Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO GOMES DE SOUSA | ||
Descritores: | CONTRA-ORDENAÇÃO RESPONSABILIDADE OBJECTIVA RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 05/05/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | 1 - O direito contra-ordenacional é um direito da culpa e não um direito que permita a responsabilização objectiva, pelo que se mostra essencial que se provem os factos relativos à culpa dos arguidos. 2 - Não se pode interpretar o recurso do arguido in malam partem para suprir insuficiências no processo contra-ordenacional por irregularidade na decisão administrativa e na subsequente acusação. | ||
Decisão Texto Integral: | Proc. 150/14.6TBLGS.E1
Acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório: A Exma Directora do Departamento de Assuntos Jurídicos e Contraordenações da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, condenou a arguida ST, Lda, NIPC 00000000, nas coimas de 5.000,00, 25.000,00 e 1.000,00 euros respectivamente – em cúmulo a coima de 25.000,00 euros - por prática das seguintes contra-ordenações: a) Falta de apresentação do requerimento para reconversão da classificação, prevista e punida pelos artigos 75º, nº 2, e 67º, nº 1, alínea h), do Decreto-Lei nº 39/08, de 7 de Março (coima de 5.000,00 a 25.000,00 euros); * Após a decisão a arguida interpôs recurso de impugnação da decisão, pedindo a sua absolvição, ou a sua punição com admoestação ou com a coima mínima.
O Tribunal Judicial da Comarca de L – por decisão de 8 de Outubro de 2014, a fls. 143-145 - decidiu: a) Negar provimento ao recurso interposto pela arguida ST, Lda, NIPC 00000000. b) Condenar a arguida na coima de 5.000,00 (cinco mil) euros por prática da contra-ordenação de falta de apresentação do requerimento para reconversão da classificação, prevista e punida pelos artigos 75º, nº 2, e 67º, nº 1, alínea h), do Decreto-Lei nº 39/08, de 7 de Março. c) Condenar a arguida na coima de 25.000,00 (vinte cinco mil) euros por prática da contra-ordenação de oferta de serviços de alojamento turístico sem título válido, prevista e punida pelos artigos 32º e 67º, nº 1, alínea a), do mesmo diploma. d) Condenar a arguida na coima de 1.000,00 (mil) euros por prática da contra-ordenação de falta de afixação no exterior da placa identificativa da respectiva classificação, prevista e punida pelos artigos 36º, nº 4, e 67º, nº 1, alínea i), do mesmo diploma. e) Condenar a arguida em cúmulo jurídico, na coima de 25.000,00 (vinte e cinco mil) euros. f) Condenar a arguida no pagamento das custas. g) Ordenar a notificação da sentença à arguida e à autoridade administrativa, bem como o seu depósito. * Inconformada com uma tal decisão, dela interpôs a arguida o presente recurso, com as seguintes conclusões:
1º - A douta decisão proferida pelo tribunal a quo deve ser revogada por não terem sido apreciadas todas as questões suscitadas no recurso de impugnação de decisão administrativa e na audiência de discussão e julgamento, verificar-se erro notório de apreciação da prova e, por conseguinte, erro no julgamento da matéria de facto e, por último, não ter sido interpretado e aplicado correctamente o direito. * O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta defendendo o decidido. Nesta Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso. Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal. Lavrado despacho a recorrente veio apresentar novas conclusões. * B - Fundamentação: B.1.a) - São estes os factos considerados provados pelo tribunal recorrido: 1 - No dia 31 de Agosto de 2011, pelas 11.00 horas, no Hotel MM, Rua da T, 33/34, em L, a arguida ST, Lda, NIPC 00000000, cessionária da exploração do estabelecimento, não possuía, para apresentação às autoridades, o requerimento para reconversão da classificação. 2 - Oferecia os seus serviços sem se mostrar munida do título que lhe permitisse fazê-lo. 3 - Não tinha afixado no exterior do estabelecimento a placa identificativa da respectiva classificação. * B.1.b) - O tribunal recorrido fundamentou a matéria de facto, do seguinte modo: 4 – Os factos foram verificados em inspecção pelas Inspectoras Berta Lopes e Elsa Sousa, da ASAE, as quais prestaram declarações em julgamento, confirmando os factos verificados, e que agora constam. *** B.2 - Cumpre apreciar e decidir: Nos termos do art. 75º nº 1 do DL nº 433/82, de 27/10 (RGCO), nos processos de contra-ordenação, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões. Isto é, este Tribunal funcionará, no caso, como tribunal de revista. É sabido que o objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação. Destas resulta que são questões a decidir: Da nulidade da douta sentença; *** B.3 – Mas questão muito prévia impõe-se nos autos. O assento nº 1/2001 do STJ afirmou que a fase judicial do processo contra-ordenacional se inicia com a apresentação ao juiz, pelo Ministério Público, da acusação definitiva prevista no artigo 62º, nº 1 daquele diploma [“7.1 - A «entrada do processo no foro do juiz» (ou seja, o início da fase judicial do processo contra-ordenacional) opera-se, pois, não com a impugnação judicial — ante a autoridade administrativa — da acusação provisória (artigo 59.º, n.º 3), mas, apenas, com a ulterior apresentação ao juiz, pelo Ministério Público, da acusação definitiva (artigo 62.º, n.º 1)”]. Assim, se a fase judicial do processo contra-ordenacional só se inicia com o envio dos autos ao juiz (artigo 62º, nº 1 do RGCO e Assento citado), a fase administrativa termina com a possibilidade de revogação da decisão pela entidade administrativa. Além desta existe então uma fase intermédia entre aquelas duas naturezas do processo – a administrativa e a judicial – em que o processo se encontra na disponibilidade do MP e que designaremos por fase “acusatória”. Não sendo já uma fase administrativa (a entidade administrativa já não pode revogar a decisão) ainda não é uma fase judicial. Mas a intervenção do Ministério Público é essencial nesta fase pois que significa que o envio da decisão administrativa ao Juiz é a dedução de uma acusação. Mas para qualquer destas fases do processo contra-ordenacional é válido o estabelecido nos artigos 32º e 41º do Dec-Lei n. 433/82, de 27-10 (RGCO – Regime Geral das Contra-ordenações). Ou seja, o direito penal e, para o que aqui nos interessa, o direito processual penal são direito subsidiário de todo o processo contra-ordenacional, incluindo a fase administrativa. Por outro lado temos que ter presente que o “objecto do processo” se cristaliza deduzida que seja a acusação, com as variáveis que podem ser introduzidas pela defesa e pelo poder de investigação do tribunal, balizado este pelos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal. Estas normas são naturalmente aplicáveis ao processo contra-ordenacional, principalmente depois da introdução do nº 10 ao artigo 32º da Constituição da República Portuguesa que afirmou ser essencial assegurar ao arguido em processo contra-ordenacional os direitos de “audiência e defesa”. Naturalmente este artigo da Constituição da República Portuguesa é de essencial relevância mas não faz esquecer o muito mais amplo artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem com a sua exigência de um tratamento equivalente do direito de defesa deste “processo sancionatório” ao direito de defesa penal, ao nível do ordenamento infra constitucional a Convenção obriga a tratar o direito contra-ordenacional muito mais generosamente do que a Constituição da República Portuguesa sugere. Assim, é decorrência desse direito de defesa que o juiz (aqui também a entidade administrativa) está limitado pelo thema decidendum, mas está igualmente sujeito à obrigação de o esgotar, quer na contribuição dada pela entidade administrativa (corporizada na “acusação” do Ministério Público) quer pela defesa, na definição desse objecto. Neste ponto não conhecemos texto que de forma tão certeira e sucinta dê uma panorâmica completa sobre o tema como o do nosso colega Cruz Bucho, nos seguintes termos: “…, os factos descritos na acusação (normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória), definem e fixam o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado. Segundo Figueiredo Dias é a este efeito que se chama vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade (segundo o qual o objecto do processo, os factos devem manter-se os mesmos, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consunção do objecto do processo penal (mesmo quando o objecto não tenha sido conhecido na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo). Com efeito, um processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do objecto do processo, uma vez definido este pela acusação. Um processo penal como o nosso, de estrutura basicamente acusatória integrado por um princípio de investigação, admite, porém, que sendo a descrição dos factos da acusação uma narração sintética, nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime acusado possam constar desde logo dessa peça, podendo surgir durante a discussão factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos." [1]
Há, pois, uma inultrapassável identidade entre os conceitos de “objecto do processo” e “factos”, assim como há outra intransponível imbricação entre os conceitos de “crime” ou “contra-ordenação” e de “factos”. Sem factos não há crime ou contra-ordenação nem objecto do processo. Os factos são a base indispensável de um processo mas, naturalmente, têm que ser normativamente relevantes. Sendo normativamente relevantes têm que ser esgotantemente apreciados. Cristalizando-se o objecto do processo com os factos que constam da acusação – e nessa medida se entendem como normativamente relevantes, o que quer significar que, constando da acusação têm um significado enquanto conduta humana subsumível ao ordenamento jurídico – o princípio da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente), impõe que os factos que constavam da acusação tenham um destino. Mas nesse objecto do processo também entram em linha de conta os factos alegados pela defesa, desde que sejam isso mesmo, factos e não meras conclusões, nem o “negativo” do invocado na acusação. E desde que sejam normativamente relevantes, ou seja, desde que invoquem uma causa que exclua a ilicitude, a culpa ou a punibilidade, dizendo de forma abrangente, qualquer facto que seja relevante para subsunção ao tipo de ilícito imputado na acusação, para o juízo da sua exclusão e para a pena ou coima aplicável. Claramente é inútil a alegação do “negativo” ou reverso dos factos constantes da acusação, mas já não o são os que revelam essencialidade para a decisão. Esses factos constantes da sua oposição são normativamente relevantes e têm que constar dos factos provados ou não provados por fazerem parte da contribuição da defesa para a definição do objecto do processo. Assim, questão essencial é saber se todo o objecto do processo foi esgotado, isto é, se todos – rigorosamente todos – os factos normativamente relevantes que fazem parte do objecto do processo foram dados como provados ou não provados, sejam eles os constantes da acusação, sejam os constantes da oposição. Ora, no caso, o que se constata é a inexistência de qualquer referência aos factos, quer à maioria dos invocados pela acusação, quer à totalidade dos invocados pela defesa. Circunstância que demonstra que o thema decidendum se não esgotou. Assim, não se trata de dar como não provado o que não existe, trata-se de dar como provado ou não provado o que tem relevante – e substancialmente relevante - existência processual. De facto, o tribunal recorrido deu como provados três factos, como segue: 1 - No dia 31 de Agosto de 2011, pelas 11.00 horas, no Hotel MM, Rua da T, 33/34, em L, a arguida ST, Lda, NIPC 00000000, cessionária da exploração do estabelecimento, não possuía, para apresentação às autoridades, o requerimento para reconversão da classificação. 2 - Oferecia os seus serviços sem se mostrar munida do título que lhe permitisse fazê-lo. 3 - Não tinha afixado no exterior do estabelecimento a placa identificativa da respectiva classificação.
Mas a entidade administrativa na sua decisão (que constitui a acusação) expõe 12 (doze) factos a fls. 1 v. e 2 (correspondentes a fls. 30 v. e 31 destes autos). Apesar de tais factos estarem inseridos no capítulo relativo à “Fundamentação de facto e de direito” e não “Da matéria de facto”, certo é que eles são o cerne e a base que permite o operar do princípio da legalidade e expor a eventual culpa da arguida. Assim bem se poderia afirmar que estaríamos perante uma nulidade da decisão administrativa e uma subsequente nulidade da decisão judicial em sede de recurso de impugnação judicial. Mas o Ministério Público nada referiu na sua acusação quanto à deficiência formal da sua “acusação”, deixando-a seguir para a fase de julgamento naqueles termos, pelo que o vício que se segue retira a esta formalidade qualquer relevância processual. * B.4 - O direito contra-ordenacional é, também, um direito da culpa e não um direito que permita a responsabilização objectiva, pelo que se mostra essencial que se provem os factos relativos à culpa da arguida, relativamente aos quais a sentença recorrida é completamente omissa – artigos 8º a 11º do RGCO. E aquilo que aconteceu nos autos de recurso de impugnação judicial é que a arguida foi objectivamente responsabilizada por uma mal caracterizada ilicitude e desprezando-se a prova da sua culpa. Tal vício – insuficiência de factos que delimitem de forma clara a tipicidade e ilicitude e total inexistência de factos que minimamente demonstrem a culpa da arguida – deverá ter o tratamento que têm em processo penal os processos que, deduzida a acusação, se revelem falhos de factos típicos, ilícitos e culposos. A total absolvição, já que aqui não há nulidade invocável. Nem se pode falar de “insuficiência factual” a inserir subsidiariamente no artigo 410º do C.P.P., pois que o acervo de factos – ao estar mal localizado na economia da decisão administrativa – surpreende a arguida no próprio teor da “acusação”. Aliás, tal vício até influenciou o tribunal recorrido que nem deu pela existência de tais factos. E se o tribunal não deu pelos factos não se poderia exigir à arguida maior atenção ou exigência. * B.4 - Mas admitamos que sim, que se pode antever implicitamente que os factos que a entidade administrativa coloca deslocadamente na “fundamentação” devem ser corrigidos pelo tribunal recorrido. Ora, aqui quem teria legitimidade para recorrer da decisão de primeira instância seria o Ministério Público, tendo em vista a obtenção de um reenvio dos autos, que não o arguido por não ter interesse em agir para obtenção de um resultado que lhe pode ser desfavorável. Acontece que o Ministério Público em primeira instância não reagiu processualmente via recursal. Apenas recorreu o arguido para obter a sua absolvição com os fundamentos por si indicados, não podendo o tribunal – porque a existência de um processo justo e equitativo também exige um comprometimento das entidades administrativas e judiciais com essas exigências – aproveitar o recurso do arguido para agravar a sua posição processual. Ou seja, não se pode interpretar e dar uma extensão ao recurso do arguido numa interpretação in malam partem, para suprir insuficiências de quem não recorreu. Do exposto resulta que, assim sendo, prejudicados ficam os restantes fundamentos do recurso que se torna desnecessário abordar pois que, sem factos que revelem o tipo de ilícito e o tipo de culpa, tais fundamentos revelam-se desnecessários à economia do recurso. E desta forma se conclui com a afirmação de que o recurso deve proceder, embora por razões diversas das invocadas. *** C - Dispositivo Face ao que precede, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora concedem provimento ao recurso interposto e, em consequência, absolvem a arguida da contra-ordenação imputada. Notifique, incluindo a entidade administrativa. Devolva os autos. Sem tributação. (processado e revisto pelo relator). Évora, 05 de Maio de 2015 João Gomes de Sousa Felisberto Proença da Costa
__________________________________________________ [1] - “Alteração substancial dos factos em processo penal”, José Manuel Saporiti Machado da Cruz Bucho - Comunicações apresentadas no Colóquio “Questões Práticas na Reforma do Código Penal”, organizado pelo Centro de Estudos Judiciários e realizado em Lisboa no dia 13 de Março de 2009 no Fórum Lisboa, e no Tribunal da Relação de Guimarães, no dia 2 de Abril de 2009, no 7º aniversário deste Tribunal. Disponível in “http://www.trg.pt/info/estudos.html”. |