Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
302/14.9TMFAR.E1
Relator: ACÁCIO NEVES
Descritores: PROTECÇÃO DA CRIANÇA
MEDIDA TUTELAR
CONFIANÇA A INSTITUIÇÃO COM VISTA A FUTURA ADOÇÃO
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - A medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção constitui a medida grave de todas as medidas previstas no art. 35º da LPCJP, que acaba por provocar o corte da relação estabelecida entre a criança e a família biológica;
2 - Como tal, a mesma só deve ser aplicada quando, verificada alguma das situações a que alude o art. 1978º do C. Civil, esteja afastada a possibilidade de retorno da criança à sua família biológica.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Proc.º N.º 302/14.9TMFAR.E1 (2ª Secção Cível)
Acordam nesta Secção Cível os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

Os presentes autos de promoção e protecção reportam-se à criança (…), nascida em 25 de Julho de 2009 e registada como filha de (…) e de (…).

A solicitação do MP foi determinada a abertura da instrução bem como a aplicação de medida provisória de acolhimento institucional a favor da criança, que desde Janeiro de 2014 se encontrava acolhida numa instituição em Espanha.

Executada em 17.5.2014 a medida de acolhimento provisório no Refúgio Aboim Ascensão, em Faro, foi ordenada a perícia psiquiátrica dos pais.

Agendada uma conferência foram ouvidos os progenitores.

Elaborados os relatórios foi encerrada a instrução e determinado o cumprimento do artigo 114º da LPPCJP.

Por requerimento do Ministério Público, apresentado ao abrigo do preceituado no artigo 114º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens, foi solicitada a aplicação da medida de confiança a instituição com vista a futura adopção da criança, nos termos do artigo 35º, nº 1, al. g), da LPPCJP.

Os progenitores apresentaram também as suas alegações a fls. 267 e sgs e 275 e sgs, opondo-se à aplicação da medida proposta e reclamando a entrega do filho aos seus cuidados.

Foi realizado o debate judicial, com a intervenção da juíza presidente e dos juízes sociais.

Seguidamente, foi proferido acórdão nos termos do qual, revendo a medida provisória de acolhimento institucional se decidiu aplicar a favor da criança (…) a medida de promoção de confiança a instituição com vista à sua futura adopção, ficando a mesma colocada sob a guarda do Refúgio Aboim Ascensão, em Faro.

Inconformados, recorreram de apelação, em separado, ambos os progenitores.

Nas respectivas alegações, pedindo a revogação da decisão recorrida, por falta de verificação dos requisitos para a adopção previstos no art. 1978º do C. Civil, apresentou o progenitor (…) as seguintes conclusões:

1ª - A matéria de facto dada como provada que refere o teor dos diversos relatórios sem outra comprovação é inócua não podendo relevar para aquilatar da existência ou não das condições previstas no art. 1978º que impõe a confiança do menor a instituição com vista a futura adopção.
2ª - A matéria constante nos factos provados nº 55, 56 e 57 deve ser dada como não provada por a tal se opor a prova produzida pelo depoimento da testemunha (…), irmã da requerida e tia do menor, prestado em audiência e gravado das 11,24 às 11,58h.
3ª - Face ao depoimento prestado pela mesma testemunha no mesmo aludido depoimento deverá ser dado como provado que: “O menor (sobrinho) sempre se apresentou limpo e bem tratado, sendo a requerida boa mãe e carinhosa para com o filho”.
4ª - Da matéria de facto dada como provada não é possível concluir “não existem ou se encontram seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação”.
5ª - Da matéria de facto dada como provada não é possível objectivizar que existe comportamento activo ou missiva do recorrente (e da progenitora) que ponha em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, educação ou o desenvolvimento do menor.
6ª - O superior interesse da criança exige a manutenção dos vínculos afectivos de filiação nutridos reciprocamente por pai e filho.
7ª - Foram violadas as disposições conjugadas dos arts. 36, 65 e 66 da Constituição da República e do art. 1978º do Cod. Civil.

Por sua vez, nas suas alegações, pedindo a revogação da decisão recorrida, apresentou a progenitora (…) as seguintes conclusões:

1ª - Devem ser dados como provados os factos declarados pela testemunha (…), (trechos da gravação da audiência de julgamento do dia 13/03/2015: 01:12 a 01:27, 01:53 a 02:09 e 2:37 a 4:55).
2ª - Bem como, os factos declarados pela testemunha (…), na audiência de julgamento do dia 13/03/2015: 01:00 a 02:36 e 02:38 a 03:25 e 05:08 a 08:57 e 18:32 A 18:41.
3ª - Resultando ainda, que restou não provado que o vínculo afectivo se encontra comprometido, bem como não se encontra provada a manifesta incapacidade da progenitora em assegurar ao menor, segurança, educação, saúde, formação e desenvolvimento.
4ª - Pelo supra exposto, conclui-se que não se encontram preenchidos os requisitos do n.º 1, alínea d) do artigo 1978.º do Código Civil para a aplicação da medida de promoção de confiança do menor à instituição com vista à futura adopção, e ainda, que foram violados o disposto nos artigos 36.º, 67.º e 68.º da Constituição da República Portuguesa, e o n.º 1 e n. º 2 do artigo 18.º Convenção sobre os Direitos da Criança.
5ª - Do conjunto da prova produzida, e considerando os factos ora expostos que, sendo dados como provados, a decisão deveria ser diferente da ora recorrida.

Contra-alegou o Ministério Público, pugnando pela improcedência dos recursos e pela confirmação da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

Em face do conteúdo das conclusões das alegações de ambos os apelantes, enquanto delimitadoras do objecto dos recursos, são as seguintes as questões de que cumpre conhecer:

- alteração da matéria de facto;

- falta de verificação dos requisitos necessários à medida aplicada.

Factualidade dada por provada na 1ª instância:

1) A criança (…) nasceu em 25 de Julho de 2009 e encontra-se registada como filha de (…) e de (…), tendo nacionalidade portuguesa (certidão de folhas 34 e 35 e seus averbamentos, deste processo).
2) Os pais da criança e esta estavam domiciliados em Espanha, em Lepe – Huelva (declarações dos progenitores; processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”).
3) Em 12 de Julho de 2013 foi recebida na Delegação Territorial de Huelva da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales” uma denúncia de maltrato da criança, a qual vivia com seus pais numa casa abandonada no campo em péssimas condições de habitabilidade e higiene, sem água e electricidade, existindo uma relação conflituosa entre os pais da mesma (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”; doc. fls. 278).
4) Pelo serviço de protecção de crianças de Espanha foram solicitadas informações, tendo os Serviços Sociais da zona e do centro escolar da criança indicado tratar-se de uma família que ocupava uma casa nos arrabaldes do município, a qual não dispunha de condições mínimas de habitabilidade e equipamento necessário, nem de fornecimento de electricidade e água corrente (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”).
5) Informaram, ainda, padecer a mãe da criança de enfermidade mental, diagnosticada como neurose obsessiva compulsiva, estarem os pais desempregados e terem dificuldades para a satisfação das necessidades básicas da criança, não dispondo de rede de apoio familiar e social (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”).
6) O casal mantinha uma relação conflituosa (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”).
7) O centro escolar informava que a criança ia à escola em más condições de higiene (doc. fls. 280), sem roupa adequada e na maioria das vezes não tomava o pequeno-almoço (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales” fls. 206).
8) Os pais não mostravam interesse pela evolução educativa do filho (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales” fls. 206, 108).
9) Em 13 de Novembro de 2013, os Serviços Sociais informaram o Serviço de Protecção de Menores Espanhóis de que os pais haviam mudado de domicílio, ocupando agora uma nova casa, sem luz nem água e que aumentara o absentismo escolar da criança (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”). 10) Com base na informação recebida concluiu o Serviço de Protecção de Menores pela existência de indicadores de uma situação de negligência grave na prestação dos cuidados à criança e de desprotecção por parte de seus pais, tendo iniciado em 19 de Novembro de 2013, procedimento com vista a determinar a necessidade de adoptar medidas de protecção para a referida criança (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”). 11) Na sequência da instrução do processo técnicos do Serviço de Protecção de Menores de Espanha efectuaram visita domiciliária, constatando a situação de perigo para a integridade física e pessoal da criança no seu núcleo familiar, levando em conta a atitude negligente e a relação conflituosa dos pais, a ausência de condições mínimas para uma adequada atenção (prestação de cuidados) à criança, dadas as péssimas condições de habitabilidade e higiene da casa, que não dispunha de luz e água (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”). 12) O Serviço de Protecção de Menores de Espanha entendeu ser por isso necessária a adopção de uma medida cautelar relativamente à criança, declarando em 2 de Dezembro de 2013 a situação provisória de abandono da mesma e assumindo a sua tutela, decidindo pelo acolhimento numa instituição (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”). 13) A criança foi retirada no dia 23.1.2014 quando se encontrava a frequentar a escola “Las Gaivotas” (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales” fls. 198). 14) A criança encontrava-se a frequentar a escola “Las Gaivotas” desde o dia 10.1.2014, ou seja, há 13 dias quando foi executada a ordem da sua retirada (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales” fls. 198). 15) A criança foi acolhida no centro de protecção “Talita Qumi” onde se apresentou com a higiene deficitária, comendo desalmadamente com as mãos por não saber utilizar os talheres (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales” fls. 204).
16) Em 12 de Fevereiro de 2014 a criança foi transferida e acolhida no Centro de Menores Rogar Virgen de Belén de Huelva (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”). 17) No seguimento do processo, foi elaborada informação técnica no qual se indicou continuar a criança em situação de negligência para as suas necessidades básicas morais e materiais por parte dos pais, os quais descuravam as suas funções parentais, existindo deficiências importantes nos cuidados à criança perante as atitudes negligentes dos pais, que levavam um estilo de vida caótico, com situação de desemprego crónico, casa em deficientes condições de higiene e habitabilidade, assim como relação conflituosa entre o casal e violência doméstica na presença da criança, inexistindo rede de apoio social e familiar e de consciencialização dos pais para a sua problemática, não apresentando estes motivação para a mudança nem aceitação para a intervenção profissional (técnica), existindo um inadequado exercício das suas funções parentais no que respeita à criança, havendo necessidade de ratificar a declaração provisória de abandono e suas medidas (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”). 18) A Comissão Provincial de Medidas de Protecção da área (Huelva) decidiu, assim, em 9 de Abril de 2014, ratificar a referida declaração de abandono da criança de 2 de Dezembro de 2013, ratificando as medidas decididas (mantendo a criança acolhida em instituição) (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”).
19) Entretanto, os progenitores indicaram como endereço “Vale do …, 255 Z, Odeleite, 8950 Castro Marim, Portugal” (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”). 20) As autoridades espanholas solicitaram, então, a transferência da criança para Portugal, dado que os pais se encontravam a residir definitivamente em Portugal e a criança estava em Espanha sem qualquer referência familiar, solicitando fosse assumida pelas autoridades portuguesas a tutela da criança (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”). 21) A criança nasceu em Espanha e os pais em Portugal (certidão de fls. 11 do processo de divórcio e de fls. 34 destes autos). 22) Em 05.05.2014 iniciaram-se os presentes autos nesta instância central de família e menores de Faro, lª secção (requerimento inicial de fls. 2 e segs.).
23) Por despacho judicial de 06.05.2014 foi aplicada a medida provisória de acolhimento institucional (fls. 12 ss do processo). 24) Após coordenação entre as autoridades portuguesas e espanholas, a criança deu entrada no CAT “Refúgio Aboim Ascensão” em Faro, em 17 de Junho de 2014, onde se encontra (fls. 56). 25) Os progenitores tiveram conhecimento através dos serviços sociais espanhóis que a criança seria transferida para Portugal assim como o respectivo processo.
26) Os progenitores deslocaram-se ao Centro Distrital da Segurança Social de Faro para reunir com as técnicas do SATT e iniciaram uma atitude de pressão junto da Segurança Social para que lhes fosse entregue o filho (fls. 84). 27) Junto deste processo apresentaram sucessivos requerimentos onde negavam os factos e culpavam outras pessoas ou entidades pela institucionalização da criança (cfr. fls. 41, 44, 73, 120,121,122,129,132,135,136,162,169,189,190,191, 212, 213, 261). 28) Logo no primeiro contacto com a Segurança Social portuguesa, os progenitores apresentaram-se exaltados, com postura agressiva, afirmavam não ter conhecimento do motivo da retirada do filho, que teria ocorrido devido a uma vingança pessoal de cidadãos estrangeiros a residir em Espanha referenciados como romenos. Autodefiniram-se como excelentes pais com competências parentais para educar o filho (fls. 84; declarações progenitores na instrução e no debate judicial). 29) Questionados sobre a família alargada verbalizavam não existir nenhum familiar e ter o filho de lhes ser entregue, quando estivesse em território português (fls. 84).
30) Foi impossível explicar aos progenitores o âmbito da intervenção, dada a atitude dos mesmos (folhas 84). 31) Posteriormente, os progenitores iniciaram contactos telefónicos diários com o SATT sempre numa atitude de exigência e questionamento sobre a transferência do filho para território português: “quando é que vão buscar o menino a Espanha? O tribunal já vos ordenou que o fizessem, estão à espera de quê?” (relatório social de fls. 83 e segs.).
32) Perante a tentativa de explicação dos trâmites em curso, os progenitores afirmavam não permitirem que o filho fosse institucionalizado no Refúgio por tratar-se de uma instituição com muito má fama, “tira as crianças aos pais para adopção” e que “se trata de um centro de pedófilos” (fls. 84). 33) Desde 26.05.2014 até à realização da visita domiciliária em 19.06.2014 os progenitores telefonaram quase diariamente para a segurança social com um discurso exaltado e perturbado. Ora falava o pai, ora a mãe. Num dos telefonemas indicaram …, irmã de …, como a única familiar que os tem apoiado (fls. 85).
34) A Segurança Social contactou com esta familiar. Os contactos desta familiar com o agregado da irmã eram sazonais. Perante a situação da criança demonstrou surpresa e perplexidade, não fazendo ideia que a situação fosse tão grave (fls. 85). 35) Esta familiar não se colocou como alternativa ao projecto de vida do (…).
36) A irmã de (…) tem a família organizada, mas tem muitas despesas. Tem uma filha no 2° ano da universidade e um filho que também estuda embora já se encontre inserido no mercado de trabalho (fls. 85; declarações em sede de debate).
37) Foi efectuada visita domiciliária, previamente agendada, à residência dos progenitores no Vale do (…), Odeleite. A mesma é composta por três partes de casa, das quais duas contíguas: a cozinha e a casa de banho/arrecadação. A terceira divisão é o quarto dos progenitores (e da criança quando residia com eles) que se situa no outro lado da rua/caminho, mesmo em frente ao WC (relatório fls. 85).
38) A casa de banho era a divisão mais confusa: existia sanita, lavatório e chuveiro, mas não dispunha de qualquer electrodoméstico para aquecimento da água, e servia de arrecadação indiferenciada, inclusive para uma scooter (folhas 86). 39) A referida casa pertence à família da requerida não pagando esta renda, por esse motivo (declarações da progenitora e da irmã desta). 40) Os rendimentos do agregado provinham de uma pensão de invalidez da progenitora e do trabalho do progenitor como trabalhador rural (cortava pinheiros), segundo ele (relatório fls. 86).
41) Na base de dados da Segurança Social constam descontos pontuais do progenitor entre 1998 e 2006 e da progenitora entre 1992 e 2001 (relatório fls. 86).
42) Os progenitores mantiveram um discurso perturbado e disfuncional, sempre exaltados e não permeáveis a qualquer intervenção (relatório fls. 86).
43) A progenitora informou ter sido submetida a uma psicocirurgia em 2008, nunca mais fez medicação e o seu problema de saúde foi ultrapassado, no seu dizer (relatório fls. 86 e declarações em sede de debate). 44) Após 15 a 20 minutos de entrevista com a técnica da segurança social, a progenitora desorganizou-se e recusou responder a mais perguntas. Justificou-se referindo: “já vi que estas também não me vão dar o meu filho, só querem saber coisas da nossa vida” (folhas 86). 45) Desde então, o casal deixou de contactar ou responder a qualquer interpelação do SATT (relatório fls. 86). 46) Em 10.7.2014 foi elaborado relatório social, cujo teor de fls. 82 a 89 se dá por integralmente reproduzido (relatório fls. 82 a 89). 47) Foi realizado ao progenitor exame psiquiátrico forense e relatório, datado de 16.9.2014, constante de folhas 138 e seguintes, cujo conteúdo se dá aqui integralmente reproduzido (fls. 138 e 139).
48) No referido relatório conclui-se designadamente que “O examinado apresenta anomalia da personalidade de tipo imaturo, com desregulação emocional (borderline). O seu funcionamento mental é pouco adaptativo, demonstrando incapacidade para o processamento (cerebral) dos aspectos cognitivos da “realidade” (havendo propensão para a labilidade emocional, uma vez que o controlo cognitivo é anulado e dominado pelas emoções). Em face de situações de ameaça, apresenta um nível não insignificante de distorção perceptiva, assim como uma acentuada dificuldade na gestão (da expressão) dos seus impulsos. Quando submetido a acontecimento associado a elevada intensidade angustiante, emergem os processos primários, não mediatizados por mecanismos de controlo, e o examinado manifesta incapacidade para sublimar a agressividade. Tem consumido Substâncias Tóxicas Psicoativas (STPs) numa tentativa de controlo da desregulação emocional que caracteriza a sua organização de personalidade e, com este consumo, regista-se o eventual desencadeamento de sintomatologia psicótica (delírios, alucinações).” (doc. fls. 139). 49) Foi também realizado um exame e elaborado um relatório psiquiátrico à progenitora, datado de 2.10.2014, cujo relatório consta de folhas 141 e seguintes, cujo conteúdo se dá aqui como integralmente reproduzido. 50) Conclui-se no relatório designadamente que: “1 - ... padece de uma patologia mental complexa e polimorfa, Nível intelectual limite complicando capacidades de avaliação e adaptação de situações e comportamentos.
Essa característica está na origem de disfuncionamentos psico sociais variados constituindo uma perturbação de personalidade incompletamente estruturada e dismatura. Esse complexo de per si fortemente instabilizante é complicado por sintomas da esfera psicática com elementos tímicos predominantes mal definidos e caracterizados, deixando evocar um diagnóstico de esquizo-afectividade. 2- A mãe apresenta actualmente as características de impulsividade e de imaturidade acima descritos. Idem para as ideias de referência, as acusações e inferências abusivas, enfim descontrole e incontinência emocional e do discurso tornando impossível de imediato uma construção coerente e cooperante de um projecto de acompanhamento e de (re)construção (…) Ela diz estar actualmente a tomar medicação sobretudo anti psicótica, antidepressiva e ansiolíticos.
... existir labilidade do humor e de carácter trazendo assim variações pouco previsíveis no modo de relacionamento e de respostas, fazendo temer respostas desmedidas, abrutas ou menos ajustadas ... 4- Pensamos que medidas de acompanhamento psiquiátrico e psicológico assim como psico sociais educativas são indispensáveis para ajudar a estruturar e estabilizar as desordens citadas” (doc. fls. 141 a 146). 51) No dia 16.10.2014 a requerida deu entrada contra o requerido, nesta instância central de família e menores de Faro de uma acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge onde refere designadamente que (folhas 154 e seguintes): "(…) 8. Até que, algum tempo após o casamento, o réu começou a alterar progressivamente o seu comportamento, passando a ter atitudes para com a A., possessivas e agressivas verbalmente, sem razão aparente. 9. Passando a viver a A. num clima conjugal de muito sofrimento e total desinteresse pelo R. e pelo casamento. 10. Desaparecendo em absoluto o interesse mútuo conjugal de continuidade de vida em comum. (...) 11. Até que, em Setembro de 2013, a A., não suportando mais as ofensas a as constantes atitudes agressivas e desesperadoras por parte do R., contra si, tomou a decisão de terminar a relação marital, passando a fazer uma vida totalmente autónoma dele. 12. Assim, não obstante viverem ambos na mesma casa, a A. deixou de cozinhar para o marido. 13. A A. deixou de dormir com o R. e de ter qualquer relacionamento sexual com ele.
14. A A. deixou de lavar-lhe a roupa e cuidar dos seus bens e de com o mesmo conviver. 15. Passando a viver ambos separada e autonomamente um do outro, não mais reatando qualquer convivência ou qualquer tipo de relacionamento desde a referida data de Setembro de 2013, até à presente data. (…) 17. Até que, em fins de agosto de 2014 a A. saiu de casa que co-habitava com o R. e foi viver definitivamente para outra casa de sua propriedade, sita igualmente no Vale do (…) – Odeleite, onde reside até hoje. (…)
23. Além disso, enquanto viveram juntos, o R. por diversas vezes ofendeu a A. com ameaças e expressões injuriosas tais como: “ordinária! Puta! Falsa! Tu não és de confiança!” 24. Em finais de agosto de 2014, em vale do Pereira, perto da residência da A., o R. dirigiu-se à mãe desta e proferiu a seguinte ameaça: “qualquer dia espeto-lhe uma faca (…)
25. Facto que causou muito medo à A. e sua mãe, temendo ambas que o R. concretize tal ameaça, vivendo a A. em constante sobressalto.
26. Igualmente, em meados do mês de Setembro de 2014, em dia que a A. não sabe precisar, cerca das 22h00, quando a mesma acabava de sair de casa de sua mãe, em Vale do Pereira, o R. dirigiu-se àquela e disse-lhe: “Tu, a tua mãe e as mulheres desta zona é tudo um puteiro”. 27. Aproximadamente, na última semana de Setembro de 2014, a A. estava sentada no poial de uma casa perto da actual residência do R., e o mesmo dirigiu-se a ela e disse-lhe: “ordinária! puta! falsa!”. 28. No dia 01.20.2014, cerca das 2lh00, após a A. ter ido buscar algumas roupas suas que ainda se encontravam na casa onde o R. permanece a viver (da propriedade da A.) após esta ter saído em direcção a casa de sua mãe, o R. dirigiu-se a ela e disse-lhe: “Se arranjas alguém, ele vai-se ver comigo, tu vais-te ver comigo”, “puta, tu não és de confiança”.
29. Desde que a A. saiu de casa onde vivia com o R., que este sistematicamente persegue-a quando a mesma se desloca à aldeia de Odeleite.
30. Ficando a A. muito incomodada e assustada, pois tem medo do R., temendo mais ofensas e alguma atitude agressiva por parte dele contra si”.
52) Em 18.11.2014 o progenitor apresentou nestes autos um requerimento ao processo indicando residência para receber correio: “Associação 18 de (…) bloco b, 19-20, 2° esquerdo, (…)” (fls. 166). 53) Em Novembro de 2014 os progenitores continuavam a revelar-se incapazes de manterem diálogo com as técnicas, processando-se o diálogo entre eles.
54) Questionados onde residiam, referiram ser em Olhão, sem todavia conseguirem especificar onde nem com quem, nem se viviam juntos (folhas 180).
55) Em Novembro de 2011 a tia materna (…) confirmou a separação do casal e esclareceu terem estado em casa desta familiar em meados de Outubro de 2014 já separados (folhas 181). 56) Para esta familiar os progenitores não tinham mudado, não reconheciam as suas limitações, falta de capacidade e competência para cuidar do filho, negando os fundamentos da institucionalização da criança ainda em território espanhol e não admitiam qualquer problema ou incapacidade, daí não existir da parte deles qualquer investimento para efectiva mudança (relatório de fls. 181). 57) Esta familiar referiu não querer mais os progenitores em sua casa: “enervo-me e sinto-me mal” (relatório de folhas 181). 58) O progenitor tem um irmão gémeo em Albufeira com o qual não mantém qualquer contacto (relatório de fls. 181). 59) A tia materna, (…), deixou de visitar o sobrinho desde 20.09.2014, tendo no “Refúgio Aboim Acensão” verbalizado não estar disponível para se constituir como alternativa e “não quero ter problemas e confusões à minha porta” (folhas 181 e 222). 60) Esta familiar não tem conhecimento de familiares que se possam constituir como alternativa para a criança e referiu não terem os progenitores condições de saúde, sociais, económicas nem pessoais para cuidar do filho referindo-se aos pais como sendo pessoas de difícil trato, muito conflituosas e ter a família receio de represálias (relatório de fls. 181).
61) O SATT agendou uma entrevista com os progenitores, tendo eles confirmado a presença. Todavia, faltaram, não justificaram a falta e não voltaram a contactar (folhas 182).
62) O tribunal notificou o progenitor para a morada por ele fornecida em Olhão, mas a carta veio devolvida (folhas 208). 63) No Refúgio Aboim Ascensão os tios avós paternos – (…) de 78 anos e (…) de 80 anos – visitaram a criança uma vez em 30 de Junho de 2014 e a tia-avó telefonou em 3.09.2014 e 2.12.2014 (folhas 222).
64) Confrontados estes avós com o futuro da criança afirmaram não ser alternativa nem existir ninguém na família que se constitua como alternativa e entenderam que o melhor para o (…) era a adopção (informação de fls. 222).
65) O pai e a mãe revelaram durante as visitas ao filho um padrão de comportamento (verbal e não verbal) fortemente indiciador de perturbação psicopatológica (informação de folhas 222). 66) Ambos os progenitores exibem marcado comportamento emocional, pessoal e social disfuncional e desestruturado, perturbando o normal funcionamento/dinâmica das visitas assim como o bem-estar emocional e psicológico do filho (informação de folhas 222).
67) Durante as visitas, os pais têm um discurso verborreico, em tom de grito, “em espiral”, sem fim e repetitivo, delirante, paranóico, desorganizado, desfasado da realidade, contraditório e provocador (informação de folhas 222). 68) Não se calam, estão permanentemente a debitar palavras/frases, sobrepõem-se um ao outro, contrariam-se um ao outro, ora fala um, ora fala outro, ora falam os dois ao mesmo tempo, mandam-se calar um ao outro, reclamam um com o outro e, discutem o que é melhor para o filho (informação de folhas 222). 69) Têm comportamento imprevisível e intempestivo. Apresentam grande oscilação/labilidade de humor. Insurgem-se contra qualquer tentativa de orientação técnica, contrariando o técnico e contrariam-se entre si (informação de folhas 222). 70) Com a criança interferem e interrompem exaustivamente e de forma imprevisível no comportamento e nas tentativas de jogo lúdico/construtivo por parte do (…), pois de forma intrusiva e desorganizada tentam alterar o seu jogo, pondo, tirando brinquedos seleccionados pelo filho e colocando outros brinquedos seleccionados pelo pai e pela mãe, impondo que o filho faça isto, faça aquilo e dando-lhe orientações contraditórias (informação de folhas 222).
71) Tratam o filho de forma muito infantilizada e “abebezada”, promovendo a regressão do seu comportamento e incentivando-o a usar a chucha ou pôr o dedo na boca. Pegam no filho ao colo como se de um bebé se tratasse, transferindo o (…) de um colo para o outro como se fosse um boneco (informação de folhas 222 e 223). 72) Não respeitam o bem-estar do filho, parecendo ignorar que a criança tem vontade própria e tem capacidade para pensar e decidir em função dos seus 5 anos de idade (informação de folhas 222 e 223). 73) Os progenitores têm um comportamento e um discurso “double-bind” entre si (mãe e pai) e para com o filho (mãe/filho e pai/filho) e na relação pais/filho (informação de folhas 222 e 223). 74) Mostram não ter consciência ou ignoram ou não percebem que o filho cresceu e está mais exigente a nível cognitivo, na linguagem/comunicação, a nível motor, no comportamento e jogo/actividade lúdica (informação de folhas 222 e 223). 75) Zangam-se com o filho quando este procura subtilmente segurança/socorro através do olhar ou ténue sorriso com o técnico presente na visita. Agarram o rosto do filho direccionando-o de forma abrupta, ora para o pai, ora para a mãe gritando-lhe: “não olhes para aquelas mulheres (técnicas) que elas são más, nós é que somos os pais” (informação de folhas 223). 76) Os pais não respeitam o Samuel enquanto ser individual, pensante estando demasiado centrados em si próprios, um no outro e na relação perturbada/desorganizada, “esquizofrenizante”, delirante que estabelecem entre si (informação de folhas 223). 77) Os progenitores estão permanentemente a conflituar entre si, com os outros, com o “mundo”, perturbando e incomodando quem está à sua volta, culpando tudo e todos e pondo em causa a competência e idoneidade dos técnicos e dos diferentes serviços/entidades (informação de folhas 223). 78) Afirmam ter todas as condições e competência para terem o filho com eles, condenando, censurando e criticando constantemente o processo de retirada e colocação do filho em instituição. O filho é deles e são eles que mandam (informação de folhas 223; declarações em sede de debate dos progenitores e da técnica do refúgio). 79) Mãe e pai revelam incapacidade de “insight” e de mudança e total incapacidade no exercício correto e adequado das suas funções parentais e de autoridade (informação de folhas 223). 80) Durante as visitas, o progenitor apresenta-se habitualmente, com falta de higiene – corporal, vestuário e calçado – com odor corporal desagradável (informação de fls. 223 e apresentação e sinais exibidos em sede de debate judicial). 81) A criança encontra-se integrada e adaptada às regras/normas e dinâmica da instituição, frequentando a sala de educação de infância em ensino pré-escolar (informação de folhas 224). 82) A criança revela competências cognitivas/intelectuais, mas as suas dificuldades/instabilidade ao nível da componente emocional afectam negativamente a eficiência do seu comportamento e desempenho global (informação de folhas 224).
83) É uma criança que revela e exterioriza insegurança e instabilidade psíquica e emocional, baixa auto-estima, baixo limiar da resistência à frustração, grande imaturidade emocional, reagindo com choro incoercível (parecendo um bebé), com tendência a fechar-se emocionalmente, anulando-se, e revelando dificuldade em reagir e enfrentar conflitos e competição com pares e resolver problemas do seu dia-a-dia, reagindo com apatia, desinteresse e indiferença ou através da agressividade magoando os colegas às escondidas (informação de folhas 224). 84) No relacionamento com os progenitores, aquando das visitas, parece optar pelo silêncio, anulando-se, evitando qualquer conflito com os mesmos, parecendo paralisar emocionalmente face ao “double-bind” do comportamento e discurso dos pais que o tratam ora como um bebé, ora como um boneco, parecendo que a sua única função é “alimentar” o ego narcísico do pai e da mãe (informação de f1s. 224).
85) O comportamento desorganizado e desestruturado dos pais tem consequências e implicações no desenvolvimento do filho, constatando-se que este, após as visitas dos pais, evidencia comportamento emocional infantilizado, transmitindo ansiedade, desconforto, mal­estar emocional e psicológico, fechando-se sobre si próprio, alheando-se do contexto e dos estímulos e aprendizagens envolventes (informação de folhas 224). 86) Em face deste quadro, os pais não mostram qualquer possibilidade de diálogo, fato que impede qualquer actuação, orientação e intervenção técnica (informação de folhas 224). 87) Junto da instituição, os progenitores nunca deram qualquer informação sobre a sua situação conjugal, pessoal, económica, profissional, afirmando que a instituição não tem nada a ver com a vida deles (informação de folhas 224). 88) Qualquer palavra dos técnicos promove nestes pais um discurso marcadamente conflituoso e ameaçador, vedando qualquer possibilidade de ouvirem ou deixar o interlocutor falar. Os pais revelam incapacidade de ouvir o outro (informação de folhas 224). 89) As visitas dos pais ao filho não se apresentam benéficas nem estruturantes no desenvolvimento da criança, sendo parecer técnico da instituição deverem cessar de imediato (informação de folhas 224). 90) O requerido chegou a frequentar a universidade que nunca concluiu (doc. fls. 96).
9l) A técnica da segurança social gestora do processo fez o relatório de fls. 124 a 132 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 92) Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do processo protectivo espanhol apenso aos autos.
Quanto à alteração da matéria de facto:

Conforme se alcança das respectivas conclusões do recurso, para além de defenderem a falta de verificação dos requisitos para a adopção, a que alude o art. 1978º do C. Civil (questão essa de que adiante conheceremos), ambos os apelantes (progenitores) procedem à impugnação da matéria de facto, pretendendo a sua alteração.

Neste âmbito, defende o progenitor que a matéria constante nos factos provados nº 55, 56 e 57 deve ser dada como não provada.

E isto com base no depoimento da testemunha (...), irmã da requerida e tia do menor. Sob os referidos nºs 55 a 57 foi dado como provado que: 55) Em Novembro de 2011 a tia materna (…) confirmou a separação do casal e esclareceu terem estado em casa desta familiar em meados de Outubro de 2014 já separados (folhas 181). 56) Para esta familiar os progenitores não tinham mudado, não reconheciam as suas limitações, falta de capacidade e competência para cuidar do filho, negando os fundamentos da institucionalização da criança ainda em território espanhol e não admitiam qualquer problema ou incapacidade, daí não existir da parte deles qualquer investimento para efectiva mudança (relatório de fls. 181). 57) Esta familiar referiu não querer mais os progenitores em sua casa: “enervo-me e sinto-me mal” (relatório de folhas 181).
Trata-se de factos que constam do relatório da Segurança Social constante de fls. 178 a 188, elaborado pela coordenadora do caso, (…), como tendo sido referidos pela tia materna (…).
Ouvido o depoimento (gravado) de tal testemunha, afigura-se-nos que o mesmo não infirma a factualidade em questão, que foi dada como provada.
Muito embora tenha tentado dar a ideia de pouco saber da vida da irmã (mãe da criança), o certo é que acabou por não negar que tenha referido à técnica da Segurança Social (com quem admitiu ter falado telefonicamente) o que consta do relatório supra referido, tendo até, a final, acabado por confirmar de certo modo a veracidade das informações prestadas.
A testemunha, muito embora tenha procurado dar a ideia de que a irmã e o cunhado são pessoas capazes (o que de certo modo se compreende, dados os laços familiares), acabou por mostrar que pouco sabe da irmã, com a qual teve poucos contactos e com a qual não contacta ou que pelo menos não vê há bastante tempo, dizendo desconhecer a sua situação actual. Para além disso, conforme se refere na fundamentação da matéria de facto, o teor do relatório supra referido (e os demais) foi confirmado pela sua autora, a testemunha (…).
Desta forma, afigura-se-nos que o depoimento desta testemunha, em que o apelante se baseia não impõe a alteração da factualidade no sentido de se darem como não provados os factos em questão, constantes dos nºs 55 a 57 dos factos provados – improcedendo nesta parte a impugnação da matéria de facto.

Com base no depoimento da mesma testemunha, pretende ainda o apelante que se seja dado como provado que “o menor sempre se apresentou limpo e bem tratado, sendo a requerida boa mãe e carinhosa para com o filho”. Todavia, igualmente nesta parte sem razão. Para além de dar a entender um quase total desconhecimento da vida dos progenitores e da criança, a testemunha, em relação a esta matéria, disse que os pais da criança foram com esta a sua casa, apenas 3 ou 4 vezes quando ela era bebé e que depois disso só lá foram uma ou duas vezes.

O facto de dizer que nessas vezes nunca viu o menino sujo, e até pelo facto de naturalmente ter dado a ideia (todavia, com alguma contradições) de que a irmã tinha competência para cuidar do menino, não pode ser tido como relevante para o facto em questão (que respeita a uma situação de normalidade). Dizendo não saber se a irmã padece de qualquer doença do foro psiquiátrico, sempre disse saber que em tempos ela tomava medicação e que ambos os progenitores se enervavam e alteravam com muita frequência e que por vezes lhe dava conselhos para “abrir os olhos”, sendo certo que, para além de não se disponibilizar a tomar conta da criança, deu a entender que não confiaria à irmã a guarda dos seus filhos (da depoente). Improcede assim, também nesta parte, a impugnação da matéria de facto.

Pretende, por sua vez a progenitora apelante que sejam dados como provados os factos declarados pela testemunha (…) e bem assim os factos declarados pela testemunha (…).

Todavia, não refere quais os factos que, em concreto, devem ser dados como provados com base nos depoimentos destas testemunhas.

E, no corpo das alegações apenas diz que a testemunha (…) “declarou que quanto à criança, nunca viu nada que pudesse estar contra” e que a testemunha (…) (a tia da criança, a cujo depoimento já acima nos referimos) “que exerce, há 16 anos a função de auxiliar de educação, sempre viu a criança bem tratada pela progenitora”.

Quanto a este último facto é manifesta a sua irrelevância, na medida em que o que poderia relevar para a decisão do mérito da causa era a situação habitual da criança, no sentido daquilo que o progenitor apelante pretendia fosse dado como provado (o menor sempre se apresentou limpo e bem tratado, sendo a requerida boa mãe e carinhosa para com o filho) que não uma situação meramente pontual uma vez que, conforme já supra referimos esta última testemunha (irmã da apelante), segundo o que declarou, apenas esteve com a criança (na companhia dos pais) umas 4 ou 5 vezes, e há bastante tempo.

Assim, não há que dar tal facto como provado. No que se refere à outra testemunha (…), o facto de ela dizer que nunca vir nada contra (contra o quê?...), trata-se de uma declaração inócua, que em si mesma nada diz de relevante, nem põe em causa qualquer dos factos que foram dados como provados.

Improcede assim, na totalidade (e em relação a ambas as apelações) a impugnação da matéria de facto – havendo assim que considerar como assente a factualidade dada como provada na 1ª instância. Improcedem assim, nesta parte, as conclusões de recurso, relativas a ambas as apelações.

Quanto à falta de verificação dos requisitos necessários à medida aplicada:

Conforme referido no relatório supra, o tribunal “a quo” decidiu-se pela aplicação à criança em causa nos autos, da medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção.

É contra tal decisão que se manifestam ambos os apelantes, segundo os quais se não mostram preenchidos os requisitos de que depende a aplicação daquela medida.

Segundo o apelante que da matéria de facto dada como provada não resulta que os vínculos afectivos próprios da filiação não existem ou se encontram seriamente comprometidos e que não resulta a existência de comportamento activo ou omissivo dos progenitores que ponha em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, educação ou o desenvolvimento do menor.

E, ainda segundo o mesmo o superior interesse da criança exige a manutenção dos vínculos afectivos de filiação nutridos reciprocamente por pai e filho.

E, em certa medida no mesmo sentido, diz a apelante que não se provou que o comprometimento do vínculo afectivo e bem assim a manifesta incapacidade da progenitora em assegurar ao menor, segurança, educação, saúde, formação e desenvolvimento, pelo que se não se encontram preenchidos os requisitos do n.º 1, alínea d) do artigo 1978.º do Código Civil para a aplicação da medida de promoção de confiança do menor à instituição com vista à futura adopção.

Todavia, a nosso ver sem razão.

Estabelece o art. 38º-A da LPCJP (Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela lei nº 147/99 de 01.09, com as alterações introduzidas pela lei nº 31/2003, de 22.08 – adiante designada por LPCJP) que a medida que foi aplicada na decisão recorrida, de confiança a instituição com vista a futura adopção, prevista na al. g) do nº 1 do art. 35º (a mais grave de todas as que ali se mostram elencadas) é “aplicável quando se verifique alguma das situações previstas no artigo 1978º do C. Civil”.

E, por sua vez, estabelece a al. d) do nº 1 art. 1978º do C. Civil que “com vista a futura adopção, o tribunal pode confiar o menor a casal, pessoa singular ou instituição quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação, pela verificação objectiva de qualquer das situações seguintes:

… d) Se os pais, por acção ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor”. Para além disso, estabelece o nº 2 deste mesmo artigo que “nas situações previstas no número anterior o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses do menor”.

Conforme se alcança da sentença recorrida, o tribunal “a quo” considerou que, em relação aos progenitores se verifica a situação prevista na supra referida al. d) do nº 1 do art. 1978º do C. Civil e que, por essa razão existe fundamento para a aplicação da medida em questão, por ser a medida mais adequada.

Não está em causa a existência de uma relação entre os progenitores e a criança e vice-versa. Todavia o certo é que a factualidade provada aponta claramente no sentido de que os progenitores, quando tiveram a criança a seu cargo, não assumiram de facto as suas responsabilidades parentais, ou seja, os seus deveres de pais, consagrados nos arts. 36º da CRP e 1874º do C. Civil, e no sentido de que, com as suas acções e omissões, acabaram por pôr em causa a segurança, a saúde, a formação, a educação e o desenvolvimento do menor, seu filho, em causa nos autos.

E foi precisamente por isso que, quando vivia com os pais em Espanha, então com cerca de 4 anos de idade, já a criança foi sinalizada pelo Serviço de Protecção de Menores de Espanha, que decidiu, em Dezembro de 2013 no sentido do acolhimento da criança em instituição.

E isto pela facto de com base em denúncia de maltratos da criança, a viver com os pais numa casa sem condições de habitabilidade e num ambiente de conflitualidade, sendo que as informações recolhidas apontavam precisamente nesse sentido e ainda no sentido de que a criança ia para a escola e más condições de higiene e muitas vezes sem comer o pequeno-almoço e de que os pais não mostravam interesse pela evolução educativa do filho.

A conclusão acima referida (no sentido de que o facto de a falta de assunção das responsabilidades parentais – no essencial devida à falta de capacidade, acabou por colocar em causa a segurança, saúde, formação, educação e desenvolvimento da criança) resulta claramente dos factos dados como provados sob os nºs 16 e 17 (situação verificada ainda em Espanha) e sob os nºs 82 e 83 (situação já verificada em Portugal), a saber: - 16) Em 12 de Fevereiro de 2014 a criança foi transferida e acolhida no Centro de Menores Rogar Virgen de Belén de Huelva (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”). 17) No seguimento do processo, foi elaborada informação técnica no qual se indicou continuar a criança em situação de negligência para as suas necessidades básicas morais e materiais por parte dos pais, os quais descuravam as suas funções parentais, existindo deficiências importantes nos cuidados à criança perante as atitudes negligentes dos pais, que levavam um estilo de vida caótico, com situação de desemprego crónico, casa em deficientes condições de higiene e habitabilidade, assim como relação conflituosa entre o casal e violência doméstica na presença da criança, inexistindo rede de apoio social e familiar e de consciencialização dos pais para a sua problemática, não apresentando estes motivação para a mudança nem aceitação para a intervenção profissional (técnica), existindo um inadequado exercício das suas funções parentais no que respeita à criança, havendo necessidade de ratificar a declaração provisória de abandono e suas medidas (processo apenso da “Consejeria de Igualdad, Salud y Políticas Sociales”).

82) A criança revela competências cognitivas/intelectuais, mas as suas dificuldades/instabilidade ao nível da componente emocional afectam negativamente a eficiência do seu comportamento e desempenho global.

83) É uma criança que revela e exterioriza insegurança e instabilidade psíquica e emocional, baixa auto-estima, baixo limiar da resistência à frustração, grande imaturidade emocional, reagindo com choro incoercível (parecendo um bebé), com tendência a fechar-se emocionalmente, anulando-se, e revelando dificuldade em reagir e enfrentar conflitos e competição com pares e resolver problemas do seu dia-a-dia, reagindo com apatia, desinteresse e indiferença ou através da agressividade magoando os colegas às escondidas. Para além disso, e sendo certo que no seio da família biológica não foi possível encontrar qualquer outra solução alternativa, a factualidade provada aponta claramente no sentido de os progenitores, ora apelantes, não terem condições pessoais que lhes permitam inverter a situação supra referida, no sentido de poderem vir a assumir os seus deveres parentais de forma minimente adequada.

Conforme bem se salienta na decisão recorrida (conclusões que, porque claramente sustentadas nos factos provados, subscrevemos) “a progenitora não reúne, no presente momento nem no curto ou médio prazo, condições para acolher o filho revelando uma incapacidade parental estrutural, não susceptível de ser alterada por acompanhamento técnico (sempre por si, aliás, rejeitado)” e, por sua vez, o progenitor “apresenta anomalia da personalidade de tipo imaturo com desregulação emocional (borderline), demonstrando incapacidade para o processamento (cerebral) dos aspectos cognitivos da realidade, porquanto o controlo cognitivo é anulado e dominado pelas emoções. Em face de situações de ameaça apresenta distorção perceptiva e acentuada dificuldade de gestão (expressão) dos seus impulsos. Quando submetido a acontecimento associado a elevada intensidade angustiante manifesta incapacidade para sublimar a agressividade. O quadro clínico do progenitor é crónico apresentando sequelas nomeadamente de índole funcional e mesmo a sujeição a um eventual tratamento não fará remitir integralmente a doença”.

Não estando em causa, conforme já supra referimos, o estabelecimento de uma relação afectiva entre os progenitores e a criança, o certo é que, conforme resulta claramente dos factos provados, tal relação até acaba por ser prejudicial à própria criança.

É o que resulta, designadamente, da factualidade referida no nº 84 dos factos provados (“No relacionamento com os progenitores, aquando das visitas, parece optar pelo silêncio, anulando-se, evitando qualquer conflito com os mesmos, parecendo paralisar emocionalmente face ao “double-bind” do comportamento e discurso dos pais que o tratam ora como um bebé, ora como um boneco, parecendo que a sua única função é “alimentar” o ego narcísico do pai e da mãe (informação de fls. 224”).

A medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção, que foi aplicada pelo tribunal “a quo”, constitui a medida grave de todas as medidas previstas no art. 35º da LPCJP, que acaba por provocar o corte da relação estabelecida entre a criança e a família biológica. Como tal, a mesma só deve ser aplicada quando, conforme refere Tomé d’Almeida Ramião (in Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada e Comentada, 5ª ed., revista e aumentada, pág. 75), esteja afastada a possibilidade de retorno da criança ou do jovem à sua família natural, para além da verificação concreta de alguma das situações referidas no art. 1978º do C. Civil e tendo por pano de fundo o superior interesse da criança.

No caso dos autos, face ao que supra expusemos, mostra-se verificada a situação a que alude a al. d) do nº 1 do art. 1978º do C. Civil. Com efeito, resulta da factualidade provada que os pais da criança em causa nos autos, ora apelantes, no exercício da sua acção parental, essencialmente por razões de incapacidade (de ordem mental) acabaram por colocar em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança.

E resulta ainda que, designadamente por razões de ordem mental (vide teor dos relatórios de exame referidos nos nºs 47 a 50 dos factos provados) os mesmos revelam não ser possuidores de condições que lhes permitam alterar o seu sentido de responsabilidade.

Basta ver o tipo de relacionamento de todo inadequado que mantiveram na instituição com a criança, referido nos nºs 65 a 76 dos factos provados.

De resto, o seu comportamento conflituoso, disfuncional e problemático (vide designadamente os factos referidos nos nºs 65) não só se revela perante nas suas relações com os outros mas mesmo entre eles – o que resulta claramente do facto constante do nº 77 dos factos provado e do próprio facto de a progenitora ter intentado acção de divórcio alegando o que alegou (vide nº 51 dos factos provados).

Assim, porque a família biológica não oferece qualquer outra solução e os progenitores não revelam, bem pelo contrário, capacidade para inverter aquela situação – impõe-se concluir no sentido de que a medida em causa no recurso, que foi aplicada pelo tribunal “a quo” é, ao contrário do que defendem os apelantes, a mais adequada à defesa e salvaguarda do superior interesse da criança.

De resto, não indicando qualquer outra medida alternativa, o que os apelantes pretendem é, apenas e tão só, o regresso da criança ao seu meio familiar.

Não merece assim censura a decisão recorrida ao decidir como decidiu no sentido da aplicação de medida em questão.

Improcedem assim as conclusões de ambos os recurso

Termos em que se acorda em julgar improcedentes ambas as apelações e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Évora, 09 de Julho de 2015

Acácio Luís Jesus das Neves

José Manuel Bernardo Domingos

João Miguel Ferreira da Silva Rato