Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
191/09.5TBMMN.E1
Relator: SÍLVIO SOUSA
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
DOMINIALIDADE
ATRAVESSADOURO
ASSENTO
Data do Acordão: 05/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
É público um caminho, de terra batida, com cerca de cerca de 517 metros de comprimento e cerca de 3,20 m/4 m de largura, que, agora, separa dois prédios, e, outrora, atravessava um único, utilizado por um número indeterminado de pessoas, desde tempos de que não há memória, a pé e de carro, que fez e faz a ligação entre duas estradas, ladeado por vedações e muros, com valas de drenagem de águas e uma passagem hidráulica/pontão de cimento, construído pela Câmara Municipal, não sendo o respetivo leito particular.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:


Relatório

O Exmo. Magistrado do Ministério Público, executando a legitimidade que lhe é conferida pelo artigo 1379º., nº 2 do Código Civil, intentou a presente acção, na forma de processo ordinário, contra AA e mulher, BB, residentes na Rua …, nº. …, bloco …, …º., Montemor-o-Novo, CC e mulher, DD, moradores na Rua …, nº. …, Montemor-o-Novo, e EE, S.A., com sede …, nº. …, Porto, pedindo, nomeadamente, que seja anulada a doação constante da escritura lavrada no dia 21 de março de 2006, no Cartório do Notário António Paulo Ramos Xavier, sito em Montemor-o-Novo, de folhas … a … do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº … -…, relativa a “uma parcela de terreno com a área de três mil e oitocentos metros quadrados, a confrontar do norte com caminho municipal, do nascente com Emídio …, do sul com caminho público e do poente com Manuel …”, a desanexar do prédio rústico, denominado “…”, com a área de 2,6 ha, descrito na Conservatória do Registo Predial de Montemor-o-Novo sob o nº …, da freguesia de Nossa Senhora da Vila, em que foram outorgantes os dois primeiros demandados, e declaradas nulas as cláusulas constantes do contrato de mútuo, com hipoteca, outorgado pelos segundo e terceiro requeridos, no mesmo cartório, em 9 de Agosto de 2007, de folhas … a … do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº …-F, apenas na parte referente à constituição da hipoteca sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Montemor-o-Novo sob o nº …/…, ordenando-se, em consequência, o cancelamento não só da antes referida descrição predial, como também dos averbamentos e anotações relativos à mesma, para tanto alegando factos que, em seu critério, conduzem à procedência dos pedidos, que foram julgados improcedentes[1].


Inconformado com o decidido, recorreu o Exmo. Procurador da República, formulando as seguintes conclusões:

- Nos termos definidos no assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de abril de 1989, com a interpretação restritiva que esse Supremo Tribunal realizou, entre outros, no acórdão de 10 de novembro de 1993 “I. A publicidade dos caminhos exige a sua afetação à utilidade pública ou seja, à satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância II. Quando assim não aconteça, (…) devem classificar-se de atravessadouros, figura esta que não foi excluída por aquele Assento e que está prevista no art. 1383º. do Código Civil”;

- Pois essa interpretação restritiva é a ainda segundo decisão do Supremo Tribunal de Justiça, datada de 13 de janeiro de 2004, “…a que se encontra na mente dos ilustres signatários do Assento, pois é isso mesmo o que resulta do facto de o corpo do acórdão que o integra referir expressamente que “quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão publicas se estiveram afetadas de forma direta e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente”;

- Não preenche, claramente, ambos os apontados requisitos, o caminho, relativamente ao qual se provou que “… é utilizado por um número indeterminado de pessoas desde tempos de que não há memória - com exceção de um período de 4 ou 5 anos, que inclui os anos de 2006 a 2008, durante os quais o caminho esteve interrompido por um vizinho dos réus - a pé e de carro, fazendo a ligação entre a Estrada da Amieira e a Estrada da Pintada, numa extensão de 517 m, dando acesso aos prédios que o ladeiam incluindo o estabelecimento comercial o rústico”;

- A mera prova do acesso a diversos prédios rústicos e da ligação entre duas estradas, essas sim públicas, não preenche os requisitos exigidos jurisprudencialmente;

- Tal caminho visa tão só a satisfação de interesses particulares - os interesses de cada um dos proprietários daqueles prédios e das pessoas que ali de pretendem dirigir -, designadamente os interesses dos Réus e do seu vizinho que interrompeu o caminho, que posteriormente alterou o seu traçado, que explora na sua propriedade um estabelecimento comercial - que ali se encontra implantado sobre o traçado original do caminho, conforme resulta da inspeção ao local, realizada no dia 14 de junho de 2013 - com inequívoco interesse lucrativo individual;

- A situação dos autos é semelhante à analisada no acórdão de 10 novembro de 1993, que o Supremo Tribunal de Justiça julgou da seguinte forma “II. Quando assim não aconteça, e se destinem apenas a fazer a ligação entre caminhos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, os caminhos devem classificar-se de atravessadouros, figura esta que não foi excluída por aquele Assento e que está prevista no art. 1383º do Código Civil”;

- Ali como aqui o caminho objeto de discussão apenas faz a ligação entre duas estradas públicas, sem que no caso dos autos sequer se tenha provado que encurta a distância entre ambas, pois confinam uma com a outra, com resulta do documento nº 11, junto com a petição inicial;

- A existência do aludido caminho constituirá antes uma servidão predial, que onera o prédio descrito no nº 1 da matéria de facto assente, em benefício dos demais prédios atravessados pelo caminho, uma servidão de passagem aparente que em face da factualidade apurada nos autos e perante o disposto nos arts. 1547º., nº1, 1548º. (a contrário) 1287º. e 1296º. do Código Civil, que se terá constituído, por usucapião;

- A factualidade que foi efetivamente demonstrada, não permite a formulação de um juízo no sentido da qualificação do caminho como público, nos termos realizados pelo tribunal na sentença recorrida, que assim violou o estabelecido no assento do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de abril de 1989, bem com o disposto nos artigos 1376º., nºs 1 e 3 e 1383º. do Código Civil;

- Provado que está que “ 4- Na data referida em 2, o prédio referido em1, inclusive a parcela referida em 2, encontrava-se ocupado com oliveiras”;

- Deve julgar-se que a cultura ali existente é de sequeiro para efeitos do disposto na Portaria nº 202/70, de 21 de abril, pelo que a unidade mínima de cultura é de 7,5 ha; consequentemente, as parcelas resultantes do fracionamento não respeitam a unidade de cultura ali prevista;

- Idêntica solução chegaríamos se se considerasse que o prédio em causa nos autos deve classificar-se como cultura arvense de regadio, porquanto nesse caso, nos termos da mesma portaria a unidade de cultura seria de 2,5 ha, sendo que do fracionamento do prédio resultaram duas parcelas, ambas com área inferior à da referida unidade de cultura: o prédio a desanexar com a área de 0,38 ha e o prédio sobrante com a área de 2,2 ha;

- Em qualquer das situações ocorreu violação do disposto no art. 1º. da Portaria nº 202/70 e, consequentemente, do disposto no art. 1376º., nº 1 do Código Civil;

- No nº 8 da matéria de facto provada, consta que “A parcela de terreno referida em 2 destinava-se à construção de uma habitação”;

- Todavia, não se afirma ali que tal se verificava na data da celebração da escritura, nem disso foi realizada prova;

- Pelo contrário, a escritura em causa é omissa quanto a essa finalidade e nenhumas das testemunhas inquiridas o afirmou em julgamento;

- Esse facto provém do nº 1 da base instrutória, a que o Tribunal respondeu provado, o que fundamentou nos depoimentos de Helder … e Paulo …, funcionários do EE de Montemor-o-Novo e no documento de fls. 27;

- Não subsistem dúvidas que na parcela de terreno em causa nos autos o Réu CC edificou uma casa, a mesma foi encontrada aquando da inspeção ao local e mostra-se documentada a fls. 27;

- Mas o que importava provar, por forma ao preenchimento do disposto na alínea c) do art. 1377º. do Código Civil, era no momento da desanexação da parcela, a 21 de março de 2006, já visavam a realização de uma construção nesse local;

- Essa prova não se encontra realizada nos autos, pois cotejados os depoimentos de Helder … e Paulo … verifica-se que em momento algum o afirmaram;

- Como consta da fundamentação da matéria de facto, daquelas duas testemunhas, ambas empregadas do Réu EE, S.A., apenas o primeiro teve intervenção no processo apresentado no banco, tendente à concessão de um crédito ao Réu CC, com vista à construção de uma casa na parcela de terreno cuja desanexação os Réus realizaram;

- Tal apenas ocorreu no final de 2006 ou início de 2007, porquanto como referiu Helder … no seu testemunho “tínhamos o projeto aprovado pela câmara”, facto que apenas ocorreu em 21 de dezembro de 2006;

- Se nessa data era seguro que o Réu CC já pretendia ali construir, pois havia solicitado à Câmara Municipal de Montemor-o-Novo a aprovação do projeto de construção, não se apurou quando esse propósito foi formulado, pelo que a matéria descrita no nº 2 dos factos provados foi incorretamente julgada, devendo ser dada como não provada;

- Nestes termos, também o segundo dos fundamentos invocados na sentença recorrida, no sentido da improcedência da ação, não encontra sustentação na factualidade efetivamente provada pelo que ocorreu violação do disposto no art. 1377º., c) do Código Civil;

- Ainda que assim não fosse, tal desanexação, por constituir uma real operação de loteamento do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Montemor-o-Novo, sob o nº …/…, conforme resulta da i) do art. 2º do Decreto-Lei nº 55/99, de 16 de dezembro, exigia previa obtenção de licença administrativa, nos termos do art. 4º, nºs 1 e 2 daquele diploma, na redação então vigente, que não se mostra provado que tenha sido obtido;

- Tanto mais que o instrumento notarial então lavrado não menciona a sua junção ou exibição pelos Réus, como exigia o nº 1 do art. 49º. do Decreto-lei nº 555/99, de 16 de dezembro;

- Assim, o negócio jurídico titulado na escritura outorgada no dia 21 de março de 2006, no Cartório Notarial de Montemor-o-Novo, o Réu AA, na qualidade de dono, declarou doar ao Réu CC, que aceitou a doação, uma parcela de terreno com a área de 3800 m2, a confrontar do norte com o caminho municipal, do nascente com Emídio …, do sul com o caminho público e do poente com Manuel …, a desanexar do prédio referido em 1, é nulo, nos termos do disposto no art. 294º. do Código Civil;

Por tudo o exposto, concedendo provimento ao recurso e revogando a sentença recorrida, deve ser proferido acórdão que julgue a ação procedente, nos termos peticionados.


Contra - alegaram os demandados, pessoas físicas, votando pela manutenção do decidido.


Face às conclusões das respectivas alegações, o objecto do recurso circunscreve-se à apreciação das seguintes questões: a) alegada existência de erro na apreciação da prova que determine uma resposta de “não provada” à matéria de facto vertida no ponto 8[2] (artigo 1º da base instrutória[3]) dos factos assentes; b) o invocado erro na aplicação do direito aos factos assentes.



Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


Fundamentação


A - O s factos

Na sentença recorrida, foi considerado provado o seguinte quadro factual:

1 - Encontra-se descrito, na Conservatória do Registo Predial de Montemor-o-Novo sob o nº …/…, o prédio denominado “…”, com 2,6000 hectares, inscrito a favor do Réu AA, pela Ap. …/… (alínea a) dos factos assentes);

2 - Por escritura pública, outorgada, no dia 21 de março de 2006, no Cartório Notarial de Montemor-o-Novo, o Réu AA, na qualidade de dono, declarou doar ao Réu CC, que aceitou a doação, uma parcela de terreno com a área de 3.800 m2, a confrontar do norte com o caminho municipal, do nascente com Emídio …, do sul com o caminho público e do poente com Manuel …, a desanexar do prédio antes referido (alínea b) dos factos assentes);

3 - Encontra-se descrito, na Conservatória do Registo Predial de Montemor-o-Novo, sob o nº …/…, o prédio antes mencionado, inscrito a favor do Réu CC, pela Ap. …/.../…1 (alínea c) dos factos assentes);

4 - Na data de 21 de março de 2006, os prédios antes citados encontravam-se ocupados com oliveiras (alínea d) dos factos assentes);

5 - Por escritura pública, outorgada no dia 9 de agosto de 2007, no Cartório Notarial de Montemor-o-Novo, os Réus CC e DD declararam constituir hipoteca sobre imóvel descrito, na Conservatória do Registo Predial de Montemor-o-Novo, sob o nº …/…, a favor do Réu EE, S.A., que declarou aceitar, como garantia do reembolso do capital mutuado, para construção de habitação no referido imóvel, nos termos ajustados (alínea e) dos factos assentes);

6 - O ato antes referido encontra-se inscrito pela Ap de …/…/…, convertido em definitivo, no dia 17 de setembro de 2007 (alínea f) dos factos assentes);

7 - No dia 24 de novembro de 2008, a Câmara Municipal de Montemor-o-Novo emitiu o alvará de utilização nº …/08 do edifício construído, na sequência do alvará de construção nº …/06, também emitido a favor do Réu CC (alínea f) dos factos assentes);

8 - A parcela de tereno doada destinava-se à construção de uma habitação (resposta ao artigo 1º. da base instrutória);

9 - Os Réus CC e DD construíram uma habitação nesta parcela de terreno (resposta ao artigo 2º. da base instrutória);

10 - Os prédios descritos, na Conservatória do Registo Predial de Montemor-o-Novo sob os nºs …/… e …/… são separados, por um caminho desde tempos que não há memória (resposta ao artigo 3º. da base instrutória);

11- Este caminho é utilizado, por um número indeterminado de pessoas, desde tempos de que não há memória (resposta ao artigo 4º. da base instrutória);

12 - A pé e de carro (resposta ao artigo 5º. da base instrutória);

13 - O caminho antes mencionado faz e fez ligação entre a estrada da Amieira e a estrada da Pintada, à exceção do período de tempo em que foi interrompido pelo vizinho dos Réus AA, BB, CC e DD, dr. FF, período esse de cerca de quatro a cinco anos, entre os quais os anos de 2006 a 2008 (resposta ao artigo 6º. da base instrutória);

14 - E permitindo o acesso aos prédios que o ladeiam, inclusive o estabelecimento comercial “…” (resposta ao artigo 7º. da base instrutória);

15 - É um caminho em terra batida, que confronta com as vedações e muros dos prédios que o ladeiam (resposta aos artigos 8º e 9º. da base instrutória);

16 - O caminho referido tem cerca de 517 metros de comprimento e cerca de 3,20 m/4 m de largura (resposta ao artigo 10º. da base instrutória);

17 - E possui valas de drenagem das águas (resposta ao artigo 11º. da base instrutória);

18 - Junto de uma azinheira, foi construída, pela Câmara Municipal de Montemor-o-Novo, uma passagem hidráulica/pontão de cimento (resposta ao artigo 12º. da base instrutória);

19 - Antes da constituição da hipoteca, o Réu EE, S.A. consultou a descrição predial do prédio registado sob o nº …/… e respetivas inscrições em vigor e confiou que a quantia emprestada se destinava à construção de habitação no prédio (resposta aos artigos 13º. e 14º. da base instrutória).


B - O direito


Quanto à alegada existência de erro na apreciação da prova que determine uma resposta de “não provada” à matéria de facto vertida no ponto 8 dos factos assentes

- “A quem invoca um direito em juízo incumbe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, quer o facto seja positivo, quer negativo. À parte contrária compete provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito” [4];


- “Se o juiz fica em dúvida sobre determinado facto, por não saber se ele ocorreu ou não, o non liquet do julgador converte-se, na sequência da diretiva traçada pelo nº 1 do artigo 8º. do Código Civil, num liquet contra parte a quem incumbe o ónus da prova” [5];


- “A reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância pois só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição; para que o segundo grau reaprecie a prova, não basta a alegação por banda dos recorrentes em sede de recurso de apelação que houve erro manifesto de julgamento e por deficiência na apreciação da matéria de facto devendo ser indicados quais os pontos de facto que no seu entender mereciam resposta diversa, bem como quais os elementos de prova que no seu entendimento levariam à alteração daquela resposta”, sob pena de rejeição [6];


-“No uso dos poderes relativos à alteração da matéria de facto (…), a Relação deverá formar e fazer refletir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas, nos mesmos termos em que o deve fazer a 1ª instância, sem que se lhe imponha qualquer limitação, relacionada com convicção que serviu de base à decisão impugnada, em função do princípio da imediação da prova” [7];


- “A prova, no processo, pode (…) definir-se como a atividade tendente a criar no espírito do juiz a convicção (certeza subjetiva) da realidade de um facto. Para que haja prova é essencial esse grau especial de convicção, traduzido na certeza subjetiva[8].



Quanto ao invocado erro na aplicação do direito aos factos assentes

- “Por razões de ordem económica que respeitam à exploração da terra”, não é possível fragmentar terrenos próprios para fins agrícolas, em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura[9]; por outras palavras: “Desde que os terrenos sejam contíguos e pertençam ao mesmo proprietário, o fraccionamento é proibido, qualquer que seja a situação de facto, jurídica ou económica, de cada parcela. Há quebra de contiguidade, se entre os prédios houver uma parcela, por mais pequena que seja, de terreno alheio, ou se existir um caminho público. Mas não quebra a contiguidade um morro ou uma vala que pertençam ao mesmo proprietário, ainda que dificultem ou impossibilitem a comunicação entre os dois terrenos”[10];

- Não se destinando o terreno a cultura agrícola e, sim, a construção não é aplicável a aludida proibição de fraccionamento. “Não se trata apenas da construção de prédios urbanos ou, muito menos, de prédios para habitação (…)”[11].

C- Jurisprudência


- Se bem que o acórdão uniformizador de jurisprudência não seja, ao contrário dos antigos assentos, estrita e rigorosamente vinculativo, antes representando jurisprudência qualificada, no entanto, “a sua componente vinculativa surge acentuada para as instâncias”; sob pena de, se assim não acontecer, não ocorrer uniformização de jurisprudência[12];


- “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato do público”[13];


- “Para que um caminho possa ser considerado como caminho público, necessário se torna a verificação dos seguintes requisitos: uso direto e imediato por parte do público em geral; que esse uso se verifique desde tempos imemoriais; e que esse uso satisfaça interesse coletivos de significativo grau de relevância” [14];


-“O uso direto e imediato do público em geral, quando imemorial, bastará para caraterizar um caminho como público, mas é ainda necessário acrescentar que esse uso público deve refletir a sua afetação à utilidade pública, ou seja, à satisfação de interesses coletivos de significativo grau ou relevância” [15];


- “No caso de passagem ou caminho, que não se integra em nenhuma propriedade privada, existente num lugar e que desde tempos imemoriais liga duas ruas desse lugar, a prova do seu uso imemorial pela população basta para considerar tal caminho com público, não se impondo nenhuma interpretação restritiva do assento” [16];


- “A dominialidade pública de um caminho pode resultar do fato de ele ter sido construído ou apropriado e mantido por pessoa coletiva publica ou de estar no uso direito e imediato, quando imemorial, do público, afeto à utilidade pública, ou seja, à satisfação de interesses coletivos de certo grau de relevância” [17];


-“Os atravessadouros são caminhos alternativos, ou meros atalhos, destinados a encurtar distâncias através de prédios particulares e que o Código Civil aboliu desde que não possam ser conduzidos à categoria de servidão (…) ou não tenham posse imemorial, não se dirijam a fonte ou ponte de manifesta utilidade ou não estejam previstos em legislação especial(…)”; “o leito dos caminhos públicos é dominial, sendo particular o dos atravessadouros” [18];


- “A integração do caminho no domínio público encontra a sua justificação na sua afetação a uma utilidade pública, que deve revelar-se na satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância, por contraponto aos atravessadouros que se destinam, apenas e tão só, a fazer a ligação entre caminhos públicos, por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância” [19];


- “A distinção entre caminho público e atravessadouro é a seguinte: caminho público importa a consciência de que está a servir-se e a exercer um direito incontestável, reconhecido à generalidade dos cidadãos; atravessadouro há a consciência de que se está a utilizar uma coisa particular, com base em simples tolerância ou ignorância do proprietário, são simples carreiros, sendas ou atalhos, em função de caminhos públicos, de forma a evitar curvas ou outros acidentes, encurtam distâncias, e quando se verificam em terra arável, o seu leito é desmanchado pela charrua no seu cultivo, reaparecendo com a passagem dos atalhantes, sendo o leito naturalmente estreito e só dá passagem a pessoas e, quando muito a animais soltos” [20];


- “ A lei civil não define o que sejam “coisas públicas”, limitando-se no nº 2 do art. 202º do C.C. a considerar fora do comércio todas as coisas que não podem ser objeto de direitos privados, nomeadamente, as que se encontrem no domínio publico e as que são, por sua natureza, insuscetíveis de apropriação individual. Em face desta omissão legal, têm sido a doutrina e jurisprudência a construir a noção de “coisa pública” [21].


D- Aplicação do direito aos factos


Quanto à alegada existência de erro na apreciação da prova que determine uma resposta de “não provada” à matéria de facto vertida no ponto 8 dos factos assentes


O artigo 1º. da base instrutória, que recebeu a resposta de “provado”, decorre da contestação do Réu EE, S.A., nomeadamente, dos artigos 2º., 3º.,11º, 12º. e 28º. da referida peça processual.

Por outro lado, dúvidas inexistem que o tribunal recorrido fundamentou a resposta antes referida, também, nos depoimentos das testemunhas Hélder … e Paulo ….

No critério do Exmo. Procurador da República, o aludido artigo devida ter recebido da resposta de “não provado”, uma vez que os depoimentos das mencionadas testemunhas são omissos quanto à circunstância de a intenção de construir ocorrer, por ocasião da desanexação.

Após a audição do registo dos referidos depoimentos, não restam dúvidas que os referenciados não aludem que, aquando da escritura de doação, em 21 de março de 2006, por parte dos donatários CC e mulher, DD, existia já o propósito de construir.

Contudo, o certo é que estes construíram uma residência, após a obtenção, em dezembro de 2006, do alvará de construção e de um empréstimo bancária, em agosto de 2007, complementado por um outro, em novembro de 2008.

Ora, a normalidade de vida ensina-nos que, quem adquire, em março de 2006 e, nove meses depois, obtém licença de construção, e constrói, tinha já a intenção de construir, aquando da aquisição. Acresce que o Exmo. Procurador da República nada alegou no sentido de contrariar ou, minimamente, pôr em causa o que é normal ou típico acontecer.

Tem, pois, esta Relação a convicção (certeza subjetiva) - em linha, por sinal, com o Tribunal recorrido - de a porção de terreno doada se destinar à construção de uma residência.

É, pois, de manter a resposta dada.

Pelo exposto, improcede este segmento da apelação.



Quanto ao invocado erro na aplicação do direito aos factos assentes

No critério do Exmo. Procurador da República, “a factualidade que foi efetivamente demonstrada, não permite a formulação de um juízo no sentido da qualificação do caminho como público” e, sim, no da constituição de “uma servidão predial, que onera o prédio descrito no nº 1, da matéria assente, em benefício dos demais prédios atravessados pelo caminho, uma servidão de passagem aparente (…) que se terá constituído por usucapião”.

No entender desta Relação, este juízo não é sustentado pelos factos apurados.

Estes retratam a seguinte realidade: um caminho, de terra batida, com cerca de cerca de 517 metros de comprimento e cerca de 3,20 m/4 m de largura, que, agora, separa dois prédios, e, outrora, atravessava um único, utilizado por um número indeterminado de pessoas, desde tempos de que não há memória, a pé e de carro, que fez e faz a ligação entre duas estradas, ladeado por vedações e muros, com valas de drenagem de águas e uma passagem hidráulica/pontão de cimento, construído pela Câmara Municipal, não sendo o respetivo leito particular.

A descrita realidade aponta, com segurança e em linha com o assento do STJ de 19 de abril de 1989, - cuja “componente vinculativa surge acentuada para as instâncias”-, para um caminho público. Efetivamente, está em causa uma passagem, de leito é dominial, “que desde tempos imemoriais” está “no uso direto e imediato do público”, satisfazendo este uso um interesse coletivo “de certo grau ou relevância” - o do encurtamento de distâncias -, sempre desejado pelas comunidades. A este propósito, é de realçar que o comprimento do caminho - cerca de 517 metros - não aponta, necessariamente, para um “encurtamento não significativo de distância”.

Esta qualificação não é beliscada pela circunstância de, durante “cerca de quatro a cinco anos, entre os quais os anos de 2006 a 2008” o caminho ter sido interrompido, por um vizinho. Atribuir-lhe relevância equivaleria a, conforme alude o Tribunal recorrido, pactuar com a ilicitude.

Não é, pois, de acolher a qualificação do caminho em causa como “servidão de passagem aparente” ou como atravessadouro ou “carreiro” - utlizado, “com base em simples tolerância ou ignorância do proprietário”.

Inexistindo “quebra de contiguidade” entre os “terrenos”, devido à existência de um caminho público, o fracionamento decorrente da escritura de 21 de março de 2006 não é proibido.

De referir, finalmente, que os autos não tratam de uma operação de constituição de um loteamento, com destaques individualizados, a partir do prédio mãe, para feitos de venda, não sendo, por isso, pertinente chamar à colação o regime jurídico do loteamento, com a consequente necessidade de autorizações administrativas.


Em síntese[22]: é público um caminho, de terra batida, com cerca de cerca de 517 metros de comprimento e cerca de 3,20 m/4 m de largura, que, agora, separa dois prédios, e, outrora, atravessava um único, utilizado por um número indeterminado de pessoas, desde tempos de que não há memória, a pé e de carro, que fez e faz a ligação entre duas estradas, ladeado por vedações e muros, com valas de drenagem de águas e uma passagem hidráulica/pontão de cimento, construído pela Câmara Municipal, não sendo o respetivo leito particular.


Decisão

Pelo exposto, decidem os juízes desta Relação, julgando a apelação improcedente, manter a sentença recorrida.

Sem custas.

***
Évora, 5 de maio de 2016

Sílvio José Teixeira de Sousa

Rui Machado e Moura

Maria da Conceição Ferreira


__________________________________________________
[1] O pedido reconvencional culminou com a absolvição do Estado da instância, decisão que transitou em julgado.
[2] A referência à “matéria de facto descrita no nº 2, dos factos provados” é, certamente, um lapso.
[3] “A parcela de terreno referida em B) destinava-se à construção de habitação?”
[4] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, 1985, pág. 452, e artigo 342º., nºs 1 e 2 do Código Civil.
[5] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, 1985, pág. 447.
[6] Acórdão do STJ, de 2 de dezembro de 2013 (processo nº 34/11.0 TBPNL.L1.S1), in www.dgsi.pt. e artigo 640º., nº 1, b) do Código de Processo Civil.
[7] Acórdão do STJ de 14 de fevereiro de 2012 (processo nº 6823/09.3 TBBRG.G1.S1.), in www.dgsi.pt. (no mesmo sentido, os acórdãos do STJ, de16 de outubro de 2012 (processo nº 649/04.2 TBPDL.L1.S1), 6 de julho de 2011 (processo nº 450/04.3 TCLRS.L1.S1), 6 de julho de 2011 (processo nº 645/05.2 TBVCD.P1.S1), 24 de maio de 2011 (processo nº 376/2002.E1.S1), 2 de março de 2011 (processo nº 1675/06.2 TBPRD.P1.S1), 16 de dezembro de 2010 (processo nº 2410/06.1 TBLLE.E1.S1) e 28 de maio de 2009 (processo nº 4303/05.0 TBTVD.S1), no mesmo sítio), e artigo 662º., nº 1 do Código de Processo Civil).
[8] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 436.
[9] Artigo 1376º., nº 1 do Código Civil, Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código de Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 259 e acórdão do STJ de 5 de Fevereiro de 1981, in www. dgsi.pt..
[10] Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, págs. 260 e 261 e artigo 1376º., nº 3 do Código Civil.
[11] Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 263, artigo 1376º., nº 3 do Código Civil e acórdão do STJ de 10 de Maio de 1988, in www.dgsi.pt..
[12] Acórdão do STJ de 14 de Maio de 2009, in www.dgsi.pt. (no mesmo sentido o acórdão do STJ de 5 de Novembro de 2009, no mesmo portal).
[13] Assento do STJ - hoje com valor de jurisprudência uniformizada - de 19 de abril de 1989 (Dário da República, I-A, de 2 de junho de 1989.
[14] Acórdão da Relação de Évora de 30 de abril de 2015 (processo nº 376/12.7 TBABT.E1), in www.dgsi.pt. (no mesmo sentido, os acórdãos desta Relação, de 14 de novembro de 2013 (processo nº 44/1999. E1), de 18 de novembro de 2009 (processo nº 601/04.8 TBSLV. E), e de 1 de abril de 2004 (processo nº 25 27/03.2), no mesmo portal.
[15] Acórdão do STJ de 21 de janeiro de 2014 (processo nº 6662/09.6 TBVFR.P1.S1), in www.dgsi.pt. (no mesmo sentido, acórdão deste Tribunal de 18 de setembro de 2014 (processo nº 44/1999.E1), no mesmo portal.
[16] Acórdão do STJ de 28 de maio de 2013 (processo nº 3425/03.6 TBGDM-P2.S1), in www.dgsi.pt.
[17] Acórdão do STJ de 29 de setembro de 2011 (processo nº 302/08.8 TBLLE.E1.S1), in www.dgsi.pt.
[18] Acórdão do STJ de 26 de maio de 2015 (processo nº 22/12. 9 TCFUN.L1.S1), in www.dgsi.pt.
[19] Acórdão do STJ de 18 de setembro de 2014 (processo nº 44/1999.E1), in www.dgsi.pt.
[20] Acórdão do STJ de 11 de janeiro de 1996 (processo nº 087599), in www.dgsi.pt (no mesmo sentido, o acórdão deste Tribunal de 25 de julho de 1978 (processo nº 067367), no mesmo portal.
[21] Acórdão da Relação de Évora de 14 de novembro de 2013 (processo nº 44/1999.E1), in www.dgsi.pt.
[22] Artigo 663º, nº 7 do Código de Processo Civil.