Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1679/12.6TBLGS.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - O título executivo é um pressuposto de caráter formal, que se destina a garantir um grau de certeza considerado suficiente para permitir a diminuição da esfera jurídica patrimonial do devedor.
II - Tratando-se de prestações futuras e não sendo possível concluir do documento particular dado à execução, por simples cálculo aritmético, que o devedor se constituiu, efetivamente, na obrigação de cumprir essas prestações, o documento não constitui título executivo nos termos do artigo 46º/1, c), na anterior redação do CPC. (Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc.º 1679/12.6TBLGS.E1

Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora



RECORRENTE:
(…) Global Limited

RECORRIDOS:
(…) e (…)

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A exequente, ora recorrente, instaurou execução comum em 09-11-2012 contra os executados, ora recorridos, para pagamento da quantia de € 6.686,97, alegando, em síntese, o seguinte:
- A Credora Originária, (…), SA, celebrou contrato de cessão de crédito com a (…) Partnership, 5 LLP.
- Em 17-01-2012, a (…) Partnership, 5 LLP cedeu o crédito à exequente que o aceitou.
- A Exequente é, assim, parte legítima na presente execução, porque é a legítima titular do crédito resultante do incumprimento dos contratos;
- A presente execução constitui meio idóneo para dar conhecimento ao devedor da cessão de créditos em termos idênticos à notificação prevista no 583º do Código Civil.
- O documento dado à execução é título executivo, no qual reconhece a existência de obrigações pecuniárias.
- Sendo o montante determinável através de simples cálculo aritmética, segundo as cláusulas contratuais constantes do documento dado à execução.
- Montante, esse, calculado de acordo com as cláusulas constantes no próprio documento.
- É a obrigação sub judice certa, exigível e líquida.
- Por documento particular outorgado foi celebrado pela (…) com o Executado, um contrato de crédito em conta corrente, com o n°. (…), no montante inicial de € 2.000,00,constantes nas condições que constam do título executivo.
- O Executado comprometeu-se ao pagamento em prestações mensais e sucessivas.
- O Executado nunca denunciou o contrato nos termos das cláusulas do contrato.
- No entanto, desde 2006-04-17, o Executado nada pagou, data em que o referido contrato de crédito foi resolvido.
- Tendo ficado em divida o montante de € 4.127,76.
- Assim sendo, o valor em divida é de € 4.127,76.
- Aquela quantia venceu juros legais desde a data atrás referida até à data da propositura da presente execução os quais são, neste momento, no valor de € 2.559,21.
- Pelo que, é, pois, a quantia exequenda de € 6.686,97, à qual acrescem juros vincendos até integral e efetivo pagamento, bem como todas as custas de parte, a apurar a final.
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Após várias tentativas, o sr. Agente de Execução não logrou citar os executados.
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Foi então proferido o seguinte despacho:

“I.
Atenta a data de entrada em juízo da presente execução – 09.11.2012, à tramitação da sua fase introdutória e regras relativas ao título executivo continua a ser aplicável o Código de Processo Civil de 1961 – artigo 6º, n.º 3, da Lei 41/2013, de 26.01.
Nesta medida, no despacho que se segue, relativo à falta de título executivo, será seguido e aplicado o referido Código de Processo Civil.
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II.
DA FALTA DE TÍTULO EXECUTIVO
1.
Nos termos do disposto no artigo 820º, do Código de Processo Civil, o juiz pode conhecer oficiosamente das questões a que aludem os n.ºs 1 e 3, do artigo 812º-E, do mesmo diploma legal, até ao primeiro acto de transmissão de bens penhorados, o que, no presente caso, ainda não sucedeu.
Uma dessas questões prende-se com a manifesta falta ou insuficiência do título executivo.
No caso em apreço, a exequente propôs a presente execução alegando, em suma, que:
a) Por documento particular outorgado foi celebrado pela (…) com o Executado, um contrato de crédito em conta corrente, com o nº. (…), no montante inicial de € 2.000,00, constantes nas condições que constam do título executivo;
b) O Executado comprometeu-se ao pagamento em prestações mensais e sucessivas;
c) Desde 2006-04-17, o Executado nada pagou, data em que o referido contrato de crédito foi resolvido, tendo ficado em dívida o montante de € 4.127,76;
d) Tal quantia venceu juros legais desde a data atrás referida até à data da propositura da presente execução os quais são, neste momento, no valor de € 2.559,21, pelo que a quantia exequenda é de € 6.686,97, à qual acrescem juros vincendos até integral e efectivo pagamento.
Como título executivo juntou a fotocópia de um documento que configura um formulário assinado com o nome dos executados, no qual estão assinalados com uma cruz os seguintes campos:
▪ sim, desejo aderir ao Direct Cash, com seguro
▪ 2.000 € - 66,65 € em 48 meses.
Juntou, ainda, a fotocópia de um documento, designado de “Contrato de Crédito em Conta Correte”, que se encontra datado de 04.06.2003 e com uma rubrica aposta no local destinado à assinatura da (…), com um conjunto de Condições Gerais (…), cujo teor aqui se dá por reproduzido.
A questão que se coloca é a de saber se os documentos apresentados configuram título executivo, conforme sustenta a exequente.
Vejamos.
2.
Nos termos do disposto no artigo 45º, n.º 1, do mesmo diploma legal, «toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.».
O título executivo reconduz-se ao documento escrito constitutivo ou certificativo de uma obrigação que, mercê da sua força específica, permite a realização de actos de execução forçada na esfera jurídica do executado. E é assim porque a existência do título executivo faz presumir que o crédito existe e que está por cumprir.
A existência de título executivo é, pois, um pressuposto processual específico da acção executiva, sem o qual a mesma não pode ter lugar.
Ao contrário do que sucede na acção declarativa, em sede executiva não está em causa a mera invocação da violação dum direito, antes se pressupondo um prévio acertamento sobre a existência e configuração do direito exequendo.
«Daí o dizer-se que o “acertamento” é o ponto de partida da acção executiva, uma vez que a realização coactiva da prestação pressupõe a anterior definição dos elementos (subjectivos e objectivos) da relação jurídica» – Acórdão da Relação de Coimbra de 20.03.2012, P. 3620/10.1TBVIS-A.C1, in www.dgsi.pt.
As espécies de títulos executivos encontram-se taxativamente elencadas no artigo 46º do mesmo diploma, onde se incluem os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes – al. c) do normativo citado.
No caso em apreço, os documentos apresentados pela exequente não possuem todas essas características, ao contrário do alegado no requerimento executivo.
Com efeito, o formulário apresentado e documento junto aos autos não importam a constituição, nem o reconhecimento, de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinável por simples cálculo aritmético.
Vejamos melhor.
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O título apresentado é uma mera proposta de crédito, que a “(…)” se reservou o direito de aceitar.
É sabido que quando no contrato se prevê, apenas, a constituição de prestações futuras, se mostra necessário a apresentação de documento emitido em conformidade com o convencionado no mesmo, que demonstre a efectiva realização de alguma prestação ou a constituição de obrigação, no seguimento do previsto pelas partes.
Isto porque é imperioso que o título permita certificar a existência da obrigação que se constituiu entre as partes, já que só dessa forma representará um facto jurídico constitutivo do crédito, que deve emergir do próprio título.
No caso em apreço, pressupondo que o documento designado de “Contrato de Crédito em Conta Corrente” apresentado está interligado ao formulário assinado com os nomes dos executados, temos que aquele previa, na sua cláusula 1.2. das cláusulas gerais, que a conclusão do contrato ficava dependente de uma comunicação pela “(…)” a autorizar a utilização do crédito.
Tal comunicação não consta dos autos, nem a ela se faz alusão no requerimento executivo, sendo certo que o documento designado “Direct Cash” não possui qualquer data, desconhecendo-se quando terá sido assinado.
Por outro lado, a exequente não apresentou qualquer documento susceptível de comprovar que a quantia que terá sido solicitada pelos executados, no montante de 2.000 €, lhes foi efectivamente disponibilizada.
Os documentos apresentados não são, pois, idóneos a provar, desde logo, que o alegado contrato foi concluído e que, nessa sequência, foi emprestada ou disponibilizada qualquer quantia aos executados.
Por outro lado, do documento assinado com os nomes dos executados decorre que estes solicitaram a quantia de € 2.000,00, em data que se desconhece, a restituir em 48 meses.
Pese embora a cláusula 5 das designadas condições gerais preveja a possibilidade de o limite máximo de crédito concedido poder ser alterado, em fracções sucessivas, até € 6.000,00, por iniciativa da (…) ou autorização desta, a pedido do mutuário, não existe qualquer documento nos autos que titule a ocorrência da solicitação pelos executados e disponibilização pela “(...)” de montantes superiores ao inicialmente previsto.
Nesta medida, o valor peticionado a título de quantia exequenda – € 4.127,76, acrescido de juros vencidos no montante de € 2.559,21 –, não possui qualquer correspondência com o valor que terá sido solicitado pelos executados, que consta do título dado à execução – € 2.000,00.
Do mesmo modo, do contrato em questão não decorre qual o custo efectivo do crédito, isto é, o montante devido a título de juros, impostos e demais encargos.
Neste ponto, as condições gerais da proposta referem, apenas, que o número das prestações mensais é variável, e que o custo do crédito varia em função das utilizações, montante e duração do saldo devedor, sendo composto pelo crédito utilizado, juros diários vencidos, impostos e demais encargos, correspondendo a uma Taxa Nominal Anual de 24,33% e a uma Taxa Anual Efectiva Global (TAEG) de 28,45% – cláusula 6.
Desconhece-se, pois, quais as taxas de juro que são aplicáveis ao crédito que terá sido concedido aos executados, as quais não vêm, sequer, indicadas no requerimento executivo.
Acresce que, segundo alega a exequente, o contrato foi resolvido em 17.04.2006.
De acordo com a cláusula 10.2 das cláusulas gerais “(…)”, mantendo-se o incumprimento do contrato pelos mutuários, aquela poderia resolver o contrato e exigir o pagamento imediato de todas as prestações em dívida, incluindo juros e encargos vencidos, bem como o capital remanescente, acrescidos de uma penalidade de 8%, a título de cláusula penal.
Ora, dos documentos apresentados não decorre qualquer incumprimento definitivo do contrato pelos executados, nem que a resolução do mesmo tenha efectivamente ocorrido e, sobretudo, que tenha sido notificada aos mesmos, conforme se impõe para produzir eficácia, atento o disposto nos artigos 436º, n.º 1 e 224º do Código Civil.
Tal como se expendeu no acórdão da Relação de Coimbra de 25.01.2011,2 que acompanhamos, dada a necessidade de se acautelar a certeza e segurança das obrigações, do título executivo tem necessariamente que constar a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias, «o que não sucede quando estão em causa quantitativos que emergem de situações de incumprimento contratual que dependem da alegação e prova de factos que não têm expressão no próprio título, isto é, não estão por ele documentados nos termos exigidos pelo referenciado artigo 46.º/1, al. c), do C.P.C». – P. 906/10.9TBACB.C1, in www.dgsi.pt.
Não basta, pois, a apresentação do documento particular em que se fixe uma cláusula penal para funcionar em caso de não cumprimento de qualquer obrigação contratual para existir título executivo em relação à quantia da indemnização ou da cláusula penal estabelecida, já que ele não fornece prova sobre a constituição da respectiva obrigação.
Assim, «ainda que os pressupostos abstractos da obrigação de indemnização decorrente da resolução se encontrem inseridos no contrato, a sua concretização exige a alegação e prova de factos, retirando à documentação apresentada o grau de certeza e de segurança próprios do título executivo».
No mesmo sentido, lê-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.6.2007, que «quando a relação jurídica entra numa fase patológica, como acontece em situações de incumprimento contratual em que a par da resolução do contrato se constitui o direito de indemnização, a obrigação sucedânea é qualitativa e quantitativamente diversa da obrigação primária, exigindo maiores indagações que, em regra, não se satisfazem com a junção do documento que titulava o contrato nem com a alegação dos factos em que se funda a resolução contratual.»
Nestes casos, «porque a acção executiva não constitui o instrumento adequado à definição de direitos, privilegiando-se a actividade conducente ao cumprimento coercivo das obrigações, em vez de o credor avançar de imediato para a acção executiva, deve optar pela propositura de acção declarativa em que em processo contraditório e de natureza cognitiva se poderão apreciar os fundamentos do direito de indemnização e a quantificação do direito de crédito.»
Por fim, diga-se que o facto de constar da cláusula geral 2.6 que o mutuário reconhece a exigibilidade das dívidas decorrentes da utilização do crédito e a sua responsabilidade pelo respectivo pagamento, não confere aos documentos apresentados a natureza de título executivo, na medida que o reconhecimento de uma dívida pressupõe a sua prévia existência, situação que não ocorre quando há uma simples proposta ao credor que se reserva o direito de a aceitar ou aceitar em moldes diversos do solicitado, sem qualquer prova de que haja sido efectivamente disponibilizada qualquer quantia.
De resto, a possibilidade de servirem de base à execução documentos em que se convencionem prestações futuras desde que se prove que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio, apenas tem cabimento legal expresso quanto aos documentos exarados ou autenticados por notário ou outras entidades com competência para tal, conforme decorre do disposto no artigo 50º do Código de Processo Civil.
Em síntese, analisado os documentos apresentados como título executivo verifica-se que:
▪ deles não é possível extrair, ainda que mediante cálculos aritméticos, que a obrigação pecuniária deles emergente seja a que se encontra peticionada – € 6.686,97 (€ 4.127,76 de capital e € 2.559,21 de juros), contra os € 2.000,00 solicitados na proposta apresentada;
▪ o alegado pela exequente no requerimento executivo sob as alíneas 14 a 18 não emerge, nem corresponde, ao teor dos documentos dados à execução.
Neste sentido, impõe-se concluir que os documentos apresentados à execução não contêm a constituição ou reconhecimento de uma obrigação certa, líquida e exigível, que seja determinada por simples cálculo aritmético, conforme exige o artigo 46º, n.º 1, al. c) e 804º do Código de Processo Civil.
Em conformidade, não podemos senão considerar que no presente caso ocorre uma manifesta falta de título executivo, impondo-se a rejeição da presente execução.
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Nos termos do disposto no artigo 820º, n.º 2, do Código de Processo Civil, rejeitada a execução a mesma extingue-se, ordenando-se o levantamento da penhora, o que se determinará.
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3.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 820º, n.ºs 1 e 2 e 812º-E, n.º 1, al. a), 46º, n.º 1, al. c) e 50º e 804º, do Código de Processo Civil, por ser manifesta a falta de título executivo dado à execução, decide-se:
A) Rejeitar o requerimento executivo apresentado pela exequente e, em conformidade, ordenar a extinção da execução;
B) Ordenar o levantamento das penhoras realizadas nos autos – artigo 820º, n.º 2, do Código de Processo Civil.”
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Não se conformando com o decidido, veio o exequente, ora recorrente, impugnar a decisão, defendendo que deve ser revogado o despacho de indeferimento liminar do requerimento executivo, substituindo-se por outro que mande prosseguir os trâmites da execução, formulando as seguintes conclusões:

A) O contrato junto aos autos deve ser considerado como título executivo válido, susceptível de fazer a acção prosseguir.
B) Dele constam todos os elementos exigidos pela lei para tal.
C) O Tribunal de que se recorre fez uma interpretação errada do clausulado do contrato que constitui esse título, para além de ter tomado a decisão baseado em factos não existentes e que não foram alegados pelas partes.
D) Deste modo, o Tribunal a quo excedeu os seus poderes de cognição, violando o princípio do dispositivo disposto no Artigo 5° do CPC.
E) Por essa razão, nunca poderia o douto Tribunal a quo aplicar o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 812° e do artigo 820°, n.º 1, do antigo CPC.
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Conhecendo.
A questão a resolver é a de saber se o documento junto pela exequente com o requerimento executivo constitui título executivo.
Para apreciação da questão há que ter em conta o circunstancialismo factual acima descrito.
Um dos pressupostos da ação executiva, porventura o mais importante, é que o dever de prestar conste de um título, o título executivo.
Sem este pressuposto formal, inexiste o grau de certeza que o sistema tem como necessário para o recurso à ação executiva, ou seja, à realização coativa de uma determinada prestação.
Tal título deve oferecer a segurança mínima reputada suficiente quanto à existência do direito de crédito que se pretende executar.
“O título executivo constitui pressuposto de carácter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão substantiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor.
Constitui, assim, a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto (artigo 45.º n.º 1), assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação (art. 55º, nº 1)” – Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1999, pág. 87.
Nenhuma ação executiva deve ter seguimento sem que o tribunal de execução interprete o título que lhe serve de fundamento e, sempre que existam dúvidas acerca do tipo ou do objeto da obrigação titulada, o título não é exequível e o credor tem de recorrer previamente a uma ação declarativa de condenação ou de simples apreciação – Lebre de Freitas, “A acção executiva depois da reforma da reforma”, 5.ª edição, pág. 35.
De entre as diversas espécies de título executivo a lei processual civil previa, ante da entrada em vigor do NCPC, no artº 46º/1 c), “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.
É exatamente esta espécie de título executivo que está aqui em causa.
O documento dado à execução formaliza um contrato de crédito em conta corrente e encontra-se assinado pelos devedores
Diz-se na sentença sob recurso que “o título apresentado é uma mera proposta de crédito, que a “Cofidis” se reservou o direito de aceitar.
É sabido que, quando no contrato se prevê apenas a constituição de prestações futuras, se mostra necessário a apresentação de documento emitido em conformidade com o convencionado no mesmo, que demonstre a efetiva realização de alguma prestação ou a constituição de obrigação no seguimento previsto pelas partes.
Isto porque é imperioso que o título permita certificar a existência da obrigação que se constituiu entre as partes, já que só dessa forma representará um facto jurídico constitutivo do crédito, que deve emergir do próprio título.
No caso em apreço, pressupondo que o documento designado de “Contrato de Crédito em Conta Corrente” dado à execução está interligado com o formulário assinado com os nomes dos executados, aquele previa, na sua cláusula 1.2. das cláusulas gerais, que a conclusão do contrato ficava dependente de uma comunicação pela “(…)” a autorizar a utilização do crédito.
Tal comunicação não consta dos autos, nem a ela se faz alusão no requerimento executivo, sendo certo que o documento designado “Direct Cash” não possui qualquer data, desconhecendo-se quando terá sido assinado.
Por outro lado, a exequente não apresentou qualquer documento suscetível de comprovar que a quantia que terá sido solicitada pelos executados, no montante de € 2.000,00, lhes foi efetivamente disponibilizada.
Por outro lado, do documento assinado com os nomes dos executados decorre que estes solicitaram a quantia de € 2.000,00, em data que se desconhece, a restituir em 48 meses.
Pese embora a cláusula 5 das designadas condições gerais preveja a possibilidade de o limite máximo de crédito concedido poder ser alterado, em frações sucessivas, até € 6.000,00, por iniciativa da (…) ou autorização desta, a pedido do mutuário, não existe qualquer documento nos autos que titule a ocorrência da solicitação pelos executados e disponibilização pela “(…)” de montantes superiores ao inicialmente previsto.
Nesta medida, o valor peticionado a título de quantia exequenda – € 4.127,76, acrescido de juros vencidos no montante de € 2.559,21 –, não possui qualquer correspondência com o valor que terá sido solicitado pelos executados, que consta do título dado à execução – € 2.000,00.
Do mesmo modo, do contrato em questão não decorre qual o custo efetivo do crédito, isto é, o montante devido a título de juros, impostos e demais encargos.
Neste ponto, as condições gerais da proposta referem, apenas, que o número das prestações mensais é variável, e que o custo do crédito varia em função das utilizações, montante e duração do saldo devedor, sendo composto pelo crédito utilizado, juros diários vencidos, impostos e demais encargos, correspondendo a uma Taxa Nominal Anual de 24,33% e a uma Taxa Anual Efetiva Global (TAEG) de 28,45% – cláusula 6.
Desconhece-se, pois, quais as taxas de juro que são aplicáveis ao crédito que terá sido concedido aos executados, as quais não vêm, sequer, indicadas no requerimento executivo.
Acresce que, segundo alega a exequente, o contrato foi resolvido em 17.04.2006.
De acordo com a cláusula 10.2 das cláusulas gerais “(…)”, mantendo-se o incumprimento do contrato pelos mutuários, aquela poderia resolver o contrato e exigir o pagamento imediato de todas as prestações em dívida, incluindo juros e encargos vencidos, bem como o capital remanescente, acrescidos de uma penalidade de 8%, a título de cláusula penal.
Ora, dos documentos apresentados não decorre qualquer incumprimento definitivo do contrato pelos executados, nem que a resolução do mesmo tenha efetivamente ocorrido e, sobretudo, que tenha sido notificada aos mesmos, conforme se impõe para produzir eficácia, atento o disposto nos artigos 436º, n.º 1 e 224º do Código Civil.
Por fim, diga-se que o facto de constar da cláusula geral 2.6 que o mutuário reconhece a exigibilidade das dívidas decorrentes da utilização do crédito e a sua responsabilidade pelo respetivo pagamento, não confere aos documentos apresentados a natureza de título executivo, na medida que o reconhecimento de uma dívida pressupõe a sua prévia existência, situação que não ocorre quando há uma simples proposta ao credor que se reserva o direito de a aceitar ou aceitar em moldes diversos do solicitado, sem qualquer prova de que haja sido efetivamente disponibilizada qualquer quantia”.
Esta linha de raciocínio do tribunal a quo não merece censura, porque se baseia na análise do título dado à execução e nas normas legais que lhe devem ser aplicadas.
Com efeito, decorre das «Condições Gerais» insertas no documento de fls. 65 que a proposta assinada pelos mutuários só se converteria em contrato se a (…) confirmasse a concessão do crédito e que consideraria como data de conclusão do contrato a da comunicação pela (…) da autorização de utilização do crédito (cfr. ponto 1.2.)
Porém, não está alegado nem documentado que a (…) tenha efetuado tal comunicação e em que data.
Mas a admitir-se que tal comunicação foi efetuada e que, assim, o documento de fls. 64 e 65 consubstancia um contrato, dele não resulta que o crédito foi disponibilizado aos executados, e em que data, mas tão só a vinculação da (…) a disponibilizá-lo; por seu lado, o executado obrigou-se a pagar as mensalidades de € 66,65 cada, durante 48 meses, mas como contrapartida da disponibilização do crédito.
A análise do documento dado à execução revela que nele está convencionada uma prestação futura, por parte da (…), e que a obrigação de pagamento das mensalidades de € 66,65 por parte dos executados só se constituiria no momento e na medida da efetiva concessão do crédito.
Em consequência, o referido documento, por si só, não importa a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias por parte dos executados, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes.
Nos pontos 2.5 e 2.6 das «Condições Gerais» do documento de fls. 65 e 66, prevê-se o envio mensal pela (…) ao mutuário de um extrato com o registo de todos os movimentos da «Conta Certa», estabelecendo-se que «As operações registadas no extrato consideram-se corretas e aprovadas pelo Mutuário se este, nos 30 dias seguintes à data de emissão, não manifestar desacordo por carta».
Porém, esses extratos mensais não constam dos autos nem a exequente alegou a sua existência e, mesmo que constassem, tal não teria a força bastante para conferir ao documento de fls. 65 e 66 a qualidade de título executivo, tal como decidiu o Ac. TRL de 3-10-2013, P. 8159/12.8TBOER.L1-6:
“Diversamente do que sucede com os documentos autênticos ou autenticados, não é admissível a realização de prova complementar prevista no artigo 50º do Código de Processo Civil no caso dos documentos particulares em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras.”
E também o Ac. TRL de 10-10-2013, P. 12869/10.6T2SNT.L1-7:
“Sendo convencionadas prestações futuras, como no caso de abertura de crédito, para que o documento pudesse constituir título executivo, necessário se mostrava que fosse provado que alguma prestação foi realizada para a conclusão do negócio, já na situação de constituição de obrigações futuras, importava que ficasse demonstrado que a obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes, sendo tal prova realizada nos termos do art.º 50 do CPC, cuja aplicação se mostrava restrita a documentos exarados ou autenticados por notário, ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, afastada ficando assim dos documentos particulares.”
Em consequência, deve concluir-se que o documento dado à execução não reúne os requisitos necessários para ser considerado título executivo nos termos do art. 46º, nº 1, al. c), do CPC, ou seja, da interpretação das cláusulas constantes do documento dado à execução, não é possível determinar, por simples cálculo aritmético, o montante da obrigação pecuniária que os executados se terão constituído na obrigação de cumprir, na perspetiva do exequente, ora recorrente.
E isto, porque é necessário que o título permita certificar a existência da obrigação que se constituiu entre as partes, pois só assim representa o facto jurídico constitutivo do crédito e que deve emergir do próprio título – Alberto dos Reis, Processo de Execução, I, pág. 125.
Como bem concluiu o tribunal a quo, a prova não foi feita no caso concreto, ou seja, não se provou que foi entregue aos executados a quantia de € 2.000,00, pelo que do documento dado à execução não pode emergir um direito constituído na esfera jurídica da exequente, devendo, isso sim, propor uma ação declarativa, onde discuta todo o negócio que alega ter a (…) celebrado com os ora executados.
Foi esta insegurança jurídica que esteve na origem da não inclusão dos documentos particulares de reconhecimento de divida, no elenco do artº. 703º do NCPC, uma vez que o título executivo previsto no artº. 46º/1, c), do CPC anterior havia sido demasiado ousado, devendo agora estes documentos ser submetidos a uma fase declarativa.
Contudo, cumprindo os requisitos legais à data da sua emissão, a sua eficácia como título executivo tem de ser reconhecida, como decidiu o Ac. do Tribunal Constitucional no Procº 408/2015, de 23-09-2015 que declarou com força obrigatória geral a “a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei nº 41/2013, Junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703º do Código de Processo Civil, e 6º, nº 3, da Lei nº.41/2013, de 26 de Junho, por violação do princípio da protecção da confiança (artº 2º da Constituição)”.
Mas não é o caso dos autos, como acima concluiu, pelo que improcedem, em consequência, as conclusões da recorrente, devendo manter-se a decisão apelada.
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DECISÃO
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Évora, 08-11-2018
José Manuel Barata (relator)
Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura