribunal a ação emergente de acidente de trabalho.
Na verdade, esta relação jurídica de natureza creditícia embora esteja conexa com a relação jurídica decorrente do acidente de trabalho, nos termos supra referidos, é dela autónoma – neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 22-06-2006, proferido no processo n.º 06B2020, consultável em www.dgsi.pt – , visando apurar se se verificam os pressupostos do direito de crédito invocado pela autora, concretamente, do direito de sub-rogação previsto no art. 17.º, n.º 4, da Lei n.º 98/2009, de 04-09.
A talhe de foice, dir-se-á, também, que a situação dos autos não se integra tão pouco na alínea n) do art. 126.º, n.º 1, da LOTJ porquanto o pedido formulado na ação não está cumulado com qualquer outro para o qual o tribunal do trabalho seja diretamente competente.
Resulta assim do exposto que o tribunal materialmente competente para conhecer do presente litígio é o juízo central cível (e não o juízo do Trabalho), ao contrário do decidido pelo tribunal recorrido, pelo que procede a apelação.


Sumário: (…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar procedente o recurso e, consequentemente, julgar competente em razão da matéria para apreciar e decidir sobre o objeto do litígio o Juízo Central Cível e Criminal de Beja, Juiz 4, revogando-se, em conformidade, a decisão recorrida.
Sem custas porquanto a recorrente procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e, não tendo havido resposta às alegações de recurso, não há lugar a custas de parte na presente instância recursiva.
Notifique.
Évora, 16 dezembro de 2021,
Cristina Dá Mesquita (Relatora)
José António Moita (1º Adjunto)
Silva Rato (2º Adjunto)